domingo, 16 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22911: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXII: Os torneios de futebol e a Cilinha que não veio, e a notícia do 25 de Abril que só chegou a 26...



Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã >  CCAV 8351 (1972/74), "Os Tigres do Cumbijã" > > 1974 > Festejando, condignamente, a conquista do último lugar do torneio de futebol inter pelotões bebendo uísque na minúscula taça. Da direita para a esquerda: Afonso, Belinha (o homem que ia sempre na dianteira do pelotão com a sua pica), Costa e mais camaradas do 2,º pelotão.

Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Nhala >  2ª CCaç / BCaç 4513 (1973/74) > Domingo, 10 de março de 1974 > Visita da Cilinha ao aquartelamento de Nhala, escoltada por um grupo de fuzileiros.  Após a visita, a Cilinha é acompanhada até às viaturas para o regresso.  Cortesia do António Murta.

Foto (e legenda): © António Murta  (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 






O ex- furriel mil Joaquim Costa: natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Já saiu o seu livro de memórias (, a sua história de vida),
de que temos estado a editar  largos excertos, por cortesia sua.
Tem um pósfácio da autoria do nosso editor Luís Graça (*)


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXII (**)

 

Atividades lúdicas… e Grândola, Vila Morena! 



Os dias estavam a tornar-se cada vez mais enfadonhos, com muitos de nós a riscar pauzinhos na parede da caserna por cada dia que passava, tal qual um prisioneiro.

Bem se esforçava o Furriel Formosinho, acabado de chegar à companhia carregando às costas a sua G3 e o seu violão, em levantar o moral das tropas com as suas serenatas noturnas cantando canções do “reviralho” e outras fora da caixa. Foi marcante e muito importante para todos nós a sua chegada ao Cumbijã,  trazendo para além do violão,  a sua irreverência e alegria contagiantes.

Sentíamos aqui como nunca a falta do dia das lavadeiras. Era aqui, neste “buraco” no fim do mundo, que estes momentos seriam importantes para quebrar um pouco as rotinas diárias de: Patrulhas, flagelações, minas, cerveja durante o dia e whisky durante a noite.

Aqui não havia população e a roupa era enviada para as nossas lavadeiras de Aldeia Formosa na coluna diária do transporte de água.

Desde a chegada ao Cumbijã, embora me continuasse a lavar a roupa, nunca mais vi a minha simpática e eficiente lavadeira.

Aqui, a única alegria a que tínhamos direito era a chegada do correio.

Até a "Cilinha" (Presidente do Movimento Nacional Feminino), não obstante a sua coragem, não teve a suficiente para visitar o Cumbijã, preferindo o aquartelamento vizinho de Nhala, dias antes do 25 de Abril de 74.  Obviamente era um hotel de 5 estrelas em comparação ao nosso parque de campismo selvagem!!! 

Teria sido um momento memorável ver a “Cilinha” tomar banho nos nossos chuveiros, com água a saber a gasóleo e com vistas privilegiadas para a horta do Zé Carlos e para todo o destacamento. Acredito que era mulher para o fazer sem nenhum constrangimento!

A própria RTP nunca ousou visitar-nos para gravar as históricas mensagens dos soldados transmitidas religiosamente no dia de Natal. Ainda chegaram a sugerir irmos a Aldeia Formosa fazer as gravações. Declinámos o convite, com o argumento que só fazíamos as gravações na nossa casa (Cumbijã).

Até os Capelães desconheciam este buraco tendo-nos honrado uma única vez com a sua presença com a celebração de uma missa. Dia histórico no Cumbijã, apesar da pouca audiência. Situação que o Capelão aproveitou para não mais aparecer (não quero ser injusto já que há relatos que confirmam a importância destes “homens de Deus” em diferentes locais do território da Guiné demonstrando grande humanismo e coragem).

Contudo, havia escola com alguns graduados a prepararem um grupo de soldados para realizarem o exame da 4ª classe. Exame esse que se realizou no Cumbijã com a deslocação de um professor primário, creio que de Bissau.

Reza a história que a coisa não estava a correr nada bem aos examinandos pelo que foi necessário simular um ataque ao destacamento, fazendo dois disparos de obus com o professor a fugir em pânico, deixando tranquilamente acontecer a ajuda aos nossos bravos soldados e acabando todos, obviamente, por passar.

Durante este período até deu para fazermos um torneio de futebol, onde a minha equipa (o meu pelotão) ficou num honroso 5.º lugar, ou seja, o último! Contudo, não deixamos de protestar o último jogo já que fomos claramente “roubados”. 

Sendo este o último jogo do dia, estava próxima a hora em que aconteciam as flagelações de canhão sem recuo do IN. Faltavam uns 3 minutos para acabar o jogo quando ouvimos uma grande explosão que fez levantar uma grande nuvem de pó, fazendo supor que estávamos na presença de uma nova flagelação, seguida da debandada de todos os jogadores para as valas. Situação aproveitada por um “cacimbado” da equipa adversária, retendo a fuga por uns segundos. introduzindo a bola na nossa baliza deserta antes de fugir. Como a equipa adversária equipava de vermelho o árbitro validou o golo averbando nós mais uma derrota.

A explosão não foi mais um ataque do IN mas sim o rebentamento de granadas antigas, já sem espoleta, que tinham sido colocadas, num buraco, fora do arama farpado para serem destruídas por simpatia com o lançamento de uma granada (???) para o monte de toda aquela sucata. Um pequeno incêndio junto às mesmas acabou por antecipar a sua destruição. Sendo evidente alguma negligência, felizmente, tudo não passou de um grande susto, sem consequências de maior… a não ser as desportivas!

Não obstante estas rotinas sentia-se no ar que o PAIGC estava a preparar novas incursões estilo Guileje, Gadamael e Guidage, com o apoio dos países amigos. Especulava-se que o PAIGC tinha já garantida a utilização de carros de combate e eventualmente aviação.

Foi neste clima de tensão que, um belo dia,  tivemos conhecimento pela “Maria Turra” (uma emissão de rádio do PAIGC, sediada na Guiné-Conacri e que nós muitas vezes ouvíamos), de um golpe de estado em Lisboa. 

Como sempre acontece nos conflitos militares, da propaganda à realidade vai a distância do céu ao inferno pelo que demos a importância de sempre às notícias difundidas por esta emissora - algum fumo de um pequeno incêndio!

Contudo, na tarde do dia 26, vinha eu com a minha cerveja e o meu "Norte Desportivo" na mão, quando o Martins se vira para mim e me diz, de forma perentória:
- Costa! Há mesmo “merda” em Lisboa.

[Sempre fui alvo de “chacota” por ler o "Norte Desportivo" (já que “gente fina” lia  "A Bola" – um dos muitos órgãos... oficiosos do Benfica), que o meu irmão Manuel esporadicamente me enviava. Este jornal, o único que falava do FCP, fazia o impensável (dado os meios da altura) de. aos domingos, quando ainda o pessoal estava a sair dos campos de futebol, já o ardina o está a vender à saída, com os resultados finais, com a constituição das equipas e respetivos comentários aos jogos. Os comentários eram feitos de véspera, e os resultados colocados muitas das vezes à mão. 90% dos comentários acabavam por bater certo, o que convenhamos, era uma boa média…]


Consolidado o 25 de Abril,  e estando nós já no fim da comissão, não obstante a alegria esfuziante que reinava, preocupava-nos a possibilidade de alguma anarquia bem como a nossa retenção na Guiné (já com a comissão no fim), já que as palavras de ordem nas ruas de Lisboa eram: "Nem mais um soldado para as colónias!"...

Com todos estes desenvolvimentos só tomei conhecimento que havia feito anos (27 de Abril), na segunda quinzena de Maio ao ler um aerograma vindo de casa, acompanhado do "Jornal de Notícias" com imagens das grandiosas manifestação do 1º de Maio.

Felizmente, ao contrário de outros teatros de guerra, de a ferro e fogo passámos para uma paz quase total.

As hostilidades cessaram, sem que nenhuma instituição, organização ou hierarquia (de um lado ou do outro) o decretasse. Em alguns locais houve mesmo encontros entre a nossa tropa e grupos armados do PAIGC, com abraços e festa conjunta.

Dá que pensar !...dá que pensar !…

Nota: Vai-se lá saber porquê, e para quê, fui eleito pelos meus pares como delegado do MFA, em representação da companhia. Manga de ronco! Ainda estou a pensar se hei-de colocar este cargo (que nunca exerci) no meu currículo!

(Continua)



Capa  do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74". Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp.(*)

O livro, saído neste último Natal de 2021, aguarda a melhor oportunidade para a sua apresentação ao público. Mas podem desde já serem feitos pedidos ao autor: valor 10 € (livro + custas de envio), a transferir para o seu NIB que será enviado juntamente com o livro. 

11 comentários:

Valdemar Silva disse...

Meu caro Costa, essa d' "A Bola" ser do Benfica faz lembrar outras cenas sem ser clubistas. Mas, todos os jornais têm tendências de raiz editorial ou por acção dos seus jornalistas em relação aos seus leitores.
Não estou a ver o "Norte Desportivo" a fazer grandes manchetes com as vitórias d "Os Belenenses" e as provas de vela do "Vasco da Gama de Sines".
Mas, cá pelo blogue, temo-nos dado muito bem sem clubites e tal e coisa, e assim vamos continuar com o SLB a voar gloriosamente pelo céu azul às riscas.
Já recebi o teu "Memórias de Guerra de Um Tigre Azul", que muito agradeço, assim como a dedicatória que muito me sensibilizou. Ainda não li o teu livro, por (parodiando) andar à procura em manuais de felídeos (panthera tigris) tigres azuis. Só encontrei tigre-d'água, tigre-da-sibéria, tigre-da-tasmânia, tigre-de-bengala, tigre-dentes-de-sabre, tigre-da-sumatra e tigre-do-sul-da-china, e às listas azuis só encontrei uns coitados felis catus dos telhados da Banharia. ah!ah!ah!
Costa, ainda não li o teu livro por não gostar ler vários livros ao mesmo tempo, agora ando a ler "Aromas de Urze e de Lama", de João de Pina Cabral (sobrinho do meu alf. Pina Cabral). Eu tenho estado agarrado com a merda da DPOC que já me levou (dias 10 e 11) às urgências do Hospital da Amadora-Sintra, mas como não era "assunto para covid ados" o médico de serviço receitou-me 'vai sair já deste ambiente covid, vá para casa e tome a medicação habitual', regressei à rasca e assim continuo com grandes problemas.
Quanto à Paz & Guerra deste post, devia ter sido uma sensação extraordinária saber 'acabou a guerra', mesmo que ficasse, ainda, na lembrança aquele golo vermelho marcado entre morteiradas, bazucadas e fugas para as valas defensivas.
(Que empolgante filme daria esta cena do jogo, todos os jogadores a fugir, rebentamentos e o camisola 9 dos vermelhos a marcar o golo da vitória na baliza deserta)

Abraço e saúde da boa.
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Joaquim,para refrescar a tua memória vd. o poste que publicámos a seguir, o P22912: o "parque de campismo selvagem" de Cumbijã foi entregue à "gerência" do PAIGC em 7 de agosto de 1974, enquanto o aquartelmento de Nhala só quase um mês depois, em 2 de setembro... Fui repescar este documento já antigo, com 10 anos (no blogue), que muito provavelmente não conhecias...

Quanto ao Valdemar, rezo aos nossos bons irãs pelas suas melhoras. LG

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Joaquim, imagino o vosso "estado de espírito"...A guerra acabou, 'bora, pá, vamos p'ra casa...Mas nas ruas capital do Império, há rapaziada, imberbe, que grita "Nem mais um soldado para as colónias!"...

Como é que se pode fazer a paz e a retração do dispositivo com uma "retaguarda" destas ?...

Foram "tempos loucos", os que vivemos entre 1961 e 1975... Em 1961 eu tinha 14 anos... E tu ainda menos...

Hélder Valério disse...

Caro Joaquim

Sem dúvida que esta história (ainda incompleta pois há um "continua"...) tem várias coisas por onde comentar.

Essa da roupa ir para Aldeia podia servir para alguma "baralhação", por troca de destinatários, ou iam "etiquetadas"?

Também a da gravação de "nós por cá, todos bem" não ser "em casa", foi corajosa a decisão de não abdicar de só a fazerem no local em causa.

Quanto à da Cilinha ter ficado por Nhala, acho que fez bem... a missão dela era levar ânimo e alegria ao pessoal mas não especificamente "a todo o lado", a alguns já seria "bem bom"!

Sobre o jogo de futebol e o resultado final, com um golo marcado após a debandada do pessoal, acho que não deve haver nada a apontar, se o árbitro não deu o jogo por interrompido... ai fugiram? não fugissem!.
Considero que a cor da camisola da equipa vencedora não terá nada a ver, em princípio, com a forma como decorreu o desfecho. Considero mesmo que a referência à cor só vem chamada à colação para "satisfazer a clientela" daquela, como dizia um antigo defesa direito do FCP, única cor "azul e branco".
Mas, já agora, e de passagem, acho muito forçada essa do "já que “gente fina” lia "A Bola" – um dos muitos órgãos... oficiosos do Benfica". Isso é um conceito muito mais recente, também para satisfazer a "tal clientela".
Em termos de "conceitos" havia, de facto, essa ideia (propalada sabe-se lá com que intenções, provavelmente para "fins inconfessáveis") de que "A Bola" exaltava o Benfica, o "Record" o Sporting e, pelo sul havia ainda o "Mundo Desportivo", que tentava sobreviver, jogando com as circunstâncias. Não sei se era assim, não perfilho essas teorias, acho mesmo que foram empoladas para motivar a criação de um "jornal pró FCP" mas prefiro muito mais entender "A Bola" como um "jornal de formação", já que através dele e a pretexto da bola, do futebol, do "pontapé-na-bola", eram veiculados artigos e até reportagens sobre países e modos de vida que de outro modo não passavam nos jornais generalistas, nomeadamente quando equipas portuguesas se deslocavam a países de leste.

Sobre o caso de te teres "esquecido" dos teus anos (se li bem, pois dizes que fizeste a 27 de Abril e com as notícias do 25 de Abril te terias "distraído") além de me ter provocado um sorriso, também me fez sentir solidário, acreditando que nesse "cu de Judas" onde te encontravas algumas coisas não seriam muito prementes.

Em relação às apreensões sobre as sequências e consequências das ações que se iam desenvolvendo em Lisboa relativamente ao vosso futuro imediato, pois isso é muito natural, legítimo e até mesmo inevitável. Ninguém pode "adivinhar" o futuro, pode sim especular sobre ele. E havia muito por onde especular.

Abraço
Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Penso não estar a violar as regras do blogue, que nos impedem de trazer, para aqui, as "paixões" da tríade futebol (clubístico), política (partidária) e religião (apolegética)... Na esteira do comentário do Hélder de Sousa, sobre "A Bola" (, de que não sou leitor, diga-se de passagem, a não ser muito esporadicamente), tenho aqui que evocar um nome grande do desporto nacional e que nos honra como jornalista, cidadão e português: o Cândido de Oliveira, cofundador deste jornal...

Peço licença ao jornal e ao autor, Manuel Sérgio, reproduzo aqui um artigo sobre o livro "Cândido de Oliveira", do Homero Serpa que nunca li nem terei já tempo de ler... LG


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ÉTICA NO DESPORTO
“Cândido de Oliveira” - um livro inesquecível de Homero Serpa (artigo de Manuel Sérgio, 73)

A Bola, 21:14 - 19-02-2015
Manuel Sérgio

https://web.archive.org/web/20170216123352/http://abola.pt/nnh/ver.aspx?id=531894

Fomos como dois irmãos, o Homero Serpa e eu. E não nos assemelhámos só pela música das palavras - principalmente, pelo franco amplexo intelectual e sentimental das ideias, dos princípios, dos valores e… até pela cor azul do mesmo Clube! Não o digo por pruridos de exibição mas para, de uma forma persuasiva e eficaz, poder escrever que o autor do livro Cândido de Oliveira – uma biografia (Editorial Caminho, 2000) o meu querido Homero Serpa, venerava Cândido de Oliveira, com incontida admiração, porque o tinha estudado, Investigado com um rigor verdadeiramente científico.

Eis como ele principia a sua obra: “Escrevi este livro, aliciado pelo tema que as minhas investigações sobre a vida de Cândido de Oliveira empolgaram. Terminada a tarefa das consultas, na Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional, nos arquivos de A Bola e, avaliadas as entrevistas com quem conheceu de perto Mestre Cândido, deitei-me à escrita com alvoroçado empenho” (p. 9).

Seis páginas depois, com os seus primores de estilo, probidade e fluência, grafou: “Passavam 40 minutos do meio-dia de 23 de Junho de 1958, quando morreu, no hospital de Serafimer, em Estocolmo, o cidadão português Cândido Fernandes Plácido de Oliveira, natural de Fronteira, vila do distrito de Portalegre. Ainda não tinha sessenta e dois anos este alentejano de viva inteligência, doce de carácter, jornalista corajoso, democrata assumido e impertérrito defensor do colectivismo no desporto e na vida, discípulo e condiscípulo de casapianos ilustres, que nele cunharam a filosofia da solidariedade como bem inalienável”. Logo nas primeiras páginas do livro se descobre que, na personalidade de Cândido de Oliveira, se harmonizavam a ética, a política e o desporto, com modelar equilíbrio e tão sazonados frutos (como adiante se verá). E o brilho do talentoso escritor que foi também Homero Serpa, manifesta-se ao salientar: “Cândido de Oliveira morreu durante o Mundial da Suécia, ganho pelo Brasil, que ele elogiara, na penúltima das suas famosas crónicas, dela tendo feito tratado de futebol e modelo de escrita!” (p. 19).

Pela vastidão dos seus conhecimentos, pelas superiores qualidades de método e de exposição e pela sua formação moral, o Cândido nada fazia que não tivesse um objectivo primeiro: humanizar e portanto consciencializar e emancipar. Beneficiou da instrução e da educação, recebidas na Casa Pia, onde foi admitido em 1905. “A Casa Pia era evidentemente uma escola popular, com hábitos enraizados, no domínio da cultura física. Estava longe portanto de ser um avesseiro onde as gramíneas do saber e do progresso não podiam desenvolver-se, à míngua de luz e de calor. A evolução do futebol, na Casa Pia foi sustentada na propaganda do jogo, na organização de torneios, na sua prática, em primeiro lugar pelo núcleo intelectual. O tal jogo inglês cresceu, pelo entusiasmo dos alunos, quase todos praticantes mas, essencialmente, beneficiou dos métodos pedagógicos que o introduziram na população casapiana” (p. 46).

(Continua)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

“Cândido de Oliveira” - um livro inesquecível de Homero Serpa (artigo de Manuel Sérgio, 73)

A Bola, 21:14 - 19-02-2015
Manuel Sérgio

(Continuação)

Não surpreende assim que o Cândido tenha passado por vários dos incipientes clubes de então, a começar pelo Casa Pia. Mas o que surpreende, de facto, é a sua ousadia em cometimentos invulgares num jogador de futebol. “Ainda jogador do Benfica, corria o mês de Janeiro de 1920, Cândido fundou com Álvaro da Fonseca, Manuel Cruz, Ricardo Ornellas, Augusto Joaquim Faria e Raúl Vieira a revista semanal ilustrada, Football” (p. 48). Para ele, “o futebol, o jornalismo, a camaradagem, o clubismo, a raça não eram imiscíveis. Cândido cultivava-os, com o mesmo empenho e raro discernimento. Em todos aqueles caminhos deixou marcos indeléveis, alcançou metas, perseguiu futuros, engenhou a vida absorvente que quis viver” (p. 52). O desportista, mesmo introvertido, é sempre convidado a franquear os portões do seu egocentrismo, porque o desporto só em equipa se realiza. Até nos desportos ditos “individuais”, corre o atleta na pista e, por fora, o treinador e o médico e o seccionista acompanham-no também. Ora, se houve lição que possa extrair-se da vida do desportista, que foi o Mestre Cândido, esta é evidente: no Desporto, o companheirismo é a sua marca essencial, mesmo que rodeado do desdém dos que julgam a prática desportiva competição, competição e… nada mais!

Este livro de Homero Serpa veio a lume em tempos de inquietação ebuliente (inquietação política, inquietação social, inquietação desportiva) - inquietação filha do exaurimento mental e da atonia moral, que se apoderaram dos indivíduos e das instituições, incluindo as instituições desportivas. E, ao analisar tipos humanos, em toda a variada gama que a vida nos oferece, o Homero Serpa encontra em Cândido de Oliveira o cidadão exemplar, o desportista sem mácula, o homem “virtuoso” (emprego esta palavra, com o sentido etimológico que o latim lhe confere) que deveria recordar-se, no nosso tempo, que parece sofrer de imobilidade, de impassibilidade, de indiferença, diante do crime, do vício, da violência (física e verbal). Há um clarão de honestidade e cordialidade, que irradia da figura de Cândido de Oliveira e que é a encarnação das mais altas qualidades de um desportista. Jogou, no Casa Pia e no Benfica; treinou o Belenenses, o Sporting dos “cinco violinos”, o Flamengo (Rio de Janeiro), o F.C.Porto e, entre 1955 e 1958, a Associação Académica de Coimbra; foi ainda seleccionador nacional, em 31 jogos, merecendo realce a sua participação nos Jogos Olímpicos de Amesterdão. Em 1920, precisamente no ano em que se iniciou como jogador do Benfica, principiou a sua carreira de jornalista, na revista O Football. Ingressou, depois, nos quadros do Diário de Notícias (1921) e de Os Sports(1924) e de O Século (1926). Assumiu, em 1942, a direcção da revista Stadium e, por fim, fundou, com Ribeiro dos Reis e Vicente de Melo, o jornal A Bola. E, revelando-se um estudioso, um autodidata, escreveu doze livros, sobre a Casa Pia, o Futebol e um de tema exclusivo sobre a repressão fascista de Salazar: Tarrafal – pântano da morte.
Uma ideia sobrenada da sua actividade desportiva e literária: as ideias, as pessoas, os factos, a competição desportiva não lhe interessam só pelo que são em si. Interessam-no, sim, quando são a expressão e a exaltação dos valores éticos e políticos em que acredita. Cândido de Oliveira não foi só um dos mais “importantes cabouqueiros” do futebol português. “Navegou, pelo futebol, em todas as direcções, dirigiu o leme das suas convicções sociais e humanistas, desenhou várias cartas de navegação e nelas traçou inusitados rumos, enfrentou sem temores os escarcéus dos inimigos políticos, que o brutalizaram. Ergueu o padrão do associativismo, com a força do seu coração generoso. Grande foi o homem que nasceu pobre numa pobre vila alentejana” (p. 82).

(Continua)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

“Cândido de Oliveira” - um livro inesquecível de Homero Serpa (artigo de Manuel Sérgio, 73)

A Bola, 21:14 - 19-02-2015
Manuel Sérgio

(Continuação)

Salta aos olhos o alcance do livro de Homero Serpa, sobre Cândido de Oliveira: proclamar e promover os direitos de valores de forte pendor moral e político, nas formas várias da organização social, mormente o Desporto. Preso pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e enviado para o Tarrafal, em 1942, nada faltava ao Cândido, para plenamente agradar aos ideais humanistas do autor deste livro. A Evolução Táctica do Futebol – WM, escrito e editado, em 1949, “por Cândido de Oliveira, ao qual ele nunca quis chamar tratado de táctica, foi até 1974 considerado o último livro do mestre do futebol e do jornalismo. Mas Cândido escrevera e deixara na clandestinidade o original do Tarrafal – Pântano da Morte, obviamente separado do fenómeno desportivo. A obra foi publicada depois do 25 de Abril e é ainda considerada como o melhor testemunho da vida (e da morte) dos presos do Tarrafal. Cândido deu estilo de reportagem à escrita que arquitectou em segredo e de certo em constante sobressalto, uma reportagem viva, documentada, pungente, ilustrada por páginas de intenso dramatismo” (p. 138). Mas a sua formação humanista de convívio diuturno com os grandes temas da cultura do seu tempo manifestou-se também, no futebol. Não surpreende assim que Mestre Cândido tenha vivido “realmente, o período mais cintilante da estrela sportinguista. Ganhou duas Taças de Portugal, conquistou campeonatos nacionais, construiu uma equipa de valor internacional, com reflexos na I Taça Latina, sem nunca deixar de ser o homem simples e bom, sem jamais ter abdicado do jornalismo. A Bola precisava do seu estilo, da sua presença e da sua coragem. E ele mesmo, depois do cansaço emocional provocado pelos jogos, não faltava no jornal” (p. 164). Tudo vale a pena, se a alma não é pequena. E a alma de Cândido de Oliveira era grande, mesmo grande, como o manifestou a treinar também o Belenenses, o Flamengo do Rio de Janeiro, o F.C.Porto e a Académica de Coimbra. É que, em todos estes clubes, ele fez do futebol mais do que futebol. Ele sabia que a infra-estrutura económica, que a organização social e política, que a ciência e a técnica fundavam o futebol e toda a prática desportiva. Ele sabia que a cultura, também no futebol, era o principal fator de desenvolvimento. Por isso, a sua irresistível simpatia pela Lusa Atenas e pelos jogadores-estudantes que a representavam, no Nacional de Futebol da Primeira Divisão…

(Continua)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

“Cândido de Oliveira” - um livro inesquecível de Homero Serpa (artigo de Manuel Sérgio, 73)

