quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25839: Verão 2024: Olá, nós por cá todos bem (3): O bom padre Escudeiro (1917-1994) e a lição que aprendeu um dia, em Alcanena e na Lourinhã: "Nunca se sabe o que se passa no coração dos poetas nem muito menos na cabeça dos censores"...


Lourinhã > Igreja de Samta Maria do Castelo  (Séc. XIV). Gravura de autor desconhecido.n Fonte; Jornal "Alvorada", quinzenário regionalista, Lourinhã, 13 de setembro de 1964.



Poema à Igreja do Castelo

por Luís Graça

Em tuas pedras
Habitam os deuses assimetricamente
Ressuscitam os cavaleiros andantes
Que em ti prolongaram o Eterno.

Tuas naves albergam vagos sibilos
Símbolos escondidos
Pássaros noturnos
E recortam a harmoniosa dimensão do espaço
Em que as palavras se quebram
De encontro ao silêncio das colunas.

Adornaste os teus capitéis
Com as algas do mar
Extraíste das conchas as pérolas
Para o rendilhado das tuas rosáceas
E fabricaste
Com as linhas paralelas dos limos
A tua própria austeridade.

E do alto da tua torre
Como do mastro de um navio
Contemplas a imagem perturbante dos moinhos
E persegues as gaivotas
Até onde o mar tem fronteiras de neblina.

Luís Graça (1964)


Publicado originalmente no jornal Jornal "Alvorada", quinzenário regionalista, Lourinhã, 13 de setembro de 1964.



Lourinhã > Igreja de Santa Maria do Castelo (Séc. XIV) > Vista interior. Fotógrafo: Mário Novais, 1899-1967. Orientador científico: Mário Tavares Chicó, 1905-1966. Data aproximada da produção da fotografia original: 1954.[CFT015.236.ic].



1. Um poema meu, publicado aos 17 anos... (naquela idade em que todos julgamos ser poetas de génio). Dedicado à igreja que é o ex-libris da minha terra. E onde fui batisado em 1947. Pelo padre Tobias. 

Publicado no jornal "Alvorada". Há 60 anos. Foi aqui, no jornal "Alvorada", que comecei a publicar os meus primeiros poemas. A escrever as ,minahs primeiras peças jornalísticas (notícias, reportagens...). 

Foi aqui que tive a minha primeira atividade remunerada como jornalista, embora sem carteira profissional. Foi, aliás, esta a profissão que dei para a tropa, quando aos 20 anos fui à inspeção militar, em 1967. Também dava explicações a alunos do ensino secundário (português, francês, geografia, história...).

Comecei por estar ligado, à criação de uma secção, ou de uma página, a que chamámos "Alvorada Juvenil", com outros jovens da terra, estudantes (e outros,  já a  trabalhar), com destaque para os meus amigos e colegas de escola primária, os saudosos  Álvaro Andrade de Carvalho, mais tarde psiquiatra (Lourinhã, 1948 - Lisboa, 2017) e o Rui Tovar de Carvalho (Lourinhã, 1948-Lisboa, 2014), que haveria, depois, de fazer carreira no jornalismo desportivo. (O Álvaro faria hoje an0s, 76, se fosse vivo.)

Criámos a seguir um secção dedicada ao "correio dos soldados do ultramar", e mais uma outra onde demos voz aos nossos emigrantes (maioritariamennte em França e na Alermanha, ams também no "Novo Mundo", Brasil, EUA, Canadá).

No "Alvorada Juvenil", abrimos um inquérito aos jovens lourinhanenses e alimentámos o "cantinho dos poetas"... 

Havia da nossa parte alguma irreverência, inquietação e inconformismo, próprias da idade e das circunstâncias da época. Acabei por exercer as funções de redator-coordenador deste jornal, quinzenário regionalista, que ainda hoje se publica. E que era propriedade do Patriarcado de Lisboa. Com0o muit0s outros...

Foi fundado ao em 1960, pelo padre António Pereira Escudeiro (Tomar, 1917-Lisboa, 1994), um homem a quem a Lourinhã muito deve e que fez uma aposta forte na formação das elites locais, ou seja, na educação, para além do apostolado e do mister sacerdotal. Equipou o concelho com diversas igrejas novas, construídas de raiz: Seixal, Atalaia, Ribamar, Toxofal...

Foi o fundador e o primeiro diretor do Externato Dom Lourenço, que a partir de 1958 permitiu aos jovens do concelho da Lourinhã prosseguir os seus estudos depois do ensino obrigatório (que era apenas de 4 anos no meu tempo).

