domingo, 11 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P338: Antologia (33): os 'gringos açorianos' de Guileje (CCAV 8350, 1972/73)

Guine > Guileje > c. 1970/71> Dois militares portugueses, junto ao Obus 140.

Segundo informação do Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito), fundador e director executivo da AD, "a fotografia junto do Obus 140 foi-me dada por um militar português que lá esteve entre 70 e 71, na CCAÇ 2617, de nome Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos dosi militares".

A esta companhia, seguiram-se ainda outras duas: a CCAÇ 3477 (Dez 1971/Dez 1972) e a CCAV 8350 (1972/73).

© AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guileje (2005)

Segundo o comandante do COP 5, o então major de artilharia Coutinho e Lima, a base do PAIGC era em Canjifara, na Guiné-Conacri, o que permitia aos guerrilheiros uma grande actividade na região, "que se intensificou a partir do momento em que a artilharia portuguesa, até aí a utilizar morteiros de 11,4 milímetros, mudou para os obuses de 14 milímetros".

"A regulação de tiro com os de 11,4 milímetros tinha sido comprovadamente mais eficaz, mas estes morteiros acabaram e não foram substituídos por outros de características idênticas. Portanto, para lá do fogo de artilharia dos RPG 7, os guerrilheiros passaram a fazer emboscadas nas proximidades do quartel. O que foi uma machadada no moral das tropas, que andavam há meses a acumular a realização de obras imprescindíveis no aquartelamento - criado em 1964, mas nunca chegou a ter sequer uma segunda protecção de arame farpado - com a actividade operacional, acabando esta por se ressentir".
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1. Guileje continua a estar rodeado de mistério e de polémica. Faltam-nos trabalhos de investigação historiográfica séria, tanto de um lado como de outro. Por enquanto temos só ouvido o testemunho de alguns dos seus (poucos) protagonistas. É urgente que apareçam testemunhos (escritos) de guerrilheiros do PAIGC que estiveram no cerco de Guileje. A geração que fez a guerrilha está a envelhecer e a desaparecer. Segundo creio saber, o Pepito tem sobretudo contactos com antigas milícias, provavelmente de etnia fula, que estiveram do nosso lado. Não sei se há guineenses a tentar preservar essa memória.

O Pepito que, segundo creio, não foi combatente, será uma das poucas excepções na Guiné-Bissau, com o Projecto Guiledje, da sua ONG (AD - Acção para o Desenvolvimento). Por ouro lado, estamos a aguardar, com curiosidade, a dissertação de mestrado do nosso amigo guineense Leopoldo Amado, a defender na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Um dos testemunhos sobre os acontecimentos de Guileje, entre 18 e 22 de Maio de 1973, é o de Alexandre Coutinho e Lima, na altura major, à frente do Comando Operacional 5 (COP 5), baseado em Cacine. Foi este ficial quem, à revelia de Spínola, seu comandante-chefe, decidiu, de motu proprio, abandonar Guileje, retirando a CCAV 8350 para Gadamael-Porto, mais as milícias locais e mais meio milhar de civis. Essa decisão (corajosa, para uns; cobarde, para outros) custou-lhe a carreira militar.

Essa história foi recentemente contada pelo jornalista Eduardo Dâmaso, no suplemento dominical do Público, de 21 de Maio de 2004. Vale a pena seleccionar e divulgar esse texto, pelo seu valor documental, já que muitos dos nossos tertulianos e outros visitantes o não conhecem. A versão que encontrámos disponível na Net vem no Blogue Moçambique para Todos, e em particular numa secção dedicada ao 25 de Abril - O antes e o agora.

Agradecemos a estas duas fontes (O Público e o Blogue Moçambique para Todos) a possibilidade de fazer chegar aos membros da nossa tertúlia e a outros cibernautas a versão dos factos na pessoa do entrevistado, o hoje coronel na reforma Alexandre Coutinho e Lima. Parece que esta questão ainda hoje incomoda as chefias militares do Exército e até os homens que fizeram o 25 de Abril. O abandono de Guileje, sem honra nem glória, foi sempre considerado inaceitável por Spínola e os spinolistas.

O velho general, metido no atoleiro da Guiné, quereria muito provavelmente que Coutinho e Lima e os homens defendessem Guileje até ao último cartucho de G-3... À semelhança de Salazar, em relação ao pobre do General Vassalo e Silva, que comandava as NT aquando da invasão indiana de Goa, Damão e Diu, em 18/19 de Dezembro de 1961.

Outra questão, mais anedótica, tem a ver com a expressão "gringos açorianos". Segundo o post anterior, com data de ontem (Guiné 63/74 - CCCLV: Projecto Guileje (7): recuperação do quartel), e o artigo que agora publicamos, de Eduardo Dâmaso, haveria duas companhias cujos militares se intitulavam "gringos": a CCAÇ 3477 (Dez 1971/Dez 1972), os "Gringos de Guileje"; e a CCAV 8350 (1972/73), a os "Gringos Açorianos", os que abandonaram Guileje em 22 de Maio de 1973, tendo-se refugiado em Gadamael (1). L.G.

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Coronel Coutinho e Lima: Salvou 600 vidas mas foi castigado por Spínola

PÚBLICA, Domingo, 16 de Maio de 2004

Eduardo Dâmaso

Auto de corpo de delito

Acusação: ordenou a retirada de forças sob o seu comando do quartel de Guileje para Gadamael sem que para tal estivesse autorizado; mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do referido quartel, bem como material de guerra e munições; não cumpriu a missão que lhe foi atribuída.

Nessa luminosa madrugada de 22 de Maio de 1973, a sorte dava ares de voltar a sorrir aos "gringos açorianos" e a todos os outros "gringos" que faziam a guerra em Guileje, Sul da Guiné, contra o PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné-Bissau e Cabo-Verde). Eram quase seis da manhã e os "gringos" iam carregados que nem burros pelo trilho do mato que ligava o quartel de Guileje ao de Gadamael, uns oito ou nove quilómetros bem medidos na retaguarda do primeiro, mas a manhã levava-os para longe daquele buraco que já viam como cemitério dos seus próprios cadáveres trespassados pela metralha do inimigo.

Os soldados sedentos, famintos e, alguns, doentes, abandonavam Guileje em passo lento e levavam malas de viagem, sacos militares, armas, mochilas. Transportavam tudo o que era imprescindível para refazer a vida da tropa noutro quartel qualquer. Entre eles marchavam 600 guineenses, igualmente cheios de fome, sede e doenças, que recuavam também para a zona do aquartelamento de Gadamael, alguns dos quais já muito idosos e um deles paralítico, que teve de ser transportado às costas por soldados. A população da tabanca de Guileje levava a casa na trouxa e a família pela mão sem olhar para trás. Na retaguarda, num qualquer ponto fixo no horizonte da densa mata do Sul, só ficavam os canhões do PAIGC que, por aqueles dias, não escolhiam entre soldados portugueses e civis guineenses.

Uns e outros compunham uma coluna de gente que protagonizava um episódio histórico na guerra colonial portuguesa: as Forças Armadas comandadas na Guiné por António Spínola batiam em retirada do quartel de Guileje, o único que a tropa portuguesa deixou livre à ocupação pelo inimigo em toda a guerra colonial. O PAIGC, tolhido pela surpresa, só viria a ocupar a guarnição militar três dias depois da retirada.

A retirada de Guileje foi o culminar de um complexo processo político-militar que começou a desenhar-se na Guiné após o assassinato de Amílcar Cabral, em Janeiro de 1973. O PAIGC desencadeou então uma ofensiva simultânea no Norte e no Sul da Guiné cercando os quartéis de Guidage, junto à fronteira com o Senegal, e de Guileje, encostado à Guiné-Conacri.

Essa operação, a que chamaram "Amílcar Cabral", foi um momento decisivo na guerra que coincidiu com a utilização dos mísseis Strella, de fabrico soviético, que abateram pela primeira vez um Fiat G-91 da Força Aérea a 25 de Março desse ano. Nessa semana a "arma desconhecida, tipo foguete", como foi qualificada no relatório da ocorrência, atingiu seis aeronaves portuguesas e num dos casos morreu mesmo o piloto, tenente-coronel Brito. A maior parte destas acções aconteceu precisamente na zona de Guileje, área do Comando Operacional 5 (COP5) criado menos de seis meses antes para fazer face ao previsível agravamento da guerra na frente sul, mas para onde não foram enviados mais do que 108 homens.

A partir deste novo dado da guerra, os mísseis terra-ar, ficou muito condicionada a utilização de meios aéreos no apoio de fogo às tropas terrestres, na deslocação de feridos, no transporte logístico e na regulação de tiro da artilharia. Os efeitos do conflito passaram a ser devastadores nas fileiras portuguesas. Segundo números oficiais das Forças Armadas, só entre 13 e 27 de Maio morreram 38 soldados e 155 foram feridos na frente sul da guerra. Em todo o primeiro semestre de 1973 registaram-se 135 mortes de militares portugueses em todo o território guineense. Foram as semanas da viragem da guerra a favor de um inimigo mais numeroso, mais bem armado e preparado.

Nesse Maio de chumbo, Bissau não evacuava feridos há semanas lá das bandas do Sul. Os aviões não se arriscavam a um voo que podia ser o último. Em Guileje, com a moral arrasada, os soldados não tinham nem água, nem comida, nem munições, o inimigo atacava a 500 metros, ou menos, do quartel. Ficar ali para cativeiro ou morte certa nem pensar, antes marchar em retirada. Ainda por cima, naquela época do ano, o Sul da Guiné submergia com a intensidade das chuvas e uma parte do território estava intransitável.

Nos dias anteriores à retirada, as bombas do inimigo abatiam-se sobre o quartel e dele quase nada restou de pé. Ficaram as orações dos "gringos açorianos" inscritas nas poucas pedras que sobravam: "Santo Cristo dos Milagres nesta capelinha oramos para sempre sorte dares aos gringos açorianos." Ou as dos "Piratas de Guileje", uns e outros da companhia de cavalaria 8350, estacionada no Sul entre 72 e 74.

Os RPG7 da guerrilha rebentavam no ar e caíam em chuveiro sobre o quartel, deixando marcas de destruição em todo o lado. Nos seis abrigos amontoavam-se soldados e população. Do dia 18 em diante, até à evacuação, muita fome ali se passou porque os flagelamentos do PAIGC foram praticamente incessantes.

Minhas declarações em 28 de Maio de 1973

"Durante a manhã [21 de Maio] tinha havido um ataque próximo em que predominaram os rebentamentos de RPG. Ao princípio da tarde, as mulheres, desesperadas com falta de água, foram à bolanha (cerca de 500 metros do quartel), tendo sido flageladas pelo IN com RPG e imediatamente recolhidas pelas NT que foram em seu socorro. A Força Aérea que apareceu a apoiar, após o ataque das 15h15 às 16h30, o mais intenso de todos e o que provocou o morto e muitos danos materiais, foi informada que o quartel estava sem transmissões, tendo prometido ir lá de noite, se possível, e no dia seguinte, logo de manhã."

A base dos guerrilheiros era em Canjifara, Conacri, o que permitia ao PAIGC uma grande actividade na região, que se intensificou a partir do momento em que a artilharia portuguesa, até aí a utilizar morteiros de 11,4 milímetros, mudou para os obuses de 14 milímetros. A regulação de tiro com os de 11,4 milímetros tinha sido comprovadamente mais eficaz, mas estes morteiros acabaram e não foram substituídos por outros de características idênticas. Portanto, para lá do fogo de artilharia dos RPG7, os guerrilheiros passaram a fazer emboscadas nas proximidades do quartel. O que foi uma machadada no moral das tropas, que andavam há meses a acumular a realização de obras imprescindíveis no aquartelamento - criado em 1964, mas nunca chegou a ter sequer uma segunda protecção de arame farpado - com a actividade operacional, acabando esta por se ressentir.

É neste cenário que o então major Alexandre Coutinho e Lima decide bater em retirada, depois de intensas movimentações nos últimos dias a pedir reforços de tropas especiais que nunca chegaram. Assim que chegou a Gadamael, nessa manhã de 22 de Maio, foi imediatamente preso e acusado de ter cometido um crime militar ao ordenar a retirada de forças sob o seu comando sem autorização superior. Também mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do quartel que comandava, material de guerra e munições. A justiça militar imputou ao major uma falta grave: não ter cumprido a missão que lhe foi atribuída pelo comandante-chefe das tropas portuguesas na Guiné, António Spínola, e pagou por isso com um ano de prisão, que só viria a ser interrompido por uma amnistia nos primeiros dias a seguir ao 25 de abril de 1974.

Na versão seca do formalismo da linguagem militar, o major não cumpriu a missão que lhe foi atribuída. Mas, para as mais de 600 pessoas cercadas pelo fogo dos guerrilheiros independentistas, a decisão do agora coronel reformado Coutinho e Lima salvou-os de morrer no inferno de Guileje.

Para essas pessoas e para milhares de soldados que viam a derrota e a morte a aproximar-se nas frentes de guerra da Guiné, o coronel Coutinho e Lima foi um herói, que teve a coragem de decidir de acordo com a sua consciência. Mas ainda hoje é um homem perplexo com a actuação de Spínola neste processo e, em concreto, pela diferença de tratamento que deu às duas situações mais dramáticas naquela guerra.

Ao cerco de Guidage, a norte, Spínola respondeu com reforços imediatos e um ataque de comandos à base do PAIGC em Kumbamory, em território senegalês, uma acção que veio aliviar a pressão do PAIGC sobre Guidage. Já em relação a Guileje, Spínola nunca autorizou um reforço de homens e meios operacionais, deixando a guarnição abandonada à sua sorte, acabando também por não conseguir evitar a desgraça de Gadamael, onde o PAIGC atacou entre as 14h00 e as 18h00 do dia 31 de Maio, bombardeando o quartel com mais de 700 granadas e provocando cinco mortos e 14 feridos, numa acção que foi apenas o início de intensos flagelamentos que prosseguiram nos dias seguintes, causando um total de 24 mortos e 147 feridos.

Trinta e um anos depois da retirada do quartel de Guileje, as Forças Armadas ainda lidam mal com o episódio. O único quartel português abandonado pelas tropas coloniais é um episódio que representa uma espécie de pedra no sapato do Exército e das Forças Armadas em geral, que transformou o seu principal protagonista num rosto incómodo tanto para as hierarquias como, aparentemente, para os próprios militares do Movimento das Forças Armadas (MFA).

