quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13623: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (15): Autorretrato de um soldado



1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72), com data de 17 de Setembro de 2014:

Bom dia Carlos,
Raspando o fundo do baú, sempre aparece algo.

Nesses tempos de "selfies" (neologismo que significa autorretrato), chamou minha atenção essa foto de 1970, poucos dias após a chegada à Guiné.
Autorretrato acompanha a História da Humanidade, lembra Narciso filho de liríope, passa pela necessidade de autoconhecimento, até chegar na expressão dos modernistas angustiados.

Mas voltemos ao soldado, que parece perguntar:
- Como é que eu vim parar aqui?

É uma viagem à década de sessenta, jovens inexperientes, num país que se queria fechado ao mundo. Eu, particularmente, vinha da Bairrada profunda, de um grupo familiar que Gramsci apelidada "intelectuais rurais', logo por defenição conservadores, embora dela tenham saído alguns que ele chama de intelectuais urbanos.

Passando pelas escolas locais, cheguei na Academia Coimbrã em plena efervescência da segunda metade da década de 60, verdadeiro "ponto de clivagem", dos valores e hábitos Ocidentais (não vamos achar que somos o centro do Mundo, só porque assim fizemos como nosso mapa).
Um fervilhar de ideias, contestação dos valores tradicionais, onde poucos tinham uma visão cosmopolita.

Na época, muitos devem lembrar, a figura do "passador", que mediante determinada quantia, fazia chegar as pessoas, além Pirenéus.
Pois, tinha um que era amigo da família, pai de um amigo, e que trabalhava em parceria com um frade (não sei se este o fazia por dinheiro ou convicção), eu tinha também, grande parte da família do outro lado do Atlântico. Assim, com essa facilidade, eu, que jamais pensei que a missão era "dilatar a fé e o império", nunca me passou pela ideia de usar os seus serviços, ou me reunir aos parentes. Penso, talvez, que não queria romper com os valores culturais em que estava inserido.
Contudo, "nesta altura do campeonato", não é mais relevante. Alguns de nós foram à guerra por convicção, outros movidos pela propaganda, muitos por inércia, e alguns outros com receio de enfrentar usos e costumes estrangeiros.

Forte abraço
VP
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13600: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (14): Sou só o Comandante

16 comentários:

Anónimo disse...



Amigo Vasco:

O meu percurso é parecido com o teu. sendo eu natural do nordeste transmontano, filho de lavradores ilustrados para o tempo e região, tinham a quarta classe.
Nesses tempos, excluindo os da capital eramos quase todos provincianos, eu influenciado por algumas leituras, não abençoadas pelo regime, pois por falta de meios financeiros, não fui para a faculdade, deixei que me levassem para a Guiné, por inércia, por outros medos e porque tinha 5 irmãos mais novos que precisavam da minha ajuda.
Um grande abraço

Francisco Baptista

Luís Graça disse...

(...) "Alguns de nós foram à guerra por convicção, outros movidos pela propaganda, muitos por inércia, e alguns outros com receio de enfrentar usos e costumes estrangeiros". (..:)

Vasco, lusitano da diáspora que estás sempre a lembrar as tuas raízes bairradinas... e respiras portugalidade por todos os poros... Dava uma série, para o nosso blogue, o feliz título que tu escolheste: "autorretrato de um soldado"...

No fundo, a questão que pões é: "por que é que eu fui p'rá guerra"...

Questão provocatória, incómoda, ou até absurda ?... Alguns camaradas nossos poderão achar que sim... Se a "pátria" te chama, só tens que responder com prontidão... Não foi sempre assim ao longo da nossa história ?... Se calhar não foi sempre assim... A história da nossa pátria está longe de ser um "livro aberto" e ter uma única leitura...

Sabe-se que de 1946 a 1973, dois milhões de portugueses sairam da sua terra, e quase metade (45%), em plena guerra colonial, só no curto período de 1966 a 1973... A maioria em idade ativa e jovem... E muitos deles, portanto, terão sido refratários...

Como alguém disse, o Estado Novo e as suas políticas (incluindo a guerra colonial) foram plebiscitadas pelos portugueses "com os pés"...

As motivações para a saída em massa e ilegal (, "a salto",) são fáceis de perceber: o círculo viciosoa da pobreza, em Portugal, não poderia ser mantido mais tempo, com o "milagre económico europeu" à nossa porta... (Os "trinta gloriosos", as décadas de excecional desenvolvimento económico e social que a Europa conheceu, desde o pós-guerra até 1973)... Jão era preciso ir para o Brasil: a França e a Alemanha estavam ali, à nossa porta, ou pelo menos, a partir dos Pirinéus...

Muitos jovens da nossa geração emigraram, não tanto para fugir à guerra colonail, mas por razões "económicas" (, digamos assim, para simplificar)... E outros (e se calhar muitos) fizeram a guerra para ter direito a um passaporte e poder emigrar (ou passear) legalmente...

Lutámos em África também para ter direito a um pátria... De certo modo, fui o teu caso, o meu, e de muitos outros de nós que fizemos a tropa e a a guerra...

Não sei, não temos suficiente evidência empírica sobre esta questão... Cada um, portanto, só poderá falar de si e por si....

Sinto, no entanto, que é não "confortável" para os ex-combatentes falar, para os seus "pares", num blogue como o nosso, com a audiência que o nosso tem, sobre estas "questões do foro íntimo"... Para mais, à distãncia de meio século...

No passado, quando jovens, reagíamos com o corpo inteiro (cabeça, coração, estômago, hormonas, braços e pernas, o chamdo "sangue na guelra"...). Hoje tenderemos a "racionalizar" e a "idealizar" as "escolhas" que fizemos no passado (e que estavam longe de serem inteiramente livres...).

Um alfabravo verde-rubro do tamanho do Atãntico que nos separa e que, ao mesmo tempo, nos une... Luís

Luís Graça disse...

E a propósito de audiências... Ainda o dia não terminou (falta o Brasil, os EUA, o Canadá...) e já temos, a esta hora,5636 isualizações de páginas...

Outros dados:


Visualizações de página de ontem
4 586;
Visualizações de página dos últimos 7 dias: 34 281;

Visualizações de páginas no último mês [em pleno agosto...]
153 660

Fonte: Blogger, o nosso servidor.

JD disse...

Olá Vasco,
A mesma frase que lança o Luís em comentário, pode ser acrescida de outras controversas condições: para além da veneração à pátria, e da aceitação das atribuições dela decorrentes, também a transigência aos costumes, e o medo da perseguição e discriminação pessoal e familiar eram condicionantes influentes na decisão de ir à guerra. Se podemos considerar decisão, face ao estatuto de passividade existente.
Eu nem me questionei muito. Se fugisse, nem sabia bem para onde, pois uma paixoneta ou outra em Inglaterra não seriam garantia de nada. Por outro lado, cedo comecei a preparar-me mentalmente para a sorte ou o azar de ir batê-las em África, e fui sem custo especial.
O comentário do Luís tem a virtude de alongar o nosso raio de pensamento sobre a questão, e de nos fazer confrontar, 40/50 anos depois, com o estado de espírito da época.
Ele tem uma interrogação pertinente, "não foi sempre assim ao longo da nossa história?"
Pois a minha resposta é que não sei, em primeiro lugar, porque a história está mal contada, em segundo, porque ao longo do tempo muitos foram arrebanhados para diferentes campanhas, sempre ao serviço dos poderosos, que evitavam a valorização do povo para dele disporem melhor. Ainda é assim.
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...



"Sempre ao serviço dos poderosos, que evitavam a valorização do povo para dele disporem melhor" Quero sublinhar esta frase do amigo JD que vale como um grande poema à humanidade e à solidaridade.
Um grande abraço

Francisco Baptista

Vasco Pires disse...

Caríssimos Luis Graça/ José Diniz/ Francisco Batista,

Cordiais saudações.

Muito obrigado pelos oportunos comentários.

Quem, mais do que nós, tem o direito de livremente opinar sobre a guerra 63/74, e o "caldo cultural" em que estava inserida?
forte abraço
VP

Vasco Pires disse...

Caríssimos Luis Graça/ José Diniz/ Francisco Batista,

Cordiais saudações.

Muito obrigado pelos oportunos comentários.

Quem, mais do que nós, tem o direito de livremente opinar sobre a guerra 63/74, e o "caldo cultural" em que estava inserida?
forte abraço
VP

Antº Rosinha disse...

É mais difícil aos refractários e desertores darem explicações pelo seu gesto, do que aqueles que pura e simplesmente cumpriram sem pestanejar com as obrigações militares.

A propósito, veja-se o resultado recente em tribunal do caso Brandão Ferreira/Manuel Alegre. (jornais)

Tirando os objectores de consciência e os motivos económicos familiares, tudo o resto é difícil de explicar.

Embora se possa politicamente compreender, mas justificar a "fuga, o abandono de companheiros", já é mais complicado explicar.

Vemos braços tatuados com Guiné, o nº da companhia, Angola, Moçambique, Amor de mãe etc.

Não vemos, braços com Berna, Paris, Bidonville.

No entanto a pátria também agradeceu as remessas.

Os ingleses também mandam escoceses para o Iraque.

Vasco Pires disse...

Caríssimo A. Rosinha,

Cordiais saudações.

Somente, para esclarecer...

Falei em: "...direito de livremente opinar sobre a guerra 63/74...",não em qualquer justificação!

forte abraço
VP

Vasco Pires disse...

Caríssimo A. Rosinha,

Cordiais saudações.

Somente, para esclarecer...

Falei em: "...direito de livremente opinar sobre a guerra 63/74...",não em qualquer justificação!

forte abraço
VP

Manuel Reis disse...

Amigo e ex-camarada Vasco:

Abriste uma frente de diálogo bastante interessante e que o Luís com o seu saber deu uma ajuda suplementar. Conheço o Vasco desde os tempos de escola, com um percurso um pouco idêntico, mas trilhando o mesmo caminho: colégio de Anadia e Universidade de Coimbra e imagine-se ....Gadamael. Aproveito para lembrar o percurso dos meus familiares no que à guerra diz respeito. Meu avó (materno) foi mobilizado para a 1ª guerra mundial e participou na batalha de La Lis. Consegui ouvir algumas peripécias, dispersas, dos momentos difíceis, que teve de suportar, na sua qualidade de granadeiro. No seu regresso era um homem destroçado anímicamente. A minha presença na sala tornava-se incómoda, pelo que me era dada ordem de retirada.Na casa dos meus avós vivia-se um ambiente republicano, sendo o meu bisavô, Pedro, meu grande amigo, constantemente perseguido. A maior parte das noites eram dormidas em palheiros, afastados da sua residência.Lamento que o diário do meu avó se tenha extraviado, a sua importância, para mim, era bastante significativa.
Seguiu-se o meu pai, que é mobilizado para alinhar na 2º guerra mundial, sendo enviado para Moçambique, durante 3 anos, onde supostamente se previa um desembarque de tropas japoneses. Nada faria supor esta mobilização do meu pai, recém- casado. Não sofreu os traumas da guerra, mas a ausência da família foi dura.
Poucos anos passados, face ás dificuldades económicas emigra para o Canadá onde permanece durante mais de 20 anos. No ano em que completava 17 anos e perante o espectro da guerra que pairava sobre a minha cabeça, desloca-se a Portugal e coloca-me a possibilidade de emigrar também. O meu pai, homem simples do campo, tem a noção e a preocupação de que a guerra me espera.Possibilita-me que decida .Estarei-lhe eternamente grato. Acabei por recusar, via a guerra ainda muito longe, e com um percurso académico satisfatório, nada o aconselhava. A minha entrada na academia, e o meu envolvimento nas lutas académicas, rasgaram-me outros horizontes e quando decidi, contrariado, participar na guerra que já se vivia nas ex-colónias, sabia para o que ia. A decisão era sustentada no plano familiar, pois na qualidade de filho único, não imaginava um afastamento prolongado dos meus pais.

Um grande abraço.

Vasco as caçoilas estão prontas!

Manuel Reis

Vasco Pires disse...



Salvé, Nobre filho da "GRANDE NAÇÃO BAIRRADINA"!!!

Às caçoilas, e às enguias fritas do Acácio!

forte abraço
VP

Vasco Pires disse...

Comentário do nosso Camarada Acácio Conde, Alf. Mil Angola, Ilustre filho da "Grande Nação Bairradina":

"...Muito apreciei a tua reflexão publicada no blog da Tabanca Grande sobre o auto-retrato de um soldado, espelho aliás em que será possível revermo-nos embora em cenários e situações nem sempre semelhantes quanto ao risco e à atitude pessoal de cada um perante os contextos e condicionalismos vividos pela nossa geração nessa época, já lá vão mais de quarenta anos...
Meninos quase imberbes navegámos em águas turvas ou voámos para terras mal conhecidas, num sacrifício que para alguns foi total e para muitos outros fez deles homens maduros bem mais cedo e mais precocemente face às responsabilidades e aos desafios com que cada um de nós se defrontou...

O tempo voou mas não apagou os fantasmas e as memórias - as boas e as más - do fundo do nosso baú ..."

Pela transcrição
VP

Anónimo disse...

E quem era contra o regime e evidentemente contra a guerra colonial...mas foi.

Contradições e incoerências difíceis de explicar.

Sendo patriota não confundir com "patrioteiro"..eram os portugueses que iam..conscientes ou não..julgando ou não que iam defender a Pátria.

O que é a Pátria ?

Para mim são o conjunto dos portugueses, independentemente de habitarem um território delimitado.

Nasci português e tenho orgulho de o ser.

Fui e julgo que cumpri.

Não estou arrependido.

Passados todos estes anos não alterei a minha forma de pensar.

Que não tem muita lógica..não tem.

Que é contraditório..é.

O que é que querem..sou assim.

C.Martins

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Este artigo do Vasco Pires é interessante e apelativo.

E o Luís ajudou a 'enquadrar' a situação e lançou uma espécie de desafio para que se tornasse possível um maior e mais amplo conhecimento das motivações por que se tomaram umas opções e não outras, relativamente às decisões 'individuais' aquando da incorporação no SMO ou da subsequente mobilização para qualquer TO.

Mas é um assunto melindroso.
Por um lado, temos o facto de que estamos num Blogue de "camaradas da Guiné", o que pressupõe que o traço comum é, em princípio, tratar-se de uma espécie de ´fórum' em que por direito próprio entram os que têm essa característica em comum, o de terem cumprido a sua comissão militar na Guiné ou que sejam considerados 'amigos da Guiné'. Deste modo ficam logo excluídos, à partida, "os argumentos, as razões, as justificações, as explicações" (verdadeiras, falsas, distorcidas, etc.) daqueles que optaram por 'não ir'.

Por outro lado, ainda há muitos companheiros que não conseguem o suficiente 'distanciamento' para ouvir ou ler uma opinião que não coincida com a sua. Quase que me atreveria a dizer que esse aspecto, o da cristalização de opiniões, tem tendência a agravar-se com o passar do tempo e com os ânimos que vão tendo com algumas 'decisões' que vão sendo tomadas.

Um exemplo simples de que seria difícil colocar aqui opiniões que não se conformem com o sentido 'do soprar do vento actual', tem a ver com a observação que o Vasco faz ao comentário do amigo Rosinha. Não pelo Rosinha em si, que já tem dados sobejas mostras de ser um homem de opiniões sim, mas de diálogo franco, também.
Mas pela ideia que 'verbalizou' ao considerar que 'os outros' "iriam dar explicações" e não a sua opinião sem constrangimentos.

Portanto, podendo dar algum corpo ao pedido/sugestão do Luís, não me parece que o venha a fazer, pelo menos nestes tempos em que os "patrioteiros" pensam 'estar maduros para a caça às bruxas'.

Hélder S.

anonimo disse...

Como é que vim parar aqui?
Por ignorância uns, por covardia outros, por fanatismo outros...
Melhor seria que todos tivéssemos tido a coragem e soubéssemos dizer não. A guerra não é nossa.
não é a matar ou a violar meninas que se mostra o chamado "patriotismo"
quão bom teria sido estar esclarecido para dizendo "NÃO" não seria necessárias a pergunta porque vim parar aqui?