segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7548: Notas de leitura (183): Vasco Lourenço, do interior da Revolução, entrevista de Maria Manuela Cruzeiro (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2010:

Queridos amigos,
Já existe no blogue a recensão coordenado pelo Vasco Lourenço “No Regresso Vinham Todos”*.
Faltava uma menção à longa entrevista que com ele teve a historiadora Maria Manuela Cruzeiro, do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Traz mais alguma luz sobre a comissão militar de Vasco Lourenço e sobretudo o seu relacionamento com Spínola.
Como é óbvio, os aspectos mais relevantes desta entrevista tem a ver com a preparação do golpe militar e a sua vivência durante o processo revolucionário, onde a sua actuação foi de uma importância iniludível.

Com um abraço do
Mário


Vasco Lourenço e a Guiné

Beja Santos

É dispensável tecer referências ao papel desempenhado por Vasco Lourenço no Movimento dos Capitães, na Comissão Coordenadora do Programa do MFA, no Conselho de Estado, no Conselho da Revolução, em suma este “capitão de Abril” exerceu durante o período revolucionário (o chamado processo político-militar de 1974 a 1976) um protagonismo inquestionável que justificou a extensa entrevista que a historiadora Maria Manuela Cruzeiro com ele teve e que permitiu um testemunho de enorme valor para a compreensão desse período histórico (“Do Interior da Revolução”, entrevista de Maria Manuela Cruzeiro com Vasco Lourenço, Âncora Editora, 2009).

Desse longo testemunho, importa salientar que Vasco Lourenço comandou na Guiné a CCaç 2549, entre 1969 e 1971. Não é a primeira vez que ele é aqui associado à Guiné, já se procedeu a uma recensão da obra que ele coordenou com a história da sua unidade “No Regresso Vinham Todos”. Nestas suas memórias, ele refere a sua nomeação por designação e descreve alguns aspectos da sua comissão, como se passa a sumariar.

Primeiro, ele considera que esta comissão lhe abriu os olhos. Encarara a guerra como uma guerra justa até que olhou à volta, logo à chegada a Bissau e se questionou: o que é que nós tivemos a fazer aqui durante 400 anos?

Segundo, considera que o seu primeiro ano, em que combateu com a fronteira com o Senegal, se traduziu numa guerra a sério, com resultados e também com muita sorte. Foi nesse período que se viu envolvido numa operação de que resultou a maior apreensão de material de toda a guerra colonial e nunca igualada: 24 toneladas de material apreendido. É também nesse período que viveu uma situação que o marcou profundamente: “Descubro a existência de uma rede de informações do PAIGC. Nós estávamos em Cuntima e detectei uma rede de informações dirigida por um soldado milícia. Através dessa rede todas as nossas movimentações eram transmitidas para o Senegal. E aconteceu que precisamente o milícia que dirigia essa rede de informações, acabou por morrer numa operação, ao meu lado a dois metros de mim. Comecei a pensar: mas que raio de guerra é esta? Onde é que eu estou metido? O que é que se passa aqui? O que é que faz estes tipos lutar? O que é que faz com que se coloquem em situações em que acabam por ser mortos pelos próprios amigos? Pelos próprios companheiros de luta? E cheguei a esta conclusão: não tenho nada a ver com esta guerra, esta guerra não é minha, esta guerra não tem sentido. A guerra para mim acabou”.

Terceiro, o seu relacionamento com Spínola e a análise que faz à génese do spinolismo. Vasco Lourenço confessa que o cabo-de-guerra tinha uma maneira de ser que, nalguns aspectos, lhe agradava, impressionou-o favoravelmente quando chegou à Guiné. Depois despertaram os grandes conflitos: “O Spínola tinha os seus homens de mão. Tinha criado um grupo de aficionados. Eu considero que o Spínola tinha como objectivo suceder ao Américo Tomás. Para isso montou uma máquina de propaganda, primeiro junto do meio militar e, depois, também no meio político”. A imagem que ele tinha junto dos jovens capitães foi inicialmente muito positiva, correu com oficiais incompetentes, responsabilizava os oficiais. Mas não escondia o seu facciosismo pela Cavalaria. Depois surgiram tensões entre os dois, já em Cuntima. A par dessas tensões que subiram ao rubro quando ocorreu a morte de um régulo na região e que levou Spínola a ter frases menos felizes chamando assassinos aos soldados que tinham morto o régulo e que gerou uma onda de contestação na unidade de Vasco Lourenço, a partir daí as relações deste com Spínola nunca mais se normalizaram. Vasco Lourenço descreve a reunião de 16 de Abril de 1970 (a chamada “reunião do fim da guerra”) em que houve uma altercação verbal e em que a reunião terminou caoticamente. Depois deu-se a chacina de três majores e um alferes e esta doutrina de pacificação foi invertida. Vasco Lourenço refere um ataque a Farim com os chamados foguetões de 122mm. Spínola quis retaliar e foi assim que se organizou uma operação com comandos africanos que retaliaram sem dó nem piedade.

O retrato que Vasco Lourenço faz de Spínola é bastante negativo, descreve ao pormenor uma série de conflitos, actos de vingança, punições, desautorizações, desentendimentos, incoerências. Considera, no entanto, que a acção de Spínola na Guiné teve grandes méritos e que ele soube manipular o marketing para misturar o personagem real com a lenda. Censura-o no caso específico da retirada de Guilege, ordenado por Coutinho e Lima, acusa-o da mesma atitude que Salazar assumiu com o general Vassalo e Silva e como Marcelo Caetano pretendia transformar os militares, num cenário de agravamento da guerra.

Na parte final do seu testemunho, e depois de referir as suas relações com outros oficiais que combateram na Guiné, Vasco Lourenço refere-se com humor às acções negativas que sobre ele se inventaram depois do 25 de Abril: que se perdeu no mato, ter estado na origem da morte do régulo, de ter sido um dos piores operacionais da Guiné. E deste relato pouco mais há a dizer, a seguir ele salta para a contestação ao congresso dos combatentes e a reunião de Alcáçovas. Mas isso já é outra história que não respeita ao âmbito do nosso blogue.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5657: Notas de leitura (55): No Regresso Vinham Todos, de Vasco Lourenço (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 31 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7535: Notas de leitura (182): Salgueiro Maia Um Homem da Liberdade, de António de Sousa Duarte (Mário Beja Santos)

9 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Olá Mário

Um abraço forte e fraterno e desejar-te UM ANO NOVO ,UM 2011 Pleno de Felicidade

Terminou o ano velho com a magnifica foto-reportagem e viagem afectiva á "tua Guiné", mais propriamente ao "teu Cuór".
Guardei o que saiu no blogue e etcetera.
Gostei imenso e espero pelo livro.

Mas porque escrevo? Bem para dizer que, um livro/entrevista destes, é passível de muita critica. Podemos começar pelo No Regresso Vinham todos, creio ser esse o titulo de um livro do entrevistado. Podíamos começar ou escolher outro ângulo de abordagem; outros ângulos de abordagem. O Marechal já morreu e o entrevistado creio estar retirado.

Gerava-se, neste inicio de ano,grande celeuma. Para quê? É uma entrevista a um militar do Q.P. e, por isso mesmo talvez interesse mais, por questões
corporativas, a análise e possível discussão, a Camaradas do Entrevistado.

Como em linguagem popular se costuma dizer: -tinha pano para mangas.
Empreguei a palavra- popular!Outro ângulo de abordagem - a Academia Militar e... Nada mais digo, Meu Caro Beja Santos Abraço-te T

Anónimo disse...

Se a comissão de Vasco Lourenço foi assim tão preenchida e meritória, então o material sobre a história da comissão da sua companhia, que consta no AHM, e citado pelo Sargento-Mor e Doutor Manuel Rebocho, deve ser todo mentira. Em que ficamos, afinal?

Anónimo disse...

Vasco Lourenco näo é assunto de comentários "fraternos" como tanto é de desejar no nosso blog ,em período de solidariedades de princípio de ano.A Guiné dele,como a de muitos de nós,foi a que foi! Näo devemos entrar aqui num estudo de ambicöes pessoais quanto a "estrelas de aviário" colocadas sobre outros ombros.Por muito que de "aviário" se tratassem...as estrelas säo sempre estrelas...e algumas provocavam insuperáveis invejas que superaram pseudo-fortes amizades pessoais. A cada um as suas ambicöes e...frustracöes. Um abraco.

Anónimo disse...

"O" Spínola tinha os seus "homens de mão" e criado um grupo de "aficionados"!!!

Altos valores militares, linguagem apropriada e exemplar camaradagem com vivos já que os mortos não precisam dela...

Um abraço,
Carlos Cordeiro

José Marcelino Martins disse...

Alguém se esqueceu de assinar um comentário. precisamente o segundo.

Na minha perspectiva, além do nome, devia indicar qual é a divergência dos dois textos, não indicando onde se encontram para possível confrontação.

Creio que foi por necessidade de apressar a participação, mas também pode ser levada em conta, de que é algo para separar (o contrario de unir).

Abraço o anónimo

Anónimo disse...

Então camarigos?

Vamos começar outra vez com guerrinhas, e engatilhar a G3(não a verdadeira) mas a outra, a da "caturrice" dos sessenta e mais alguns, que nós já temos, e que, pelo menos alguns de nós, teimam em
empunhar, não tendo já, tavez, força para a segurar.
Independentemente de se gostar, ou não, Vasco Lourenço, foi, é, um CAPITÃO DE ABRIL.Só por isso, merece o meu respeito.Ele e os outros que, (estão eaquecidos?)arriscaram fazê-lo, não têm culpa do que os Politiqueiros profissionais fizeram, ou melhor, não fizeram,(está à vista)deste País.
Só mais uma coisinha, pequenina,.
Este Blogue, que é nosso, que seguramente todos, mas TODOS, quereremos preservar e manter, existe e fortalece, se calhar como diria o outro, porque há, houve homens como Vasco Lourenço.
Francisco Godinho
(C.Caç.2753/Mansabá/Bironque/K3)
1970/1972.

Anónimo disse...

Caros Amigos e Camaradas. Os espíritos do Natal e Ano Novo säo,sem qualquer dúvida,fantásticos nas suas solidariedades várias.Mas,só por isso,näo quererá dizer que todos estamos "Beatificados". Ter-se opiniöes divergentes sobre personalidades públicas(principalmente quando com elas se contactou pessoalmente em momentos importantes)näo será propriamente o tal de....empunhar as G-3. Näo é estranho (será mesmo saudável!) que nem todos "apreciem" do mesmo modo o "Vasquinho"(nome de estimacäo que lhe era dado pelo Otelo),ou outro qualquer herói da nossa gente.Tudo estará na maneira correcta,ou näo,de exprimir as suas opiniöes.Creio que todos procuram seguir as regras e valores deste blog de camaradagem;MAS...também näo vamos cair em extremos de "paz de cemitérios sob o luar". Um grande abraco.

Anónimo disse...

Caros amigos,
Ninguém, neste conjunto de comentários, empunhou qualquer G3. Vasco Lourenço deu uma entrevista, que foi publicada em livro. Disse o que quis e tratou como bem entendeu pessoas vivas e mortas. Está no seu pleno direito.
Do mesmo pleno direito gozam os que aqui comentaram.
Não se pretenda é que toda a gente coma e cale, como se Vasco Lourenço fosse o verdadeiro "sal da terra".
Um abraço,
Carlos Cordeiro

Joaquim Mexia Alves disse...

Há dias foi publicado um texto meu que apelava á concórdia, ao bom senso e ao respeito pelos outros, mas onde também dizia especificamente que cada um tem direito á sua opinião desde que a expresse com o respeito pelos outros.

Parecem-me estes comentários todos dentro dessa linha.

Se assim não fosse falariamos todos a uma só voz o que seria uma grande chatisse.

A opinião de Vasco Lourenço sobre Spinola e sobre a politica não passa disso mesmo, opinião, por isso mesmo dela se pode discordar com o respeito que todos merecem.

Eu, por exemplo, não concordo com a opinião dele, mas não estou para me alargar aqui em palavras.

Um abraço camarigo para todos