Para os militares de Guileje, o pesadelo começou a desenhar-se a partir do dia 10 de Maio, ainda sem o perceberem. A melhor descrição da situação militar ali vivida é feita pelo próprio Spínola, que a 11 de Maio se desloca de helicóptero a Guileje e, numa comunicação às tropas, fez saber que se esperava um agravamento da situação. Ficou claro que a Força Aérea não faria operações de rotina como até aí. Deixou, porém, a garantia de que, em momentos de combate mais sérios, os aviões voariam mais alto e utilizariam bombas mais potentes no apoio de fogo. O transporte de feridos muito graves seria também assegurado. Palavras vãs, tal nunca aconteceu.

Um dia antes da visita, a vida corria com alguma normalidade no aquartelamento de Guileje. O único facto anormal era dado pelo desaparecimento do miliciano [ milícia ] Aliu Bari, que saíra de espingarda às costas dizendo que ia à caça, mas não voltou mais. Ao fim de um par de horas, começaram a sair grupos de patrulhamento na estrada de Mejo com o objectivo de tentar encontrar o miliciano [ milícia ] Bari, que, admitia-se, podia ter-se perdido ou sido mordido por uma cobra.

Alguns patrulhamentos depois, já a 12 de Maio, porém, uma mina rebenta na estrada do Mejo e morrem dois comandantes de secção da milícia, o que afecta as tropas, sobretudo do contingente guineense e da população, onde os dois homens eram vistos como líderes.

No dia 18, dois grupos de combate que realizavam trabalhos de detecção de minas e instalação de um sistema de segurança para uma nova operação de reabastecimento, junto ao cruzamento da estrada Guileje-Gadamael, foram atacados por mais de 100 guerrilheiros emboscados. Das sete às oito da manhã os soldados portugueses e os milicianos [ milícias ] guineenses ao seu serviço estiveram debaixo de intenso fogo de metralhadora, armas automáticas e morteiros RPG. O balanço final foi dramático: dois mortos, nove feridos graves. Mais tarde, um destes feridos, um cabo, veio a morrer.

Tinha sido pedido apoio de fogo aéreo a Bissau, que não foi concedido por falta de condições meteorológicas. Aos pedidos de deslocação dos feridos foi respondido que as baixas deveriam ser levadas para Gadamael e daí para Cacine por via fluvial, o que não aconteceu por já não haver maré que permitisse o transporte.

Adivinhava-se um mortícinio. Os soldados começaram a perceber que estavam entregues à sua sorte. O major Coutinho Lima enviou uma mensagem para Bissau a pedir a deslocação de um delegado a Guileje para analisar o problema dos apoios e efectivos para as colunas de reabastecimento. A resposta é negativa.

Às 16h00 ainda do dia 18 colocou-se a necessidade de reabastecer a unidade de água, num local situado a quatro quilómetros do quartel. O grupo de combate que habitualmente fazia segurança a esta saída manifestou-se relutante em sair do quartel. Só o fez quando o próprio Coutinho e Lima saiu à frente do grupo.

A operação decorreu sem problemas mas durante essa noite regressou o fogo inimigo. O quartel foi bombardeado pela noite dentro, em oito momentos diferentes; todos os rebentamentos de obuses ocorreram dentro zona de arame farpado. Compreenderam então que a regulação de tiro da artilharia do PAIGC era feita a partir de informações prestadas pelo miliciano [ milícia ] Bari, que tinha desertado para o inimigo. Era a primeira vez que o inimigo acertava no quartel.

Na manhã seguinte, os militares portugueses contaram 85 rebentamentos no interior do quartel. Coutinho Lima parte nessa manhã com um grupo de combate para Gadamael e daí para Cacine, para assegurar o transporte dos feridos e do morto, mas também na esperança de "encontrar alguém" do Comando-Chefe a quem pudesse expor a situação. Ao mesmo tempo, o drama adensava-se em Guileje: o inimigo passou todo o dia 19 a bombardear o quartel.

Coutinho Lima só consegue falar com a Repartição Operacional na madrugada de 20 e pede que Bissau envie para Guileje uma companhia de tropa especial (comandos ou pára-quedistas), viaturas e estivadores para assegurar o reabastecimento. Volta a pedir autorização para se deslocar a Bissau, o que acontece no dia 21. Aí, expõe a situação a Spínola e pede, de novo, reforços. O comandante-chefe dá-lhe uma resposta negativa quanto ao reforço de uma companhia de tropas especiais, retira-lhe o comando e entrega-o ao coronel Rafael Durão.

Coutinho e Lima é mandado de regresso a Guileje na qualidade de 2º comandante do COP5. Chega a Guileje ao fim da tarde do dia 21 e o quadro com que se depara é devastador: um furriel morto, depósitos alimentares destruídos, celeiros de arroz a arder, população refugiada dentro do quartel, falta de água e medicamentos, antenas de transmissões de rádio destruídas, poucas munições, abrigos e valas de defesa atingidos, centenas de rebentamentos dentro do quartel.

Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973

"A estadia nos abrigos era praticamente insuportável, pois neles se encontravam, além das NT, toda a população (homens, mulheres e crianças, cerca de 500 pessoas). Houve vários desmaios, onde o calor era imenso e o cheiro nauseabundo. Após as saídas do fogo IN [Inimigo], os rebentamentos demoravam cerca de 3 segundos só dando tempo ao pessoal para se deitar. De algumas vezes não se ouviram as saídas e houve vários rebentamentos no ar, que não eram de RPG; muitas granadas eram também perfurantes, devendo ter sido uma destas que provocou a morte do furriel, bem como outra que abriu uma brecha, de lado, num dos abrigos, ficando a armação de ferro à mostra. Todo o pessoal estava arrasadíssimo, não só física como psiquicamente, pois há cerca de 72 horas que o quartel estava a ser continuamente flagelado. Com a deserção do miliciano [ milícia ] Aliu Bari, a população estava alarmadíssima porque até aí o Inimigo não sabia onde eram os campos de arroz do pessoal de Guileje, não conhecia o trilho da população entre Gadamael e Guileje, nem tão-pouco sabia onde era o poço da água onde se fazia o reabastecimento, mas agora passava a ter conhecimento, através do referido desertor, de tudo isto."

O medo estava instalado nos abrigos de Guileje. Mas também a fome, a sede, a doença. O inimigo estava a menos de 500 metros do quartel a acertar o fogo com homens empoleirados nas árvores. A descrença era total e já ninguém esperava reforços de lado nenhum. Batiam as 21 horas do dia 21 de Maio quando Coutinho e Lima mandou reunir todos os oficiais e, depois de analisada a situação, decidiu retirar de madrugada para Gadamael pelo trilho da população. De imediato elaborou uma mensagem em que pedia autorização para retirar. Foram improvisadas umas antenas, mas a mensagem nunca chegou a seguir, apesar das tentativas que duraram toda a noite. A última que seguira fora no dia 21, às 14h15, a dizer "Estamos cercados por todos os lados."

Três décadas depois, Coutinho e Lima pergunta-se a si próprio que outra coisa poderia fazer: "Tinha-se perdido muito tempo. Mesmo que tivéssemos conseguido comunicar para Bissau naquele dia e tivessem decidido enviar reforços, as tropas não chegariam antes de três ou quatro dias, espaço de tempo que nunca conseguiríamos aguentar naquelas condições. Antes disso, o inimigo completaria o cerco poderosíssimo que estava a fazer com a consequente captura ou aniquilamento de toda a guarnição militar e população."

Ou ficava e a sua companhia era chacinada e o que restasse dela apanhado à mão pelo PAIGC ou, pelo contrário, recuava para Gadamael de imediato, jogando no efeito surpresa.Tomada a decisão de partir, foi elaborado um plano de destruições e inutilizações de material que não pudesse ser utilizado pelo PAIGC: minas Claymore, material de criptografia, incluindo as máquinas, arquivos, equipamento de transmissões, obuses, viaturas e armamento pesado. "Não fui pressionado por ninguém para retirar e parti do princípio que a minha vida militar acabava ali", diz Coutinho e Lima.

Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973

"Entre todos os factores que me levaram a decidir pela retirada, avulta a missão de defesa da população, cerca de 500 pessoas (...) [que] aceitou de bom grado a ordem para se preparar para seguir para Gadamael, não tendo havido nenhuma manifestação de pesar - 'choro' -, quer quando foi iniciada a retirada, quer na chegada a Gadamael."

Deviam ser umas quatro da tarde quando a coluna entrou na parada do quartel de Gadamael-Porto. Coutinho e Lima é preso e enviado para Bissau, para a fortaleza de Amura, comando militar da Guiné. Não iria esperar muito até sentir a ira de Spínola, que o transfere para o depósito de adidos no aquartelamento de Bra com ordens inabaláveis: encerramento num quarto em regime de incomunicabilidade total e o vencimento reduzido a metade. Ali fica um mês e só uma consulta de psiquiatria altera as condições da sua prisão: passa a receber visitas, tem licença para se entreter na horta da guarnição e ler jornais.

Todos os requerimentos que fez para poder dar explicações e aulas de Educação Física foram indeferidos pelo punho do próprio Spínola. Nessa fase, lia, fazia paciências com cartas, escrevia. Começou a perceber então que a sua situação gerava entre os militares um grande movimento de solidariedade. Não tinha dinheiro para contratar um advogado e houve uma quotização entre os oficiais, que asseguraram os 50 contos necessários para pagar a sua defesa ao advogado Manuel João da Palma Carlos. como é assegurado o subestabelecimento da causa num conjunto de mais quatro advogados, todos eles oficiais milicianos a prestar serviço na Guiné: Barros Moura, Correia Pinto, Sacadura Bote e Maia Costa. Estes oficiais chegaram a ser ameaçados por Spínola com o envio para a frente de combate por se terem disponibilizado a defender o "presumido delinquente".

Depois de libertado em Maio de 1974 é colocado na Academia Militar, no gabinete de estudos, e recebeu a metade do vencimento que lhe tinha sido retirado. Nunca chegou a ser julgado, mas não requereu qualquer reparação por danos morais, já que era sua profunda convicção a inutilidade da acção enquanto Spínola liderasse a JSN [Junta de Salvação Nacional].

"Acho que nunca fui prejudicado na progressão militar, mas na parte final, quando tinha de fazer um ano de comando para a promoção - devia comandar uma unidade de artilharia -, fiquei com a sensação de que andaram a passar a bola de um lado para outro", diz hoje, passados 30 anos.


Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973

"Relativamente à acusação de não ter cumprido a missão que me foi atribuída, solicito informação sobre qual parte da missão deixou de ser cumprida. Se se pretende referir à alínea 'garante a defesa eficiente dos aglomerados populacionais e o socorro em tempo oportuno dos reordenamentos da sua zona', declaro que defendi o estacionamento de Guileje até à altura da retirada, por considerar a posição absolutamente insustentável."

O tempo foi passando na vida de Alexandre Coutinho e Lima e as más memórias desvanecendo-se. Mas o mistério da recusa de conceder um reforço militar a Guileje permanece. "Nunca mais falei com Spínola sobre isso!" De há 31 anos para cá só ficou o silêncio.

Recordo-me de me terem perguntado num dos interrogatórios se tinha pensado nas consequências do meu acto para a Pátria. Limitei-me a responder que a minha preocupação era mais com a vida dos meus homens e da população do que com os altos valores da Pátria.
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(1) Vd. também post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael Transcrição do artigo de Serafim Lobato - "Estamos Cercados por Todos Os Lados" -, publicado na Pública, suplemento dominical do Público (28 de Dezembro de 2003).

sábado, 10 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P337: Projecto Guileje (7): recuperação do quartel

Guiné- Bissau > Guileje > 2005 > Restos da estrutura (pilares de cimento armado) que sustentava a rede de arame farpado do antigo aquartelamento. Mais de trinta anos depois, a natureza volta a impor o seu domínio sobre os homens e as suas máquinas de guerra.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Notícias dos nossos amigos da AD - Acção para o Desenvolvimento, a ONG guineense fundada e dirigida pelo Pepito (Carlos Schwarz):



Começaram os preparativos para a recuperação do Quartel de Guileje > 4 de Dezembro de 2005 > Reportagem

O Projecto Guiledje (respeitando a grafia usada pelos nossos amigos) (1) vai ser uma das prioridades da AD para 2006.

Parece haver um grande entusiasmo à volta desta iniciativa por parte dos quadros desta ONG guineense, mas também das "comunidades locais envolvidas, em especial as de Guiledje, Medjo e Iemberém, assim como do nosso parceiro europeu, o Instituto Marquês de Valle Flôr".

Foto nº 1 - O topógrafo faz o levantamento dos últimos pontos da quadrícula.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Contando com a colaboração de várias tabancas dos arredores, começou por se proceder à limpeza e demarcação da área do antigo quartel, "tendo-se identificado os diversos vestígios que facilitarão a localização das antigas infraestruturas militares".

O levantamento e elaboração da planta topográfica do quartel e arredores (cerca de 6 ha) deverão estar concluídos no final da primeira quinzena de Dezembro de 2005. Nelas ficarão registadas "as fundações das antigas instalações, os abrigos subterrâneos, os marcos, as trincheiras, a linha de pilares de arame farpado e as árvores mais imponentes que vão ser preservadas".

Foto nº 2 - O bom humor do nosso amigo Pepito não faltou na reportagem fotográfica que ele fez para nós.

Legenda: "Para que qualquer projecto tenha sucesso, exige-se o sacrifício de um animal para escorraçar os maus espíritos".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

É aguardada a chegada a Bissau, em 13 de Janeiro de 2006, do arquitecto responsável pela recuperação paisagista do local. Ele vai trabalhar com a equipa local na reconversão do quartel, incluindo "a instalação das palhotas para os ecoturistas, o centro de formação e aprendizagem rural, a sede do parque transfronteiriço, o centro de documentação histórico e as restantes infraestruturas de apoio organizativo".

Foto nº 3 - A presença dos chefes tradicionais locais é bem vinda e, mais do que isso, é "a garantia de que estão connosco e com o projecto".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Ainda este mês pensa-se poder fazer um furo de água de grande profundidade, de 40 a 60 metros, que irá permitir abastecer o quartel e as tabancas limítrofes.

