segunda-feira, 14 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3059: Memória dos lugares ( 9): Bambadinca , 1963 (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)


1. Mensagem, com data de 12 do corrente, de Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84 (Bambadinca, 1961/63) (*)


Amigo Luís:


Desde que comecei a ver no blogue as imagens aéreas de Bambadinca [, do tempo da tua CCAÇ 12, 1969/71,] tive vontade de dizer algo sobre a Bambadinca do meu tempo [, 1963]. Aí vai uma pasta com um boneco (mal feito), a descrição que a memória me permite e algumas fotografias de diversos destacamentos onde estive.

Um Grande Alfa Bravo

Alberto Nascimento




2. Memória dos lugares (**)> A Bambadinca do meu tempo

Texto e imagens: © Alberto Nascimento (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Bambadinca, Março de 63

Desde que comecei a ver as imagens aéreas de Bambadinca apresentadas no blogue, perguntei a mim próprio:
- Onde está a Bambadinca que eu conheci?

A não ser as fotografias que identificam alguns edifícios que julgo reconhecer e outros que reconheço, como a casa do chefe de posto e a igreja (despromovida a capela), não consigo sequer identificar a velha estrada ao longo da qual e de ambos os lados se localizava toda a povoação.

Era assim a Bambadinca do meu tempo:

Vamos partir cá do fundo, do antigo atracadouro da jangada, já desactivado há muito, depois da construção da ponte e para onde eu ia ver o Macaréu logo que começava a ouvir o seu rugido, ora próximo ora afastado, até conseguir vencer as curvas sinuosas do leito do rio Geba.

No princípio da povoação a estrada era ladeada por casas de comércio de portugueses e outros.

Do lado esquerdo só contactei e me lembro da última casa onde eu comprava os cigarros e que era gerida por um português, grande especialista na manipulação da balança decimal, quando pesava a mancarra e outras sementes que os agricultores precisavam de vender. Na pesagem dos sacos de mancarra era curioso ver que cada saco nunca pesava os dez quilos, mas ele, boa alma, considerava e pagava os dez quilos. Os agricultores saíam enganados mas felizes, ou talvez não... Entre esta casa e a seguinte, a do libanês Amin, havia um grande espaço que dava acesso à tabanca, que começava com um grupo de moranças em fila, na posição perpendicular à estrada.

Ao fundo a tabanca alargava-se para a esquerda e com maior aglomeração para a direita e depois na direcção da estrada, até encostar às traseiras da casa do Amin.

Na continuação desta casa só mais acima, já em frente ao quartel, havia uma construção que teria sido um armazém de mancarra mas à qual só conheci a função de prisão.




Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > O famoso e imponente bagabaga, existente nas imediações de Bambadinca. No topo vê-se o Humberto Reis, ex-Fur Mil Op Esp, CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Voltemos ao lado direito da estrada.

Havia deste lado também uma longa fila de casas comerciais das quais se destacava a Casa Gouveia, mas das outras não me lembro nadinha... nem dos donos... nem o que vendiam... nada, apagou-se tudo. Também é verdade que, para além dos 45 anos que passaram, pouco ou nenhum contacto tive com essas pessoas, porque os meus tempos livres, que eram curtos, dedicava-os a outros contactos.

Recordo que, a seguir às casas comerciais, havia um espaço não muito grande já em frente à tabanca, onde se realizava o mercado.



A poucos metros do mercado havia um caminho para a direita que logo no início atravessava com uma ponte rudimentar, mas que permitia a passagem de uma viatura, um curso de água onde as mulheres lavavam a roupa. Este caminho dava acesso à destilaria de aguardente de cana do português Lapa e, uns quinhentos metros mais à frente, a uma nascente de água muito limpa onde nos abastecíamos, duas a três vezes por dia, para as necessidades do quartel.

Voltando à estrada, depois deste caminho e em frente à casa do Amin, tenho ideia da existência de uma construção que não recordo o que era.

Mais acima, um largo onde se situavam, à direita em posição perpendicular à estrada, a casa do chefe de posto, à esquerda o quartel, constituído por duas construções, uma pequena mais próxima da estrada para o oficial e sargentos, a outra maior para os praças.

 

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > c. 1969/70 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o Rio Geba ao fundo. Em primeiro plano, as instalações do comerciante, branco, português, Rendeiro... (Natural da região de Aveiro, mais exactamente da Murtosa, tinha ido muito jovem para a Guiné, creio que com 17 anos; vivia com uma mandinga, de quem tinha uma numerosa prole; convidava-nos, a nós, milicianos, com alguma frequência, para ir jantar lá em casa... A esposa, que eu nunca conheci, fazia uma deliciosa galinha de chabéu... Gostava de o voltar a encontrar. Juntamente com o Zé Maria, era o único comerciante branco que restava (ou de que eu lembro) em Bambadinca, em 1969/71, outrora um entreposto comercial florescente)... Parece que havia outros comerciantes ou encarregados de lojas comerciais (plo menos, Casa Gouveia e uma loja libanesa), mas eu não tinha contactos com eles. (LG)

Foto: ©
Humberto Reis (2008).Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Em frente, junto à vedação do quartel, estava o gerador que, por economia,  só funcionava poucas horas depois do anoitecer, após o que tudo passava a funcionar a petróleo. Até a iluminação exterior do quartel era feita com alguns Petromax e vulgares lanternas. Felizmente, a geleira onde se refrescava a Sagres 7dl, só funcionava a petróleo e enquanto este não faltasse, havia cerveja fresca, isto quando havia cerveja...

Continuando na estrada, a seguir ao quartel e com vedações quase encostadas ficava a última construção, a igreja onde oficiou, até à sua detenção, o padre Grillo [, o missionário italiano, acusado pela PIDE de estar ligado ao PAIGC].

Depois a estrada continuava até à bifurcação para a direita e para a esquerda e era nesta zona que existia um cemitério. A estrada que seguia para a direita dava acesso à pista se aterragem.

Bambadinca era assim...Só isto...

O recrudescimento da guerra alterou-a fisicamente mas, na minha opinião, nem a guerra nem o após guerra, deu ao seu povo algo de bom, a não ser uma nação que, com o rumo que os políticos têm seguido, não sei quando poderá dar-lhe o que ele merece e a que tem todo o direito. Se continuarem permitir que a Guiné beneficie de algumas migalhas cedidas por interesse por barões da droga, que transformaram o seu território num entreposto, sabe-se lá com que apoios internos, se não houver um governo que decida governar o país para o seu povo e devolver-lhe a visibilidade e dignidade que lhe pertence, por direito herdado dos seus ancestrais, seja qual for a sua etnia e a sua cultura...

Então começarão a perguntar-se: Valeu a pena? E se esta pergunta chega a ser feita, depois de tantos sacrifícios, ela significa a descrença total ou mesmo a desistência de um povo.

Por enquanto, depois da guerra, Bambadinca ficou apenas com umas instalações militares, que me parecem maiores que a própria povoação.

Alberto Nascimento

3. Comentário de L.G.:

Obrigado, Alberto, pelo teu precioso croquis e pelas ainda tão vivas memórias de Bambadinca do teu tempo (1963). Sobre a Bambadinca do meu tempo (1969/71), não vou acrescentar mais nada a tudo aquilo que já foi abundantemente escrito no nosso blogue, por mim próprio e por outros camaradas que lá estiveram, ainda mais tempo do que tu...

Deixa-me só acrescentar que só conheci dois comerciantes, brancos, de origem portuguesa, o José Maria e o [Rodrigo Fernandes] Rendeiro... O que  te vendia cigarros e quiçá roubava no peso da mancarra aos camponeses podia ser o Zé Maria (a primeira loja, na zona 1 do teu croquis)... A loja (e residência do Rendeiro, essa ficava do lado direito da rampa de acesso ao quartel, já próximo do quartel, em frente aos correios, que era do lado esquerdo...

Em meados de 1969 Bambinca era um importante praça de guerra, sede de batalhão, sede do Sector L1 da Zona Leste... Era um posto administrativo, tinha muita população (nem toda fiel às NT) e uma escola... Não sei o que terá acontecido ao sírio Amin nem ao português Lapa, dono de uma destilaria de aguardente de cana no teu tempo...

No teu tempo, também ainda não havia o reordenamento de Bambadincazinho, nem se usaria a desactivada Missão do Sono como destacamento avançado, lá pernoitando, todos os dias, um Grupo de Combate (das unidades adidas, como a CCAÇ 12) para guardar as costas ao senhor tenente-coronel e aos senhores majores...

Fico a agora a saber onde era o tristemente famoso cemitério de Bambadina de que o pobre do Abibo Jau me falava tanto: nunca fiz questão de o visitar... E à igreja só lá ia quando era transformada em morgue...

Tens razão: ninguém em Bambadinca, nem nem no resto da Guiné, ganhou com a guerra. Se é que alguém ganhou com a guerra, na Guiné e em Portugal... Ou até mesmo se alguém ganhou a guerra...

Voltei lá, em 3 de Março de 2008: não aguentei muito tempo, fiquei deprimido, não sei o que me deu, uma tristeza infinita...

Enfim, publicar-te-ei , oportunamente, as outras fotos que mandaste, com memórias de outros lugares: Santa Luzia, Prábis, Farim, Buruntuma, Piche... Obrigado, por quereres prtilhá-las com os teus camaradas da Guiné. Luís


_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

10 de Julho de 2008 >
Guiné 63/74 - P3044: Estórias avulsas (16): Os cães de Bambadinca (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

11 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63)

(**) Vd. útimo poste desta série > 30 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2703: Memórias dos lugares (8): Destacamento de Ponte Balana (Nuno Rubim)

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