segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1519: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (7): Extractos da entrevista de Ramalho Eanes ao 'Expresso'

VII parte do dossiê O massacre do chão manjaco > Ideia, pesquisa, compilação e edição de Afonso M. F. Sousa , ex-furriel miliciano de transmissões da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70) (1).

Extractos da primeira entrevista que António dos Santos Ramalho Eanes concedeu - ao jornalista José Pedro Castanheira, do Expresso - depois de se doutorar, em Novembro passado, pela Universidade de Navarra. Hoje, com 72 anos, o ex-presidente da República, general e agora doutor, fala da Guiné e dos trágicos acontecimentos do dia 20 de Abril de 1970... Tomamos a liberdade de divulgar alguns extractos dessa longa conversa (Ramalho Eanes: "Os políticos desprezam os militares"), para conhecimento dos Amigos & Camaradas da Guiné.

Fonte: Expresso, 27 de Janeiro de 2007 (com a devida vénia...)


(...) Em 1970 vai para a Guiné. É uma quarta experiência.

É realmente uma situação totalmente diferente, porque a colonização na Guiné não foi feita pelos portugueses - foi pelos cabo-verdianos. Era muito estranho que, sendo a colonização feita pelos cabo-verdianos, fossem estes os líderes políticos da guerrilha.

Esteve em combate?

Nunca estive propriamente numa unidade combatente. Estive em situações de combate várias vezes, acompanhando operações. Fui a convite de Spínola e fiquei na 5ª Repartição, no Departamento de Radiodifusão e Imprensa, que tinha a seu cargo, para simplificar, a propaganda e contra-propaganda. O que implicava, por vezes, a reportagem na própria acção militar, mas a minha missão não era combater. Depois, fui para Teixeira Pinto substituir o major Passos Ramos - um dos três majores assassinados pelo PAIGC. Spínola tinha tentado uma aproximação com o PAIGC militar. Os três majores envolvidos acabaram por ser mortos, naquela que seria a reunião decisiva.

Esse episódio podia ter mudado o rumo da guerra?

Acho que não. O que podia ter mudado era o entendimento de Spínola com o PAIGC, que chegou a esboçar-se através de Senghor - mas que Marcelo Caetano não sancionou.

Foi um assassínio a sangue frio?

Sim, sim. Na tradição da Guiné e daquela área dos manjacos. A unidade que assassinou os majores e os condutores das viaturas que os transportavam era comandada por André Pedro Gomes.

Alguma vez se cruzou com ele?

Não. Quando visitei a Guiné pela primeira vez, falaram-me dele, mas eu disse que não o queria ver. Se calhar sem razão, mas ainda hoje sinto uma certa repulsa pela sua atitude.

Foi um golpe à traição.

Uma traição. A guerra, hoje, não tem regras. A prova é a chamada justiça dos vencedores.

Mas sempre houve!

Nem sempre. Houve uma deriva que se manifesta, de maneira indiscutível, depois da II Guerra Mundial. Até aí, havia um certo respeito pelas regras e pela honra dos vencidos. Há aquele célebre quadro de Velázquez, "A Rendição de Breda", extremamente interessante: o vencedor, quando recebe a chave da cidade, faz uma vénia ao vencido.

Mas essa era uma guerra de cavalheiros.

Quando a guerra começa a ser total, deixa de ser de cavalheiros. Na II Guerra Mundial, o nazismo cometeu crimes hediondos, que não podem ter justificação nem atenuante. Mas os aliados também cometeram crimes: os bombardeamentos de Dresden e os bombardeamentos atómicos, por exemplo, não visaram objectivos militares. A guerra total visa a destruição do "inimigo", no qual se englobam o seu aparelho militar e a sua população.

Os portugueses também cometeram os seus vandalismos.

Não digo que não. A guerra é, por força da sua natureza, uma situação de excessos, em que o homem revela aquilo que tem de melhor e de pior. Isso muitas vezes nem depende propriamente de um comando incorrecto, mas de um medo incontrolável. O homem quando tem medo e quer sobreviver é capaz de tudo. Incluindo actos que são perfeitamente inaceitáveis. E nós, tal como o adversário - e não só na Guiné -, também tivemos actos reprováveis e condenáveis. (...)

Sem comentários: