quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12031: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (31): "Deixem-nos trabalhar"

1. Em mensagem do dia 2 de Setembro de 2013, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, CatióCabeduGandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta "boa memória da sua guerra", mais uma vez apimentada qb:


Memórias boas da minha guerra

31 - "Deixem-nos trabalhar!"


Antigo RAP 2 

- Ó Silva, estás tramado para este fim-de-semana. Estás de serviço de Ronda no Domingo. – Gritou o Mariz de Anadia.
- Não vou a Lisboa, este fim-de-semana, mas não olhes para mim, porque não te vou fazer esse serviço. Quero ir até ao Minho, conhecer alguma coisa. E espero encontrar uma garina. – Interveio o Machado.
- E qual é o meu papel? – Perguntei a quem me quisesse responder.

Logo o Sargento Bagaço:
- Fazer o percurso das Pontes D. Luís, Vila Chã, Sé, Rua Escura, Bainharia, Ribeira…
- …Zona das putas. – Interpôs o Delfim Nora, de Matosinhos, que aproveitou para fazer o convite:
- Não caias nessa merda. Vem, mas é, até Matosinhos para visitarmos as casas de trabalho da Rua Brito Capelo.

Deixei-me cair na cama e, em silêncio, de olhos no tecto, pus-me a pensar. Ou melhor, a “ver o filme” de uma visita que tinha feito àquela zona.
Foi em princípios de 1958.
Eu ainda não tinha 15 anos quando o meu tio de Trás-os-Montes (Boticas) veio visitar-nos. Depois da devida autorização paternal para o acompanhar na visita a “uma pessoa amiga do Porto”, seguimos num autocarro da Feirense, directamente para junto do Café Derby.

Edifício onde esteve o Café Derby na Rua Chã. 

Logo ali verifiquei o à-vontade do meu tio no relacionamento com aquelas mulheres.
Ele, um rapagão de bom aspecto e cheio de saúde, já tinha perto de 40 anos e não mostrava namorada nem intenção de casar. Parecia que aquele ambiente o satisfazia plenamente.
Na Sé, descemos por umas ruas estreitas em direcção à Ribeira.
Enquanto descíamos, eu ia ficando pasmado pelos “polícias” de humanos, de cães e de outros animais que via pelos cantos da rua. A dada altura, passámos por duas miúdas (aparentando cerca de 10 anos) que conversavam em voz alta. Uma delas pôs-se de cócoras, sem cuecas e começou a mijar, ao mesmo tempo que ia falando.
Como me demorei a olhar para a cena, a miúda perguntou:
- Oube cá, ó morcon, nunca bistes uma c____ sem pelos?

Quando me viu meio aparvalhado, o meu tio aproveitou para me dizer que aquela gente era igual à da minha aldeia e que fazia aquilo porque, normalmente, não tinha casas de banho, e que, ao contrário de nós, não tinha mato, pinhal ou campo para nos imitar. Como bem me lembram aqueles momentos de arejar o “material”! Quem é que não gosta de dar uma mija (ou mais) e deixar o “badalo” sacudido lentamente a observar a natureza e a absorver aquela límpida aragem rural?
Ah, e daquelas mulheres de carrego à cabeça, na conversa, que abriam as pernas, puxavam as saias para a frente e deixavam cair o mijo direitinho, sempre no mesmo sítio!

Logo que entrámos na casa da Micas fixei os olhos nas suas exuberantes mamas, pouco escondidas debaixo de uma blusa muito desapertada. Enquanto ele falava para uma moça, a quem pediu uma cerveja, a D. Micas puxou-me e disse:
- Anda aqui que eu arranjo-te outra “coisa”.

Não sei o que deixou cair. Vergou-se demoradamente, possivelmente para me mostrar o traseiro e o pername. De seguida foi-se aproximando, tocando-me e aconchegou-me a cara ao centro daqueles peitos avantajados. E eu, que nem sou muito de leite, quando me apercebi, já estava com vontade de mamar.

Nove anos depois, vejo-me com vontade de repetir o percurso.
Estava uma linda tarde de sol daquele mês de Janeiro de 1967 quando descemos do RAP2, da Serra do Pilar. Seguimos o tabuleiro superior da Ponte D. Luís em direcção a Vila Chã.

A Ponte Luís I, hoje dedicado ao Metro e a peões

Depois, chegados à Sé, fui aconselhado pelo meu adjunto de que deveríamos seguir pela Rua Escura, em direcção à Bainharia e Ribeira, zona mais frequentada pelos militares.
Era bem visível o trânsito lento dos magalas, a divagar e a observar tudo e todos mas mais focados no mulherame. Entravam e saíam dos tascos ou de portas manhosas, vindos não sei de onde.
De repente, cai uma penicada mesmo na nossa frente. Então, oiço de lá de cima, em voz alta:
- Ai Birgem Nossa Senhora de Fátima, que ia molhando a Ronda da Tropa! Descuuuuulpem! Descuuuulpem!

Rua Escura - Pormenor

Não percebi que aquilo era um aviso (não só para nós), continuámos a descer e, enquanto observávamos se acaso teríamos sido atingidos com a dita penicada perfumada, surge nova remessa. Desta vez, fomos atingidos ligeiramente. Ficámos atordoados e sem saber o que fazer.
Foi, então, que um sujeito (talvez o Júlio) saiu de um bar e veio ao nosso encontro para nos acalmar, elucidar-nos e pedir desculpa. E logo uma catraia, bem boa, por sinal, encostando-se exageradamente à minha pistola, pousou as mãos no meu ombro esquerdo e melosamente acrescentou baixinho:
- Senhor Meleciano, num benha p’ráqui assim armado porque a tropa gosta de estar à buntade e as donzelas querem trabalhar. Por fabor deixem-nos trabalhar! Deixem-nos trabalhar!

Forçados a regressar ao Quartel, rapidamente me lavei e mudei de roupa.
Quando ia a atravessar a rua, em frente do Café Mucaba, parou um carro de onde me chamaram.

Avenida de Gaia. Antigo Mucaba à direita 

Era o Neca Folhetas, que namorava uma vizinha e que insistiu para ir com ele para o Porto. Mal entrei, disse-me que queria ir dar uma volta pela zona do métier. Disse-lhe que não ia. Só se fosse lá para os lados da Cadeia, Clérigos, cimo dos Caldeireiros, etc.
Corremos três ou quatro bares e viemos para o cimo dos Caldeireiros.

Perante um aglomerado de gente, aproximámo-nos e constatámos que lá dentro do bar havia confusão. Abeiramo-nos da porta e perguntei a um militar o que se passava. E ele respondeu:
- É o caralho do Mirandela. Anda apaixonado por uma gaja e não a larga.
- E não o conseguem trazer? - perguntei.
- Foda-se!!! É que ele já está com os copos e de naifa é um perigo! Ninguém se aproxima dele.

Ouve-se, então, uma mulher a lamentar-se:
- Uma galdéria cheia de bida, podia ganhar umas coroas e o gajo não ajuda nada. É mesmo morcon!

E logo outra acrescenta:
- Filha da puta da Ronda que nunca mais chega! Assim, não temos condições para trabalhar! Ó meu Deus, o que mais pedimos é que nos deixem trabalhar. Deixem-nos trabalhar!!!

Silva da Cart 1689

 -*-

Zona histórica do Porto

Fotos: © Jorge Teixeira (Portojo)

ADENDA
Significado de palavras usadas no texto, tal como extraído do “Manual do Morcon”, integrado no “Dicionário da Lingua Romontica Portuense”:

- À maneira – De longe a mais portuense de todas as palabras e expressões e que significa: “como debe ser”, “com categoria”,”com qualidade”, enfim, “à maneira mesmo”.
- Foder – Bocábulo pouco utilizado na región e raramente referido a sexo. No caso da expresson “Bouta foder” ou “touaqui toutafoder” pode significar: “Bou-te esvaziar dois pneus da biatura e tu só tens uma roda sobressalente”.
- Donzela – Qualquer baca que f__a mais de dez vezes ao dia.
- Fdp – Expressón raramente usada. Usa-se mais “grande filha da puta”. Na zona de Campanhã acrescenta-se sempre “bouta foder”.
- Galdéria – Tola. Que podia ganhar muito mais se tivesse juízo (para o “negócio”).
- Garina – Debe ser de Lisboa, a puta.
- Puta – Palabra que se emprega em manifestações de amizade e carinho, tais como: “Meu belo filho da puta”.
- “Deixem-nos trabalhar!” – Frase muito bulgarizada entre as putas e, também, entre os políticos, quando nos querem endrominar.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11981: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (30): O Jorge Ribeiro era um "gentleman"

13 comentários:

Luís Graça disse...

Obrigado, Zé Ferreira, é um roteiro completo pelo Porto castiço, lumpen, "underground"... que não existe mais. O Porto da tua adolescência e juventude mão era muito diferente duma certa Lisboa que eu conheci já tarde, e sobretudo pelo estudo do fado... Cais do Sodré, Bairro Alto, Alfama, Mouraria... Lisboa tinha (e ainda tem!) algumas aldeias, tal como o Porto... Vou aí há quase 40 anos mas só conheço o Porto como turista, o mesmo é dizer, um "estúpido em férias"... Um dia vou pedir-te para seres meu guia cultural... Adoro a tua sensibilidade socioantropológica que te permite descrever, com propriedade e humor, tipos e cenas que escapam ao olhar distraído da maioria... Parabéns por mais este texto de antologia. Sabes bem como gosto (também) da gente do norte...

Anónimo disse...

Ó Silba!

Afinal, o teisto passoue, carago!
E, pelos bistos, fói até munto cumprementado pelo Chefe!
O qu'é preciso é que haja gente que entenda que toda a espécie de bida é... bida. Póis!
E, até, o editor se aprimoroue com todas aquelas chapas metidas lá pelo meio. Inté o Derby!
Biba o Puerto!
Abraços
A.A.A.B.

silva da Cart 1689 disse...

Espero que os meus leitores, que não são Morcões, compreendam a inocência do palabriado e do biber deste pobo da Naçon Imbiqueta. Um abraço

silva da Cart 1689 disse...

Amigo Luis
Mais uma vez obrigado pelos habituais simpáticos elogios(para mim bastante exagerados).
Acredito que queiras vir fazer uma ronda pela Imbiqueta profunda mas, para isso, temos que juntar o Jorge Portojo, esse sim, um guia cultural de se lhe tirar o chapéu. Bamos ber isso.
Um abraço

Silva da Cart 1689 disse...

Amigo AAAB
Confesso que me lamentei sem razonhe. Devia ter esperado mais.
As chapas foram fornecidas pelo nosso "conterrâneo" de Catió, o Jorge Portojo. Convidei este artista para este trabalho fotográfico mas ele, levou-me a comer umas tripas e a fazer a digestonhe, passeando por outra zona. Afinal, ele já tinha o material em casa.
Gostaria de juntar aqui o AAAB com o LG, CV, HVS e outros, sob a cuidada e sábia orientação do camarigo Portojo. Esperemos que isso aconteça.
Um abraço
do JFS

Luís Graça disse...

O texto do camarada Silva não tem nada que me choque, a não ser o retrato social e humano da época a que ele se reporta (anos 50/60), que era de miséria e de pobreza... O Porto estava cheio de "ilhas" (zonas de habitação degradadas e degradantes), tal como Lisboa ("bairros de lata" e "vilas")...

Quanto à linguagem eventualmente "inapropriada", bom, a reprodução do falar das pessoas evocadas é um recurso que decorre da liberdade narrativa e criativa... O Silva fá-lo com bom gosto, bom senso, ironia, sentido de humor...E o Silva já não precisa de demonstrar que tem talento de escritor, revelado no nosso blogue... Quero, de resto, que para o ano ele me autografe o seu livro "Memórias boas da minha guerra"...

Nunca é de mais lembrar as nossas regras editoriais, entre as quais a liberdade de expressão...

No que respeita mais especificamente aos "comentários" (mas também é válido para os postes, só que estes passam pelo "crivo" dos editores), eis o que vem nas NEP...

(...) "Escreve com total liberdade e inteira responsabilidade, o que significa respeitar as boas regras de convívio que estão em vigor entre nós: por exemplo, (i) não nos insultamos uns aos outros; (ii) não usamos, em público, a 'linguagem de caserna'; (iii) somos capazes de conviver, civilizadamente, com as nossas diferenças (políticas, ideológicas, filosóficas, culturais, étnicas, etc.); (iv) somos capazes de lidar e de resolver conflitos 'sem puxar da G3'; (v) todos os camaradas têm direito ao bom nome e à privacidade; (vi) não trazemos a 'actualidade política' para o blogue, etc.

"Os editores reservam-se, naturalmente, o direito de eliminar, 'a posteriori', rápida e decididamente, todo e qualquer comentário que violar as normas legais (incluindo as do nosso servidor, Blogger/Google), bem como as nossas regras de bom senso e bom gosto que devem vigorar entre pessoas adultas e responsáveis, a começar pelos comentários ANÓNIMOS (por favor, põe sempre o teu nome e apelido por baixo), incluindo mensagens com (i) conteúdo racista, xenófobo, homofóbico, pornográfico, etc.; (ii) carácter difamatório; (iii) tom intimidatório ou provocatório; (iv) acusações de natureza criminal, (v) apelo à violência, (vi) linguagem inapropriada, (vii) publicidade comercial ou propaganda claramente político-ideológica; (viii) comunicações do foro privado, sem autorização de uma das partes." (...)

Luís Graça disse...

Ah!, lapso meu, e grave: esqueci-me de mandar um abraço de apreço e de amizade ao camarada Portojo que é um apaixonado da sua terra e das suas gentes, um poeta da fotografia, um artista que sabe fixar o olhar sobre a sua cidade e devolvê-lo sob a forma de belas e sugestivas imagens... São uma boa parelha, o Silva e o Portojo!

manuel carvalho disse...

Parabéns Zé Ferreira, todos nós que somos do Porto e arredores entramos em alguma parte da tua estória.
Tinha de ser mesmo assim com outras palavras já não era a mesma coisa.
Um abraço

Manuel Carvalho

Unknown disse...

Nem bos paça pla mona a travalheira que tibe em aturar o Zée. Num é que ele cria suvir por ali acima depois de enfardarmos umas tripas no Olho ?
Só podíamos descer pra baixo, pra Alfandega onde habiam queijos e salpicão e finos

Mário Vasconcelos disse...

Um bom naco de mui leal e invicta prosa. Por hoje já enchi o papo.

manuel maia disse...

CARO ZÉ FERREIRA,

MUITO OBRIGADO PELO EXCELENTE TEXTO QUE TROUXESTE À ESTAMPA...

DEVO DIZER-TE QUE JÁ NÃO ME RIA COM PRAZER FAZ TEMPO.

RETRATASTE O PORTO COM A ALMA DO ARTISTA.

UM GRANDE ABRAÇO E REITERADO AGRADECIMENTO.

mm

Anónimo disse...

Luis

Aqui bai a identificaçom do ANÓNIMO (cum nome, póis!) que assinoue por baixo A.A.A.B, mais conhecido por 3A.B..

Alberto Augusto Abrunhosa Branquinho

Hélder Valério disse...

Ora beim!

Um fresco sobre as zonas mais características de um 'certo' Porto, aquelas que durante a nossa juventude serviam para caracterizar a cidade.

Sobre as zonas e a sua 'fauna'. Pode-se pensar que é um retrato injusto mas é bem fiel à realidade.

Aquando da minha estadia no Porto também não deixei de procurar conhecer as suas várias facetas.
Para além do Majestic, do Águia D'ouro, da Rua de Santo António, de Santa Catarina, do Batalha, do Bolhão, da Ceuta, Arca d'Água, Senhora da Hora, etc., também fiz 'reconhecimento' na Rua da Bainharia e zona de S. Bento, onde visitei o "Derby".

No "Derby" aconteceu uma cena que na altura, devido à minha ingenuidade, não percebi nada, mas que agora, após os esclarecimentos do Zé Siva, já começo a perceber.
A cena é que entrando nesse local acompanhado de mais três jovens militares (à civil...) e passando de sala em sala houve em certa altura uma das senhoras bem anafadas e decotadas a preceito (a verdade é que era Verão, estava quente e naquele espaço muito cheio de gente o calor humano era muito) que se dirigiu a mim inquirindo "oh Zéi, tens aí cem paus?". Por acaso tinha mas... faziam-me falta! E como não percebi para que ela os queria, fiquei com eles.
Hoje, parece-me que já estou a entender.

Quanto à proposta da 'visita guiada' sugerida pelo Zé Ferreira, na senda do que os 'Bandalhos' capitaneados pelo Jorge 'Portojo' e pelo J. Teixeira costumam fazer e que depois nos dão conta com foto/reportagem 'à maneira', sem dúvida que é apetecível mas difícil de concretizar, pelo menos por mim e por enquanto. Mas não fica 'anulada' de vez.....

Abraço
Hélder S.