Até então e desde 1953, havia um colégio particular,  Dom Luís de Ataíde (fundado em 1953 pelo dr. Piçarra, que era do concelho vizinho do Bombarral). Funcionava num vivenda.  Umas escassas dezenas de rapazes e raparigas da Lourinhã puderam então estudar até ao 5º ano.  O 7º ano só nas capitais de distrito (Leiria, a norte, Lisboa, a sul).

O padre António Escudeiro fora igualmente fundador do jornal "Redes e Moinhos" (1954-1960) (donde fui encontrar, por exemplo, vário sonetos da Luiza Neto Jorge, 1939-1989, que em jovem vinha passar o verão à Praia da Areia Branca.)

Antes de vir para a Lourinhã como pároco, em 1953,  o padre Escudeiro estivera em Alcanena, terra ribatejana da indústria dos curtumes, onde fundara o jornal quinzenário "O Alviela". Será  entretanto suspenso pela censura por ousar publicar um artigo sob o título "A fome em Alcanena" (onde se criticava a banca pelos juros usurários que, no pós-guerra,  levavam à falência das empresas locais, ao desemprego e à fome)...

Estava-se em plena campanha eleitoral do general Norton de Matos. "O Alviela" retomaria a publicação depois de, mediante requerimento, ser expressamente autorizado a versar também "assuntos sociais" (sic).

Mas a verdade é que o padre Escudeiro ficou com ficha na PIDE.

À frente do "Alvorada", como redator-coordenador, durante mais de très anos (de 1964 a 1966), "fiz-me esquecido" e deixei de mandar o jornal à censura... A entrada de jovens fora uma pedrada do charco da pasmaceira e do conformismo em que se vivia nesta terra do oeste estremenho. A última do concelho do distrito de Lisboa. Tinha então 3 médficos, e um pequeno hospital da misericórida. Sem enfermagem, sem bloco operatório, sem banco de sangue. Mas onde se fazia já alguma cirurgia ambulatória... pro médicos que vinham de Lisboa ou Coimbra.

Estava-se em plena guerra do ultramar / guerra colonial mas já na fase de fim de ciclo da história..."Cadáver adiado", o regime do Estado Novo ainda estrebuchava e metia medo a muitos. Não admirava que o diretor do jornal tenha recebido um intimidatório ofício da direcção geral de censura a perguntar por que é que se permitia o luxo de ultrapassar a lei...

Metade do ofício, que era apenas de duas linhas, correspondia a uma assinatura em letra garrafal, símbolo máximo da arrogância  de quem se sentia dono e senhor deste país... A assinatura, ilegível, seguia-se à fórmula, obrigatória, no tempo do Estado Novo (1926-1974), "A bem da Nação, com que terminavam todos os ofícios (e todas as demais comunicações escritas, internas, incluindo discursos, requerimentos, petições, etc.)

O pobre do "senhor vigário" (como a gente o tratava), lá teve que arranjar uma desculpa esfarrapada aos senhores coronéis da censura e, a mim, puxou-me as orelhas... Doravante, tínhamos que mandar os artigos em duplicado para a tipografia, sita em Torres Novas, que por sua vez mandava uma cópia para a censura... E no entanto nunca nenhum de nós escreveu o que que fosse que pudesse pôr em causa a sagrada tríade "Deus, Pátria e Família"!...

Eu acho que os censores embirraram sobretudo com os nossos jovens poetas. Não entendiam nada da poesia moderna e receavam à brava que os jovens lourinhanenses e outros, que colaboravam connosco, escrevessem também nas "entrelinhas", mandassem em código, entre si, perigosas, subversivas e dissolventes mensagens...

Nunca se sabe o que se passa no coração dos poetas nem muito menos na cabeça dos censores...

__________________

Nota do editor:

9 comentários:

Anónimo disse...

Gostei do poema Luís!!
A igreja do Castelo fica mais embelezada com o ritmo
das tuas palavras.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela

Anónimo disse...

Gostei do poema Luís!!
A Igreja do Castelo fica mais bonita ao ritmo das
tuas palavras.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela

Nau disse...

Parabéns pelo belo poema, Luís. Escrever poesia com esta qualidade, aos 17, é de quem tem a veia.
Parabéns também pela coragem de enfrentares as feras do regime, no teu «Alvorada». A têmpera e o caráter dos homens também começam a revelar-se cedo.
Um grande abraço, camarada e amigo.

Juvenal José Cordeiro Danado.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, Juvenal, hoje tenho pena de não ter cópia desse ofício dos senhores censores: duas linhas, ou três (com o "A Bem da Nação") e uma assinatura garrafal, intimidatória, do tamanho de metade da folha...

