terça-feira, 13 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P345: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)

Guiné > Bissau > Palácio do Governador, na Praça do Império > 1965:

Um palácio que Amílcar Cabral nunca chegaria a habitar... e que foi testemunha silenciosa de uma guerra que também se travava, com palavras, murros e cinturão de comandos, fuzos, paras, tropa-macaca e jovens africanos, simpatizantes do PAIGC. A pretexto da bela Helena ou da entrada, à má fila, num simples baile de finalistas do liceu.

© Virgínio Briote (2005).

Texto do João S.Parreira (ex-furriel miliciano comando, Brá, 1965/66)(1)

Conforme o prometido, passo a descrever a minha participação e os acontecimentos que deram origem à narração do V. Briote em 13/11/05 sobre o baile dos Finalistas da Escola Secundária [Liceu, na altura] realizado em Bissau, no Sábado, em 5 de Junho de 1965 (2).

Na manhã daquele dia para me descontrair tinha ido com alguns camaradas para Quinhamel, uma vez que estava com grandes projectos para aquela noite. Semanas antes tinha conhecido a Helena uma moça cabo-verdeana, que era o que se costuma dizer uma “brasa” e andava todo entusiasmado.

Na véspera do baile, a Helena que era finalista, disse-me que me ia arranjar um convite para assim poder ir com ela .

No próprio dia encontrei-me com ela da parte da tarde e ela disse-me que não tinha conseguido obter um convite, mas que me tinha comprado um bilhete. Assim dei-lhe os 100 pesos correspondentes ao preço do bilhete.

Estava a dançar com ela, já devia ser madrugada quando ouvi um grande borburinho, virei-me e reparei que o motivo era a entrada sem bilhete de vários militares desconhecidos e logo a seguir uma cara conhecida.

A música não parava de tocar e os pares continuavam a dançar. Várias finalistas e familiares encontravam-se sentadas em cadeiras que tinham sido colocadas junto às paredes.

Alguns dos recém-chegados dirigiram-se de imediato a estas finalistas a pedir para dançar, mas não tiveram sorte.

No salão enorme, junto a uma das janelas encontrava-se uma mesa rectangular bastante comprida que dominava todo o salão e que estava totalmente ocupada com africanos e cabo-verdeanos que presumi serem os professores e o Principal da Escola Secundária.

Notava-se que os ocupantes desta mesa ficaram furibundos com a intrusão. O Alf. Godinho, um dos “velhinhos”, foi um dos últimos a entrar, pelo que dirigiu-se logo para essa mesa e foi falar calmamente com um dos que se encontravam sentados no centro da mesa.

Desconheço o teor da conversa, mas o certo, pois eu estava a dançar perto, é que um deles lhe atirou com uma garrafa à cabeça.

De imediato vindo da mesma mesa ouviu-se um deles gritar e logo a seguir outros a fazerem coro: "Se o nosso chefe estivesse aqui, e não em Conacri, nada disto acontecia” (3).

Com esta agressão e com as palavras insultuosas o ambiente ficou desde logo muito tenso.

Com todo este reboliço entraram de rompante 2 ou 3 camaradas que tinham ficado à porta do edifício, já que o porteiro não os tinha deixado entrar.

O Furriel V. Miranda alheio à situação e que na altura andava a passear o seu inseparável whisky, deixou-o ficar no hall de entrada à guarda de um porteiro, e também entrou.

Guiné > Bissau > Fins de Fevereiro de 1965 > O Furriel Miliciano Comando João Parreira... "Esta foto foi tirada numa esplanada em frente ao Hotel Portugal, creio que se chamava Café Universal".

© João Parreira (2005).


O contacto físico em vários pontos do salão, não muito distante da pista de dança, começou já passava das 03h00 e prolongou-se por bastante tempo.

Apesar do que se estava a passar, a música não parava de tocar e parecia que todos os pares queriam estar alheios à situação.

Como não podia deixar de ser, parei de dançar e pedi à Helena para não sair da pista pois ia ajudar os meus camaradas, e depois voltava.

Ela, que foi fantástica, disse-me para não ir pois podia ficar magoado, mas eu tranquilizei-a dizendo-lhe que em Lisboa tinha praticado boxe em clubes e tinha entrado em vários combates públicos.

Assim , por 3 ou 4 vezes, dava um pezinho de dança, atravessava a pista por entre os pares, ia a uma das zonas da pancadaria, envolvia-me como podia no meio de um dos grupos em contenda dava uns bons pares de murros e quando me sentia satisfeito lá voltava novamente para junto da moça para continuar a dançar.

Dado o reboliço que se gerou também entraram no salão vários paraquedistas para darem uma ajuda aos que se encontravam em minoria.

Entretanto alguém deve ter chamado a P.M. que entrou mais tarde e começou logo a tirar os nomes à rapaziada.

Tive mais sorte que o VB e os outros camaradas pois logo que vi a P.M. entrar na nossa direcção apressei-me, sorrateiramente, a atravessar o salão pelo meio dos pares, a fim de ir ter com a Helena (a minha tábua de salvação) que estava a dançar sòzinha e agarrei-me logo a ela, pelo que a P.M. não deve ter percebido que eu também tinha andado no barulho.

