Figueira da Foz > "Placa da Rua Heróis do Ultramar na esquina com a Rua 10 de Agosto, em frente dos Bombeiros Voluntários"... Foto de Joehawkins, datada de 24 outubro de 2016. Com a devida vénia... Fonte: Wikimedia Commons (2018)
[Placas como esta abundam pelo país fora, são do início dos anos 60, quando começou a guerra colonial / guerra do ultramar em Angola, e era preciso homenagear os bravos que por lá se batiam, em condições adversas... A guerra depois banalizou-se, estendendo-se à Guiné e a Moçambique.. E os heróis foram ficando para trás... Esquecidos. Como em todas as guerras.. LG]
A Galeria dos Meus Heróis (14): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – IV (e última) Parte (Luís Graça) (*)
[Continuação...
Sinopse das Partes I, II e III:
Belmiro Mateus, advogado, que não fez o serviço militar obrigatório, e António Mota, ex-seminarista, professor de história, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, numa das companhias da "nova força africana" do Spínola, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures no Ribatejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, numa LFG, entre 1973 e 1974. A conversa prossegue num bar a 500 metros do cemitério, incidindo nomeamente sobre o passado dos três amigos e condiscípulos, a infância, a terra, a tropa, a guerra colonial, o 25 de Abril, mas também o fado, a morte, Deus, a fé...]
O Belmiro deu um abraço emocionado ao Tony depois do seu relato da cena da morte do puto da Simonov.
− Tony, é a primeira vez, nestes anos todos, que ouço alguém contar-me uma cena de guerra na primeira pessoa do singular!... Mas guerra é guerra, como é costume dizer-se. E, numa situação de combate, reage-se por reflexos, por instinto de sobrevivência. Foste também treinado para isso. E eu não faria melhor do que tu, se estivesse no teu lugar. Atirava a matar, sem apelo nem agravo.
− Mas era um puto, Belmiro!
− Afinal, com a idade de alguns dos teus soldados que também foram mortos em combate. E alguns, pelo que me contaste, também foram fuzilados, fria e barbaramente, a seguir à independência.
− É verdade... mas sabes o que ainda hoje, ao fim destes anos todos, me perturba, e às vezes me tira o sono ?
− Sim?!...
− É que aquele (o golpe de mão sobre a aldeia, ou tabanca em crioulo, ) não era o objetivo da operação... A missão era localizar e destruir uma "barraca" (um acampamento temporário) da guerrilha, a sul de uma base no Morés, Sara Sarauol, no centro do país... Não sei se estás a ver o mapa da Guiné...
− Para mim, é chinês, mas continua...
− A operação foi mal planeada e pior conduzida, pelo major de operações, a partir de uma avioneta (que funcionava como PCV , quer dizer Posto de Comando Volante)... Com a história dos mísseis Strela, de que te já te falei, as aeronaves tinham que passar a voar alto ou, então, caso dos helicópteros, a rasar a copa das árvores… Houve uma falha (e já não era a primeira vez) nas comunicações terra-ar. Ficámos por nossa conta, com um guia que conhecia mal o terreno... Por azar, e já no regresso, deparámos com aquele pequeno núcleo populacional, desarmado ou mal armado...
− Mas houve resistência!?...
− Fraca, a população deu conta da presença tropa e começou logo a debandar ainda antes dos primeiros tiros... 'Tuga, tuga!'... O puto da Simonov deve ter ficado para trás... com mais alguns homens válidos... que deviam ser milícias (eles também tinham milícias). Depois, como deves imaginar, não tive mãos nos meus homens, fizeram o que tinham a fazer... Nós, e mais outro grupo de combate que fizemos o golpe de mão, com o resto da nossa companhia a cercar parte do objetivo, retirámos rapidamente... deixando atrás alguns mortos da população e as palhotas a arder... Apanhámos o que pudemos: algumas mulheres, crianças e velhos, e armas ligeiras que deviam estar entregues ao chefe da tabanca para autodefesa... O regresso foi um sufoco, com apoio de helicanhão... e de uma "formiga" de um T6 a dez mil pés de altura, três quilómetros ou coisa assim...
Os dois amigos desciam agora, em silêncio, a rua do Colete Encarnado que ia desembocar ao centro da vila. O António tinha o carro no parque de estacionamento fora do centro histórico, no sentido contrário do cemitério (que ficava a norte). Ainda ia jantar com o filho, mais novo, que estudava em Lisboa.
Passaram pela antiga casa, solarenga, da família do Zé Nuno, agora transformada em biblioteca municipal e centro cultural. Mas já tinham passado, na parte alta, pela antiga casa dos avós e dos pais do António, uma casa modesta, de piso térreo, agora restaurada. Tinha sido comprada há uns anos por um casal de emigrantes que vivia no Luxemburgo.
− Gente da terra, trabalhadora... − esclareceu o Belmiro.
O Tony já não tinha mais raízes, na vila, a não ser memórias, depois da venda, há largos anos, da casa onde nascera, e que fora erguida pelo avô, campino de uma casa agrícola da região. A avó era avieira, nascida na Praia da Vieira, tendo vindo com os pais para a faina da pesca no Tejo, no tempo da miséria. Por seu turno, o seu irmão mais novo também tinha morrido cedo. Em suma, já não tinha família por aqueles lados, e os seus filhos nunca chegaram a fazer lá amizades, eram os dois nados e criados no Alentejo.
− Belmiro, és aqui o meu último amigo e irmão... Quero ver se, no Dia de Todos os Santos, daqui a seis meses, volto cá para pôr uma flor na campa dos meus velhotes, os meus pais e os meus avós. Combinamos uma almoçarada no Afonso, se tiveres disponível...
− Ainda é aquele que faz a melhor sopa de bacalhau dos campinos, de todos os restaurantes da vila... Mas também pode ser um peixinho do rio...
A antiga rua do Colete Encarnado tinha sido rebatizada, depois do 25 de Abril... Era agora a rua das Forças Armadas...
− Que raio de nome! É homenagem a quê ou a quem ? Foram as Forças Armadas que fizeram o 25 de Abril ?
− Mas também fizeram o 28 de Maio... e o 10 de Outubro... − ironizou o Belmiro.
O Tony também concordava com a opinião do amigo, que vivia na terra e que conhecia melhor do que ninguém as misérias e grandezas da vida local. De facto, parecia que, aqui como em todo o lado, as comissões de toponímica municipais eram uma cambada de burocratas que iam atrás das agendas partidárias, eram ignorantes da história local e nacional e sobretudo revelavam uma miserável insensibilidade sociocultural…
− Limparam as ruas todos, becos, travessas, praças, pracetas… Ficámos amnésicos, Tony. Perdemos a memória da nossa história local. Até o Beco do Quebra-Costas tem agora o nome de um professor qualquer de Lisboa que era antifascista, e que nunca cá pôs os pés nesta terra...
− Santa incultura geral, Belmiro… Uma tristeza!...
O antigo Solar do Marquês de Marialva, um belo edifício do início do séc. XX, exemplar interessantíssimo da arquitetura regional, e de que o Zé Nuno tanto gostava, acabaria, há uns dez anos atrás, por ser vítima do impiedoso e cego camartelo camarário.
− Sem dó nem piedade! − lamentou o Belmiro. − Nem sequer classificaram o edifício. Hoje é um complexo de apartamentos de luxo, propriedade de gente que nem sequer é da terra. Estão a gentrificar a nossa terra, Tony!
Ainda pararam para beber uma bica, no café que o Zé Nuno gostava de frequentar, e onde costumava parar a malta do grupo de forcados, agora em decadência. E a conversa voltou de novo à tropa e à guerra:
− Costumo dizer, Belmiro, que a Guiné foi a rifa que me saiu em sorte... Só não ganho o raio do Euromilhões!... Mas, pensando bem, não me posso queixar. Pelo menos estou vivo. Podia ter dito que não... Mas será que tinha condições para decidir em consciência ? Para mais, face a um Estado autoritário e repressivo como o nosso, na altura ?