O repórter fotográfico free-lancer Paulo Barata esteve na Guiné-Bissau no passado mês de Novembro, "onde produziu uma centena de fotos de excelente qualidade que irá servir para editar 9 cartões postais de Cantanhez e criar um cartaz de promoção ecoturística da zona".

Foto nº 4- A leitura da Corão e o juramento de fidelidade dos presentes é "garantia da união de todos na implementação do projecto".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Ainda segundo a nossa fonte, "em Portugal, o Capitão José Neto [membro da nossa tertúlia] disponibilizou cerca de 150 fotos de Guiledje dos anos 1967-68 que irão ser em breve digitalizadas com a colaboração do Filipe Santos" (que organizou o sítio da AD na NET e que pertence à Escola Superior de Educação de Leiria, um dos parceiros portugueses da AD - Acção para o Desenvolvimento).

Foto nº 5 - As escavações feitas têm trazido à superfície restos de armamento, carros, jericãs, etc.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Está igualmente avançada "a elaboração do Atlas Florístico de Cantanhez, preparado pelo especialista belga Professor François Malaisse [do Jardim Nacional Botânico da Bélgica], o qual será editado em Abril de 2006".

A AD anda agora à procura de "um especialista que faça o levantamento da fauna selvagem desta zona".




Foto nº 6 - "O pessoal estava mesmo com fome depois de terem feito mais de 4 horas de trabalho voluntário de limpeza e escavações no interior do antigo quartel".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)










Foto nº 7 - Estas placas servem para se marcar a localização de cada uma das infraestruturas que existia antigamente.

A este propósito veja-se uma planta do aquartelamento, por nós publicada, de 1966, e da autoria do então Capitão Nuno Rubim, hoje coronel e talvez o maior especialista português em história da artilharia.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)


Recorde-se que Guileje fica(va) entre Mejo, a noroeste, na estrada que da(va) a Bedanda; Gadamel fica(va) a sul, ou sudeste, mesmo na fronteira. A localidade e o aquartelamento de Guileje eram cortados pela estrada que ligava a Mejo (à esquerda) e a Gadamael (à direita).

Foto nº 8 - Estes são antigos combatentes do Exército Português em Guileje, e que viviam no quartel. Presume-se que fossem milícias. O seu conhecimento do terreno permitiu mais facilmente a localização de cada um dos edifícios do quartel.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Por Guileje passaram diversas unidades, as duas últimas terão sido a CCAC 3477 (1970/71) e a CCAV 8350 (1972/73), esta uma unidade constituída essencialmente por soldados açorianos, incluindo gente da Ilha do Pico, segundo informações do Pepito.

Estima-se que vivessem na tabanca de Guileje cerca de 600 africanos, entre civis e militares, na altura em que o aquartelamento foi abandonado, em 22 de Maio de 1973, pelas NT (CCAV 8350, 1972/73), depois de um cerco de 5 dias pela guerrilha do PAIGC.

Foto nº 9 - "A reza final é um momento de grande união e de engajamento nas actividades que iremos fazer ao longo destes 4 anos", comenta o nosso repórter fotográfico, o Eng. Carlos Schwarz, mais conhecido na sua terra como Pepito.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)


E, por fim, uma referência simpática ao nosso Blogue e à nossa tertúlia: "De salientar que, também em Portugal, um grupo de antigos militares que fez a guerra na Guiné-Bissau e que se juntaram numa tertúlia, tomaram a iniciativa de criar a ONG (Organização Nova Guiledje), destinada a contribuir e dar apoio a esta iniciativa".

Este recado é para o Humberto Reis, que é o pai da criança... Na realidade, a ideia da ONG - Organização Nova Guiledje não passa disso mesmo, uma ideia bonita que terá de se reproduzir em ideias concretas e efectivas no domínio da cooperação e da solidariedade.

Foto nº 10 - O futuro do projecto de Guileje também pode passar pela inteligência e generosidade de muitos outros actores e figurantes que não aparecem nesta sequência fotográfica, incluindo os militares portugueses que por lá passaram... Pelo menos uma dúzia de companhias, perfazendo mais de 1500 homens...

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Ainda recentemente perguntei ao Pepito se tinha contactos com os ex-militares açorianos. A resposta dele foi não, embora ele saiba que nos Açores e em particular na Ilha do Pico vivem alguns dos que lá estiveram, provavelmente integrados no grupo dos "gringos açorianos" (sic), a CCAÇ 3477 (1971/72). Mas a CCAV 8352 (que só lá esteve seis meses, entre Dez 1971 e Mai 1973) , também era constituída por pessoal açoriano (2).

Na mesma data (21 de Novembro último), o Pepito mandou-me, em anexo, "um quadro que um amigo meu português, António Estácio, me ajudou a fazer, listando todas as companhias que passaram por Guiledje, onde estão os nomes de algumas pessoas que nos têm disponibilizado documentos (fotografias, memórias e informações)"... É uma lista ainda "muito limitada, a necessitar de identificar mais pessoas interessadas em colaborar e a precisar algumas das datas em dúvida".

Aqui fica a lista das unidades militares que estiverem aquarteladas em Guileje (1964-1973):

Unidade / Período de tempo / Pessoa de Contacto

CCAÇ 676 / De Set 1964 a (?) / Ninguém

CCAÇ 726 / De Out 1964 a (?) / Teco

CCAÇ 1424 /De Jul a Nov 1966 / Ninguém (2)

CCAÇ 1477 / De Dez 1966 a Jun 1967 / Ninguém (2)

CART 1613 / De Jun 1967 a Mai 1968 / José Neto (2)

CCAÇ 2316 / De Mai 1968 a Jul 1969 / Ninguém

CART 2410 / De Jul 1969 a Mar 1970 / Ninguém

CCAÇ 2617 (Magriços) / De Mar 1970 a Fev 1971 / Abílio (2)

CCAÇ 3325 / De Fev a Dez 1971 / Parracho

CCAÇ 3477 (Gringos de Guiledje) / De Dez 1971 a Dez 1972 / Ninguém

CCAV 8350/72 (Gringos Açorianos ) / De Dez 1972 a Mai 1973) / Ninguém (2)
__________

(1) Vd. post de 6 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXL: O melhor que Portugal nos deixou foi a língua (Pepito)

(2) Vd. post de 5 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXIX: José Neto, outro senhor de Guileje (CART 1613, 1967/68) . O nome completo do Abílio, da CCAÇ 2617 (Magriços): Abílio Alberto Pimentel da Assunção.

O Capitão (hoje, coronel) Nuno Rubim deve ter pertencido a uma das Companhias que esteve em Guileje no ano de 1966: a CCAÇ 1424 ou a CCAÇ 1477.

Por fim, da CCAV 8350, temos notícia do ex-furriel miliciano, ranger, Casimiro Carvalho (que pertenceu à Guarda Nacional Republicana / Brigada de Trânsito, estando hoje reformado). Encontramos no sítio da Associação de Operações Especiais (AOE) uma mensagem e o contacto dele, no livro de visitas, com data de 4 de Setembro de 2004:

"É a primeira vez que escrevo aqui. Fui do 2º Curso de Sargentos de 72. Fui para a Guiné integrado na CCAV 8350, infelizmente célebre por ter estado no maldito Inferno Guileje-Gadamael Porto.

"Para quem me conhece sou o da BT/GNR (aposentado), para os restantes sou mais um orgulhoso RANGER que aqui deixa a sua marca indelével. Parabéns pelo site, parabéns aos carolas que dão o seu tempo... e não só, em prol desta família tão grande que dá pelo nome de RANGERS (...). José Carvalho

Guiné 63/74 - P336: Cancioneiro de Mansoa (4): a arte de ser 'ranger' (Magalhães Ribeiro)

Dos cadernos do Magalhães Ribeiro, ex-furriel milicano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, o mesmo que em 9 de Setembro de 1974 teve o privilégio de arriar a última bandeira portuguesa, no quartel de Mansoa (1), na presença de altos representantes do PAIGC que, por sua vez, hastearam a bandeira da nova República da Guiné-Bissau...


Têm 3 minutos p’ra estar na parada

Safa!... desta já eu me livrei!
A recruta estava concluída,
Nova etapa se apresentava,
Chegara a hora da partida.

Nova guia de marcha recebi,
Dizia: apresente-se no C.I.O.E.
Em baixo noutra linha, Lamego;
Bem, pensei, vamos lá ver como é.

Chegado à cidade logo vi:
C.I., quer dizer, Centro de Instrução,
O.E., Operações Especiais;
«Meti-me noutra alhada, pois então!»

- Você vai p’ró quartel em Penude…
Rápido, já devia lá estar!
- Mas, eu ainda agora cheguei…
- Caluda qu’aqui, até tens de voar!

Lá andamos uns tantos quilómetros
Num Unimog que, de repente, parou:
Apenas se viam dois barracões
À volta, mato... - A gente já chegou?

Veio um aspirante e berrou: - Desçam…
Vão ali, e apresentem-se, já!
Comecei então a entender,
Não estávamos ali para tomar chá.

- Aonde é o quartel?... perguntei.
- Estás a querer gozo, ó piço?
- Perguntar não ofende!... disse eu.
- Tu já estás no quartel, ó chouriço!

Ora esta especialidade
Também conhecida por Ranger,
Não pode ser descrita no íntimo,
Não vá ser lida por um nabo qualquer.

Não só devido ao grande risco
De interpretações distorcidas
Mas pela dignidade e respeito
Que a todos Rangers são devidas.

Porque… por muito que se rebusque,
Por muitas palavras que escrevamos,
Jamais se dirá da camaradagem
E das amizades qu’ali enraizamos.

Para ultrapassar a instrução,
Seus efeitos psíquicos e físicos,
Aprende-se onde, além das teorias,
Se esgotam os limites práticos.

Ao longo de onze semanas
Muitas vezes abismado constatei
Q’uma réstea de alma reservava
Depois de pensar já arrebentei.

Mas para não criar mais um tabu
E ser acusado de coisas esconder,
Só me resta dar uma ligeira noção
Do que no curso nos é proposto vencer.

Assim, um Ranger é aquele que:
Vê um Fantasma e beija um morto,
Numa Largada faz uma noitada
E na Guerrilheira não fica absorto.

Tal como Cristo vai ao Calvário
Nos Esgotos prova, mas não abusa;
Seu dia tem 24 horas
E ao Esforço final não se recusa.

Dá o que pode na Dureza 11
O que não pode na Ranger ousa
Vai de Slide e vem de Rapel
Dança a Chula-picada e repousa.

Se a Primeira dose for de bom tinto,
Disfarça sempre o Zig Zag
Ressacas, só na Piscina Ranger
Antes que o Vampiro a estrague.

Vai pescar em Parido e Reconcos,
Namora a Meadas com paixão,
Adora campismo no parque Vilar,
Só bebe águas marca Balsemão!

Desvendados estes segredos,
Nestas esclarecedoras quadras,
Fica quase tudo aqui escrito
Que é possível dizer, em palavras.

Mas se leu isto e tem dúvidas
E pretender conhecer algo mais,
Ofereça-se como voluntário
Para as Operações Especiais.

Para o curso de Ranger concluir
Diga-se, em abono da verdade,
São precisas três características:
Carácter, Energia, e Dignidade

Mas só se é Ranger a 100%
Da mais elitista qualidade
Se este for ainda dotado de:
Disciplina, Patriotismo e Lealdade


- Atenção, têm três minutos p’ra estar na parada...
E, assim, em Penude, pr’ó combate nos preparamos
Éramos só cento e tal, mas o nosso lema diz;
“Que os muitos por ser poucos não temamos”.

Magalhães Ribeiro - Soldado Instruendo nº 114 CIOE - Penude - Turno: 4º/73 - 3ª equipa - 4º Grupo

_________

(1) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P335: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela"

Publicamos hoje a IV (e última) parte do depoimento do brigadeiro Hélio Felgas. Selecção: minha e do Humberto Reis. Fonte: "Os últimos guerreiros do império" (Amadora: Erasmo, 1995. 135-139)

Trata-se do Capº III de um relatório que o então coronel, comandante do agrupamento de Bafatá, enviou ao General Spínola, "então meu Comandante-Chefe, onde defendia que a concessão da independência à Guiné Portuguesa não iria agravar, antes pelo contrário, a situação em qualquer das outras Províncias Ultramarinas".

Nesse documento Hélio Felgas defendia igualmente o seu ponto de visat segundo o qual "só no campo político podia ser encontrada uma solução honrosa e vantajosa, já que as nossas possibilidades militares se encontravam muitos reduzidas", face a um inimigo que se fortalecera em demasia.

No capítulo III do relatório, o autor debruça-se sobre "as nossas possibilidades militares". Algunas das suas frases, merecm destaque:

"Não é com os actuais meios, mesmo reforçados, que podemos vencer o Inimigo de hoje".

"Ou se faz a guerra ou se acaba com ela. Assim é que não chegaremos a qualquer solução favorável".

"Há que abandonar radicalmente largos pedaços de território e concentrar os meios em áreas reduzidas que deverão ficar totalmente passadas a ferro".

"Há que empregar largamente os desfolhantes e outros agentes químicos que destruam as culturas".

"Ou se destrói tudo ou de nada serve a operação".

"Deve ou não deve a Aviação atacar e destruir estas tabancas e a sua população ? Valerá a pena um tal massacre ou não valerá? Isto é que é preciso saber (...)".

"Calculando, por baixo, os efectivos In na Guiné, diremos que ele tem 10 000 homens em armas (só combatentes). Nós temos 20000, mas uma boa parte é consumida nas guarnições dos aquartelamentos. Precisaríamos ter 60000, pelo menos. E, mesmo assim, a proporção seria de 1 para 6, o que, neste tipo de guerra, é ainda pouco".

"(...) o problema não é essencialmente militar. É acima de tudo, político".


As nossas possibilidades militares

Neste final de 1968 a situação militar na Guiné chegou a um ponto tal que só muito dificilmente e com muito optimismo se poderá antever uma melhoria significativa.
Nos gabinetes e em frente da carta talvez não seja difícil encontrar-se uma solução vitoriosa. Os cercos, as batidas, os golpes de mão, o reordenamento das populações e sua autodefesa, tudo isso é aí fácil de fazer. No mato, porém, é muito difícil, e quem escreve isto tem 3 anos de mato.

