sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22670: Manuscrito(s) (Luís Graça) (205): E na hora da tua morte, ámen!... (Ninguém, por certo, te perguntará p'los teus sonhos... de menino)






Lourinhã > Praia da Areia Branca > 26 e 27 de outubro de 2021 > O põr do sol, um espetáculo, por enquanto gratuito, para quem tem o privilégio de viver à beira-mar ou perto do mar...Um espetáculo que eu não dispenso, sempre que posso, desde há muitos anos... Afinal, nasci a ouvir o mar...mas raramente me podia permitir, quando criança, o luxo de dizer "até amanhã, meu irmão sol"... Entre mim e o sol, a pôr-se  no mar do Cerro dos meus antepassados, havia os cabeços e os monhos de vento...

(...) Nasceste a ouvir o mar, o barulho do mar e dos moinhos de vento que te deixaram os árabes, dizem uns, ou os flamengos, dizem outros. Sabes lá tu o que está inscrito no teu ADN. Batizaram-te cristão, na pia da igreja, gótica, do castelo, que foi românica. E como antes terá sido mesquita mourisca ou capela visigótica, e, muito antes ainda, templo romano ou anta, dólmen, menir. Perdeste-te, por amores e guerras, no caminho sul de Santiago e chamaram Grande ao rio da tua infância. (...).

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Na véspera do Dia dos Mortos (que a nossa tradição cristã celebra, afinal, no dia 1 de novembro, dia que se quer luminoso, o dia de todos os santos), e do início incerto de mais uma Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a de 2021, também conhecida como COP26,  a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (Gasgow, 31 de outubro-12 de novembro de 2021), fui revisitar e rever um poema que me é caro, e que me ajuda a mitugar a angústia existencial... Gostava um dia de o ler em voz alta, ao pôr do sol,  para a minha neta, que vai fazer dois anos em 12 de novembro,  no Funchal, e  a quem não sei dizer, se ela um dia mo perguntar,  que raio de planeta lhe vou deixar.


E na hora da tua morte, ámen!

por Luís Graça



De rio em rio se alcança a foz 
e se galga o mar,
vais na torrente, 
a espernear e a bracejar.

De mar em mar se vai ao longe,
p’ra naufragar, no oceano, largo e profundo,
… ou p’ra encalhar, 
ao cabo do mundo.

De estrela em estrela navegas por toda a parte,
à boleia dos sonhos que te venderam,
alguém por certo com engenho e arte,
mas a  preço de saldo.

Do planeta ao planetário vai um salto,
há apenas uma fina tela, a separar-te
do desastre humanitário.

Na deriva da vida segues em contramão,
como um cavalo com o freio nos dentes,
fora da estrada, 
em louco tropel.
e sem seguro de acidentes,

Daqui para a frente, 
e até ao planeta Babel,
vais pouco confiante e nada crente,
como no carrossel 
da feira de setembro,
quando eras menino e moço:
já não é caminhada, 
já não é jogging,
muito menos passeio ameno pelo areal,
é alucinação,
é salto mortal,
vais de camuflado 
e corda ao pescoço,
pela picada armadilhada, 

Preferes nada saber de astrofísica,
muito menos de metafísica,
seria bom saberes um pouco mais
de economia 
do risco.

Porque um dia, 
vão-te cobrar a portagem,
no fim da viagem 
ou numa qualquer paragem, técnica,
quando o teu planeta azul perder 
o contrato de concessão
ou a simples licença de habitação.

Um dia, faça chuva ou faça sol,
ou radiações ultravioletas,
vais ser despojado do teu corpo,
com todas as letras,
desalojado do teu frágil habitáculo,
como a lagosta ou o caracol.

Quem te prometeu um tabernáculo,
ergonomicamente correto, 
digno de um deus, mesmo  que menor,
nada sabia de ergonomia, 
nem de poesia,
e muito menos era arquiteto.

Afinal, não passas de um animal terráqueo,
numa casa que não é tua,
e, na melhor das hipóteses, 
és um erro de casting do criador…

Alguém te há de lembrar
que não passas de um simples hóspede,
e que o hóspede e o peixe ao fim de três dias… fedem,
como assegura o anexim popular.

Na tua aldeia global, 
na hora da tua morte,
tocará, a finados, o sino.
Com sorte,
e se ainda houver um resto de humanidade,
alguém teu conhecido fará questão de dizer, 
por piedade,
uma última oração 
à beira da tua cova,
e lembrará que também foste menino:

“Pode não ter sido um grande poeta,
nem um cidadão exemplar,
muito menos um herói,
mas foi, dizem,  
um bom filho,
um bom homem,
um bom amigo, 
um bom camarada, 
quiçá até um bom pai”…

Dobrará o sino
no campanário  da igreja da tua aldeia...
O padre encomendar-te-à  a alma
para que, mais leve dos pecados, 
chegues depressa à eternidade.
Mas ninguém, por certo, te perguntará
p'los teus sonhos... de menino.

Lisboa, março de 2015,
Lourinhã, revisto, 31 de outubro 2021.

____________

Nota do editor:

Últino poste da série > 22 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22476: Manuscrito(s) (Luís Graça) (204): Caminhando contigo pela picada da vida...

10 comentários:

JB disse...

Os Poetas são incómodos
Não tanto pelo que escrevem como pelo o que insinuam em tempos de fractura.

Um abraço do J.Belo

José Teixeira disse...

Creio que todos nós sonhamos com o planeta. Todos andamos, uns mais que outros, assustados com o rumo que os "senhores da Terra" estão a dar à mãe terra, por mais reuniões que façam, por mais planos que (des)aprovem. Outros valores do seu ego e das máquinas que os alimentam falam sempre mais alto.
Valham-nos os poetas para agitar as massas. As suas verdades coloridas com graça e jeito, vindas da profundeza da alma, pelo menos, alimentam-nos a esperança de que ainda nada está perdido. Eque todos somos chamados a agir para continuar a alimentar os sonhos do menino que continua dentro de nós.
Só quando chegar a hora da morte.
Um belo poema de reflexão. Adorei.
Fraternal abraço animado com desejos de que estejas a recuperar das canetas.

Zé Teixeira

Zé Teixeira

Valdemar Silva disse...

Luís
Com este mundo não se brinca, mas sem relógio às 2 horas da noite o que é que havemos de fazer.
E continua a pandemia neste mundo levado a sério. Este novo vírus fez uma mutação só para chatear e até mudou de nome para CONVIDA 2083 bem pior que o antigo e por estranho que pareça já não se morre.
As pessoas deixaram de morrer, continuam a usar máscara por causa da falta do nariz e a vacina
é um produto egípcio utilizado há três mil anos na mumificação.
Os negacionistas safam-se dando um tiro nos miolos.

Abraço e boa saúde para os membros inferiores.
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, sei dar valor ao teu sofrimento, físico e psíquico, de doente crónico, para mais sozinho e trancado em casa. Eu ainda tenho a sorte de poder ver o mar, aqui a tes quilómetros de casa. Mas lá vamos fazendo sinais de fumo uns para os outros, agora com estes brinquedos tecnológicos... Comunicar é preciso... Um fim de semana sossegado, sem o tinoni. Luís

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Isto de escrever no escritório do WC, no teclado do telemóvel... Queria dizer "três" que foi afinal a conta que Deus fez, como nos ensina o anexim popular...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Já viste, Valdemar, se a malta no nosso tempo tivesse estes brinquedos?! ... O tempo custaria muito menos a passar, as noites no mato ou os quartos de sentinela... Enfim, a guerra teria sido "muito mais divertida do có que foi"...

Eduardo Estrela disse...

A música e o ritmo das tuas palavras refletem bem o amor que tens pelas pessoas e pela vida.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela

Anónimo disse...

Luís, eu que não sou muito de "poesias", gosto mais, estou mais "inclinado" para a prosa, livre, desalinhada, irreverente até, porra! - desta gostei. E devo dizer que também no passado, já tinha gostado de outro poema/grito teu, o "Barqueiro de Caronte",- noutro contexto, mas igualmente forte e com "alma" - que partilhei,e tentei, (pelo menos), dar a conhecer aos meus amigos. Tal como vou fazer com este, que também me "tocou", e que, mais uma vez, espero que não te "incomodes" com isso.
Abraço tamanho do mundo!

Francisco Godinho (Barão do K.3).

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Francisco,"se te tocou", o poema é teu, leva-o e lança-o ao vento (como diria o Álvaro Caeiro, nesse espantoso poema, "XLVIII - Da mais alta janela da minha casa"... Merece ser conhecido ou relido aqui:

http://arquivopessoa.net/textos/1112

Obrigado, Francisco, Barão do K3, e alenetjano dos 4 costados.

Por estes dias, outonais, estamos mais sensiveis em relação ao tema (incontornável) da morte (que faz parte da vida...). Por estes dias, enchemos os nossos cemitériso de velas acesas e flores... Durante o resto do ano deixamos os nossos queridos mortos em paz...

A poesia ajuda-nos a ter uma "boa morte", se é que tal é possível. Mas não vale a pena antecipá-la. A vida tem uma porta, a morte cem, diz a sabedoria popular. Fiquemos por cá, camarada e amigo, pela Terra da Algria, o máximo de tempo que nos for possível, desde que tenhamos saúde, liberdadade, justiça e uma terra amiga e sustentável...

Tal como o "cante alentejano" nos ajuda a humanizar a dureza da vida...Cantar e gritar fazem bem.

Quando é que a gente se volta a encontrar lá na "Casa do Alentejo"? Já estou com saudades de vos ouvir a cantar ao despique, entre dois copos de tinto e um naco de bom pão alentejano, azeitonas e queijo de Serpa... Tudo coisinhas boas que não há no céu...

Anónimo disse...

Caro Luís, amigo e camarada:

Sou um zero em poesia, mesmo assim percebo a mensagem que este teu primoroso poema encerra, sobre o princípio e o fim de todos nós, do que pode estar antes e depois do nosso caminho terráqueo. Eu, agnóstico, pergunto-me também, sem que nenhuma resposta vislumbre. Bem gostava eu de ter a certeza que alguns parecem ter. Entretanto, de olhar sobre o mar ou sobre os montes, vivamos os dias, procurando que os sonhos se realizem, os nossos e os dos outros.

Um grande abraço.

Carvalho de Mampatá