− Não, não tinhas alternativa. A deserção era, e é, um crime grave. Ponho-me no teu lugar, eras o indivíduo, só, desamparado, contra o Estado, todo poderoso.
− Foi a rifa que me saiu na história. Como sabes, na história não há "ses"!... Ah!, se eu tivesse nascido dez anos antes, ou dez anos depois!... Não me posso queixar, ou não me adianta, não posso alterar agora o curso da história, da minha e a dos outros…
− Tony, há muitas formas de heroísmo, não é só na frente de batalha... Mas os desertores, em geral, nunca são tratados como heróis...
− Temos sempre dificuldade em abordar o problema dos refractários e dos desertores... Sobretudo destes últimos, que afinal foram em número ínfimo, tanto quanto sei. Já os refractários podemos falar em um quinto dos homens em idade militar. Quer dizer, da malta da nossa escola, um em cada cinco cavou para o estrangeiro antes da sua convocação entre os 18 e os 20 anos.
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Nota do editor:
(*) Vd. postes anteriores da série:
6 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19171. A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)
(...) − Meu caro Belmiro, dá-me cá um valente quebra-costelas, como se diz lá em baixo no meu Além... Tejo!
− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.
− Cá vamos andando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.
− Cá vamos andando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo. (...)
7 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19174. A galeria dos meus heróis (12): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte II Luís Graça)
(...) − O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos… As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam. Os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seu moço ajudante. Enfim, encontravam-se na missa, ao domingo. (...)
8 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19175: A galeria dos meus heróis (13): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte III Luís Graça)
(...) E, prosseguindo a sua linha de pensamento sobre o seu passado, quando estudante, justificou-se o Belmiro:
− Aos vinte anos, somos todos revolucionários quando há que fazer revoluções… No passado,à direita e à esquerda, os revolucionários chamavam-se fascistas, comunistas, anarquistas, porque era preciso destruir a burguesia e o Estado capitalista, na Europa nos anos 20 e 30 do séc. XX. Hoje não temos a mesma urgência em mudar as coisas, tal como acontecia em Portugal em 1973, o ano em que nada podia continuar como dantes: tínhamos a escalada da guerra colonial, a ditadura em banho maria, a crise petrolífera, o esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento, a emigração em massa, a democratização do ensino… Andávamos em agitação permanente, pelo menos na universidade, em Lisboa, Porto e Coimbra, achávamos que tínhamos que começar a mudar as coisas pela veemência e a urgência da palavra… (...)
Luís Graça, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12,
junho de 1969
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[Continuação...
Sinopse das Partes I, II e III:
Belmiro Mateus, advogado, que não fez o serviço militar obrigatório, e António Mota, ex-seminarista, professor de história, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, numa das companhias da "nova força africana" do Spínola, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures no Ribatejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, numa LFG, entre 1973 e 1974. A conversa prossegue num bar a 500 metros do cemitério, incidindo nomeamente sobre o passado dos três amigos e condiscípulos, a infância, a terra, a tropa, a guerra colonial, o 25 de Abril, mas também o fado, a morte, Deus, a fé...]
O Belmiro deu um abraço emocionado ao Tony depois do seu relato da cena da morte do puto da Simonov.
− Tony, é a primeira vez, nestes anos todos, que ouço alguém contar-me uma cena de guerra na primeira pessoa do singular!... Mas guerra é guerra, como é costume dizer-se. E, numa situação de combate, reage-se por reflexos, por instinto de sobrevivência. Foste também treinado para isso. E eu não faria melhor do que tu, se estivesse no teu lugar. Atirava a matar, sem apelo nem agravo.
− Mas era um puto, Belmiro!
− Afinal, com a idade de alguns dos teus soldados que também foram mortos em combate. E alguns, pelo que me contaste, também foram fuzilados, fria e barbaramente, a seguir à independência.
− É verdade... mas sabes o que ainda hoje, ao fim destes anos todos, me perturba, e às vezes me tira o sono ?
− Sim?!...
− É que aquele (o golpe de mão sobre a aldeia, ou tabanca em crioulo, ) não era o objetivo da operação... A missão era localizar e destruir uma "barraca" (um acampamento temporário) da guerrilha, a sul de uma base no Morés, Sara Sarauol, no centro do país... Não sei se estás a ver o mapa da Guiné...
− Para mim, é chinês, mas continua...
− A operação foi mal planeada e pior conduzida, pelo major de operações, a partir de uma avioneta (que funcionava como PCV , quer dizer Posto de Comando Volante)... Com a história dos mísseis Strela, de que te já te falei, as aeronaves tinham que passar a voar alto ou, então, caso dos helicópteros, a rasar a copa das árvores… Houve uma falha (e já não era a primeira vez) nas comunicações terra-ar. Ficámos por nossa conta, com um guia que conhecia mal o terreno... Por azar, e já no regresso, deparámos com aquele pequeno núcleo populacional, desarmado ou mal armado...
− Mas houve resistência!?...
− Fraca, a população deu conta da presença tropa e começou logo a debandar ainda antes dos primeiros tiros... 'Tuga, tuga!'... O puto da Simonov deve ter ficado para trás... com mais alguns homens válidos... que deviam ser milícias (eles também tinham milícias). Depois, como deves imaginar, não tive mãos nos meus homens, fizeram o que tinham a fazer... Nós, e mais outro grupo de combate que fizemos o golpe de mão, com o resto da nossa companhia a cercar parte do objetivo, retirámos rapidamente... deixando atrás alguns mortos da população e as palhotas a arder... Apanhámos o que pudemos: algumas mulheres, crianças e velhos, e armas ligeiras que deviam estar entregues ao chefe da tabanca para autodefesa... O regresso foi um sufoco, com apoio de helicanhão... e de uma "formiga" de um T6 a dez mil pés de altura, três quilómetros ou coisa assim...
Os dois amigos desciam agora, em silêncio, a rua do Colete Encarnado que ia desembocar ao centro da vila. O António tinha o carro no parque de estacionamento fora do centro histórico, no sentido contrário do cemitério (que ficava a norte). Ainda ia jantar com o filho, mais novo, que estudava em Lisboa.
Passaram pela antiga casa, solarenga, da família do Zé Nuno, agora transformada em biblioteca municipal e centro cultural. Mas já tinham passado, na parte alta, pela antiga casa dos avós e dos pais do António, uma casa modesta, de piso térreo, agora restaurada. Tinha sido comprada há uns anos por um casal de emigrantes que vivia no Luxemburgo.
− Gente da terra, trabalhadora... − esclareceu o Belmiro.
O Tony já não tinha mais raízes, na vila, a não ser memórias, depois da venda, há largos anos, da casa onde nascera, e que fora erguida pelo avô, campino de uma casa agrícola da região. A avó era avieira, nascida na Praia da Vieira, tendo vindo com os pais para a faina da pesca no Tejo, no tempo da miséria. Por seu turno, o seu irmão mais novo também tinha morrido cedo. Em suma, já não tinha família por aqueles lados, e os seus filhos nunca chegaram a fazer lá amizades, eram os dois nados e criados no Alentejo.
− Belmiro, és aqui o meu último amigo e irmão... Quero ver se, no Dia de Todos os Santos, daqui a seis meses, volto cá para pôr uma flor na campa dos meus velhotes, os meus pais e os meus avós. Combinamos uma almoçarada no Afonso, se tiveres disponível...
− Ainda é aquele que faz a melhor sopa de bacalhau dos campinos, de todos os restaurantes da vila... Mas também pode ser um peixinho do rio...
A antiga rua do Colete Encarnado tinha sido rebatizada, depois do 25 de Abril... Era agora a rua das Forças Armadas...
− Que raio de nome! É homenagem a quê ou a quem ? Foram as Forças Armadas que fizeram o 25 de Abril ?
− Mas também fizeram o 28 de Maio... e o 10 de Outubro... − ironizou o Belmiro.
O Tony também concordava com a opinião do amigo, que vivia na terra e que conhecia melhor do que ninguém as misérias e grandezas da vida local. De facto, parecia que, aqui como em todo o lado, as comissões de toponímica municipais eram uma cambada de burocratas que iam atrás das agendas partidárias, eram ignorantes da história local e nacional e sobretudo revelavam uma miserável insensibilidade sociocultural…
− Limparam as ruas todos, becos, travessas, praças, pracetas… Ficámos amnésicos, Tony. Perdemos a memória da nossa história local. Até o Beco do Quebra-Costas tem agora o nome de um professor qualquer de Lisboa que era antifascista, e que nunca cá pôs os pés nesta terra...
− Santa incultura geral, Belmiro… Uma tristeza!...
O antigo Solar do Marquês de Marialva, um belo edifício do início do séc. XX, exemplar interessantíssimo da arquitetura regional, e de que o Zé Nuno tanto gostava, acabaria, há uns dez anos atrás, por ser vítima do impiedoso e cego camartelo camarário.
− Sem dó nem piedade! − lamentou o Belmiro. − Nem sequer classificaram o edifício. Hoje é um complexo de apartamentos de luxo, propriedade de gente que nem sequer é da terra. Estão a gentrificar a nossa terra, Tony!
Ainda pararam para beber uma bica, no café que o Zé Nuno gostava de frequentar, e onde costumava parar a malta do grupo de forcados, agora em decadência. E a conversa voltou de novo à tropa e à guerra:
− Costumo dizer, Belmiro, que a Guiné foi a rifa que me saiu em sorte... Só não ganho o raio do Euromilhões!... Mas, pensando bem, não me posso queixar. Pelo menos estou vivo. Podia ter dito que não... Mas será que tinha condições para decidir em consciência ? Para mais, face a um Estado autoritário e repressivo como o nosso, na altura ?
− Não, não tinhas alternativa. A deserção era, e é, um crime grave. Ponho-me no teu lugar, eras o indivíduo, só, desamparado, contra o Estado, todo poderoso.
− Foi a rifa que me saiu na história. Como sabes, na história não há "ses"!... Ah!, se eu tivesse nascido dez anos antes, ou dez anos depois!... Não me posso queixar, ou não me adianta, não posso alterar agora o curso da história, da minha e a dos outros…
− Tony, há muitas formas de heroísmo, não é só na frente de batalha... Mas os desertores, em geral, nunca são tratados como heróis...
− Temos sempre dificuldade em abordar o problema dos refractários e dos desertores... Sobretudo destes últimos, que afinal foram em número ínfimo, tanto quanto sei. Já os refractários podemos falar em um quinto dos homens em idade militar. Quer dizer, da malta da nossa escola, um em cada cinco cavou para o estrangeiro antes da sua convocação entre os 18 e os 20 anos.
− Refratários... ou faltosos ? Tenho ideia, como jurista, que há uma diferença semântica e concetual... Mas não tinha ideia desses números...
− Não faço distinção: foram todos os que faltaram à tropa...
− Não faço distinção: foram todos os que faltaram à tropa...
− Sim, Tony, a guerra era impopular... Apercebi-me disso quando entrei na universidade...
− Olha, eu acho que foi o salve-se quem puder − concluiu o Tony. − À boa maneira portuguesa. Somos uns safados... O Salazar deixou-nos uma batata quente que rebentou na boca do delfim mal amado, o Marcelo Caetano. Para lá do impasse militar e do desastre político, tínhamos um problema demográfico bicudo. Já não tens braços para segurar a G3 e ir fazer a guerra. Daí o crescente recurso à tropa de 2ª linha, se quiseres, os guineenses do recrutamento local (e nos outros territórios,os angolanos, os moçambicanos...). Eram bons combatentes, e sobretudo mais baratos, mas não falavam português, pelo menos os guineenses… Como se poderiam sentir portugueses ? Nem sabiam onde ficava Portugal no mapa!...
− Sim, muito me contas, nunca tinha pensado nisso.
− O PAIGC tinha o mesmo problema… Estava exangue, conheci guerrilheiros em 1974 que só falavam francês... A guerra foi um modo de vida, para alguns, de um lado e do outro... Foi um modo de vida para alguns milicianos que se tornaram capitães... De aviário, como a gente dizia...
− Confesso, Tony, que na altura, a seguir ao 25 de Abril, queríamos era apressar o fim da guerra. A todo o custo, doesse a quem doesse, incluindo a tropa e os civis espalhados por Angola, Guiné e Moçambique. Era militar, política, diplomática e economicamente impossível prosseguir a guerra a partir de 1974. Ninguém estava mais disposto a perder três anos da sua vida, e muito menos a vida, por uma causa historicamente perdida… Há limites para o patriotismo...
− Sim, tu foste dos que gritaste "Nem mais um soldado para as colónias"... Estavas a ser coerente, embora eu não pudesse de maneira nenhum estar de acordo contigo nessa altura. Em agosto de 1974 eu passei momentos terríveis a tentar tranquilizar os meus soldados, antes de dissolver a companhia. Vi-me embora em setembro e eles, coitados, lá ficaram entregues à sua sorte... Com os ordenados pagos até ao fim do ano...
− Se calhar eu estava a ser também inconscientemente egoísta. Eu não queria apanhar com as sobras do Império, com os estilhaços do desmoronamento do Império... A conhecê-lo, a ir para a guerra, gostava de ter sido no seu apogeu, mas aí eu ainda não tinha nascido. Nem sei se o império chegou a ter algum momento de apogeu... Em boa verdade estava-me nas tintas para a sorte de quem ainda lá estava, como tu e o Zé Nuno, e mais milhares e milhares de soldados, metropolitanos e do recrutamento local, a par de centenas e centenas de milhares de civis, brancos, mestiços e negros, que temiam pelo seu futuro quando fosse arreada a bandeira portuguesa.
- Acredita, Belmiro, nem nós nem o PAIGC estávamos dispostos a voltar a combater... Ouvi eu da boca de alguns comissários políticos... Seria uma tragédia se as negociações entre os políticos tivessem falhado, em Londres e depois em Argel... Agora, não me perguntes se não teria havido outras soluções... Hoje é fácil brincarmos aos jogos de guerra... E não falta aí gente, nas redes sociais, veteranos de guerra e outros, a destilar veneno contra o 25 de Abril e a descolonização.
− Eu não teria moral nem muito menos imaginação para impor um outro fim ao nosso fim da história colonial... Mesmo que esse fim não me agradasse, como não me agradou... vistas hoje as coisas a esta distância.
− Todos ou quase todos concordam que, idealmente, as coisas poderiam ter tomado outro rumo. Sabemos como começa uma guerra, nunca saberemos como ela acaba... No caso de Angola, por exemplo, ela só acabou 40 anos depois e o balanço é aterrador, quase apocalíptico. Na Guiné, tirando os meus soldados fulas, toda a gente festejou o fim da guerra...
- Tony, fomos todos joguetes nas mãos dos russos e americanos, da Nato e do Pacto de Varsóvia. Estávamos no auge da guerra fria e, cá dentro, à beira de uma guerra civil, no verão quente de 75.
− Eu não tenho a mesma perceção… Seria impossível ter uma Cuba às portas da Europa, ou melhor, em plena Europa. Para mais, num país da NATO… O Salazar tinha isto bem armadilhado. E a Espanha do Franco ainda ponderou intervir, ao que parece, para evitar o risco de contágio. Os nossos revolucionários eram de opereta. As nossas revoluções foram sempre de opereta, desde a restauração, em 1640.