Repare-se que o jornal era propriedade do Patriarcado de Lisboa, e o diretor era um padre católico, perfeitamente alinhado com a "ordem estabelecida", da inteira confiança do seu bispo, o cardeal patriarca de Lisboa... Ainda hoje se publica, contrariamente ao "Alviela"... Adorei, há uns anos atrás, redescobrir, folheando os velhos "Alvoradas", aqueles três anos da minha juventude (1964/66)... e sobretudo os meus escritos daquele tempo... Foi nessa altura que aprendi, por mim, a "escrever à máquina"... Não, nunca fui herói de coisa nenhuma... Corajoso foi o padre (e meu pároco), que me manteve "em funções" e me continuou a pagar umas guitas .... Ainda hoje acho piada a esta pequena história do meu tempo de "menino e moço"...

Valdemar Silva disse...

Isto de ser poeta aos 17 anos, com um poema de maior de idade tem que se lhe diga.
"Tuas naves albergam vagos sibilos"
Também em 2007, quando meu deu para visitar/filmar igrejas da região do Distrito de Lisboa, subir a Rua Dr. Adriano Franco com uns sibilos a acompanhar a respiração foi
com dificuldade que cheguei à Igreja Gótica do Castelo da Lourinhã, com uma torre posterior (séc.XVII) que adivinhava defesa aos franceses que por lá passaram duzentos anos depois.
Parabéns Luis, aos 17 anos com uma bagagem literária daquelas, até os coronéis mesquinhos se armavam em penetras com lápis azuis só porque as tuas palavras nada
tinham a ver com o que se lia de bonitinho de António Correia de Oliveira.
Valdemar Queiroz



Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, Eduardo, sempre gostei muito da igreja onde fui batisado. E gosto de lá voltar, quando abre ao público. É um belíssimo tempo. E o alto onde se ergue, foi o meu local de brincadeiras da infância. É uma igreja gótica, do séc. XIV, construída seguramente sobre uma pequena igreja românica do séc. XII e esta por sua vez erguida sobre uma mesquita dos mouros... A Lourinhã foi conquistada na mesma altura que todo o oeste estremenho e parte do Ribatejo, e a futura capital do reino (Lisboa)... Estamos a falar de 1147. Havia, no tempo dos mouros, um fortim, ou um castelo, sendo a povoação muralhada: defendia a entrada do braço de mar, que era navegável já no tempo dos romanos... Só agora se estão a descobrir os vestígios arqueológicos de uma vila romana, a 6 ou 7 quilómetros do mar... O património da Lourinhã não são só os dinossauros do Jurássico Superior (c. 150 milhões de anos), ou a Aguardente DOC Lourinhã...

Só agora as nossas autarquias estão a recorrer a arqueólogos para aprofundar o conhecimento da história das nossas terras... E tudo começou com um projeto de tanatório que se queria construir no local: vd. aqui:

https://cm-lourinha.pt/19002/campanha-arqueologica-de-sao-lourenco-dos-francos-superou-largamente-as-expetativas

Anónimo disse...

Caso para dizer: ainda pouco mais que menino, eras já poeta. Pois é, ninguém aprende a ser poeta, já se nasce ou não com esse dom, depois pode-se aprender mais ou ficar por aí, o tempo e a tua vida académica deram-te o resto. Parabéns Luís por esse teu caminho bem precoce , pelo mundo das letras e contra os canhões da censura obscurantista.
Um grande abraço.

Carvalho de Mampatá

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Quando era jovem (anos 60, até à tropa) só fazia "poesia livre", de acordo com as tendências da época... Lia bastante poesia, ficção, ensaios... Só há menos de 20 anos é que me aventurei pela quadra e pelo sone to... Comecei por escrever as "janeiras" da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa", as "loas" à família de Candoz, versos de parabéns pelos aniversários da família e amigos, e por aí fora... Até por homenagem ao meu velhote, que esse, sim, tinha um talento natural para o versinho de ocasião, de improviso, brejeiro, pícaro, bem humorado...Tinha sempre uma história, uma anedota, um dito, um versinho, etc., para os amigos, clentes e conhecidos...

Já em Cabo Verde, expedicionário durante a II Guerra Mundial (1941/43), escrevia para a futura "cara-metade" (Maria da Graça, a minha mãe):

Desterrado nesta terra,
A saudade me consome,
Que Deus nos livre da guerra,
Já nos basta a sede e a fome.

Estou farto de engolir pó,
Nesta ilha abandonada,
Mas sinto-me menos só,
Quando penso em ti, minha amada.

Maria, minha cachopa,
Não me sais do pensamento,
Logo que eu saia da tropa,
Vou pedir-te em casamento.

Luís Henriques (c. 1942)

Alvorada > Opinião > 07/08/2020 14:48> Luís Henriques, uma figura popular lourinhanense

Anónimo disse...

Caro amigo!
O teu velhote deixou-te um bom legado.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela