quinta-feira, 17 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3067: Estórias do Juvenal Amado (12): O longo abraço (Juvenal Amado)



Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74



1. No dia 12 de Julho de 2008, recebemos esta mensagem do nosso camarada Juvenal Amado

Caros Carlos, Virgilio e Luis Graça e toda a Tabanca

Esta estória acaba por ser a história de um camarada nosso, mas acima de tudo serve para prestar homenagem a um homem bom, que em dada altura ajudou outro sem esperar qualquer beneficio. Antes pelo o contrário o ter ignorado a questão, podia ter-lhe trazido alguns problemas.

Tenho lido a série dos nossos regressos. Não li todos mas já alguns entre eles os relatos do Carlos e do Virgilio. Gostei muito. Nem eu me lembrava do que senti também quando regressei.
Possivelmente também escreverei sobre isso, mas ainda estou . Ainda não consigo regressar.

Um abraço para todos
Juvenal Amado






Caderneta Militar do Filipe



2. O longo abraço
Tem cuidado, deixa essas conversas para a Metrópole. O africano veio fazer queixa de ti.

Por Juvenal Amado

Naquele momento sentiu desabar sobre ele uma infinidade de sensações. Umas de revolta por ser tão ingénuo, outras de espanto por alguém que sendo também um oprimido, tinha feito queixa dele.

O Alferes Mota era o Comandante do Pelotão das Transmissões e por conseguinte o Oficial Superior do nosso camarada. Estava de Oficial de Dia, tinha recebido a denúncia. Após ter-lhe feito a recomendação, dirigiu-se para messe.

Meio atarantado, o Rádiomontador Filipe dirigiu-se para o seu abrigo cheio de medo e pensando:
– Desta vez não me safo - criticar o regime na nossa situação, pode ser considerado traição.

Tudo se tinha passado no Regala (*), pequena loja de utilidades que também servia uns bitoques com um tempero africano, que era de comer e chorar por mais.

O Filipe, como de costume, tinha algum prazer em iniciar as discussões. Dessa vez não foi diferente e a forma como se estava a ministrar o ensino da língua portuguesa, às crianças da Guiné, era para ele motivo de crítica. O individuo de cor chegou-se à mesa ninguém sabe bem como. Cada um pensou que ele era amigo do outro e ninguém fez reservas. Entrou na conversa sobre a escola e o ensino que estava a ser administrado nas escolas primárias.

O Filipe entusiasmou-se com a conversa e sem se aperceber de inicio, com a retirada estratégica da conversa que os companheiros de mesa fizeram, soltou tudo que pensava e quanto mais os outros se retraíam, mais ele avançava.

Mais alguns mas... da parte do negro (possivelmente professor) o Filipe, subia o nível as criticas ao Estado e à guerra, aliás assunto que já lhe tinha causado alguns dissabores e apertos. (**)

O africano levantou-se e dirigiu-se na direcção da Porta de Armas, que ficava talvez a quinhentos metros.

O Filipe que tinha caído em sí e desconfiado, seguiu até o ver entrar no Quartel.
Ficou com o coração apertado, mal disse o seu feitio de ser pouco cuidadoso com quem falava, pois ele sabia como as opiniões politicas contra o regime eram tratadas.
Mas ele era assim, quando via ou ouvia algo que lhe desagradasse, tomava partido e como era costume, raramente alguém compreendia as suas razões.

Entretanto, algum tempo depois vai para Bolama, em gozo de férias. Naquele tempo cometia-se toda casta de imprudências, desde beber por copos possivelmente mal lavados, comer marisco de proveniência duvidosa, enfim petiscos porque férias são férias.

As férias foram óptimas naquele ambiente paradisíaco e exótico.
Já perto do regresso a Galomaro, adoece e é já doente que chega ao destacamento. Está todo amarelo, é urgentemente evacuado para o Hospital Militar de Bissau. Está com hepatite e corre perigo de vida.

E é lá que está, quando o Alferes Mota chega, também ele doente com hepatite. O Filipe vai vê-lo através da porta envidraçada da enfermaria dos infecto-contagiosos. É numa dessas espreitadelas que vê o enfermeiro junto à cama, com o nosso camarada já morto.