− "Revolução dos cravos"?!... − exclamou, em tom de ironia, o Belmiro.− Mas, olha, também eu, maoista, fui na onda do papão do social-fascismo... Como eu gostava então do palavrão!... Mas no 25 de Novembro eu estava ao lado do Eanes e do grande educador da classe operária, o Arnaldo de Matos...
− Fomos todos ingénuos, mas bem ou mal escrevemos o nosso capítulo da história. Eu, por mim, procuro tranquilizar a minha consciência do seguinte modo: fui para a guerra, não desertei, queria continuar ter o direito de viver no meu país, fiz a guerra, na esperança de que os políticos do meu país encontrassem, a tempo, uma solução (política) para ela...
− Daqui a 10 anos estamos a debater o 1º centenário do Estado Novo. E, se calhar, os portugueses vão confirmar o Salazar como o estadista português mais importante do séc. XX.
− Espero bem que não... Mas a verdade é que ainda hoje o seu fantasma paira pelas nossas cabeças, tal como o do Marquês de Pombal, mesmo quando os mais novos já não sabem sequer quem foram esses homens... O Salazar esteve em cena quase 50 anos, atravessando terríveis períodos do nosso tempo, da crise de 1929 à Guerra Civil de Espanha, da II Guerra Mundial à guerra colonial…
− Foi o pai da Pátria, o que nos livrou da II Guerra Mundial, como dizia o meu pai lá em casa. E, na verdade, foi, quer gostes ou não.
−... Eu, acho, Belmiro, que ainda não o matámos nem o enterrámos de vez.
E foi com esta conversa melancólica que os dois amigos se despediram. Pela última vez… Passados uns meses, o Tony morreria num brutal acidente de automóvel na A2, quando regressava de Lisboa, a caminho do seu monte no Baixo Alentejo. Nunca se soube a causa de morte, por vontade da viúva e dos dois filhos...
Ao Belmiro, que ainda tentou, em vão, obter uma cópia do relatório da autópsia, chegaram versões contraditórias: sono, AVC, morte súbita, suicídio ?!... Parece que o veículo, que circulava na faixa direita, foi bater de lado nos rails de proteção, e andou dezenas e dezenas de metros descontrolado, a varrer as faixas de um lado ao outro... Felizmente não havia mais carros a essa hora, da noite... O Tony terá tido morte imediata.
O Belmiro inclina-se mais para a hipótese de acidente por despiste, devido a cansaço e a sono... O Tony amava demais a vida e a família e o Alentejo, nunca lhe falara em suicídio...
O corpo, depois de libertado, foi cremado. As cinzas repousam agora junto à "oliveira da paz", que o Tony replantara no seu monte, vinda do Alqueva... Era centenária. Os filhos e a viúva cumpriram assim a sua última vontade, mas só em parte: ele deixara escrito que as suas cinzas deveriam ser espalhadas por três sítios que ele amou: a sua terra natal, o monte no Alentejo e "o rio Geba, cuja água ele bebera"... Em alternativa, lançaram parte das cinzas no Cais da Rocha Conde Óbidos numa cerimónia restrita, apenas com a família mais próxima e alguns amigos íntimos. Dali tinham partido, de barco, centenas e centenas de milhares de soldados para as guerras coloniais (Índia, Angola, Guiné, Moçambique)...O gesto era simbólico: o Tony já foi e veio nos TAM - Transportes Aéreos Militares.
O Belmiro ainda chegou a abordar o presidente da Comissão de Toponímia Municipal, um jovem arquiteto, vereador da câmara municipal, membro influente de um dos partidos do arco do poder quanto à hipótese de ser dado o nome do dr. António Mota a um novo arruamento a abrir em breve (ou equipamento escolar a inaugurar no futuro), nos arredores da vila, já na zona extra-muros. A resposta não podia ser mais desencorajante:
− Caro doutor, como sabe tão bem como eu, a comissão é meramente consultiva, dá pareceres, quem atribui os nomes é a Assembleia Municipal... Faça-me uma proposta, fundamentada, por escrito, mas vai ser difícil...
− Difícil ?...− interrompeu o dr. Belmiro Mateus.
− O dr. António Mota era nosso conterrâneo, e depois ?... Fez a guerra do ultramar, mas não foi reconhecido como herói. Tem uma cruz de guerra, a Torre e Espada, ou coisa parecida ? Não tem. Tem alguma comenda ? Não tem... Como sabe, temos muitos candidatos e poucos novos arruamentos ou equipamentos para homenagear os nossos conterrâneos ilustres... E depois a guerra do ultramar, felizmente, já está esquecida, é uma coisa do século passado... Já temos, por outro lado, uma rua dos Heróis do Ultramar, construímos há dois ou três anos um monumento aos combatentes do ultramar, e no nosso cemitério há um talhão da Liga dos Combatentes... Acho que a nossa terra já fez o que tinha a fazer pelos nossos bravos antepassados que andaram, e alguns morreram, na I Grande Guerra e na Guerra do Ultramar...
O dr. Belmiro Mateus estava quase a explodir de raiva, mas conteve-se... Percebeu onde é que o jotinha queria chegar: o António Mota era um "outsider", um desalinhado, não fazia parte do sistema, "não comia na mesma gamela", nunca tinha sido autarca, presidente de junta de freguesia, presidente da câmara, presidente da Assembleia Municipal, vereador, dirigente partidário, deputado, não chegara sequer a general, nem muito menos era um herói... Por que raio é que deveria ter um nome de rua na sua terra ?! Ele, o Zé Nuno e tantos outros conterrâneos, centenas, anónimos, que afinal foram os coveiros do Império ?!...
Luís Graça
Lourinhã, 11/11/2018, 5h00
[Costuma-se prevenir o leitor de textos 'literários´como este, de que qualquer semelhança destas histórias com a realidade é pura coincidência. Por razões éticas e legais de proteção de dados, os nomes aqui referidos são fictícios, exceto os dos países, os dos lugares públicos e os das figuras públicas. Todos os factos aqui narrados inspiram-se em factos que aconteceram ou podiam ter acontecido. Uns vividos pelo autor, outros partilhados por camaradas e amigos da Guiné... Se no final tu, leitor, te sentires desconfortável, peço-te que voltes para a cama e continues a dormir, descansado, como eu faço: afinal a guerra colonial nunca existiu, foi apenas um pesadelo, para alguns, como nós, ex-combatentes. Boa dia, boa tarde ou boa noite, conforme a hora e o lugar em que me estiveres a ler.]
− Olha, eu acho que foi o salve-se quem puder − concluiu o Tony. − À boa maneira portuguesa. Somos uns safados... O Salazar deixou-nos uma batata quente que rebentou na boca do delfim mal amado, o Marcelo Caetano. Para lá do impasse militar e do desastre político, tínhamos um problema demográfico bicudo. Já não tens braços para segurar a G3 e ir fazer a guerra. Daí o crescente recurso à tropa de 2ª linha, se quiseres, os guineenses do recrutamento local (e nos outros territórios,os angolanos, os moçambicanos...). Eram bons combatentes, e sobretudo mais baratos, mas não falavam português, pelo menos os guineenses… Como se poderiam sentir portugueses ? Nem sabiam onde ficava Portugal no mapa!...
− Sim, muito me contas, nunca tinha pensado nisso.
− O PAIGC tinha o mesmo problema… Estava exangue, conheci guerrilheiros em 1974 que só falavam francês... A guerra foi um modo de vida, para alguns, de um lado e do outro... Foi um modo de vida para alguns milicianos que se tornaram capitães... De aviário, como a gente dizia...
− Confesso, Tony, que na altura, a seguir ao 25 de Abril, queríamos era apressar o fim da guerra. A todo o custo, doesse a quem doesse, incluindo a tropa e os civis espalhados por Angola, Guiné e Moçambique. Era militar, política, diplomática e economicamente impossível prosseguir a guerra a partir de 1974. Ninguém estava mais disposto a perder três anos da sua vida, e muito menos a vida, por uma causa historicamente perdida… Há limites para o patriotismo...
− Sim, tu foste dos que gritaste "Nem mais um soldado para as colónias"... Estavas a ser coerente, embora eu não pudesse de maneira nenhum estar de acordo contigo nessa altura. Em agosto de 1974 eu passei momentos terríveis a tentar tranquilizar os meus soldados, antes de dissolver a companhia. Vi-me embora em setembro e eles, coitados, lá ficaram entregues à sua sorte... Com os ordenados pagos até ao fim do ano...
− Se calhar eu estava a ser também inconscientemente egoísta. Eu não queria apanhar com as sobras do Império, com os estilhaços do desmoronamento do Império... A conhecê-lo, a ir para a guerra, gostava de ter sido no seu apogeu, mas aí eu ainda não tinha nascido. Nem sei se o império chegou a ter algum momento de apogeu... Em boa verdade estava-me nas tintas para a sorte de quem ainda lá estava, como tu e o Zé Nuno, e mais milhares e milhares de soldados, metropolitanos e do recrutamento local, a par de centenas e centenas de milhares de civis, brancos, mestiços e negros, que temiam pelo seu futuro quando fosse arreada a bandeira portuguesa.
- Acredita, Belmiro, nem nós nem o PAIGC estávamos dispostos a voltar a combater... Ouvi eu da boca de alguns comissários políticos... Seria uma tragédia se as negociações entre os políticos tivessem falhado, em Londres e depois em Argel... Agora, não me perguntes se não teria havido outras soluções... Hoje é fácil brincarmos aos jogos de guerra... E não falta aí gente, nas redes sociais, veteranos de guerra e outros, a destilar veneno contra o 25 de Abril e a descolonização.
− Eu não teria moral nem muito menos imaginação para impor um outro fim ao nosso fim da história colonial... Mesmo que esse fim não me agradasse, como não me agradou... vistas hoje as coisas a esta distância.
− Todos ou quase todos concordam que, idealmente, as coisas poderiam ter tomado outro rumo. Sabemos como começa uma guerra, nunca saberemos como ela acaba... No caso de Angola, por exemplo, ela só acabou 40 anos depois e o balanço é aterrador, quase apocalíptico. Na Guiné, tirando os meus soldados fulas, toda a gente festejou o fim da guerra...
- Tony, fomos todos joguetes nas mãos dos russos e americanos, da Nato e do Pacto de Varsóvia. Estávamos no auge da guerra fria e, cá dentro, à beira de uma guerra civil, no verão quente de 75.
− Eu não tenho a mesma perceção… Seria impossível ter uma Cuba às portas da Europa, ou melhor, em plena Europa. Para mais, num país da NATO… O Salazar tinha isto bem armadilhado. E a Espanha do Franco ainda ponderou intervir, ao que parece, para evitar o risco de contágio. Os nossos revolucionários eram de opereta. As nossas revoluções foram sempre de opereta, desde a restauração, em 1640.
− "Revolução dos cravos"?!... − exclamou, em tom de ironia, o Belmiro.− Mas, olha, também eu, maoista, fui na onda do papão do social-fascismo... Como eu gostava então do palavrão!... Mas no 25 de Novembro eu estava ao lado do Eanes e do grande educador da classe operária, o Arnaldo de Matos...
− Fomos todos ingénuos, mas bem ou mal escrevemos o nosso capítulo da história. Eu, por mim, procuro tranquilizar a minha consciência do seguinte modo: fui para a guerra, não desertei, queria continuar ter o direito de viver no meu país, fiz a guerra, na esperança de que os políticos do meu país encontrassem, a tempo, uma solução (política) para ela...
− Daqui a 10 anos estamos a debater o 1º centenário do Estado Novo. E, se calhar, os portugueses vão confirmar o Salazar como o estadista português mais importante do séc. XX.
− Espero bem que não... Mas a verdade é que ainda hoje o seu fantasma paira pelas nossas cabeças, tal como o do Marquês de Pombal, mesmo quando os mais novos já não sabem sequer quem foram esses homens... O Salazar esteve em cena quase 50 anos, atravessando terríveis períodos do nosso tempo, da crise de 1929 à Guerra Civil de Espanha, da II Guerra Mundial à guerra colonial…
− Foi o pai da Pátria, o que nos livrou da II Guerra Mundial, como dizia o meu pai lá em casa. E, na verdade, foi, quer gostes ou não.
−... Eu, acho, Belmiro, que ainda não o matámos nem o enterrámos de vez.
E foi com esta conversa melancólica que os dois amigos se despediram. Pela última vez… Passados uns meses, o Tony morreria num brutal acidente de automóvel na A2, quando regressava de Lisboa, a caminho do seu monte no Baixo Alentejo. Nunca se soube a causa de morte, por vontade da viúva e dos dois filhos...
Ao Belmiro, que ainda tentou, em vão, obter uma cópia do relatório da autópsia, chegaram versões contraditórias: sono, AVC, morte súbita, suicídio ?!... Parece que o veículo, que circulava na faixa direita, foi bater de lado nos rails de proteção, e andou dezenas e dezenas de metros descontrolado, a varrer as faixas de um lado ao outro... Felizmente não havia mais carros a essa hora, da noite... O Tony terá tido morte imediata.
O Belmiro inclina-se mais para a hipótese de acidente por despiste, devido a cansaço e a sono... O Tony amava demais a vida e a família e o Alentejo, nunca lhe falara em suicídio...
O corpo, depois de libertado, foi cremado. As cinzas repousam agora junto à "oliveira da paz", que o Tony replantara no seu monte, vinda do Alqueva... Era centenária. Os filhos e a viúva cumpriram assim a sua última vontade, mas só em parte: ele deixara escrito que as suas cinzas deveriam ser espalhadas por três sítios que ele amou: a sua terra natal, o monte no Alentejo e "o rio Geba, cuja água ele bebera"... Em alternativa, lançaram parte das cinzas no Cais da Rocha Conde Óbidos numa cerimónia restrita, apenas com a família mais próxima e alguns amigos íntimos. Dali tinham partido, de barco, centenas e centenas de milhares de soldados para as guerras coloniais (Índia, Angola, Guiné, Moçambique)...O gesto era simbólico: o Tony já foi e veio nos TAM - Transportes Aéreos Militares.
O Belmiro ainda chegou a abordar o presidente da Comissão de Toponímia Municipal, um jovem arquiteto, vereador da câmara municipal, membro influente de um dos partidos do arco do poder quanto à hipótese de ser dado o nome do dr. António Mota a um novo arruamento a abrir em breve (ou equipamento escolar a inaugurar no futuro), nos arredores da vila, já na zona extra-muros. A resposta não podia ser mais desencorajante:
− Caro doutor, como sabe tão bem como eu, a comissão é meramente consultiva, dá pareceres, quem atribui os nomes é a Assembleia Municipal... Faça-me uma proposta, fundamentada, por escrito, mas vai ser difícil...
− Difícil ?...− interrompeu o dr. Belmiro Mateus.
− O dr. António Mota era nosso conterrâneo, e depois ?... Fez a guerra do ultramar, mas não foi reconhecido como herói. Tem uma cruz de guerra, a Torre e Espada, ou coisa parecida ? Não tem. Tem alguma comenda ? Não tem... Como sabe, temos muitos candidatos e poucos novos arruamentos ou equipamentos para homenagear os nossos conterrâneos ilustres... E depois a guerra do ultramar, felizmente, já está esquecida, é uma coisa do século passado... Já temos, por outro lado, uma rua dos Heróis do Ultramar, construímos há dois ou três anos um monumento aos combatentes do ultramar, e no nosso cemitério há um talhão da Liga dos Combatentes... Acho que a nossa terra já fez o que tinha a fazer pelos nossos bravos antepassados que andaram, e alguns morreram, na I Grande Guerra e na Guerra do Ultramar...
O dr. Belmiro Mateus estava quase a explodir de raiva, mas conteve-se... Percebeu onde é que o jotinha queria chegar: o António Mota era um "outsider", um desalinhado, não fazia parte do sistema, "não comia na mesma gamela", nunca tinha sido autarca, presidente de junta de freguesia, presidente da câmara, presidente da Assembleia Municipal, vereador, dirigente partidário, deputado, não chegara sequer a general, nem muito menos era um herói... Por que raio é que deveria ter um nome de rua na sua terra ?! Ele, o Zé Nuno e tantos outros conterrâneos, centenas, anónimos, que afinal foram os coveiros do Império ?!...
Luís Graça
Lourinhã, 11/11/2018, 5h00
[Costuma-se prevenir o leitor de textos 'literários´como este, de que qualquer semelhança destas histórias com a realidade é pura coincidência. Por razões éticas e legais de proteção de dados, os nomes aqui referidos são fictícios, exceto os dos países, os dos lugares públicos e os das figuras públicas. Todos os factos aqui narrados inspiram-se em factos que aconteceram ou podiam ter acontecido. Uns vividos pelo autor, outros partilhados por camaradas e amigos da Guiné... Se no final tu, leitor, te sentires desconfortável, peço-te que voltes para a cama e continues a dormir, descansado, como eu faço: afinal a guerra colonial nunca existiu, foi apenas um pesadelo, para alguns, como nós, ex-combatentes. Boa dia, boa tarde ou boa noite, conforme a hora e o lugar em que me estiveres a ler.]
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Nota do editor:
(*) Vd. postes anteriores da série:
6 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19171. A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)
(...) − Meu caro Belmiro, dá-me cá um valente quebra-costelas, como se diz lá em baixo no meu Além... Tejo!
− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.
− Cá vamos andando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.
− Cá vamos andando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo. (...)
7 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19174. A galeria dos meus heróis (12): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte II Luís Graça)
(...) − O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos… As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam. Os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seu moço ajudante. Enfim, encontravam-se na missa, ao domingo. (...)
8 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19175: A galeria dos meus heróis (13): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte III Luís Graça)
(...) E, prosseguindo a sua linha de pensamento sobre o seu passado, quando estudante, justificou-se o Belmiro:
− Aos vinte anos, somos todos revolucionários quando há que fazer revoluções… No passado,à direita e à esquerda, os revolucionários chamavam-se fascistas, comunistas, anarquistas, porque era preciso destruir a burguesia e o Estado capitalista, na Europa nos anos 20 e 30 do séc. XX. Hoje não temos a mesma urgência em mudar as coisas, tal como acontecia em Portugal em 1973, o ano em que nada podia continuar como dantes: tínhamos a escalada da guerra colonial, a ditadura em banho maria, a crise petrolífera, o esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento, a emigração em massa, a democratização do ensino… Andávamos em agitação permanente, pelo menos na universidade, em Lisboa, Porto e Coimbra, achávamos que tínhamos que começar a mudar as coisas pela veemência e a urgência da palavra… (...)
17 comentários:
"Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia" (Eça de Queiroz,"A Relíquia", 1887)
Como é que os teus heróis podem ter nome de uma rua se até ao momento nem um comentário mereceram. É o País que criamos e temos.Um abraço.
Zé, a malta anda toda divertida a "facebookar"... Não é o pais que temos, é o tempo que temos e estamos a viver no outono da vida... E depois já ninguém tem pachorra para ler, mais de dois parágrafos... Abraço, Luís
Bacalhau ainda vai havendo, mas não é ribatejano, os campinos tal como o gado bravo, esses, estão em vias de extinção... Resta-nos a sopa de bacalhau dos campinos... Aqui vai a receita...
https://www.portugal.gastronomias.com/ribatejo.html
https://www.portugal.gastronomias.com/ribatejo013.html
Sopa de Bacalhau dos Campinos
AZAMBUJA
Ingredientes:
Para 4 pessoas
2 ou 3 postas de bacalhau baixo ;
2 cebolas grandes ;
750 g de tomate maduro ;
700 g de batatas ;
1 dente de alho ;
400 g de pão de trigo caseiro (ou de 2ª) ;
6 colheres de sopa de azeite ;
pimenta branca
Confecção:
Numa caçarola de barro introduzem-se as cebolas ás rodelas, o tomate cortado aos bocados sem as sementes e com algumas peles, as batatas ás rodelas e o dente de alho.
Não se demolha o bacalhau, mas lava-se em várias águas com a intenção de lhe retirar o máximo de sal. Colocam-se as postas assim lavadas sobre as batatas e rega-se tudo com a água que se julgar necessária para cozer todos os ingredientes e para molhar as sopas. Leva-se a cozer.
Entretanto, tem-se o pão cortado ás fatias pequenas para dentro de uma saladeira de barro (alguidar). Escaldam-se com a água da sopa (depois de tudo cozido) a ferver. Tapa-se e deixa-se abeberar. Passados alguns minutos e quando todas as sopas estiverem repassadas de caldo, escorre-se o que estiver a mais e rega-se com o azeite. A quantidade de azeite deverá ser a necessária para que as sopas fiquem bem saborosas à gordura. Dão-se umas voltas ás sopas e dispõem-se por cima as cebolas, as batatas e o tomate. O bacalhau serve-se ao mesmo tempo, mas à parte.
Come-se com colheres de pau ou de corno.
Acompanhe com: Vale d' Ana '99 - Regional Ribatejo
Meu caro Luís
O comentário do Colaço terá a sua razão de ser mas acho que, se por um lado, há leitores que já têm dificuldade em ler mais do que duas linhas seguidas, também haverá, por outro lado, quem fique sem saber muito bem o que e como comentar.
Olha, Luís, num dos post anteriores referi que entendia que se tratava não de um diálogo mas sim de um triálogo, pois o narrador funcionava como uma câmara de eco, como um jogo de espelhos, nas conversas dos dois amigos então 'sobreviventes', pois agora, com este IV episódio sabemos que o Tony já "partiu".
Ao longo dos 4 episódios as 'alegadas' conversas (repara como tenho o cuidado revelado pelos nossos repórteres e comentadores ao referir "alegadas"...) entre o Tony e o Belmiro são como que um tratado, um guião, para várias explorações de temas.
Uma coisa entendo eu, já vão rareando as situações em que duas ou mais pessoas "conversam", trocam pensamentos, opiniões, pontos de vista e não há necessariamente, a necessidade (passe o pleonasmo) de chegarem ao fim com pensamento ou opinião únicos.
Como foi escrito, o Face e a sua falsa sensação de comunicação, estão liquidando o relacionamento. Na maior parte das situações, de que me apercebo, predomina o insulto, a gratuitidade da provocação, a leviandade das postagens e tudo isso sob a capa ilusória de que há interacção. Não há, falta o calor humano, os olhos nos olhos, a percepção das reacções físicas e fisionómicas do 'outro' em relação a nós.
Para não me alongar sempre digo que o teu 'post scriptum' é muito certeiro. Pode estar carregado de "tristeza irónica" mas bate certo.
E o "discurso/raciocínio/argumentação" do jovem autarca é mesmo o retrato fiel (na generalidade, pois pode haver excepções) do que a realidade tem hoje para nos oferecer.
Abraço
Hélder Sousa
Luís
Um herói morrer num desastre de automóvel são coisas que raramente acontecem nos filmes.
O Tony merecia viver mais uns aninhos, por ter estado na guerra na Guiné e pelo atraso dos anos de não ter vivido em democracia
Estou convencido que o Tony não estava interessado no ronco, de ter o seu nome numa rua lá da terra. O Tony é descendente de avieiros e campinos e até dizem que não cumprimentava o padre por não o conhecer de lado nenhum.
Venham mais filmes.
A propósito da ementa da 'Sopa de Bacalhau à Campino' experimenta fazer a mesma coisa, mas como se fosse uma caldeirada à pobre que faz tudo ao mesmo tempo dentro da mesma panela, com o bacalhau, o azeite e um pouco de vinho branco pedido por favor à Sra. D. Maria Eulália. Agora, chamam-lhe 'Caldeirada de Bacalhau' e é de cair pró lado.
Ab.
Valdemar Queiroz
Começo por ti, Valdemar...
Não sei quem, lá no Olimpo, a gestão dos vivos e mortos... Mas deve haver e, se sim, já tem a lista onde nós estamos...
Também me parece que o Tony devia viver mais aninhos... Os camaradas da Guiné deviam viver mais uns aninhos... Para compensar o "desgaste rápido"... Mas até parece, às vezes, que vão primeiro que os outros... Deve ser ilusão de óptica minha... Faltam-me estatísticas da morbilidade diferenciada... Que não há!... NInguém anda mais com a chapinha com o nº mecanográfico... Olha, este gajo teve na Guiné, tem direito a continência, quando descer à "cova funda"...
Mas a gente encolhe os fundos: "a vida tem uma porta só, a morte tem cem", diz o provérbio popular...
Também concordo que o Tony, se lhe pusessem nome de rua (e eu não sei se o amigo chegou a a fazer a proposta à comissão de toponímica municipal), iria espumar de raiva lá no Olimpo dos deuses e dos heróis... Tanto quanto ele permitiu que o conhecesse, e eu conheci-o mal, era o anti-herói... E, se foi para o Olimpo, foi com o código de barras trocada... Deve ser horrível fazer um gajo herói depois de morto...
Quanto à tua "caldeirada de bacalhau", prometo um dia experimentar...Obrigado.
Luís.
Fizeste-me dar mais uma volta pela "nossa" Guiné, caminhando lado a lado com o teu herói. A forma como ele viveu o drama da guerra e o que lhe ficou a manchar a memória do bem e de menos bem que fez e o marcou para o resto da vida, fez me pensar. O regresso e os reencontros tardios com os amigos que perdeu nessa viagem, também fez me pensar. Na realidade, só nos últimos anos conseguiu, muitas vezes por obra do acaso, reencontrar amigos que nunca mais vi. Recordo dois, que apenas comunicamos pelo FB e vamos adiando os encontros devido à distância em que nos encontramos.
Fez me bem ler este conto que tão bem escreveste. Por favor, continua.
Grande abraço
Zé Teixeira
Zé, ainda há umas semanas atrás um camarada nosso, aqui do Oeste estremenho (, não vou dizer a terra ou o concelho..), na sua casa, na sua quinta, me fez terríveis confidências sobre os seus tempos de Guiné, e apesar de ser um "durão", um homem calejado por uma vida de trabalho (primeiro na fábrica, depois no campo), e agora sob a ameaça de um cancro da próstata, aos 75 anos, me contava uma cena de guerra parecida com o relato de uma das personagens deste "conto moral", o Tony...
E não conseguiu esconder uma lágrima furtiva ao falar-me de gente do mato que ele atingiu à quiema roupa e viu morrer, "olhos nos olhos", num daqueles encontros breves, mas mortais, que aconteciam no mato, quando a gente se embrenhava demasiado no mato... E não escondia, ainda hoje, a sua raiva por um incompetente tenente coronel que os meteu no "fojo dos lobos"... e a quem teve tomates o ameaçar com uma rajda de G3... Havia gajos doidos e valentes, que não tinham medo de nada, muito menos de um reles comandante de batalhão...
Quem disse que naquela guerra do toca e foge nunca se via "a cara do inimigo", vivo ou morto ? Eu vim tu viste, ele viu, nós vimos...
Obrigado, pelo teu comentário... E incentiva a tua malta da Tabanca de Matosinhos a contar e a escrever as suas histórias de vida e de morte... Muitas delas, infelizmente, irão connosco para a "cova funda"... Temos pudor (ou medo ?) de desenterrar os nossos mortos...
Bebe amanhã um copo e come uma castanha, no magusto da tua Tabanca, á nossa saúde, amizade e camaradagem... Luís
PS . Não é sequer membro da nossa Tabanca Grande esse caamrada de que falei acima... Andei por lá no tempo do Schulz... E andou também por sítios queeu bem conheci, com dor, raiva, sofrimento, sede, abelhas assassinas, formigas carnívoras, desidratação, insolação, flegalações e emboscadas do PAIGC defendendo com unhas e dentes as "suas populações" sempre que a gente, armados até aos dentes, íamos lá acossá-los...e às vezes vínhamos a toque de caixa... Que estúpida de guerra!...
1. No comentário acima, em resposta ao Vadlemar, eu queria:
(...) Não sei quem, lá no Olimpo, FAZ a gestão dos vivos e mortos... Mas deve haver ALGUÉM e, se sim, já tem a lista onde nós estamos. (...)
2. Na realidade, a puta da vida não é mais do que uma longa espera (ou curta, conforme o fado de cada um) no "corredor da morte"...
... E ficamos todos alegres, felizes e até babados quando dizemos: "Ah!, o meu velho chegou aos 93, e a minha velhota vai fazer 100 este ano!...
Hélder:
Concordo que o nosso blogue tem vários públicos-alvo: haverá muita gente que não tem "pachorra" para certo tipo de escritos...Por ezemplo, uma boa história... Eu sempre adorei uma boa história, e tenho orguklho em ter incentivado, com este blogue, o aparecimento de muitos talentos literários...
Acabo de vir da sessão do lançamento do livro do António Martins de Mstos, que estava roedado de generais, seus pares, e que publicamente reconheceu o mérito do nosso blogue ao dar-lhe condições e incentivos para escrever as suas memórias da Guiné, de 1972 a 1974, como piloto da FAP...
Outros leitores cansaram-se de vir aqui, todos os dias... Bolas, quinze anos de guerra da Guiné não é para todos, é só para os loucos como nós, que ainda resistem... E no entanto o nosso blogue, surpreendemente, continua a ter novos leitores, desde italianas que estão em Portugal a fazer doutoramentos em reordenamenos até aos parentes de camaradas guineenses, fuzialdos pelo PAIGC, que querem saber mais (e se possível tudo) sobre a vida e a morte dos seus bisavós, avós ou pais...
Hélder: eu sei que é muito mais fácil dar os parabéns, no Facebook, a um camarada que faz anos, do que vir ao blogue, pôr os óculos e ter a maçada de pensar e abrir a caixa de comentários e de dizer qualquer coisa minimamente interessante, original, etc., que suscite o diálogo sob a forma de outros comentários...
Eu sei que o tempo não dá para tudo... Eu, por exemplo, para estar aqui, não vejo televisão (há anos!) e muito menos vou ao Facebook... O Facebook tornou-se uma verdadeira, e está a mudar a maneira como vivemos, pensamos, consumimos, votamos... Não vou diabilizar o Facebook, também se dizia o mesmo da Televisão há 20, 30, 40 anos atrás: o telespetador, sentado no seu sofá, era vítima de uma nova e grave doença, a "passividade bovina"... A televisão adapatou-se, e a malta agora a vida, no memso sofá, a afzer "zappibg", a carregar mecanicamemte a telecomando, a percorrer os 500 canais da felicidade suprema (incluindo a TV Sport e os "filmes para adultos"...) a quem direito, por contrato, por X por mês...
Muito sinceramento, eu concordo com a velha máxima: cada um diverte-se como pode e sabe... Há uma coisa que parece que é verdade : no céu não disto, facebook, televisao interativa, TV Sport, filmes com bolinhas, etc... AH!, e tanbém não haver o nosso blogue... Quem o quiser "acompanhar", tem que ser em vida, cá na terra...
Ainda comentando o comentário do Hélder Sousa...
Eu, como mero narrador, autor ou escritor (, aquele que empresta a mão para escrever...) não posso estar mais de acordo com o teu apurado juízo crítico literário... E cito-te_
(...) "Olha, Luís, num dos postes anteriores referi que entendia que se tratava não de um diálogo mas sim de um triálogo, pois o narrador funcionava como uma câmara de eco, como um jogo de espelhos, nas conversas dos dois amigos então 'sobreviventes', pois agora, com este IV episódio sabemos que o Tony já "partiu". (...)
Não sei se não será antes um terrível e obsessivo monólogo... Nunca ouviste dizer que há pessoas que ouvem vozes, às vezes muitas vozes ?... Quando escrevemos, os romancistas, os contistas, os poetas..., no fundo limitamo-nos a emprestar a mão para escrever, a esses vozes que ouvimos dentro de nós... NO meu caso, há vozes que me "perseguem" desde esses tempos da Guiné... Vozes de mortos e de vivos, de heróis e cobardes, de náufragos e de sobreviventes... Dos dois lado do comnate, como diria o Jorge Araújo...
Boa madrugada... LG
Olá camaradas,
Eu não posso estar mais de acordo com tudo o que neste poste está escrito, e confesso que ainda não tive tempo de ler os 4 episódios da séria dos heróis do Luís, mas vou ler, um dia destes.
Eu estou um pouco desfasado de tantos acontecimentos, pois na minha função inglória, sem fama nem proveito, de um simples, como dizia o outro, "probe xoldado do SAM" que não conta nada neste épico Blogue dos camaradas da Guiné. Por vezes sinto vontade de «desistir» de tudo, penso que isto não é para mim. As minhas fotos, que é aquilo que alimenta o meu passado, são autofotografias, de cenas que nada têm a ver com a guerra, mas é o que tenho para mostrar, enquanto tiver alguém que veja e comente, pois se não há comentários, não há interesses, e então não vale a pena estar a 'chocar' ninguém com as minhas cenas na Guiné.
Como atrás já se disse, há pouca pachorra para ler meia dúzia de linhas, e muito menos para escrever um comentário, directo, pessoal, que responda àquilo que se mostra e escreve. Também estive lá, e não foi fácil, mesmo e apesar dos meus postes não mostrarem isso, mas tenho comigo as minhas histórias, e há muitos, os bravos e heróis, que nunca o foram, e mandam cá para fora faladura que se vê são estórias.
A propósito de heróis, hoje de manhã a minha mulher disse-me que na TV1 deram as imagens da 'amaragem' em Beja do tal avião que andava aos SSS e a OGMA não sabe porquê, e os pilotos dos dois dos F16 foram 'os maiores heróis' desta cena.
Eu disse-lhe heróis? Onde, porquê, depois compreendeu que isto é publicidade barata para justificar estes pequenos brinquedos de guerra.
Virgilio Teixeira
E continuando,
Ontem estive com uma pessoa conhecida, não vou dizer amigo, pois não é o caso, é uma pessoa respeitável e que esteve na Guiné, já depois de mim. Já tínhamos falado da Guiné há cerca de um ano, e já o conheço desde que cheguei a esta terra, que não digo o nome, mas nunca houve relações para falar das nossas vidas. Ele também é imigrante aqui na terra, veio de Torres Vedras, ou Torres Novas, não sei nem interessa.
Ele falou que esteve na Guiné, pertencia a um esquadrão de Chaimites, passou por Bafatá e Nova Lamego, depois Piche e acabou em Aldeia Formosa. Falamos e contamos muitas histórias, já estivemos a falar umas 3 vezes, ele é um manancial de contos.
Emprestei-lhe o Livro sobre as viaturas militares na guerra do ultramar, onde eu participo com 7 fotos (sou individualmente o mais postado).
Ontem fui lá ao seu estabelecimento, enquanto esperava pela minha mulher que tinha ido ao cabeleireiro ali ao lado, e não tinha nada que fazer, fui ver se já tinha acabado o livro, e ele diz que tem ali muita coisa que quer ler com cuidado.
Então, entre outras coisas, contou que, o seu esquadrão com 3 chaimites, através de Pirada, que quase estive para lá ir, mas o meu comandante não deixou, fica ali na fronteira com o Senegal/Guine Conacri. O comandante - capitão - depois de um repasto de umas horas, já com os copos, manda entrar as 3 máquinas de guerra pela fronteira dentro, andam uns 10 quilómetros, e encontram uma aldeia em paz e sossego.
Os homens, mulheres e crianças todos contentes por verem aqueles bichos, não paravam de ficar a saltar de boca aberta... etc.
Vai daí o capitão que não vou escrever o nome, salta para terra e de pistola em punha, dispara à queima roupa, e mata muita gente a tiro de pistola, incluindo criancinhas.
Voltando para trás, encontraram um obstáculo natural, os buracos nas picadas, e perderam tempo, até que vem aí os soldados do outro país. O meu conhecido ficou à rasca pois eles vinham mesmo para atacar as viaturas, então diz ele, para me safar tive de 'metralhar' aquilo tudo, não sei quantos matei, mas disparei para matar.
Já a chegar novamente a solo nacional, encontra um ciclista na estrada, sai da viatura, e manda-lhe um tiro e mata o homem, etc.
Ficou tudo 'apagado' ele tinha os seus contactos, acabou na psiquiatria para poder passar por inimputável, veio de vela para cá, e foi expulso, mas nunca condenado.
No 25 de Novembro de 75, ainda andou ao lado do General Eanes, de quem era amigo.
Passaram mais de 40 anos, há pouco tempo, vinha este meu conhecido no Alfa para o Porto, com a mulher ao lado, e olha para trás e quem vê? O seu Capitão, agora arquitecto numa Camara qualquer, deu-lhe o cartão, e comentou entre outras coisas:
Oh Fulano, aquilo no 25 de novembro esteve mau, mas ainda bem que estava lá o Eanes.
E olha, aquilo da Guiné, que tu sabes, resolvia-se bem:
"Se os militares fossem todos como eu, e tivessem tomates para isso, a puta da guerra na Guiné acabava em meia dúzia de dias". Não me perguntem mais por favor, fiquei chocado no mínimo, não horrorizado.
Fim de citação.
Virgilio Teixeira
E para acabar, eu acho que toda a malta que esteve naquele TO da Guiné, fosse ele porteiro dos aviões da TAP, ou o mais sacrificado nas matas da guiné, vamos todos continuar a sofrer com este 'trauma' que está lá, muitos não sabem, mas eu sei.
Sei que não dei uma vida liberta aos meus filhos, não fui um bom avô, vejo tudo comparativamente, este tipo de vida não é o meu, vivo noutro mundo. A única pessoa que me vai compreendendo é a minha 'santa' mulher. Mesmo assim por vezes discutimos, pois estou sempre a falar na Guiné. Não teve uma vida fácil, eu sou como diz um especialista 'um vulcão pronto a explodir' e tem razão.
Deito-me, adormeço, sonho, acordo sempre com o pensamento na guiné.
Não sei de estatísticas, mas vamos morrer todos uns anos antes do tempo, dos mais novos, dos nossos descendentes, oxalá eles vivam muito tempo e com saúde, que nós não temos, engane-se quem pensa o contrário.
É só ver alguns comentários, e fora aqueles que nem sequer falam e escrevem......
Virgilio Teixeira
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