terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5425: Notas de leitura (42): Reportagem, Uma Antologia, de José Vegar (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Dezemmbro de 2009:

Malta,
Este comandante Hussi é uma ternura, a guerra e a brutalidade têm destas coisas. Bom seria que todos nós vasculhássemos bem estas reportagens para as fixar no nosso blogue.
Um abraço do
Mário



A Guiné num livro de ouro sobre a reportagem
Beja Santos

Reportagem, uma antologia (por José Vegar, Assírio & Alvim, 2001) é um livro precioso para quem gosta deste género jornalístico. José Vegar é um conhecido jornalista com importantes trabalhos publicados em revistas como Sábado e Grande Reportagem e jornais como Semanário e Expresso. Começou preparar um arquivo pessoal onde guardou aquelas que ele considera as melhores reportagens. Entendeu publicar 20 dessas reportagens escritas por jornalistas portugueses “pela única razão de que não merecem a escuridão do arquivo ou do esquecimento. Merecem ser lidas por novos leitores ou relidas por aqueles que, certamente, não as esqueceram”. Todas elas foram publicadas na década de 90, obedecem a gosto pessoal de José Vegar, incluem histórias sobre guerra, operações militares, problemas ou acontecimentos sociais importantes (seropositividade, gangs juvenis, impunidade dos policias, homicídios cometidos por um psicopata...). Há reportagens feitas dentro e fora de Portugal. Os nomes dos seus autores são sobejamente conhecidos de todos, por exemplo: Adelino Gomes, Clara Pinto Correia, Felícia Cabrita, Fernanda Câncio, Fernando Dacosta, Joaquim Vieira, José Pedro Castanheira, Miguel Sousa Tavares.
Nesta antologia aparece uma peça impressionante intitulada “Comandante Hussi” por Jorge Araújo publicada em O Independente, numa edição de Fevereiro de 1999. De acordo com José Vegar, Jorge Araújo é um repórter experiente em cenários de guerra, é um buscador de personagens, de pessoas que possam ser um símbolo e um testemunho importante do que aconteceu em determinado momento em algum lugar do mundo. “No caso do conflito na Guiné-Bissau, Jorge Araújo, profissional na Televisão de Cabo Verde, BBC e O Independente, foi particularmente feliz. Quis o acaso que nas ruas de Bissau alguém lhe indicasse o miúdo António Hussi, o mais jovem guerrilheiro de Ansumane Mané. O repórter deixou-se ficar junto dele, ouviu-lhe confidências e narrações dos episódios da guerra. Através dele, contou a batalha de Bissau e revelou ao leitor o desejo de um miúdo recuperar a sua bicicleta”.

António Hussi era pobre mas tinha um tesouro, uma bicicleta pintada de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcer-se de dor. Um dia o menino foi obrigado a abandonar a sua bicicleta, as balas caíam do céu, a guerra civil veio com toda a força, a mãe partiu e levou a família, o pai ficou a combater, ao lado de Ansumane Mané. Assim chegaram a Nhacra. Para trás ficara Bissau. As ruas desertas asfaltadas de cadáveres, casas abandonadas feridas de balas, almas penadas vestidas de medo. A fome, a tragédia, a irracionalidade. Os abutres em voo picado sobre corpos em decomposição. As famílias divididas, os bairros atingidos, as vidas destruídas. Uma cidade inteira a sangrar de dor. Uma orgia de violência que, a pouco e pouco, gangrenou o resto do país. Hussi comunicou à mãe que ia regressar a Bissau, a mãe disse que não, ele fugiu. Em Bissau pôs-se à procura do pai.

“Não viste o meu pai? Chama-se Ablei Sissé”. O pai perdeu a fala quando deu de caras com o filho, bateu-lhe muito, mas o menino não cedeu. Então o pai decidiu que o Hussi ia fazer tudo como se fosse um homem grande. “E ele fez. Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante cozinheiro. Não matou mas viu morrer. Passeou pelos horrores de uma guerra fratricida com a mesma inocência que antes com que antes pedalava na sua bicicleta pelas ruas de Bissau”. Depois assistiu à internacionalização da guerra, chegaram milhares de soldados do Senegal e da Guiné Conacri que morreram ao lado dos homens fiéis de Nino Vieira. Em 6 de Maio, por volta das 11 da manhã, as tropas de Ansumane Mané furaram a barreira de Nino Vieira, o ditador refugiou-se na Embaixada de Portugal. O menino Hussi assistiu a tudo, viu o vandalismo em que as tropas senegalesas deixaram as já precárias infra-estruturas de Bissau, passeou-se entre o fogo-de-artifício da artilharia, presenciou a destruição do Centro Cultural Francês. Chegou ao Palácio Presidencial que ardia como um archote. “Assistiu ao saque e à ira da população. Subiu as escadas do velho edifício colonial, atravessou as portas imponentes, vagueou pelas enormes salas abandonadas, vasculhou destroços calcinados, distribuiu abraços pelos soldados vencedores, tropeçou em Kalashknikovs que adormeciam pelo chão”. Os soldados de Ansumane Mané trataram-no como herói. É conhecido por “Comandante Hussi. Percorre a cidade de Bissau, só não vai ao hospital para não ver os meninos da sua idade massacrados pela guerra.

Assim que a guerra terminou, Hussi deu um salto até à sua casa, situada no bairro de Santa Luzia. Comoveu-se muito, o seu tesouro mais valioso estava são e salvo. “Pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcer-se de dor. A sua bicicleta estava suja e abandonada. Mas era a sua bicicleta”.

Quem gosta de reportagem, não pode ficar insensível a este comandante Hussi.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5409: Postais ilustrados (18): Postais Antigos da Guiné, de João Loureiro - O Povo e os Costumes (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 2 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5393: Notas de leitura (41): Golpes de Mão's - Memórias de Guerra, de José Eduardo Reis Oliveira, JERO, para os amigos (Belarmino Sardinha)

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