Mesmo que venham mais helicópteros, mais «paras», mais Artilharia e mais Aviação e ainda que os efectivos das forças terrestres sejam aumentados e estas sejam adequadamente dotadas com as granadas, munições e armas colectivas que agora lhes faltam, mesmo que isso suceda em breve prazo, nem assim o nosso êxito militar será garantido. O inimigo está demasiado bem armado, bem apoiado pela população, bem organizado e bem enraizado num terreno que lhe é favorável, para poder ser batido e expulso, pelo menos com a facilidade que se julga.

Realize-se uma operação em larga escala e veja-se o resultado: uns mortos e uns feridos (nossos e deles), umas armas apreendidas, uns acampamentos destruídos e que mais ? Mais nada. Se ao Inimigo não convier o contacto, basta esconder-se no mato e esperar que as nossas tropas se retirem. Ele lá ficará e reaparecerá quando quiser, talvez até emboscando as NT quando elas, julgando-se vitoriosas, regressarem aos aquartelamentos.

Aliás, o que se entende por uma operação em larga escala ? 4 on 5 companhias de forças terrestres, uma ou duas de «paras» e comandos e a Aviação. Que faremos com estes efectivos? Uma operação, mais nada. Alguns dias depois tudo estará na mesma.
Há dias, aproveitando um PCV de uma Operação, andei «à cata» de acampamentos inimigos. Descobriram-se 5 ou 6. Assim que eram descobertos chamava-se a Aviação que os bombardeava. Mas o que era a Aviação ? Era uma parelha de Fiats que lançava as suas bombas, aliás com grande precisão. no objectivo indicado pelo PCV. Ou então eram os T-6 (só um), igualmente com excelente pontaria.

E eu pensei: com estes pilotos, se em vez de dois Fiats tivessem aparecido 15 ou 20, outros tantos T-6 e uma meia dúzia de helis armados então sim, ter-se-ia feito uma acção lucrativa, em especial se fosse coordenada com o lançamento de uma companhia em helis.

Não é com os actuais meios, mesmo reforçados, que podemos vencer o Inimigo de hoje.
Em minha opinião, toda a actividade militar na Guiné tem de ser mudada. Há que abandonar radicalmente largos pedaços de território e concentrar os meios em áreas reduzidas que deverão ficar totalmente «passadas a ferro». A actual dispersão não pode dar qualquer resultado.

Ou se faz a guerra ou se acaba com ela. Assim é que não chegaremos a qualquer solução favorável.

Há que empregar largamente os desfolhantes e outros agentes químicos que destruam as culturas. De que serve atacar um acampamento In se a um quilómetro de distância ficaram tabancas e lavras que voltarão a ser utilizadas pelo In, apoiando-o e permitindo-lhe que lá se mantenha? Ou se destrói tudo ou de nada serve a operação.
O que e preciso definir bem é este problema da população civil sob controlo do In. Dezenas de milhares de nativos vivem nas regiões sob domínio do In, em tabancas perfeitamente visíveis do ar. Deve ou não deve a Aviação atacar e destruir estas tabancas e a sua população ? Valerá a pena um tal massacre ou não valerá? Isto é que é preciso saber, pois enquanto estas populações existirem o In aguentar-se-á, estruturar-se-á e estará em condições de nos incomodar.

For outro lado, convém, talvez, olharmos para o que se passa no Vietname - que tem bastantes semelhanças com a Guiné. Mais de meio milhão de norte-americanos extraordinariamente bem armados e auxiliados por 850000 soldados sul-vietnamitas. nao conseguem liquidar um adversário que conta apenas 140000 homens, dos quais só 80000 são tropas regulares do Vietname do Norte. A proporção é de 1 para 10, em forças terrestres. Além disso, o Vietcong e o seu aliado norte-vietnamês não utilizam nem Aviação nem Marinha e só apresentaram uma amostra de blindados.
Apesar desta desproporção, o Vietcong não foi vencido e esta prestes a vencer.
Na Guiné, o In não é tão bom combatente como o Vietcong e o apoio externo que tem recebido, agora importante, não se compara com o que a Rússia e a China concedem ao Vietcong. Essas são as duas principais diferenças que notamos. Aliás, em parte compensada pela deficiência dos nossos efectivos, do nosso armamento, da nossa instrução militar, do nosso apoio aéreo e naval.

Para podermos dominar a guerrilha na Guiné precisaríamos triplicar, pelo menos, os efectivos agora existentes nos três ramos das forças armadas. E mesmo assim ficaríamos longe da proporção viet-namita (que não foi suficiente, note-se, para se obter a vitória militar). Calculando, por baixo, os efectivos In na Guiné, diremos que ele tem 10 000 homens em armas (só combatentes). Nós temos 20000, mas uma boa parte é consumida nas guarnições dos aquartelamentos. Precisaríamos ter 60000, pelo menos. E, mesmo assim, a proporção seria de 1 para 6? o que, neste tipo de guerra, é ainda pouco.

Eu bem sei que quem não conhece o mato da Guiné, nem as dificuldades deste tipo de guerra, sente-se inclinado a considerar exageradas as minhas palavras. Infelizmente, tenho a certeza do que afirmo. Deixou-se o In inchar demais para se poder agora desalojá-lo com os meios que temos.

Esta afirmação pode parecer chocante, em especial para as pessoas que não conhecem o assunto com a profundidade que eu conheço. E com certeza que não me acarretará simpatias ou louvores, em especial por parte das pessoas que só gostam de ouvir aquilo que lhes agrade. É evidente que eu ficaria muito mais bem visto se traçasse o quadro da situação militar na Guiné, muito mais optimista, ainda que menos verdadeiro. Talvez até fosse louvado se afirmasse que a guerra na Guiné, tendo chegado ao ponto a que chegou, se pode vencer no campo militar e sem grande dificuldade.

Mas isso não o faço eu, até porque a euforia duraria pouco e seria, em breve, desmentido pelos factos. Eu desejo salientar que só pode mostrar-se optimista a quem conhecer a guerra da Guiné apenas do seu gabinete ou da sala de operações. Eu desejo afirmar que não estou imbuído de qualquer senti-mento derrotista. Continuo a demonstrá-lo no mato, mantendo uma actividade ofensiva a que não poupo os meus subordinados nem me poupo a mim. Mas o que acho é que chegou a altura de se dizer a verdade. E a verdade é que, na Guiné, estamos apenas aguentando a situação. Estamos à espera que o In adquira suficiente estrutura e capacidade militar para correr connosco. Limitamo-nos a espicaçá-lo e ao de leve. Mostramo-nos incapazes de o desalojar definitivamente seja de que área for.

E tudo isto porque não temos meios nem efectivos militares adequados e suficientes.
Mas ainda que os tivéssemos e que conseguíssemos empurrar o In em todas as frentes, até às fronteiras, que faríamos depois? Como conseguiríamos evitar novas infiltrações enquanto o Senegal e a República da Guiné derem a ajuda que dão ao PAIGC9 . A guerra no Vietname ensina-nos que o bombardeamento do Senegal ou do República da Guiné não resolveria o problema, pelo contrário, complicá-lo-ia. E isto porque o problema não é essencialmente militar. É acima de tudo, político, a guerra na Guiné só pode acabar se Portugal conseguir convencer o Senegal e a República da Guiné deixarem de auxiliar o PAIGC ou qualquer outro movimento cujo objectivo seja independência da Guiné-Bissau.

Não nos parece, porém, que em face da mentalidade internacional agora vigente, alguém bem informado considere possível Senegal ou a República da Guiné apoiarem a nossa política ultramarina. Porque só apoiando essa política os governos de Dakar e Conakry poderiam suspender o auxílio ao PAIGC.

Guiné 63/74 - P334: Os poetas da Guiné-Bissau (1): Julião Soares Sousa

Selecção de Jorge Santos.

Autor: Julião Soares Sousa

CANTOS DO MEU PAÍS

Canto as mãos que foram escravas
nas galés
corpos acorrentados a chicote
nas américas

Canto cantos tristes
do meu País
cansado de esperar
a chuva que tarda a chegar

Canto a Pátria moribunda
que abandonou a luta
calou seus gritos
mas não domou suas esperanças

Canto as horas amargas
de silêncio profundo
cantos que vêm da raiz
de outro mundo
estes grilhões que ainda detêm
a marcha do meu País

In: "Um Novo Amanhecer". Coimbra: Livraria Minerva.1996.

Nota encontrada na Net sobre o autor:

"The author is a native of Bula, República da Guiné-Bissau. In 1990 he contributed to the review A Gália of the Associação Galaico-portuguesa da Língua (Santiago), and the newspaper A cabra. He has also contributed poetry to Journal da Maia. At the time these poems were published the author was Coordenador Geral do Grupo de Reflexão e Debate / África, located in Coimbra. A student of history specializing in Portuguese expansion, he was active in the Estudantina Universitária de Coimbra from 1992".

Fonte: RICHARD C. RAMER > Old & Rare Books > RECENT PORTUGUESE PUBLICATIONS BULLETIN 19 > October 1999

Guiné 63/74 - P333: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (2) (João Tunes)


Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969:

Um dos grupos de combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade . De pé, na terceira fila, os furriéis milicianos António Levezinho e Humberto Reis, membros da nossa tertúlia. Os soldados, do recrutamento local, eram fulas e futa-fulas. Estes, em geral distinguiam-se dos restantes pela sua elevada estatura. A CCAÇ 12 fazia parte da "nova força africana" e, por sugestão do próprio Spínola, ficou afecta à Zona Leste (que correspondia, grosso modo, ao chão fula).

© António Levezinho (2005)

Camarada Luís, nosso Cmdt em Chefe do "Nosso Blogue",

Li com toda a atenção o texto do nosso camarada José Neto sobre a questão da diferenciação/divisão étnica. Penso que percebi a intenção nobre das suas palavras. Sobretudo sábias quando relativiza, e muito bem, a constituição de qualquer forma de hierarquizar superioridades ou inferioridades étnicas. Mas julgo que não me será levado a mal se disser que, no essencial, respeitando e admirando o seu espírito pacificador, discordo dele. Sobretudo, quando diz:

"É hora de ajudarmos os guineenses a alhearem-se das suas divisões ditas culturais e prosseguir o seu destino com as PESSOAS que constituem o seu povo. Isto de "respeitem os meus", "os outros são uns malandros" não leva a lado nenhum. Nós já há muito que esquecemos os Celtas, Vândalos, Suevos, Iberos e outros que tais que povoaram este cantinho da Europa, onde continuamos a fazer força para "entrar"."

A diversidade étnica da Guiné, tendo para mais em conta o elevadíssimo número de etnias concentradas num pequeno território, é um problema, mas também um bem. Um mal, porque é favorável, ainda nas suas condições sócio-económicas locais, mais à divisão e aos egoímos do que à consolidação da unidade nacional. Um bem, na medida em que enriquece o mosaico cultural e usos e costumes da Guiné e exprime a força das persistências culturais e sociais das várias etnias ali presentes e que souberam, face à ocupação militar portuguesa e á proximidade de etnias muito diferentes, preservar as suas culturas e os seus hábitos.

E julgo que o "milagre" desta permanência de vizinhanças, mantendo-se intocáveis as endogenias próprias de cada etnia, foi possível pela conjugação de dois factores - a unificação de salvaguarda perante o ocupante europeu (quando ele existiu); o país ser pobre (não propício a processos de acumulação capitalista e á consequente estratificação social) e, simultaneamente, o terreno ser de tal forma fértil que os mais desvalidos não correm o risco de serem derrotados pela fome (a doença é o grande "exterminador").

O fim da ocupação portuguesa levou os guineenses a terem de resolver, entre si, dois problemas (novos mas que já existiam no seio da guerrilha):

- Por um lado, a questão dos "caboverdianos", cuja supremacia, pela sua escolarização, se manifestava - no lado colonial - pela sua ocupação dos lugares administrativos do aparelho de domínio colonial, e, na guerrilha, por ocuparem os maiores lugares de destaque entre os quadros destacados do PAIGC e, na altura da independência, serem os com melhores condições para substituírem os portugueses nos comandos do aparelho do Estado. Sabe-se como o problema foi "resolvido".

- Segundo, como, "resolvido" o primeiro, se iam arrumar as várias etnias em termos de prevalência social, contando aqui a superioridade numérica forte de uma das etnias (com um correspondente peso no aparelho militar) face a outras, com hábitos e tradições de se auto-atribuírem finalidades aristocráticas na escala de valores infra-africanas. Ao mesmo tempo que tinham de se entender com a afirmação virgem de um espírito de unidade nacional, por si próprios, desaparecido que foram os factores "unificadores" quer da oposição ao ocupante colonial e, depois, liquidada a "supremacia caboverdiana".

O domínio colonial tudo fez, dividir para reinar, para explorar e acirrar os conflitos infra-guineenses. A "psico" tentava virar as populações indígenas e os guerrilheiros contra os "chefes caboverdianos" do PAIGC; dava um claro favorecimento às etnias islamizadas (sobretudo, os fulas) por considerar que, por via dessa influência religiosa, seriam mais relapsos a aceitarem os fundamentos ideológicos do PAIGC, com maior capacidade de penetrarem no comunitarismo próprio das etnias de cultura animista (e não foi por acaso que o PAIGC penetrou mais profundamente nas regiões balantas e menos nas regiões fulas).

Entretanto, o assassinato de Amílcar Cabral, com as batutas e os dedos da Pide e de Spínola, foi possível como fruto das divisões inter-étnicas e da aversão aos caboverdianos que a "psico" conseguiu transportar para o campo inimigo. Uma das nossas heranças que ficaram na Guiné, foi essa.

A unidade nacional não se decide nem se decreta. É mais uma questão de tempo que de vontade. E de condições sociais, políticas, culturais e económicas, umas objectivas e outras subjectivas. O exemplo da "uniformidade" portuguesa, que o camarada José Neto invoca, não colhe, porque uma excepção nunca vale para valer como regra. Olhe-se aqui, para o lado, para os espanhóis. Para os belgas, os suíços, os franceses, os da Grã-Bretanha, os italianos, os jugoslavos, por aí fora. E como é nada (tirando a moeda e a liberdade de circulação de pessoas e mercadorias) a identidade e a unidade europeias.

Portugal, no quadro europeu, por razões que se podem discutir mas que levavam a uma outra conversa larga, é um caso quase único, verdadeiramente excepcional, beneficando da uniformidade longeva das fronteiras e do expansionismo ultramarino e migratório que aliviou tensões internas. E se o caso português não serve como exemplo para a Europa, como podia funcionar para África? Quando, exactamente, a herança que lá deixámos foi a do acirrar rivalidades para impedir o espírito de unidade nacional que nos era um factor adverso (em termos de domínio colonial e de actuação militar) e uma pedra de toque da ideologia independentista?

Voltando ao bem que é a riqueza da diferenciação étnica da Guiné. Se for possível, não sei se é, nem sei se não é, seria óptimo para os guineenses e para o mundo, que em vez de um quadro uniforme de africanos engravatados, de pasta numa mão, computador na outra e telemóvel ao ouvido, eles não perdessem a sua enorme e polifacetada riqueza cultural das suas diversidades e raízes.

De qualquer forma, tudo o que se faça para um povo se "alhear" das suas realidades, imprimindo-lhe uma uniformidade não aceite, é chover no molhado. É adiar e agravar o problema. Que só é problema se não for sublimado culturalmente e quiser serresolvido pela força das armas (o que, infelizmente, tem acontecido vezes demais). De qualquer forma, é um problema (até de soberania cultural) que só os guineenses devem e podem resolver.

Nós, portugueses, não temos nada para "ajudar" (deixámos maus exemplos e péssimas heranças, não temos "psico" para ajudar á festa). Persistir na ideia de "ajudar os guineenses" a resolver os seus problemas políticos é, parece-me ser, um paternalismo retardado. Perdemos essa oportunidade nos séculos que lá estivemos, e em vez disso, trouxemos escravos e o amendoim, dividimos e metralhámos. Agora, resta cooperar e confiar na sua capacidade de que resolvam, entre si, os seus problemas de diferenças. Desejando-lhes o melhor, é claro.

Abraços a todos os camaradas tertulianos.
João Tunes

Guiné 63/74 - P332: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (1) (A. Marques Lopes)

Guiné > Cacheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968 > "Os Jagudis", o grupo de combate do Alferes Lopes :

"Na altura, o General Spínola deu indicação para se dividir a companhia em pelotões de acordo com as etnias (o tirar partido das rivalidades entre eles). Como eu era o alferes mais antigo, o comandante da companhia perguntou-me o que é que eu queria: 'Quero os balantas', disse eu. E o meu grupo de combate foi quase todo de balantas (tinha um cabo fula, o Mamadu, e três furriéis brancos, além de mim). Ouviam a rádio do PAIGC mas demo-nos sempre bem. Porque eu sempre fiz por isso. Por exemplo: um dia, fui com um que estava doente através da mata até Bigene, porque em Barro não havia médico; emprestei dinheiro a todos, mas todos me pagaram quando me vim embora"...

© A. Marques Lopes (2005).


Caros camaradas:

Percebo as intenções daquela monografia do EME- Estado Maior do Exército que o Sousa de Castro (1) nos trouxe ao conhecimento (as intenções do EME , as do nosso camarada também sei que foi o seu inestimável papel de informação de todos nós sobre como as coisas eram e como se gizaram para nos fazer estar lá): foi, com certeza um documento que chegou aos escalões superiores, não creio que tenha chegado aos alferes nem aos outros, pelo menos nunca tive informação de nada do género (eu não estava em 1971, mas é natural que tivesse havido mais coisas idênticas...).

Era o elemento para o trabalho psicológico dos mais responsáveis, para a sua actuação junto da população, para o tratamento e saber que partido tirar junto de cada etnia. Não vejo mal nisso como método, pelo contrário, acho que eram fundamentais acções desse género, é dos livros: há que conhecer o meio em que nos movemos.

De um modo geral estou de acordo com o documento, sobretudo nos aspectos da organização sociológica de cada etnia, dos usos e costumes de cada uma, das vivências e relaçõe internas, do passado e conflitos históricos entre elas. Creio que tudo isso foi tirado de trabalhos de investigadores e historiadores da época mais remota do colonialismo. E seria assim na altura, não tenho dúvidas.

Já as tenho quando se transmitiu, intencional ou intencionalmente, não sei, ideias já não acertadas, em minha opinião, sobre o comportamento individual dos elementos de cada etnia. Possivelmente, a transmissão dessas ideias, vindas do colonialismo antigo, não teve em conta que durante os anos da guerra alguma coisa mudou no comportamento das populações, que pela situação em si quer pela própria acção político-pedagógica do PAIGC. Transmitiram-se, como diz o Luís Graça, alguns estereótipos já não consentâneos com a realidade.

Alguns exemplos da minha experiência:

- como já vos disse num dos meus posts anteriores, dos mais antigos, quando me foi dado escolher, escolhi os balantas para o meu pelotão em Barro; porque sabia que trabalhavam de sol a sol nas bolanhas, uma práctica adquirida nos tempos em que foram escravizados pelas etnias islamizadas, ainda antes da chegada dos portugueses à Guiné, eram esforçados trabalhadores; porque sabia da sua frontalidade, se gostassem de mim mostravam, se não gostassem eu também o veria - mas gostaram de mim; ladrões? também ouvi falar nisso, e não digo que não seja essa a sua tradição "com a consciência de um acto não criminoso", como diz a monografia, no entanto, também vos contei num post anterior, emprestei dinheiro a todos quando estive em Barro e, quando me vim embora, todos me pagaram - certamente uma situação diferente da "manifestação de perícia própria da tribo";

- mas tinha no meu pelotão um cabo fula, o único, o Mamadu, um grande amigo meu e amigo de todos, na paz e na guerra; o Lamine Turé, um guineense do meu pelotão em Geba, era fula e grande guerreiro, ficou ferido quando eu o fui; preguiçosos, os fulas? penso que se referem, sem explicações, à situação decorrente dos cânones da sua religião: o homem manda, tem profissões dignas (ourives, ferreiro...), a mulher trabalha no campo (na bolanha...), por isso eles estão à porta da morança, na sua arte, ou a falar e a jogar, e a mulher (ou mulheres) a trabalhar;

- quanto aos felupes, Susana, Varela e também da zona de S. Domingos, entrando pelo Senegal, é verdade que eram conhecidos por terem hábitos guerreiros característicos: cortavam a cabeça do inimigo, seccionavam a calote superior do crâneo e bebiam por aí o sangue do morto, como forma de adquirirem as suas potencialidades; com arco e flechas, alguns dos incluídos nas tropas portuguesas eram mais temíveis em acção do que com G3; quanto a casamentos, a felupe que casou com Luís Cabral (caboverdeano) deve, então, ter cometido uma "falta muito grave"...

Há diferenças, evidentemente, e por alguma razão tem havido acusações de tribalismo em várias situações conturbadas da Guiné-Bissau. O próprio Amilcar Cabral escalpelizou essas diferenças no livro "Unidade e Luta" e apontou caminhos para o seu encontro.

De um modo geral, acho que aquela monografia dá uma ideia, para quem não sabe nada. Terá sido esse o objectivo.

A. Marques Lopes
__________

(1) E-mail posterior (9.12.2005) do Sousa de Castro: "Não há dúvida nenhuma que a minha intenção foi informar a tertúlia do que se escrevia na época, nem me incomoda se alguns tertulianos estão de acordo ou não, nem tenho conhecimento nem vivência para poder opinar sobre esta pequena monografia. Esta brochura foi distribuída a todos os combatentes que embarcaram, em Janeiro de 1971, mas não me recordo se foi no RAP 2 ou nos ADIDOS em Lisboa. De qual quer modo dentro de algum tempo vou enviar mais um capítulo desta pequena monografia".

quinta-feira, 8 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P331: Do Pel Caç Nat 51 aos demónios étnicos que atormentam o povo da Guiné (José Neto)

1. Texto do nosso amigo e camarada José Neto (2º sargento da CART 1613, Guileje, 1967/68; hoje capitão reformado):

Meu caro amigo Luis Graça:

Acabo de ler o arrazoado sobre Manjacos, Felupes e por aí fora. E chamo-lhe arrazoado pelo seguinte:

Muito cedo, aos 21 anos, fui para Macau como Soldado de Artilharia. Naquela cidade maravilhosa adquiri instrução e aprendi a conviver com pessoas que tinham da vida uma visão diferente da que me fora ensinada. Note que, ao tempo, da guarnição faziam parte dois Batalhões de Moçambicanos, que entre si se denominavam por Landins e Macuas. Dizia-se que eram rivais em África, mas ali eram militares e apenas disputavam o aprumo com que serviam o Exército Português.

Vim de Macau (empurrado pelos Decretos) dez anos depois, com o posto de 2º sargento, casado com a filha dum camarada (metropolitano), uma filha com 17 meses e uma riqueza interior que, modéstia à parte, não encontrei na generalidade dos meus camaradas de cá.

Quatro meses depois (1962) avancei (... em força) para Cabinda e lá encontrei os Cabindas e os Mossorongos. Diferentes... iguais, isso nunca me incomodou.

Em fins de 1966 calhou-me a Guiné.

Em 1970 aí vai o seu amigo para Angola, já 1º sargento e aprovado para ir ao Curso de Oficiais em Águeda (ECS). Em Calunda, que fica naquele pequeno rectângulo que o mapa de Angola tem à direita, encontrei de tudo. Numa tribo mandavam os homens, noutra as mulheres, uns eram indolentes, outros diligentes, enfim a África era assim. E agora apetece-me perguntar: E a Europa é diferente?

Voltemos à Guiné.

Ali só privei com Fulas, de Buba, Colibuia, Cumbijã e Guilege (Guiledje). Islamisados, inteligentes, sobrevivendo com muito engenho e, principalmente, de sorriso aberto e franco.

Tive o privilégio de, com o meu Capítão (Eurico de Deus Corvacho), ser recebido, em Aldeia Formosa, pelo senhor Cherno Rachide, o chefe espiritual daquela zona que se estendia para além da fonteira (1).

Fiquei impressionadíssimo com o porte e as palavras sábias que nos dispensou. Na despedida apenas nos disse (em francês!!!): "Procurem não maltratar o meu povo".

Em Guilege fui amigo (repito: "amigo") do Régulo porque tinhamos um traço comum: Ele também esteve em Macau, fazendo parte (como soldado) duma companhia guineeense para ali destacada no fim da II Guerra Mundial. Era um chefe inteligente e de poucas palavras.

E também tive em Guilege uma "caldeirada" chamada Pelotão de Caçadores Nativos nº 51. Era comandado por um Alferes Miliciano (Perneco) e os furriéis e cabos eram metropolitanos. Eram cerca de trinta soldados de várias etnias (cá estão as malfadadas etnias) e criavam-nos mais problemas que os duzentos e tal transmontanos, minhotos, beirões e algarvios. Esquecia-me que também tínhamos três alentejanos.

Aquele Pelotão era uma pequena amostra do que é hoje a República da Guiné Bissau.

E por fim a minha opinião: É hora de ajudarmos os guineenses a alhearem-se das suas divisões ditas culturais e prosseguir o seu destino com as PESSOAS que constituem o seu povo. Isto de "respeitem os meus, os outros são uns malandros" não leva a lado nenhum.

Nós já há muito que esquecemos os Celtas, Vândalos, Suevos, Iberos e outros que tais que povoaram este cantinho da Europa, onde continuamos a fazer força para "entrar".

Cumprimentos do
Zé Neto.
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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)

(2) Que dizer deste comentário de um homem vivido e sábio como o Zé Neto ? Apenas reforçar a sua sugestão: o que importa são as pessoas... E é com cada um dos guineenses, com a sua individualidade como pessoa, que a Guiné-Bissau vai construindo o seu futuro e ainda vai ser um grande país... Aqui fazemos força por isso.
L.G.

Guiné 63/74 - P330: Cartas que nunca foram postas no correio (1): Em Bissau, longe do Vietname (Luís Graça)


Guiné > Zona leste > Bambadinca > 1969 > O ex-furriel miliciano Henriques, atirador de armas pesadas, da CCAÇ 12 (1969/71) : "Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!"...

© Luís Graça (2005)


1. Tenho algumas cartas que fui escrevendo, no meu Diário de um Tuga, dirigidas a amigos, mas que nunca cheguei a pôr no correio. Por lassidão. Por cansaço. Mas também por receio de correr riscos, desnecessários. Nunca soube até que ponto a PIDE/DGS me vigiava, nos vigiava.

Se bem me lembro, eu era o único tuga, da CCAÇ 12, em Bambadinca, que recebia o Notícias da Amadora e o Comércio do Funchal, jornais conotados com a oposição ao regime de Salazar-Caetano. O Marques, por sua vez, recebia a Seara Nova. Não era nenhum crime de lesa-pátria nem punha o regime em perigo. Afinal, eram jornais sujeitos a censura (o exame prévio, que eufemismo!). Circulavam legalmente… e até chegavam à Guiné, pelo serviço postal militar (SPM).

Na época, poucos de nós se interessavam por política. De resto, quem se interessava por política era do reviralho, alguns grupos e grupúsculos (intelectuais e estudantis, católicos progressistas, organizações clandestinas, ligadas à esquerda e à extrema-esquerda…). Tínhamos todos nascidos no Estado Novo e sido formatados pelo Estado Novo… Quem se poderia interessar por política ?

Não obstante a efémera primavera marcelista e as mudanças de cosmética no aparelho repressivo, o país começava, perigosamente, a descomprimir-se… A contra-cultura e a contra-ideologia instalavam-se no quotidiano, nas empresas, nas instituições e até nas forças armadas… Era o famoso “espírito dissolvente”, denunciado pelos espíritos mais lúcidos e ultraconservadores do regime.