Dois dias após a sua chegada, morre o alferes Mota (***), com os parâmetros das análises mais baixas do que as do Filipe.
A morte passou por ali e fez a sua escolha.

O Filipe esteve internado 32 dias em Bissau, antes de ser evacuado para o Hospital Militar da Estrela em Lisboa, onde esteve 173 dias.

Conhecendo eu o Filipe, o seu romantismo revolucionário, não o deve ter deixado calado por onde passou. Resultado cartas, fotos e objectos, que ao tempo foram considerados suspeitos vá-se lá saber porquê, tudo desapareceu entre Galomaro, Hospital de Bissau e Estrela .

A PIDE também visitou a casa da mãe no Porto, quando ele por sorte estava em Lisboa. A seguir, o 25 Abril veio pôr fim aos delitos de opinião, que as gerações mais novas nem sonham o que era, talvez por nossa culpa.

O Filipe faz um sentido agradecimento à memória do Alferes Mota, por o ter ajudado naquela noite, quando ele regressava do Regala. Eu também lhe agradeço, pois pequenos gestos como o que praticou, ajudaram a anular a suspeita, as escutas e a delação, que eram uma constante nas nossas vidas.

Brancos ou pretos, a PIDE não escolhia cores e o braço era longo.
Obrigado Alferes Mota.

Algumas notas:
(*) - O senhor Regala era um individuo de origem caboverdiana, que para além de proprietário do café, também faziam colunas de reabastecimento connosco. Homem bem falante e lúcido, quanto aos problemas da sua terra. Dizia-se que tinha relações privilegiadas com a guerrilha e por isso, coluna onde ele fosse nunca era atacada. Galomaro também beneficiava dessa protecção, o que veio provar-se ser mentira, uma vez que fomos violentamente atacados.

(**) - Em dada altura que o Filipe, assistiu à saída de camaradas para os postos avançados e patrulha nocturna, desatou a fazer barulho e a protestar contra o facto. O barulho chegou aos ouvidos do Comandante, que mandou averiguar o que se passava. Dessa vez o anjo protector chamou-se Dr. Pereira Coelho, que abraçando-o, disse-lhe ao ouvido que se fingisse bêbado e assim o salvou.
Por vezes O Filipe, era mal compreendido e se não vejamos o episódio das bajudas; Ao fim da tarde, os soldados iam ter com as lavadeiras, que se acercavam do destacamento. Eram momentos em que os soldados, davam por vezes largas a alguma falta de respeito para com as lavadeiras. Alguns por graça e para as ouvir dizer de uma enfiada só, todos os palavrões que conheciam em português e no seu dialecto. Apalpavam-nas e diziam-lhe que não lhes pagavam, por elas lhes terem partido os botões todos, ao lavarem as camisas como hábito, batendo com as ditas em pedras pois sabão, era coisa que não entrava nos seus apetrechos.
Tínhamos chegado a Galomaro, quando o Filipe se insurgiu contra uma dessas cenas, que verdade se diga não eram muito dignificantes, pois algumas bajudas eram muito novas. Resultado foi ele se envolver em briga, com um dos participantes dessa tertúlia, indo parar ao chão com o estalo que recebeu.

(***) - O Alferes Mota era um oficial miliciano, antigo seminarista, bastante culto, muito correcto para com os seus subordinados.
Morreu se não estou em erro no dia 26 de Novembro de 1972 com hepatite e não com paludismo como escrevi na minha estória O Ultimo Natal em Galomaro.

PS: Esta estória resulta da correspondência que tenho mantido com o Filipe há já algum tempo.

Juvenal Amado
09.07.08

Foto 1 > O Filipe com a lavadeira

Foto 2 > O Filipe com o Esofe que se juntou à Resistência

Foto 3 > O Filipe em Galomaro

Foto 4 > O Filipe na esplanada do Regala com dois camaradas do STM e Centro de Operações

Foto 5 > O Filipe no HM 241 de Bissau

Fotos © Juvenal Amado(2008). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2938: Estórias do Juvenal Amado (11): Galomaro, Bambadinca, Cancolim e Gabu (Juvenal Amado)

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