A Bola, 21:14 - 19-02-2015
Manuel Sérgio

https://web.archive.org/web/20170216123352/http://abola.pt/nnh/ver.aspx?id=531894

(Continuação)

Mas voltemos ao Homero Serpa: “O Dr. João André Moreno, 68 anos, médico, aposentado após uma carreira singularmente brilhante, era quintanista de Medicina, quando conheceu Cândido de Oliveira. Integrou com Paulo Cardoso e Carlos Cardoso o trio de dirigentes que, em Lisboa, na pastelaria Coimbra, convenceu Cândido de Oliveira a treinar a Académica, entretanto dirigida por Fernando Leite (Nana) que substituíra, em regime provisório, o Dr. Alberto Gomes, impossibilitado de exercer aquelas funções, por doença” (p. 209). Escutemos, sem mais delongas, o sereno e comovido testemunho do Dr. João Moreno, relatado pelo jornalista-escritor Homero Serpa: “Já passaram mais de 40 anos sobre a sua morte, mas a imagem do homem culto, que falava de tudo com à-vontade e sempre com conhecimento de causa (…) mantém-se inalterável, é indelével (…). Cândido de Oliveira admirava o futebol húngaro. Quis impô-lo, aqui. Conseguiu-o de certa forma. Sistematizava muito o jogo e tinha invulgar capacidade, para dirigir homens, componente essencial aos treinadores, aconselhável a alguns que andam por aí a beber águas e não se valorizam” (p. 212). Não cabe, num simples artigo, fazer uma síntese e realçando o que nele é essencial, de um livro da autoria do jornalista-escritor Homero Serpa (uma alma sincera: tão sincera perante a verdade como perante a beleza) sobre Cândido de Oliveira. As minhas palavras valem mais pelo que apontam do que pelo que explicitamente significam. Não pretendem ser nenhum estudo crítico, cheio de originalidade e de ênfase panegirista. Querem dizer tão-só que o livro Cândido de Oliveira – uma biografia, de Homero Serpa, deve ser lido e meditado, por qualquer desportista consciente. Nas palavras do Homero, Mestre Cândido foi um jornalista, um escritor, um treinador, um cidadão subversivo. “Consciente e coerentemente subversivo”. De facto, “o que é nâo pode ser” (Ernst Bloch). O que é não passa do pré-lógico. O Logos é o devir, a mudança, o salto qualitativo. Tudo o que o déspota não quer (o déspota é o conservador, por natureza). Tudo por que lutaram Cândido de Oliveira e Homero Serpa.

Manuel Sérgio é Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

Valdemar Silva disse...

O jornal "A Bola" foi durante muitos anos um jornal de referência com artigos fora do âmbito futebolístico/desportivo.
Mesmo sendo um jornal dos futebóis tinha um apertado visionamento pela comissão da censura.

Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Meu caro Valdemar
Mais que tudo que essa maldita DPOC te dê sossego e possas fruir a vida continuando com a tua acutilância nos sempre oportunos, fundamentados e bem disposto comentários.
Sim tá bem! A Bola é “Bíblia” da Bola. O Jornal “Sagrado”. O paladino da ética do desporto.
Para teu sossego, como bem disse o Poeta do Povo: “P'ra a mentira ser segura
e atingir profundidade, tem de trazer à mistura qualquer coisa de verdade”.
Quando começares a ler o livro das Minhas Memórias de Guerra fá-lo com todo o cuidado pois o mesmo pode estar armadilhado.
Quanto ao tigre azul existe mesmo, não é uma figura da mitologia como o Dragão.
Um grande abraço e muita saúde
Joaquim Costa

Anónimo disse...

Luís,
Bem-vindo ao (sub) mundo da bola onde o vinho alimenta e o futebol “induca”

Cândido de Oliveira, Homero Serpa e Manuel Sérgio, grandes Mestres do Jornalismo do desporto (com ética) e da cultura.
Homens consensuais seja qual for a cor clubística… Mas hoje temos Vítor Serpa, Leonor Pinhão… e outros que “tão”. Mas é inquestionável o papel determinante e pioneiro do Jornal A Bola, que para além de bola questionava e afrontava a ditadura e os pequenos ditadores. Hoje, infelizmente, tudo se sujeita à ditadura da lei do mercado.
Logo que tenha possíveis datas para a apresentação do meu livro logo te comunicarei.
Um grande abraço e muita saúde
Joaquim Costa
Joaquim Costa