Chegavam-me, à Guiné, alguns ecos dos movimentos estudantis e as lutas operárias de 1969… Era preciso ler as notícias nas entrelinhas. De qualquer modo, começava-se a perder as ilusões sobre a natureza do regime, sob o consulado de Marcelo Caetano (que tinha estado na Guiné em Abril de 1969). E alguns de nós começavam a ter a consciência do beco sem saída a que nos conduzia a guerra colonial. Na campanha eleitoral de Outubro de 1969, a oposição ao regime defende o direito à autodeterminação das colónias… Em 1966, eu já lutava por fim da guerra, mas sabia que lá iria parar, a Angola, a Moçambique ou à Guiné… Em 1969 eu deveria ser dos poucos militares, em Bambandica, que estava recenseado, tendo inclusive exercido o meu direito de voto… Eu, o meu capitão e poucos mais…

Sempre fui um outsider. Não estava ligado a nenhuma rede ou organização política da chamada oposição democrática. Por me manifestar, a título individual, contra a guerra colonial e expressar as minhas simpatias pelo PAIGC, chamavam-me o Soviético. A alcunha foi-me posta, creio eu, pelo Sargento Piça, o sargento mais bacano que eu conheci na tropa. Uma amizade feita de muitas cumplicidades e muitos copos. Era o nosso pai e o irmão mais velho. Devia andar pelos seus 37 anos, tantos quantos os do nosso capitão Brito, militar de carreira, um bom homem…

2. Publico hoje uma carta que escrevi, de Bissau, a um dos meus amigos... Ao fim de nove meses de comissão, desenfiei-me e fui até Bissau. Tínhamos uma espécie de acordo tácito, nós, os milicianos e o sargento Piça, que nos arranjava a guia de marcha. Todos os pretextos era bons, médicos ou não médicos, para se fugir do Vietname: o mais vulgar, era “ir Bissau mudar o óleo” (sic), tratar dos dentes, marcar a tão sonhada viagem de férias à Metrópole, enfim, beber uns copos, espairecer as ideias…

Tínhamos chegado à Guiné em finais de Maio de 1969. Ao fim de menos de nove meses, era já precária a nossa saúde física e mental… Trinta e cinco anos depois, posso revelar a quem era destinada a carta que nunca chegou ao seu destino: era para o meu camarada e grande amigo Levezinho, o Tony Levezinho, furriel miliciano como eu na CCAÇ 12…

O Tony fez há dias 58 anos, no dia 24 de Novembro, no seu retiro algarvio, lá para os lados de Sagres… É uma surpresa que eu lhe faço, mesmo que ele estranhe o tom desta carta… É também um pequeno gesto de homenagem e de amizade, para com ele e a Isabel que eu , na época, só conhecia de fotografia. O Tony veio de férias à Metrópole, e casou, a meio da comissão, deixando a pobre Isabel candidata a viúva... Bom, ele nunca suspeitaria da existência desta carta que eu, pela minha parte, imaginei mandar-lhe como se ele estivesse na… Metrópole, longe do Vietname

É uma carta insólita para um camarada, no sentido etimológico do termo: o que dorme no mesmo quarto, na mesma camarata… Devo dizer que já não me recordo de quantos dias andei desenfiado em Bissau, longe do Vietname.. Possivelmente uma semana, não mais… O Levezinho conhecia Bissau, tão bem ou tão mal como eu…Neste acaso, utilizei-o apenas como um simples interlocutor imaginário para uma conversa imaginária… Em condições normais, em Bambadinca, eu nunca faria (in)confidências deste género. Por pudor, simplesmente por pudor.

Este texto está datado, vale o que vale e algumas das suas expressões mais duras podem ferir, mesmo ainda hoje, algumas sensibilidades… Em resumo, não poderia subscrevê-hoje, tal como foi escrito há trinta e cinco anos… Mesmo assim, apeteceu-me divulgá-lo. Julgo que pode ter algum valor documental.

Espero que os meus amigos e camaradas de tertúlia, a começar pelo Tony, sejam condescendentes comigo.


Diário de um Tuga > Bissau, far from the Vietnam. 10 de Fevereiro de 1970:

Meu caro L.

Gostaria de falar-te de Bissau, cidade lumpen, e da sua morna dolce vita, em termos não propriamente de desencanto mas de desmistificação, a ti que ficaste no Vietname… E com palavras que fossem como ácido sulfúrico na pele!... Receio, porém, que a minha crueldade não chegue a tanto (que a realidade, essa, é requintadamente sádica, grotesca, como as telas de Brueghel ou do Goya!) e que não passe, afinal, de azeda esta carta que daqui te envio, aproveitando o macaréu da minha neurastenia e uns fugazes dias de liberdade vigiada. Daqui, da esplanada do Pelicano, frente ao estuário do Geba, rio tragicamente belo, insubmisso como os povos que habitam as suas margens!...

Bissau revisitada… Devo, antes de mais, confessar-te que, se acaso fugi da Guiné por uns dias, nem por isso deixo de sentir-me perseguido pelo seu fantasma. Sabes como é (ou, pelo menos, deves imaginar): uma incómoda sensação de estado de sítio (que nada tem a ver com a insularidade – aliás, pouca gente sabe que Bissau fica numa ilha), agravada, para quem aqui vegeta, pelos fantasmas dos foguetões que ainda há tempos flagelaram Bolama, a antiga capital colonial…

Bissau, cidade-caserna, cidade-bordel!... Para quê falar-te do tráfego (e do tráfico!) de carne branca sem qualquer carga erótica para lá do fetiche da cor da pele ?! De qualquer modo, o contrabando do sexo é negócio que vai de vento em popa - aqui funcionam as leis do mercado, a procura é muita e a oferta é variável ! – a par da quinquilharia oriental e sobretudo dos produtos nipónicos que ultimamente invadiram os free-shops cá do sítio, desde os Gouveia aos Taufik Saad, para quem o amendoim, o coconote e os panos de chita já foram chão que deu uvas… Enfim, o comércio da guerra e a guerra do comércio, uma parelha que sempre se deu bem em toda a parte!

Para quê falar-te dessas prostitutas que naufragam em todos os portos onde cheire a merda, a morte e a soldadesca, fugidas da miséria das ilhas de Cabo Verde e dessas outras ilhas de Lisboa e do Porto ?! Ou ainda dessas fêmeas, balzaquianas, que os tropas do ar condicionado mandaram vir da Metrópole e que passam, sequestradas, nos Wolkswagen e nos Mercedes pretos, conduzidos por soldados africanos – insólita imagem de jovens eunucos negros, subsaarianos, guardando as velhas odaliscas nos haréns dos sultões das Arábias!...

Guiné-Bissau > Bissau > 1996: Aspecto (degradado) do Pelicano que em 1970 era o melhor café-esplanada de Bissau

© Humberto Reis (2005)

Não suporto, aliás, a visão desse branco asséptico, dessa cor neutra das metropolitanas cujo tom de pele tem qualquer coisas de viscoso como as paredes dos hospitais… Receio até que esteja a tornar-me racista ao contrário ou a caminhar para a misoginia, como aquele prisioneiro que, ao sair de Auschwitz, não conseguiu sequer beijar a mulher porque tinha horror a tudo o que era humano…

Decididamente não queria falar-te de mulheres (e, muito menos, das brancas que, aqui, no cu do mundo, povoam os nossos delírios palúdicos)… Mas como não, se elas são o único antídoto contra a angústia da morte ?!... As paredes das nossas casernas no mato estão forradas de posters de gajas nuas, loiras, de olhos azuis, formas esculturais e pele acetinada, que é “para um gajo não se esquecer da carne branca” (sic)…

Em contrapartida, a pomada antivenéria (e, claro, a penicilina, em doses de milhões) é o que mais se gasta nos nossos postos de caserna. O bordel é talvez a única instituição castrense verdadeiramente respeitável… Mas se os franceses mandavam para a Argélia putas de campanha juntamente com os seus legionários, nós, tugas, não temos esse problema: fornicamos sem preconceitos raciais, ou não fossemos “um país, muitos povos, uma só Nação”!...

Imagina, pois, Bissau como estância de repouso do guerreiro. Há aqui, de certo, um equívoco, um tremendo equívoco por parte do médico miliciano, que até é um gajo porreiro, capaz de dar umas baixas aos operacionais, não obstante as ameaças veladas do comandante de sector… Mas eu estou farto dos gajos porreiros, como ele, que joga bridge com os cabrões dos oficiais superiores, apostados em ganhar a guerra (leia-se: os próximos galões) à custa de ti, de mim e da nossa tropa-macaca… É que Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!...

De qualquer modo, para além duns furtivos raides ao Pilão, as únicas operações que aqui se realizam ainda são do tipo gastronómico. Enfim, a nossa velha filosofia epicurista segundo a qual o melhor que se leva desta vida é ainda o que se come e o que bebe. Eis-nos, portanto, tristemente reduzidos ao ciclo vegetativo , ou seja, aos camarões, às ostras e às verdianas (sim, por que essas pretas de 1ª, na nossa linguagem machista e racista, também são coisas que se comem!)…

Quanto ao Pilão, como escrever-to ? É a grande tabanca, o grande muceque de Bissau, um verdadeiro gueto, um enorme abcesso putrefacto produzido pelo colonialismo e pela guerra, e onde frequentemente explodem as tensões raciais e étnicas.

O Pilão é o lumpen… Daí as recomendações que te fazem ao chegares aqui - lembras-te ? -, à mistura com histórias mirambolantes, pouco ou nada verosímeis, de cabeças cortadas à catanada:
- Ao Pilão nunca vás sozinho, sobretudo à noite. Os gajos são todos turras. E com as verdianas, muito cuidado, menino, que as filhas da puta já nasceram todas esquentadas! - avisou-me um furriel fotocine, no Chez Toi, uma espelunca de 3ª classe com pretensões a night club, onde os tropas de galões dourados redescobrem o gosto civilizado do champagne francês (marado…), bebido com uma pin-up ao colo, como em qualquer bar rasca, de alterne, na Reboleira do J. Pimenta…

Descobri, entretanto, que o gajo – o fotocine – não passava de um proxeneta, nas horas vagas:
- É, claro, se quiseres, tens aqui coisa fina… Pró carote, já se vê..

Trata-se de um safado miliciano, como tantos outros que estão aqui na guerra do ar condicionado, afilhados de padrinhos com boas relações no Terreiro do Paço. Cabrões que conhecem a Guiné au vol d’oiseau, de helicóptero ou de Dornier. Felizardos que passam fins de semana nas praias da Ilha de Bubaque. Gajos para quem Buba ou Bambadinca, Guileje ou Piche são tudo cartões de visita exóticos: apenas sabem vagamente que fica lá no mato, no Vietname, de preferência longe de Bissau…

Quanto ao resto, meu caro, é aquele ritmo burocraticamente febril duma cidadela militar, tradicional reduto da presença dos tugas desde finais do Séc. XVIII, simbolizado no forte da Amura. Há tropa por todo o lado, com particular notoriedade para a tropa especial aqui aquartelada – comandos, paras e fuzos – que entre duas viagens de helicóptero, ou de lancha de desembarque, na ociosidade destes dias e noites escaldantes de Bissau, se pavoneiam pelas esplanadas, de tomates inchados, apalpando o cu das bajudas, olhando por cima do crachat a tropa-macaca ou provocando-se mutuamente, por excesso de adrenalina ou por velhos ressentimentos corporativos…

O tráfego de viaturas e aeronaves é intenso mas só dificilmente nos apercebemos de que Bissau é o centro motor dum país em guerra. O melhor é tu postares à entrada do Hospital Militar e contares os helicópteros que aterram na placa…

À noite, entretanto, c’est le vide: os únicos noctívagos ainda são aqueles que vêm do mato e que sofrem da fobia do arame farpado: é vê-los até às tantas da madrugada, à mesa das esplanadas, empanturrando-se de ostras e de cervejas e contando histórias do mato. Mas em vão o guerreiro, em cura de repouso, busca outra atmosfera em que o oxigénio não esteja carregado das toxinas da angústia e da lassidão… A menos que, no dia seguinte, tenha passagem marcada para a Metrópole… Ele vem da guerra e para a guerra há-de voltar, de avião ou de barco, já que não há praticamente ligações terrestres de Bissau para o resto da Guiné. De qualquer modo, os que vêm do Vietname, ainda são as espécies mais curiosas da fauna humana que vagueia por esta capital-fantasma.

De facto, aqui desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos…

A propósito, como os tempos mudam, meu caro!.. Em conversa com um sargento de cavalaria que teve o Velho como comandante de batalhão no Norte de Angola – conversa a que ocasionalmente assisti -, o Capitão P. (que eu não sei, nem me interessa saber, se é miliciano, ou se é do quadro, ça c'est m´égale!), mostrava-se vexado (o termo é dele) pelo facto do então tenente coronel ameaçar executar, in loco, sumariamente os guias nativos que mostrassem a mais pequena hesitação na escolha dos trilhos ou os carregadores que deliberadamente deitassem fora a água dos jericãs...

- E agora, como Com-Chefe na Guiné, não permitir sequer que se toque no cabelo de um preto!

Bissau, enfim, porto de fuga e salvação!... Embora não se possa exactamente prever até onde tudo isto irá parar, com a actual escalada da guerra, de parte a parte, aqui tu tens ao menos a reconfortante sensação de teres as malas sempre feitas, pronto a partir em qualquer altura… Mas nada te garante que embarques a tempo: é que estamos todos metidos num atoleiro e em vias de perder o último avião!...

Make love, not war. Um abraço. Até mais logo. Talvez apanhe o barco da Gouveia, amanhã. Já estou farto desta merda.

Henriques [Luís Graça] (*)
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(*) Ex-furriel miliciano da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

Guiné 63/74 - P329: Brá, SPM 0418 (2): Memórias de Colina do Norte (Virgínio Briote)

Guiné > Bissau > Comandos perfilados frente ao Palácio do Governador

Em Brá nasceram os primeiros comandos da Guiné, organizados em grupos e depois em companhia. Estes comandos, de primeira geração (ou os "velhos comandos") antecederam a primeira companhia de comandos metropolitana, formada em Lamego, e aqui chegada em Junho de 1966 (3ª CCmds). Na época era Governador Geral o brigadeiro Schultz , promovido a general em 5 de Setembro de 1965.

© Virgínio Briote (2005)


Viva Luís,

Tenho estado à espera que mais camaradas apareçam, de outras paragens. A Guiné era pequena, mas foi muito grande para os que por lá andaram, passou por lá tanta gente, tanta coisa aconteceu em treze anos. Quantos passaram por lá durante esse tempo todo, alguém sabe?
E ao recordar aqueles tempos, pergunto-me se estou a ser correcto, politicamente falando, claro.
Estou de serviço, tenho que andar para a frente.
Aqui vão mais algumas histórias.

Um abraço,
vb
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Memórias de Colina do Norte (1)

4. DIÁRIO

Lulas, sardinhas, atum, carnes frias, lulas, sardinhas, sardinhas e lulas, assim há 3 semanas. Não tenho direito a reclamar, com tão pouco tempo ainda! Nem me quero ver contaminado por este ambiente, dizer mal de tudo e de todos os que cá não estão.

