Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
Guiné 63/74 - P5435: Os nossos regressos (19): Dia 4 de Dezembro de 1969, já lá vão 40 anos (Torcato Mendonça)
Texto de Torcato Mendonça*, ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69, enviado em mensagem com data de 4 de Dezembro de 2009, relembrando uma data marcante, o dia de embarque no Uige que o traria definitivamente ao solo pátrio depois de 23 meses de comissão.
4 DE DEZEMBRO DE 1969
Há quarenta anos
Há quarenta anos que, a um quatro de Dezembro, embarquei no Uíge a caminho de minha Pátria, do meu País. Vinte e três meses depois de ter na Guiné desembarcado. Parecia que fora há muitos anos e só dois, menos do que dois, tinham passado. Vinha indelevelmente marcado. Era outro que naquele dia regressara. Quarenta anos se passaram e sempre este dia e o dez de Dezembro, por mim foram recordados.
Lembro o dia a amanhecer, quente, as gentes atarefadas a embrulhar as trouxas, o 1.º Sargento a querer mais umas assinaturas, a incerteza se embarcava ou ficava na Comissão Liquidatária. Evidentemente, quer eu quer os profissionais da Companhia torciam pela minha partida.Obviamente.
Juntamo-nos nas traseiras dos Comandos e recordo dois amigos da 15.ª ou 16.ª a chamarem pelo meu nome. Despedimo-nos e depois foi a formatura, ouvir uns discursos, o desfile com a fanfarra à frente e nós a não sabermos já acertar o passo, ou, num marchar desengonsado e esquecido. Lá fomos a marchar e a bater pés, a olhar à direita em cumprimento a gentes no palanque postadas. Fartos, mais que fartos com aquela cerimónia toda. Pior que ida ao Poidom...
Juntamo-nos e embarcamos em viaturas ali colocadas. Destino o cais com o Uíge à vista.
Depois foi a espera, a distribuição de uma ração diferente e melhor.
O protesto de alguns:
- Agora é que dão disto?
Eu e todos esperavamos e desesperavamos. Mais eu porque olhava para todas as viaturas que ali chegavam. Ai que ainda recebo ordem de voltar atrás... e foi o tempo passando... finalmente a ordem de embarque. Primeiro para umas lanchas e depois para o Uíge que, devido ao calado, tinha do cais ficado afastado. E fui a medo, quase no tente não caias e subi as escadas. Instalei-me e esperei e o barco não partia, não partia e havia ainda gentes a irem e virem... que merda, que merda e fui até ao camarote. Olhava para a mala e os sacos... arrumo ou não?
Esperei e fumava. Bebida ká tem e o bar fechado. Sacanas. Quase sem dar por isso senti o barco a afastar-se e vim ver... e Bissau a ficar mais além, mais ao longe. Agora já não me vêm buscar e não vieram e o mar veio chegando e nós nele entrando.
Que coisa boa aí vou eu e muitos mais, não todos infelizmente, não todos.
A dez, seis dias depois chegamos, diferentes, olhares meio assustados, envelhecidos por dois anos ou por duas dezenas? Não sei. Todos os anos recordo aquele dia, o último em terra da Guiné e nunca mais voltei ou voltarei - nunca digas nunca? Não, não voltarei. Tenho saudades da Gente das Tabancas, dos homens que comigo andaram no mato e muito me ensinaram, das mulheres ou de algumas que comigo se deitaram ou não e das crianças, das crianças lindas que eram o fruto do amor daquele Povo. Ainda recordo o respeito que tinham pelos mais velhos, os velhos, certamente mais novos do que eu sou hoje, a quem uns parvos chamam sénior para não dizerem descartável...
Adeus Guiné. Abraço o teu Povo das Tabancas, abraço os Militares que comigo vieram e, se acreditasse na vida do além abraçava quem não veio... Assim curvo-me em respeito à sua memória.
Espero recordar muitos 4 de Dezembro e que outros o possam igualmente fazer.
Meus Caros Editores aí vai o meu regresso à Lusa Pátria. Fui escrevendo ao sabor da tecla...
Abraços para todos e o mail qual é? Deu-me esta droga... depois vejo...
AB do TM
Torcato Mendonça
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 16 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5281: Blogoterapia (128): (Im)possível regress(ã)o (Torcato Mendonça, CART 2339, Mansambo, 1968/69)
Vd. último poste da série de 17 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3470: Os nossos regressos (18): Desenraizados, nas esplanadas das Lisboas deste País...(Alberto Branquinho)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
Caro Torcato,
Mais uma das tuas belas narrativas.
Houve mais quem o tivesse dito e de facto não tenha voltado lá, mas será mesmo assim? Ainda tenho esperança que não.
Um abraço
Peço desculpa, o comentário anterior não foi assinado.
BS
Caro Camarada. Tenho lido sempre com cuidada atencao,e interesse,os teus "escritos".Tempos atrás,num poste que me fez pensar,e repensar,pelas bonitas imagens interiores apresentadas,falas-te nos:"tracos rectilíneos dos poucos avioes que passam rumo á Europa ou a Lisboa......" Nestes infindáveis Invernos do extremo norte da Suécia,dos oito (!)meses em que o Sol nao sobe no horizonte e em que as temperaturas andam sempre por baixo dos vinte negativos,nao resisto,por saudade,enviar-te pensamentos de um "escrivente" sueco quando diz:-Há avioes que partem e que ainda nao chegam. E,por ainda nao chegarem...nunca voltam. Nesses avioes,meus amigos,nesses avioes em que viajo...nao vos desejo lugar! Um abraco com votos de Bom Natal do José Belo.
Enviar um comentário