A ida e o regresso do BCaç 3832
Germano Santos
ex-1.º Cabo Operador Cripto
CCaç 3305/BCaç 3832
Mansoa 1971/73
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Tudo começou a 19 de Dezembro de 1970 quando manhã cedo os putos e os menos putos, sendo que na maioria eram mesmo putos, nos pusemos a subir as escadas que nos conduziam ao barco que nos iria levar.
Grande estreia em viagens marítimas e de tão grande distância para quase todos nós.
O destino era Bissau. O destino era a Guerra.
O "Carvalho Araújo" também não queria ir
O transporte era horrível, nada mais nada menos que o "Carvalho Araújo", barco que simultaneamente com o transporte de militares para África, servia também para o transporte de gado dos Açores para o Continente.
Os aposentos então, eram uma pequena "maravilha". Tudo ao molho e fé em Deus porque o cansaço por certo apareceria e para dormir qualquer lado havia de surgir.
Lá arrancámos, mas as coisas não começaram bem. Então não é que o "Carvalho Araújo" não queria navegar e resolveu parar ali mais ou menos sob a ponte. Já não me recordo se foi na noite desse dia ou na manhã seguinte que ele resolveu abrir caminho para abraçar e nos pôr também a abraçar essa maravilhosa terra africana.
Viagem de amotinados ou coisa parecida foi o que me pareceu ser a viagem nos primeiros dias, tantos eram os vómitos, tantas eram as bebedeiras.
Para compensar o facto do nosso barco navegar muito depressa e por essa razão nos ter feito passar o Natal dentro dele, lá fomos presenteados com uma manhã no Mindelo, São Vicente, Cabo Verde.
Creio que uma grande parte de nós terá comido pela primeira vez batatas fritas, mas doces. Eu comi e estranhei imenso.
Seguimos viagem e eis-nos em Bissau a 29 de Dezembro. Julgo que terá sido batido o record marítimo Lisboa-Bissau, nada menos nada mais que dez dias. Um espectáculo.
Depois seguiu-se o Cumeré para uns, o Quartel-General para outros e, mais tarde, cerca de um mês, a zona de intervenção do Batalhão para todos.
De volta no Uíge
O regresso, o ansiado regresso deu-se em Janeiro de 1973, aos dias 6 desse mês e num barco a sério (para quem tinha ido no Carvalho Araújo) o "Uíge". Cinco dias, apenas cinco dias, metade do tempo gasto na ida, foi quanto demorámos a regressar.
Para além da felicidade que foi o regresso, as condições não tinham nada a ver com a ida.
Melhores acomodações. Melhor comida. Menos vómitos. Menos bebedeiras, mas muita, muita alegria.
Duas situações ocorreram nesta viagem que demonstram claramente como alguns de nós crescemos em África e também como alguns de nós já embarcámos algo crescidos.
Num espectáculo levado a efeito numa das noites da viagem, espectáculo todo ele concebido e realizado por nós militares, praças, cabos, sargentos e oficiais, a certa altura ia actuar, creio que declamar poesia, um alferes, mais concretamente o alferes Farinha (actualmente no Brasil).
Todo o comando do Batalhão e do navio estava a assistir ao dito espectáculo. Vai daí o apresentador do mesmo anunciou que o camarada Farinha ia actuar.
Foi o bom e o bonito, o comando do Batalhão chamou de imediato o apresentador para o informar que termo camarada tinha-se esgotado na Guiné, agora os oficiais tinham de ser apresentados pela sua patente.
O apresentador desceu ao palco e informou o alferes Farinha que o espectáculo deixava de ter apresentador.
Confesso que já não me lembro se o espectáculo continuou ou não, penso que sim, mas não comigo.
Uns dias antes de embarcarmos, alguns de nós que em Bissau, no Café Pelicano, aguardávamos pelo transporte de regresso, começámos a falar sobre a "porra" do tempo que tínhamos estado na Guiné. Achávamos nós que tinha sido muito tempo, de Dezembro de 1970 a Janeiro de 1973. Para nós eram três anos de calendário, embora soubéssemos que de facto tinham sido mais ou menos 25 meses.
Vai daí decidimos arranjar um lençol no qual escreveríamos qualquer coisa parecida com isto:
Guiné 1970 – 1973 – Porra é muito tempo
A ideia era prender o lençol onde fosse possível e apenas no dia do desembarque em Lisboa, para que todos soubessem o que pensávamos da nossa guerra em terras da Guiné. Se melhor o pensámos melhor o fizemos.
E, na verdade, no dia do desembarque, lá no alto do "Uíge", preso aos botes de salvação, lá estava o nosso lençol, muito esticadinho para que se pudesse ler bem o que nele escrevemos.
Com o que não contávamos é que nesse dia, manhã cedo, Lisboa iria acordar com um denso nevoeiro no Cais da Rocha e nem tão pouco com a pronta resposta da Polícia Militar.
O que o lençol dizia só se começou a ler quando o barco atracou, mas foi mensagem de pouca duração, dado que a Polícia Militar entrou pelo navio dentro e deu cabo da nossa saudação.
Creio que ainda tentaram saber quem tinham sido os engraçadinhos, mas julgo que acabaram por desistir e deixaram-nos ir em paz, não para casa, mas sim para Abrantes a fim de fazermos o espólio.
E pronto, acabou-se a minha história sobre a ida e o regresso do Valoroso Batalhão de Caçadores 3832.
Um abraço para todos.
Germano Santos
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Notas:
1. fixação do texto e sublinhados de vb;
2. Artigos relacionados em 11 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1835: Tabanca Grande (10): Germano Santos, ex-1º Cabo Op Cripto, CCAÇ 3305 / BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73
16 Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3064: Os nossos regressos (10): Uma ida atribulada, um regresso tranquilo...(Valentim Oliveira)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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