O Didi veio agora de férias da metrópole. É pá, guerra é aqui! Em Lisboa não querem saber de nada, apenas os que têm familiares aqui se preocupam alguma coisa. Querem lá saber da maralha! Mesmo os gajos do QG, em Bissau! Deve ser do ar condicionado, arrefece-os tanto que até se esquecem de nós.

Estou aqui há pouco mais de dois meses, ainda só ouvi tiros da minha G3, quando a estive a experimentar, levo uma vida pacata, sem problemas até agora. Só a calma é que é excessiva. Um intervalo na minha vida, passo os dias a olhar para a rua cheia de pó, o nariz cheio de catinga , o ar abandonado de todos, tudo precário.

Há dias dei por mim a lembrar-me de um artigo qualquer que li, em tempos, sobre a entrada dos portugueses na 1ª Guerra Guerra. O entusiasmo dos políticos, Portugal não pode ficar de fora, Portugal tem que fazer parte do esforço na guerra contra os boches , não pode deixar de pensar nas colónias, como então chamavam a estas terras. Depois, roupas de verão para o inverno das Flandres, o desastre de La Lys. Quem pagou? As tropas, claro. Uma mortandade, os gases, as amputações, as vidas desfeitas! Despacharam-nos para a terra, nunca mais quiseram saber deles. Vai acontecer-nos aqui o mesmo? Talvez não, os turras também não são os boches, pelo menos para já.

Estou a escrever estas coisas, para quê? Sempre as mesmas opiniões, sempre sem solução. Mas isto não é um sonho, isto está mesmo a passar-se!

Prometi-me quando cá cheguei, fazer um esforço pelo menos, evitar revelar os meus piores momentos, que os iria certamente ter. Há tão pouco tempo ainda e já vejo em mim sinais que eu vejo nos outros. Afinal, não resisti nada, estou a olhar para mim e vejo o meu moral a rastejar.

Se se vêem livres disto! É o que se ouve desta gente, a toda a hora. Estendidos nas tarimbas, mosquiteiros fechados, uns por cima dos outros, falam alto das amizades, da velha mãe, do pai seco de fome, da jovem mulher a labutar como uma moura, dos filhos que conhecem da fotografia, de tudo o que deixaram no Alentejo deles.

Custa-me entrar no celeiro, dou a volta por fora, sento-me nas traseiras numa cadeira indígena, com a mata em frente. Olho o céu exuberante de luz, tanta que nem preciso da lanterna.

Lembro-me da Barca do Lago, do rio Cávado a correr devagar, sem vontade de se perder no mar, dos tempos de ontem, de há 3 meses só, à espera que as conversas dentro do casarão acalmem.

A sentinela ao meu encontro, olhos na escuridão da mata em frente, a lua africana, um disco de luz a bater-lhe, os traços recortados. Triste, mê alferes? É sempre assim, a gente quando chega fica assim mais saudosa!

É melhor nem falar, mostrar só um sorriso, tenho medo do que diga, de mim próprio até! Já nem me reconheço, pareço outro, não fora sentir que esta boca amarga é a minha, que estes ossos são meus também, diria que era outro que estava aqui.

Já nada se ouve, apenas o sono. Acordo da minha saudade. Amanhã não tenho trabalho, é o meu dia de folga. Como se aqui houvesse dias de trabalho e de folga, mas enfim, levantar-me-ei mais tarde, puxarei a corda do regador, a água duma vez por mim abaixo, rexina, água outra vez no regador, corda nele, secar, fresco para o almoço, limpo deste suor pegajoso, disposto a aguentar as conversas do capitão Galo à mesa. A minha mulher dá aulas, diz que não tem tempo para se dedicar à nossa filha, como desejava, escreve-me isto, a mim que estou aqui tão longe, vejam lá! Conta-nos outra vez a sua vida, que não foi feito para isto, já a ouvi não me lembro quantas vezes.

O senhor é profissional, ofereceu-se voluntário, foi para cavalaria, a especialidade de carros de combate vê-se no seu peito, para quê esse emblema aqui? Esses queixumes não têm direito na sua boca, apetece-me dizer-lhe. Sei que estou errado, ele é novo como nós, nem trinta tem, também tem direito a dizer mal disto.

Faz-me bem escrever, às vezes não consigo, saem-me palavras sem nexo. Também não sou um Pasternak! Tenho pensado muito, o ambiente é propício. Espero dias mais claros, menos nevoentos. Sinto-me mais leve, mais bem disposto, depois de falar comigo!


5. ENTRE FAQUINA FULA E FAQUINA MANDINGA

Meu capitão, um dia destes vou sair com o pelotão. Ai vai, para onde? Para onde costumamos ir, Faquinas, Sitató, para esses lados!

Tem mas é juízo, pá, o Didi logo. Já tivemos Comos que nos chegasse, não precisamos de mais sarilhos! A paz nesta zona foi conquistada por nós e, se eles passam sem problemas, nós também não os temos tido. Convém às duas partes, é bom não esquecer. Cuidado, meu capitão!


Guiné > Bissau > 1965 > O palácio do Governador Geral em dia de festa.

© Virgínio Briote (2005)

O pessoal, alferes Duarte, está cá há muitos meses, demasiados, falta-lhe pouco tempo para regressar a Bissau e embarcar para a metrópole. Precisa mais de quem o proteja do que gente que o meta ao barulho…

Mas Cuntima é uma pista desimpedida para eles, para meterem minas e armas no Oio, são trilhos pisados de fresco, passam todos os dias…

A minha ideia? Sair daqui sem espalhafato, a outras horas, permanecer na zona até eles aparecerem. Se vamos sempre para o mesmo sítio montar emboscadas, se nunca os encontramos e se o caminho está sempre pisado de fresco, só não os apanhamos se não quisermos, ou então se formos aselhas…

Ao princípio da tarde numa conversa com o furriel Poças, escolheu-se quem deveria sair. A seguir reuniu-se o pelotão na presença do capitão, que fez questão de assistir à partida. Vamos dar uma volta por aí, quem quer vir?

Voluntários, só voluntários, o capitão a atalhar, e o pelotão todo a dizer, eu vou.

Tu, tem mas é juízo! Mas eu também quero ir, meu capitão, o soldado a insistir! Dos furriéis só não foi o Palhares porque lhe doía a perna, que chatice logo hoje, além disso, parecia-lhe também que estava com paludismo. 22 mais um guia indígena e 5 auxiliares nativos.

Saíram da zona em viaturas, em direcção à fronteira. Minutos depois, apearam-se e internaram-se no mato, por um caminho que mal se via, de há tanto tempo não passar ali ninguém. Foram andando com cuidado, devagar, mais separados uns dos outros, sem grandes barulhos. Afinal, o pessoal sabe andar no mato. Avistaram a tabanca de Faquina Mandinga, abandonada há muito. Chegados perto do local onde costumavam emboscar-se, prosseguiram pelas margens do trilho, até à fronteira.

Para os lados de Sitató , quase em frente a Koldá, no Senegal, viram um local descampado. Os trilhos todos marcados com pegadas recentes. Esconderam-se atrás de arbustos, de pequenos baga-baga, e prepararam-se para o que desse e viesse.

Uma volta pelo pessoal para ajustar algumas posições individuais. Estabeleceram uma frente de cerca de 100 metros, ao longo do trilho que vinha do Senegal, com a bolanha em frente, um ângulo de visão de mais de 180 graus. Todos na expectativa, prontos para o que desse e viesse. E dispostos a esperar, pelo menos até ao meio-dia do dia seguinte. Mas eles devem aparecer antes…

Deitou-se com a G3 ao lado, tirou do casaco a Agfa que recebera de Angra uns dias antes, para o caso de haver motivos. Eram para aí 17, 17 e 30, quando ouviu uma voz muito baixa dizer, atenção malta, vêm aí os gajos!

É agora, o coração a dizer-lhe conta comigo. No meio de um silêncio enorme, uma culatra puxada atrás, um barulho que até eles devem ter ouvido! Agora? A que propósito? Uns tiros, uma rajada, depois uma girândola de rajadas para o descampado em frente, tudo em pouco mais de um minuto.

Coluna de carregadores do PAIGC

Foto: © Agência de Notícias Xinhua (1972).

Sacos pelo chão, gritaria, um preto a mancar com uma bicicleta ao lado, a tentar montar para cima dela, uns tipos caídos a gemer, um não se mexia, os valentes alentejanos pareciam que estavam a jogar rugby, todos ao monte para cima deles, para aí 5 ou 6, filhos desta e daquela. Eram poucos para tantos sacos, de arroz, sal e cola, duas bicicletas, granadas, duas caixas com munições, uma Mauser, portuguesa em tempos, livros de leitura em português, correspondência… Uma pequena secção de reabastecimento do PAIGC posta fora de combate em pouco mais de meia hora.

Um trabalhão pegar naqueles alentejanos e pô-los de regresso, com os prisioneiros feridos em padiolas improvisadas. Levou mais tempo a regressarem do que a irem, está bom de ver. Iam fazendo perguntas aos infelizes que tinham sido apanhados, para onde tanto arroz, para família, e livros, para meninos da família aprender a ler, cola para a família também, e que família é essa? É uma família muito grande, não é?

E quem foi o artolas que resolveu puxar a culatra atrás? Quem usa Mauser aqui, os milícias, quem havia de ser! Tinha que ser, meu alfero, os turras vinham de lá! Mas porquê, logo quando eles estavam a entrar na zona de morte?

Este sim, foi um baptismo de fogo ! Era assim que gostaria que fosse sempre, apanhá-los à sorrelfa, sem darem por ela.

Avistaram Cuntima ao longe, a noite já fechada, os petromaxes acesos, e, junto ao arame farpado, militares e a população civil em peso.

O Galo ao encontro deles, então?

Eu não lhe dizia que era uma questão de horário, meu capitão?

Tudo bem, parabéns, mas queira Deus que este episódio não nos traga problemas. Vá-me dando pormenores, vamos para o posto de rádio, vá falando.

Uma desorganização total, meu capitão. Cada um a fazer o que lhe deu na mona, a abrirem fogo quando lhes apeteceu, a correrem todos a monte, sem segurança nenhuma, o gajo da culatra…

Espera-lhe pela volta, Gil, o Didi a virar costas, quem havia de ser?

Mas a guerra, de facto, tomou conta de Cuntima. Foi como se tivessem mexido num enxame de abelhas. Uma ou duas semanas mais tarde, a outras horas, nova emboscada, e desta vez ninguém puxou a culatra antes. Depois, umas minas, a seguir um ataque a Cuntima. Nunca mais houve paz ali.

A fronteira ali tinha sido riscada num mapa, era mais administrativa que outra coisa, não correspondia a nenhuma divisão real entre as pessoas ou etnias. Familiares viviam de um lado e do outro, às vezes mudavam-se com as famílias todas atrás.

Em Cuntima fazia-se muita psicossocial. O médico, um açoriano da Terceira, era um homem bom, com espírito muito prático, não protestava com as condições precárias. Era preciso, fazia-se. Sempre disposto a dar uma ajuda àquelas populações, não interessava a que horas. Mais que uma vez, o doutor tivera que ir ao Senegal ver gente doente. A tropa conduzia-o até à fronteira, depois entregava-o aos guardas senegaleses que o acompanhavam até à tabanca dos doentes.

No passado, aquela gente nunca tinha tido um apoio tão grande como agora. Ajudavam-se os nativos na construção das casas, providenciavam-se mosquiteiros, faziam-se desinfestações, capinavam-se picadas, limpavam-se caminhos, abriam-se outros. Nunca faltavam voluntários para ajudar. Nem precisavam de arregaçar as mangas, andavam quase todos em tronco nu. De facto, naqueles dois ou três anos, desde que o PAIGC tinha iniciado a guerrilha, estava a fazer-se mais por aquela gente do que nos outros anos todos para trás. Isto se se levasse em conta o que se via feito até então. Quase nada. A guerra tem destas coisas.

A companhia militar estacionada em Cuntima, Colina do Norte como era agora chamada, tinha um efectivo a rondar os 150 homens, a esmagadora maioria já a poucos meses de regressar à metrópole. Alguns, muito poucos, estavam lá em rendição individual, para tapar as falhas que ocorrem sempre. Esse era o caso do Gil. Os outros alferes, o Didi e o Ribeiro tinham partido de Estremoz com o batalhão 490.

O Didi tinha o tamanho de um português, um ar de bem-nascido, com o sotaque do Rio, muito pronunciado. Totalmente contra, insinuava estar tão próximo dos guerrilheiros como das tropas que comandava. Um bom coração para as questões humanitárias, sempre pronto a ajudar, quase sempre de má vontade para tudo o que fosse acção ofensiva contra a guerrilha.

O Ribeiro mantinha-se ao largo destas discussões, não se manifestava, por cansaço, ou por outro motivo. Falava da namorada e da mãe, com os olhos brilhantes para as fotos ao lado da cama. Tinha ganho no Como a imagem do alferes mais operacional da companhia, os soldados falavam dele com respeito, via-se que tinha ascendente.

O Gil acreditava no Império, em Portugal do Minho a Timor. De mãos dadas com as populações, de arma na mão contra os que se opunham. Impensável, não via como podiam ter entre eles quem pensasse como o Didi!

Tanto choque de pontos de vista em tão pouco tempo, a guerra deixou de ser motivo de conversa, evitavam-na. Limitaram-se a conviver o resto do tempo que permaneceram juntos. Quando, por qualquer motivo, um deles insistia na conversa da guerra, o outro, como se tivessem combinado antes, punha-se a falar do Benfica e do Sporting…

O capitão tinha um ar blasé. Sobre o alto, magro, uma cara fina e os olhos de medo. Os galões dele mandavam naquela tropa e as coisas andavam por si. Via-se nele o desejo de acabar a comissão o mais depressa possível, sem mais chatices, o que não era nada fácil com um Coronel daqueles.

O doutor falava dos doentes e de Angra, a cidade onde nascera. Agora que tinha ali um recém-chegado da sua terra, puxava-lhe pela língua. Conheceste o quê? O Monte Brasil e as Lajes, claro, a Praia da Vitória, a Terra Chã, a Serreta, os Biscoitos, e que mais? Visitaste o Palácio dos Capitães-Generais, o Outeiro da Memória, a Igreja da Misericórdia, os Impérios, o Algar do Carvão? E que gente conheceste? Em que café paravas? Horas e horas de conversa, perguntas atrás de perguntas. E a namorada terceirense, que tal? Aquela que te escreve, julgas que não sei? Ora, pelo endereço, calhou, só isso, mais nada. Por acaso conheço a família dela, e a ela também, cheguei até a ver-lhe a garganta!


6.VEM MESMO A CALHAR, MORREU-ME UM GAJO ONTEM


Dói-te um dente, aonde, ora deixa ver. Nada que eu possa fazer aqui, porra, estes gajos pensam que vêm para aqui tratar os dentes, mal vai a guerra quando já mandam pessoal com defeito, rosnou. Farim! Quando for dia de dentista, sei lá quando!

Sentado debaixo de um enorme poilão, em Farim, à espera da vez, enquanto o enfermeiro militar percorria a fila dos sofredores, picando este e aquele. De alicate na mão o dentista chegou-se. Abra mais a boca! Ora deixe ver, onde lhe dói, aqui? Não posso fazer isto aqui, não tenho condições, só em Bissau. E tem que tomar um antibiótico, primeiro.

Bissau outra vez. Dente arrancado, aguardava transporte de regresso a Cuntima. No QG, à porta da 1ª Rep, esperava pela guia de marcha de regresso a Farim. Nisto, vê um jeep a estacionar com estardalhaço, dois tipos a saltarem, um alferes e um tenente com um saco de serapilheira na mão, escadas acima. Farda de terylene amarela, lenços no pescoço, emblema dos comandos nos ombros, no jeep também.

Minutos depois descem, sorridentes. Gil Duarte, apresenta-se. Comandos, que tropa é a vossa, que tipo de trabalho fazem?

Porque quer saber? Pormenores? Quer mesmo saber? Então suba!

Saltou para trás, curvado para a frente, a ouvir as respostas. Golpes de mão , guia, turra de preferência, é só o que precisamos. Operações curtas, surpresa, bater e fugir, castigá-los nas costas, fazer guerrilha! Regressar a Bissau, dormir, banho, um frango assado no Fonseca, uma gaja boa e um banho a seguir. Uma guerra limpa, interessa-lhe?

Convém que se decida depressa, ainda ontem me morreu um gajo, o curso começa daqui a 2 semanas, temos 4 vagas para comandantes de grupo e ainda só temos 9 inscritos. Na formação, vai sempre alguém abaixo, sabe como é, temos que ter mais pessoal. Decida-se, tem ainda as provas de selecção, físicas e psíquicas. Conversa com o psiquiatra do Hospital é só blá-blá, claro. Material sempre às costas, mil metros, 20 flexões de braços, 20 suspensões da barra, 100 metros velocidade, cangurus, provas de tiro, tudo seguido sem intervalos, que mais pá, coisas assim, quer concorrer? Vai pensar? Ah, então interessa-nos. Porquê? Porque pensa, porra! Pensar é uma grande forma de selecção, desde que decida bem, claro.

Encontramo-nos então amanhã em Brá, 9 horas é uma hora boa.

Uns minutos para respirar, já só faltam os 1000 metros, mais um pequeno esforço, meu alferes, disse o Moita, o furriel instrutor. Como contamos a distância? Fácil, o meu alferes corre, nós vamos à frente no jeep, quando passar 1 km no conta-quilómetros, corta a meta. Menos de 4 minutos, ganha uma cerveja, menos de 3 minutos e meio uma grade, menos de 1 minuto a fábrica. Não, não me recordo, estou aqui desde a abertura do Centro, nunca ninguém ganhou a grade, que me lembre, pois não ó Mirandela?

Guiné > O "roteiro turístico" do comando Briote (1965/67)

© Virgínio Briote (2005)

A correr por ali fora, para os lados do aeroporto, a força do calor na estrada, botas a pegarem-se ao alcatrão, 1, 2, 3 km, sabia lá! Sentado na berma da estrada, esforçava-se em manter os pulmões dentro da caixa.

De regresso a Brá, apresentado ao major M. Dias, assinou os papéis. À noite, quando o largaram na Amura estava mais morto que vivo.

Na outra manhã quando tomava o café na messe, o tenente Tomás da PM sentou-se na mesa dele. Eh, Gil, grande guerreiro, coisa e tal! Os tambores tinham sido mais rápidos que ele. Porquê os comandos, o Tomás curioso. Dentro de 3 ou 4 meses o 490 vem para Bissau, o Coronel vai colocar o pessoal no ar condicionado, a aguardar, tranquilo, os meses que faltam. Porquê os comandos, chiça?

Difícil explicar agora. Nem Gil sabia bem porquê. Também não tinha muito tempo para conversas, o jeep para o aeroporto estava à espera.

Ao princípio da tarde estava em Cuntima. Encontraram-se todos na pista e foram para a sombra, gozar a calmaria do resto da tarde. Um estouro forte interrompeu as conversas, parou tudo.

Para os lados de Jumbembem (2), não? Um macaco que pisou uma anti-pessoal, se calhar, diz um.

Ou uma mina numa viatura, diz outro.

É melhor alguém sair e ir ver o que se passou.

Para quê, a esta hora, é quase noite!

Uma coluna que vinha de Farim, uma mina numa Fox , aqui perto, na estrada de Jumbembem para aqui, perto da curva da morte, parece que há feridos, o capitão Galo a correr para eles, aos gritos, não sei se devemos ir ao encontro, ou se será melhor esperar…que dizem?

Depressa, uma coluna para lá, ao encontro deles, antes que seja noite, meu capitão, um logo!

É melhor esperarmos! Arrancar já, porquê? Sabemos lá o que se está a passar, insiste o Didi.

É pá, não podemos ficar aqui a ver passar os comboios, o rebentamento foi aqui perto, temos que ir ver o que se passa, prestar auxílio, porra!

Depois de muita hesitação, o Galo decide-se, arranca o pelotão mais folgado.

Cuidado, muita atenção, nada de loucuras por aí fora, sempre a abrir, nada disso, ouviu? Tome-me conta destes gajos, falta-lhes pouco tempo! Conte com chocolate , mais que certo uma emboscada no caminho, talvez também uma mina, ouviu?

Bem pensado, a mina na Fox, a viatura destruída, a maralha embrulhada com os feridos à espera de socorros, estes a irem em socorro, de Cuntima no caso, uma mina à espera destes na picada e uma emboscada, não há dúvida, se for assim é bem pensado!

Cuidados redobrados, picadores à frente, todo o pessoal a pé, as viaturas cheias de sacos de areia só com os motoristas, uma eternidade até encontrarem a coluna. Estes, lixados com tamanho atraso, receberam-nos como se estivessem a vê-los regressar da praia.

Enfim, porra! Se não fosse a malta de Jumbembem, os feridos já tinham morrido, que caraças!

Realmente, Jumbembem também estava próximo, mas compreende-se o desespero do comandante da coluna atingida.

O Coronel é que não tinha achado graça nenhuma, mandou um rádio ao Galo, a exigir explicações. A coluna ficara imobilizada, pedira apoio a Cuntima e Jumbembem, porque é que a sua companhia só chegou uma hora depois da outra? Explique-se, estou no rádio à espera da sua resposta.

Que fora só o tempo de preparar um pelotão, mais o tempo da deslocação, as precauções que exigira do comandante do pelotão, até não fora demasiado!
O Coronel com o copo a deitar por fora há muito, deve ter dito borda fora com o Galo, vou mandá-lo pregar para outra freguesia. Foi o que fez, um auto de averiguações, corpo de delito a seguir, uns dias de prisão. Que fizesse o espólio e tomasse a próxima Dornier para o QG, que, de certo, lhe arranjaria um destino mais conveniente.

O capitão Galo, desesperado, defendeu-se por escrito, meteu testemunhas e tudo, Gil à cabeça, solidário com o seu capitão naquele caso. A demora podia ter sido menor, se pusesse as viaturas a esgalhar. No caso, não deu por qualquer perda de tempo, não se puseram a jogar as cartas, tinham percorrido a estrada com cuidado, mas nada de excessivo. Devia haver uma história qualquer por trás.

Na noite da mina, ao jantar, a saída do Gil para os comandos foi mais um assunto para a conversa. Levara-lhes uma garrafa de uísque, abriram-na, cada um falou, do mais novo ao mais antigo.

Esta companhia anda com galo, mas anda mesmo! A sina tem sido a deserção, uns por doenças, coitados, outros nem sabem porquê, grandes sacanas!

Dêsaprôvo totalmentche, prôtesto contra esse pessoau! Vi-os no Como, uns gajos horríveis, sem maneiras de lidar com as pêssoas, quanto mais com a pópulação! Só querem saber da guerra, como dar tiro no coitado do negrão, mais nada! Vou-me rêtirá, tchau, o Didi!

Até ao nosso regresso a Bissau, despediram-se oficialmente, digamos assim.

O Coronel não gostava, nem dos atrasos dos outros nem dos dele. Na primeira oportunidade, mandou preparar uma coluna e pôs-se à frente, rumo a Cuntima.
Ora chegue-se aqui, o alferes Gil está cá há quanto tempo, pouco, não é? Não teve tempo ainda de reparar que não tinha um comandante, mas apenas um capitão? E pôs-se a assinar por baixo, a dizer que gosta?

Passou uns dias à espera que o Coronel desse o ok à sua saída, o que aconteceu logo que chegou o novo capitão. Este a sair da Do, o Gil a entrar, mal deu tempo para se falarem.

© Virgínio Briote (2005)
(ex-Alf Mil Comando, Brá, 1965/67)
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(1) Colina do Norte > A nordeste de Farim, junto à fronteira com o Senegal (vd. carta da Guiné, 1961)

(2) Jumbembem > A meio caminho entre Farim e Colina do Norte

quarta-feira, 7 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P328: Cancioneiro de Mansoa (3): um mosquiteiro barato para um pira... (Magalhães Ribeiro)

Dos "cadernos" (agora rebaptizados como Cancioneiro de Mansoa) do Magalhães Ribeiro, o Ranger:

UM MOSQUITEIRO BARATO...

Uma das características na Guiné é a variação bidiária da sua área total de território seco de 31 800 Km2 - devido à subida das águas do mar, nas marés altas -, para cerca de 28 000 Km2. Isto acontece devido a dois factos: a cota territorial média que é muito baixa e a existência de múltiplos rios.

Por isso, durante a maré baixa, ficam a descoberto, mais ou menos 3 800 Km2 de zonas pantanosas que, localmente, se designa por “bolanhas”.

Ora, este é o habitat natural da mosquitada, que por ali prolifera aos milhões e se espalha por todo o lado em busca de alimento. Um dos seus “pratos” favoritos é o sangue humano (1).

Durante a Guerra do Ultramar as vítimas preferidas por estes parasitos incomodativos e asquerosos, eram sem dúvida os incautos periquitos ou piras (nome dado pelos tropas velhinhos aos recém-chegados à Guiné).

Dizia a sabedoria destes velhinhos - talvez com alguma razão -, que os mosquitos eram atraídos, pelo tom de pele branquinha e/ou pelo sangue fresco e puro dos periquitos. E, acrescentavam mais:
-Do nosso sangue, envenenado e apanhado pelo clima como está, os mosquitos até fogem!.

Acredite-se ou não nesta teoria, a verdade, é que de cada vez que um pira se expunha à fúria daquela praga com asas ficava completamente crivado das picadelas.

Estas picadas além de dolorosas e irritantes eram temidas porque através delas se transmite ao ser humano, o paludismo, uma doença muito debilitante fisicamente e, consequentemente, muito perigosa.

Em Mansoa, quando entrei pela primeira vez na camarata verifiquei que nas cabeceiras das camas todos tinham, de maior ou menor tamanho, ventoínhas, e adaptadas nas armações das camas encontravam-se estruturas de tubos e verguinhas metálicas, com cerca de 0,75 metros de altura, todas revestidas até ao chão com redes de malha muito fininha.

O velhinho e meu grande amigo Furriel Ranger Marques, com a sua calma e longa experiência de vinte e muitos meses deu-me, então, uma lição sobre “Como dormir sem zumbidos nem picadas dos mosquitos na Guiné”, assim:

1º - Não se faz mal às osguinhas e salamandras que deslizam ali no tecto - estavam lá três de vários tamanhos -, apesar do seu aspecto repelente elas são nossas amigas, e ajudam-nos a eliminar os mosquitos que, à noite, abundam e atacam muito mais, comendo-os.

2º - O "aparelho de ar condicionado" está com problemas de falta de ar e foi para consertar para o continente há onze anos, pelo que, para dormir fresquinho só com as janelas todas abertas. Mas em contrapartida os mosquitos entram e picam-te durante toda a noite.

3º - Evitas os mosquitos e as respectivas picadelas, fechando todas as janelas e frinchas, mas ficas sujeito a morrer aqui abafado.

4º - Pedes para ir a Bissau, compras o material (verguinha de aço, e rede ou tule) e constróis um mosquiteiro.

5º - Como estou para ir embora, podes fazer como eu fiz quando cá cheguei, compras a um de nós o mosquiteiro e só pagas o material, com desconto e tudo. Olha, o meu está bem conservado !?... Novo custou 570$00, mas devido ao uso e tal, vendo-to por 350$00.

Os mosquitos continuavam à minha volta a comer-me vivo! Que fazia no meu lugar?...

Eu também fiz! Comprei logo!

RANGER Magalhães Ribeiro - Furriel Miliciano da CCS do Batalhão 4612/74 - Guiné/Mansoa
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Nota de .G.

(1) Trinta anos depois, as consequências do paludismo na Guiné-Bissau são trágicas. Segunndo as autoridades sanitárias do país, e nomeafdamente dos Responsáveis Nacionais do Programa de Luta Contra o Paludismo, há uma situação endémica que se traduz por estes números alarmantes:

(i) 20% da letalidade hospitalar de crianças menores de 5 anos e 70% das consultas nos Centros de Saúde;

(ii) 250.000 casos notificados entre crianças menores de 5 anos de 2002 a 2003 e 150.000 entre os maiores de 5 anos;

(iii) 1000 mortes entre crianças menores de 5 anos (2002 - 2003).

Fonte: WHO / AFRO > OMS / Guiné-Bissau > OMS/BISSAU apoia o Governo na advocacia poara a iniciativa "Fazer Recuar o Paludismo"