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domingo, 20 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26709: (In)citações (266): A falha da natureza imperfeita, por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

A FALHA DA NATUREZA IMPERFEITA

adão cruz

Ainda bem que a chuva não era tão intensa como se previa, caso contrário, entraria pela parte corroída da janela, caindo no emaranhado de fios estendidos no chão por detrás dos computadores. O Senhor David bulia desacertadamente com o rato na sua mão direita e tamborilava com os dedos da mão esquerda sobre o joelho nu. O Senhor David usava aquele pijama de calção florido, oferecido um dia pela sua última amante num hotel da Gran Via. Muitos livros do lado direito e do lado esquerdo, por cima e por baixo, inúmeras fotografias nas estantes, fotografias dos filhos, dos netos, sobrinhos e também de algumas namoradas que o tempo eclipsou.

O Senhor David tinha um cancro, não se sabia bem onde, mas que não se manifestava, ou então estaria por detrás das diversas maleitas mais ou menos indefinidas que o não deixavam dormir nem beber o copito, metabolito essencial a um certo equilíbrio necessário para que os amigos não deixassem de dizer: Estás com um aspecto porreiro. Afastou-se do computador, foi ao quarto de banho ver a face interna das pálpebras que estava vermelhinha. O suficiente para sentir os efeitos de um suavíssimo sopro de uns restos de testosterona a que o cérebro respondeu com discretos estímulos espásticos. Como lhe tinham dito que a sua esperança de vida não iria além de seis meses, no que ele procurava não acreditar, olhou para todos aqueles rolos de papel higiénico, as bisnagas de creme de barbear e de pasta de dentes, achou que eram demais e pensou em matar-se. Para desanuviar, saiu de casa, pegou no carro, subiu a rampa, desceu a colina e seguiu até à margem do rio onde parou, como era seu hábito. Manteve-se dentro do carro, com os olhos fitos nos corvos marinhos de asas abertas a secarem ao sol, ouvindo baixinho o adagietto, o quarto andamento da 5.ª Sinfonia de Mahler, e adormeceu.

E teve um sonho. Ao seu lado, sentou-se uma jovem de rubros lábios e mamas erectas segredando-lhe ao ouvido que era a sua fada. Como o Senhor David não acreditava em fadas, e a audição já não era de confiar, a palavra fada fez com que os neurónios lhe trocassem a vogal e criassem ali uma atmosfera erótica. Dizia a bela mulher que viera ali com a missão de lhe fazer crer que a velhice não era um deserto e inóspito país, nem o homem morria antes de o mundo morrer ao seu redor. Por outras palavras, ainda haveria lugar para um afecto quentinho.

Acordou com umas pancadinhas no vidro e viu uns restos de mulher perdidos num montão de sacos à cabeça e pendurados nas mãos. No centro de gravidade daquele difícil equilíbrio, mal se enxergavam dois olhos negros, sem brilho, cavados no fundo de dois ninhos de rugas. O Senhor David abriu o vidro e ouviu uma voz gasta pedindo uma moedinha. Enquanto procurava no bolso a moeda do costume, a pedinte viu um livro no banco do carro e perguntou se ele gostava de ler. Ele acenou com a cabeça a dizer que sim e ouviu um suspiro. Olhou para a mulher e viu nos olhos negros e fundos uma faísca de brilho.

- Gosta de ler?
- Em tempos, quando era viva, lia muito e sempre gostei de ler.
- Mas ainda não morreu!
- O Senhor acha que isto é vida? A gente pode morrer muito antes de fechar os olhos.

Estas palavras trouxeram à memória do Senhor David um texto de Sonia Zagehtto, em que ela pergunta quem morre primeiro, se o homem ou o mundo ao seu redor. E qual a verdadeira morte, se o último suspiro, se o instante em que ninguém percebe a nossa falta, se o dia em que ninguém pergunta por nós, ou quando a casa grande e confortável se torna um território de esquecimento.

O Senhor David achou que a pedinte tinha razão e percebeu que a morte pode começar nessa casa sem ninguém, nessa solidão em que os dias se tornam vazios e as noites demasiado silenciosas, nessa idade em que o ser humano se torna invisível.

De qualquer forma, a ideia de antecipar o encontro com o nosso destino final não era boa. O prazer de um copito à revelia e o facto de ter 50% a seu favor na vontade de tornar real a fada do sonho impediam-no de antecipar o silêncio absoluto. Além disso, o mundo em seu redor, se bem que feio e injusto, ainda não tinha morrido de todo. Ainda dava sinais de vida, mostrando aqui e ali coisas lindas e boas que, de alguma forma, ainda interagiam com ele. Coisas lindas como aquele sorriso de felicidade e espanto, aberto no rosto carcomido da mulher dos sacos, quando o Senhor David foi à mala do carro e lhe ofereceu dois dos seus livros, com dedicatória e tudo.

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Nota do editor

Último post da série de 11 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26675: (In)citações (265): Obrigado ao vagomestre Vieira que das tripas fez coração... e ao Noratlas da FAP que, de vez em quando, nos largava uns frescos de paraquedas (Ramiro Figueira e Carlos Barrros, 2ª CART / BART 6520/72, Nova Sintra, 1972/74)72, Nova Sintra, 1972/74)

4 comentários:

Anónimo disse...

Belíssimo conto. O diálogo entre os dois e o toque afectivo da mulher ressuscitaram-no.
Quantos de nós precisam que os ressuscitem !

Um grande abraço.
Carvalho de Mampatá

António J. P. Costa disse...

APLAUSOS GRANDES E BONS. BOM TEXTO E INCENTIVO À RESISTÊNCIA. (OU RESILÊNCIA?, COMO AGORA SE DIZ). AFLITOS É QUE NUNCA...

Eduardo Estrela disse...

" a gente pode morrer muito antes de fechar os olhos "
Ressuscitem!! Estamos na Páscoa!!
É urgente a vida! É urgente o acreditar e o amor, quanto mais não seja na forma da oferta dum livro com dedicatória à falta de amor carnal.
Já tínhamos saudades dos seus textos poéticos com pinceladas de palavras coloridas Dr Adão Cruz.
Obrigado e grande abraço
Eduardo Estrela

Anónimo disse...

Dr. Adão Cruz,

Sou um adepto incontornável dos seus contos, que já não se liam há algum tempo.
Este texto tem algo de enigmático, que não é fácil decifrar. Tem magia, dá que pensar, mas entende-se !
Esse poder de escrever narrações como esta, não é para todos, pelo menos para mim. Parabens por mais um.
Reparei que andou por Canquelifá , que chegou a fazer parte da área de comendo do meu BATCAÇ1933 - Nova Lamego, set67 a fev68. Não somos da mesma época.
PS:
O António P. Costa fala acima de Resilencia!
Não será 'Resiliência?'
Atrasado o comentário, por razões já explicadas, mas vem sempre a tempo.
Abraço e até sempre

Virgilio Teixeira