segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5054: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (2): Ponte para o regresso

1. Mensagem de José Eduardo Oliveira (JERO) (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), dirigida ao nosso Editor Luís Graça, com data de 30 de Setembro de 2009:

Ganda Luís
Agradavelmente surpreendido pela tua postagem 4943 acerca da Blogoterapia (126) e dos considerandos acerca do periquito de Alcobaça, que se assina JERO.
Fico-te grato pela atenção e, acerca da tua feliz expressão do "Blogando e andando..." tenho que te confessar um pesadelo desta noite... Que, não vais acreditar, mas que eu vou arriscar...

Sou do Benfica desde pecanino e tenho-me habituado ultimamente a ver os jogos dados pela TV com a companhia de um tal "James Martin's", de 20 anos.
Durante o Belenenses-Benfica - o tal de ontem à noite - festejei cada golo com um golinho do 20 years old...

Acabou o jogo e quando ia a rolhar o "James Martin'" pareceu-me ouvir uma voz cavernosa dizer:

- JERO não me voltes a fechar na garrafa onde estou há 20 anos. Agora, que já bebeste tudo, concede-me a liberdade que... eu te concederei um desejo.

Fiquei sem palavras. O que hei-de pedir ao génio da garrafa!?Pensei, pensei e lembrei-me de um trauma dos anos 90!

- Génio posso xingar o Homem Cardoso que uma vez me disse que uma fotografia não deve levar nenhuma legenda!?.

- Podes. Escreve ao Luís Graça, da Lourinhã, que ele põe isso no blogue e toda a malta da tropa te irá razão.

Fui-me deitar às escuras. Esqueci-me de tomar o Xanax 0,5 e dormi que nem uma pedra.

Acordei esquisito. A garrafa da noite anterior estava na bancada da cozinha desarolhada. Comecei a arrumar ideias e procurei por toda a casa o génio. Não o encontrei mas... a janela da cozinha, que dá para as traseiras estava aberta.

Vim para o computador e escrevi-te. Está feito. Agora é contigo.
Já bloguei.
Agora vou andando.
JERO


PONTE PARA O REGRESSO

Contrariando a opinião do Mestre Homem Cardoso (1) que defende que “uma fotografia não tem que ter título”, esta minha fotografia precisa de um título que tentarei defender nas considerações que se seguem.
A fotografia em questão foi tirada em finais de 1964 no Rio Cacheu-Guiné, numa povoação à beira rio chamada Binta. A viagem não tinha sido de recreio e o “Alexandre da Silva”, que tinha navegado de Bissau até aquele local - mais ou menos a oitenta quilómetros acima da foz do Cacheu - levava tropas e não turistas. O navio era de carga e tinham sido precisas cerca de 17 horas de navegação para acostar ao pontão da fotografia, pomposamente apelidado de cais. O nome de cais tinha no entanto alguma lógica pois as tábuas estavam tão desconjuntadas que cair no cais era mais do que certo e seguro para quem não estivesse a pau com as tábuas. Mas… adiante.


Dá para perceber na fotografia que o rio era bastante largo frente a Binta, povoação com alguns grandes armazéns com telhados de zinco. Para lá desta zona urbana havia ainda 4 ou 5 habitações de pedra e cal de madeireiros e um perímetro delimitado por arame farpado apelidado de quartel, com uma forma mais menos rectangular.
Vivemos neste local - cerca de 170 militares da Companhia de Caçadores 675 - durante dois anos. Dois longos anos!... Vezes sem conta nos sentámos nas tábuas deste pontão, habitualmente frequentado por pescadores indígenas, que remendavam as suas redes, enquanto fumavam cachimbo e mascavam cola. (2)
Vezes sem conta olhávamos para lá do pontão sonhando com o regresso, curtindo saudades, relendo cartas dos familiares e das namoradas, chorando lágrimas furtivas, lambendo feridas do corpo e da alma, quando regressávamos das patrulhas das matas do Norte da Guiné.
__________
1- António Homem Cardoso, nascido em São Pedro do Sul em 11 de Janeiro de 1945, é um dos mais prestigiados e premiados fotógrafos portugueses, sendo ainda escritor com numerosas publicadas. Conheci-o profissionalmente na SPAL- Sociedade de Porcelanas de Alcobaça, SA., numa reunião de trabalho e foi então ,por volta dos anos 90, que tivemos a tal conversa sobre as fotografias terem ou não tem necessidade de legenda. Cabe aqui dizer que fui responsável pela área comercial da SPAL(mercado nacional) cerca de 30 anos.

2- Para os não iniciados nos costumes africanos esclarecemos que esta cola não é das que se usa para colar selos nem para snifar. Estas colas crescem na África tropical, onde estão representadas por uma dúzia de espécies. As sementes da árvore que se parece com os castanheiros, são conhecidas pelo nome de noz de cola e têm um poder excitante superior ao do café e do chá (Dicionário da Lello Universal, Volume I).

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Vezes sem conta pareceu-me ver, esfumadas no horizonte, as Torres do meu Mosteiro, do Mosteiro de Alcobaça.
Deste pontão descobrimos amanheceres cinzentos, carregados de neblina que anunciavam um novo dia a descontar na conta-corrente dos dois anos de comissão.
E ao fim da tarde - quando nos conseguíamos abstrair da guerra desse dia ou da que estava marcada para o dia seguinte – descobríamos o fim do dia avermelhado, o pôr do Sol da África, misterioso, quente, sufocante, agressivo, mas com um cheiro único, envolvente, pesado que nos esmagava os sentidos, entranhando-se na pele e na memória do olfacto.


Havia dias em que este pontão fervilhava de agitação no desembarque de géneros de pequenos barcos a motor que subiam o rio até Farim, onde se situava a sede do Batalhão 490, cerca de 20 quilómetros mais acima. Devido à guerra, o rio era uma via mais segura para as populações se deslocarem e as LDM (lanchas de desembarque do tipo daquelas que se celebrizaram no desembarque da Normandia) partiam apinhadas de mandingas e fulas da região, que em cada viagem transportavam quase todos os seus haveres – galinhas, cabritos, máquinas de costura, bicicletas e crianças, muitas crianças.

De vez quando chegava um navio patrulha o que animava o nosso dia a dia, pois a guerra da Marinha sempre foi melhor do que a dos caçadores - leia-se guerra do ar condicionado, da cerveja fresca para os praças e de alguma garrafa de whisky para as patentes mais elevadas. Há que referir que a chegada da Marinha também resultava para nós, caçadores, numa sessão de cinema com energia fornecida pelos geradores do navio.

Deste pontão arriscava-se de vez em quando uma viagem em piroga para apanhar uns peixes para melhorar o rancho ou, para alguns mais aventureiros, dar um tirinho nalgum crocodilo sonolento que estivesse a apanhar sol nas margens. Para trazer uma pele para uma mala ou para uns sapatos para a namorada, tinha de se levar para essas caçadas furtivas uma “Mauser” porque as balas da ”G3” não furavam a pele dos crocodilos. Quando havia crocodilo para esfolar havia também chatice com os habitantes de Binta que eram protegidos pela tropa mas que não davam baldas no que respeita aos crocodilos do seu rio. Queres levar a pele (a do crocodilo e a própria) para Lisboa pagas...

A vida nocturna do povoação era animadíssima como se calcula e quando não havia guerra para o dia seguinte, vinha-se apanhar o fresco junto ao pontão. Das variedades constava habitualmente tentar descortinar na noite os olhos de alguns crocodilos que vinham até junto da margem comer restos de comida deitados para o rio pelos cozinheiros da Companhia.

Numa noite em que o patrão estava fora – leia-se Comandante da Companhia - quatro malucos pediram emprestado ao cabo-quarteleiro um cartucho de dinamite de 100 gramas e com os restos de um cabrito prepararam uma armadilha mortal junto à margem, encostada como não podia deixar de ser a um dos suportes do pontão. A primeira vítima foi um cão, que lhe cheirou a cabrito e quando deu por si estava a sobrevoar a fronteira com o Senegal, que ficava a cerca de 25 quilómetros. O estoiro foi tão grande que o resto da tropa saiu dos seus quartos para repelir o ataque dos turras.

Muitos tiros depois conseguiu-se alguma calma para o grupo dos quatro explicar à rapaziada que estava em curso uma caça ao crocodilo. Perante a grandeza do estoiro anterior, reduziram a dose para 50 gramas de dinamite, com mais uma dose de cabrito fornecida por uma mandinga, a quem se prometeu a pele do dito crocodilo antes propriamente de... a ter. O risco mais elevado do negócio continuava a ser... para o mandinga e para o crocodilo...

Desta vez o crocodilo vem ao engodo, a dinamite rebentou, o pontão voou, o quartel ia caindo, mas o crocodilo... não ficou por ali! Recuperada a surdez dos caçadores e respectivos mirones alguém se lembrou de que os crocodilos não são parvos de todo e que o bicho deve ter feito detonar a dinamite quando puxou os restos cabrito para comer em local sossegado – o fundo do rio. Conclusão triste – o crocodilo deve ter apanhado um grande cagaço, talvez tivesse ficado surdo ou mesmo gago, mas a pele continuou agarrada ao seu corpo... Lixou-se o mandinga, o cão e o Estado Português, com menos 150 gramas de dinamite nos seus paióis. E o pontão é bem de ver, que teve de ser reparado em horas extraordinárias antes do regresso do Capitão Tomé Pinto, que não era para brincadeiras...

Como estão a perceber pela amostra este pontão do Cacheu dava para escrever um livro, sendo certo que ele ficou para sempre guardado nas nossas memórias
Porque foi ao longo do tempo a nossa... PONTE PARA O REGRESSO.

Ali chegámos em meados de 1964... meninos, de vinte e poucos anos, putos e dali partimos... homens de traços vincados e... almas marcadas pela dureza da guerra. Vimos este pontão pela última vez em Maio de 1966.

O simbolismo da sua imagem, desta fotografia com alma está pendurada na sala de estar da minha casa, em Alcobaça.
A maioria das pessoas que me visita quase não dá por ela.
Para mim, no capital do meu património de recordações, ela diz muito.
Para mim e cento e setenta irmãos esta fotografia do pontão do Cacheu representa a magia de uma época.

Sem palavras... recorda-me os afectos, a minha juventude, a minha generosidade, o meu gosto pela fotografia... e a minha nostalgia pelas Torres do meu Mosteiro.

Vezes sem conta pareceu-me ver, esfumadas no horizonte, as Torres do meu Mosteiro, do Mosteiro de Alcobaça


Continuo a tirar umas fotografias.

Mas... o que me apetece dizer para terminar... é que cada vez me custa mais passar um dia sem ver as Torres do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça.

A incurável nostalgia dos anos sessenta... quando nos aproximamos dos setenta!!!

José Eduardo Reis de Oliveira
(Setembro de 2009)

Nota: Tratamento de imagem da responsabilidade do meu amigo Marco Correia, a quem expresso o meu agradecimento pela sua competência e... paciência.
JERO

Estas imagens foram posteriormente editadas pelo Editor do Blogue para efeitos de publicação
CV

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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5048: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (16): Leões na Guiné em 1966!

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4943: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (1): O gasóleo do Amílcar e a emboscada de Sare Dicó

3 comentários:

Anónimo disse...

A ponte-cais de Binta, foi reconstruida em cimento armado, exactamente no mesmo lugar, no ano de 1985.

Era um lugar pouco habitado e o tráfego fluvial quase nulo.

A reconstrução da ponte fazia parte de um projecto do governo de Luis Cabral, em refazer o tradicional transporte fluvial tipo colonial, pois como se sabe, estradas na Guiné era o que todos sabem.

Penso que com as convulsões daquela terra, tanto essa ponte como mais outras três no sul, continuarão com pouco uso.

Antº Rosinha

Hélder Valério disse...

Caro JERO
Magnífico texto.
E bem ilustrado.
Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Este cais avistei-o pela primeira vez em 14 de Outubro de 1968, quando fomos substituír a Cart. 1648. Vio-o pela última vez em 8 de Março de 1969, quando embarcamos de lá com destino a Barro e nunca me passou pela cabeça que pudesse dar origem a fotografias tão lindas.
a Foto-Montagem está deliciosa.
PARABÉNS! um grande abraço!

ADRIANO MOREIRA
FUR. ENF. CART. 2412
BIGENE,BINTA,GUIDAGE E BARRO
1968/1970