Acabado o baile fui levar a Helena a casa, mas depois destes acontecimentos o ambiente não era propício pelo que vi gorados os projectos que tinha idealizado em Quinhamel.

Ao fim e ao cabo, feitas as contas tive sorte a dobrar pois livrei-me de ser punido e como tal de ter que ir passar uns tempos ao mato.

Domingo, 6 de Junho de 1965, às 19h00 dirigi-me com o V.Miranda e alguns fuzileiros para a Praça do Império onde se encontravam vários grupos de africanos em atitudes provocadoras e hostis, para tentarem tirar, talvez, ainda mais dividendos dos acontecimentos daquela madrugada.

Não sei bem como tudo começou, mas um deles apanhou o Miranda distraído e aplicou-lhe um tremendo murro que fez com que ele vacilasse, e depois fugiu.

Corremos atrás dele mas não o apanhámos na rua pois foi refugiar-se no cinema UDIB.
O porteiro, cabo-verdeano, que estava já a correr a porta de lagartas para o proteger não o conseguiu fazer, já que, com a ajuda do meu cinturão foi persuadido a não a fechar, e assim o Miranda entrou e ficou a sós com o seu agressor.

Voltámos para a Praça do Império onde o número de africanos tinha aumentado de uma forma incrível e notavam-se as mesmas atitudes agressivas.

Como estávamos, mais uma vez, em grande desvantagem numérica, e com o intuito de os intimidar e evitar o confronto, mandei pedir a Brá para quem nessa altura estivesse disponível viesse ao nosso encontro.

Passada meia-hora chegou um jeep com o condutor e um Alferes (o único que vinha armado para o que desse e viesse) e logo atrás uma Mercedes com mais pessoal.
Infelizmente a intenção não deu resultado pois ao aperceberem-se da chegada os africanos atiraram-se a nós à tareia usando os punhos e os pés.

Assim cada um de nós estava a ser agredido por 3 ou 4 pelo que, para evitar o pior, decidimos resolver o assunto com a máxima rapidez, e para esse fim usámos os nossos cinturões a torto e a direito, o que teve o condão de os obrigar a fugir. Com a Praça vazia usámos os mesmos veículos e regressámos a Brá.

JP
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Notas de L.G.

(1) vd. post de 3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros

(2) Post de Virgínio Briote, de 11 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial

(3) Referência óbvia a Amílcar Cabral, secretário-geral do PAIGC.

(4) Vd. localização da antiga Praça do Império, no mapa (actual) de Bissau.

Guiné 63/74 - P344: O meu primeiro contacto com um leproso (Rui Esteves)

1. Texto do Rui Esteves

Amigo Luís Graça,

Desta vez envio um texto sobre a minha prática como enfermeiro topa-a-tudo na Guiné.

Trabalhei sempre sem médico – médico só havia na sede do Batalhão – e portanto tive sempre que me virar sozinho.

No meio de uma tragédia particular (o meu pai morreu quando estava na Guiné), a minha fuga foi trabalhar muito para não chorar.

Um abraço do

Rui Esteves


O meu primeiro contacto com um leproso

Em Outubro de 1971, vivi um dos piores períodos da minha comissão na Guiné Bissau.

Tinha vindo de férias em Agosto, viajando até à Metrópole, e encontrei o meu pai muito doente: quando cheguei ainda andava pelo seu pé; em 5 de Setembro de 1971, quando fui embora, já estava acamado e eu sabia que não voltaria a vê-lo e que morreria dentro de pouco tempo.

O cancro matou o meu pai a 9 de Outubro e eu recebi a notícia – um telegrama da minha mãe – no dia 11, data do meu 23.º aniversário. O meu pai tinha 48 anos.

Os primeiros tempos foram muito difíceis e a minha fuga foi dedicar-me ainda mais ao trabalho.

Começava bem cedo e, enquanto houvesse gente para tratar, não parava.

Aparecia-me de tudo: a população era a larga maioria, homens, mulheres e crianças com paludismo, com conjuntivite, com sarna, com tuberculose, elefantíase, matacanhas…

À medida que os dias passavam, cada vez me aparecia mais gente: já não eram só os manjacos de Chulame.

Ajudado por um homem de Chulame com quem falava mais facilmente em francês do que em português, atendia toda a gente e ia aprendendo a falar um pouco de crioulo.

(Quinhentos anos de colonização portuguesa e o meu interprete quase não falava português mas desenrascava-se muito bem em francês do tempo que esteve emigrado em Dakar, Senegal. Curiosamente, ele dizia ter estado em Paris mas depois de longas conversas cheguei à conclusão que o Paris dele era, afinal, Dakar.).

Um dia, no meio daquela gente que aguardava a sua vez, vejo um homem alto, de cabelos brancos, apoiado a um pau, olhando para mim.

Nunca tinha visto nada assim: a cara já não tinha o nariz nem os lábios e aqueles olhos olhavam para mim do fundo da caveira em que ele se tinha transformado.
Era um leproso em fase muito avançada da doença (1).

Estremeci, cheio de compaixão por aquele pobre homem e sem saber o que fazer, dei-lhe de tudo um pouco, vitaminas, xaropes fortificantes, o que havia ali à mão que pudesse ajudar.

Nessa tarde fui a Teixeira Pinto (2) falar com um médico a quem pedi orientação para poder ajudar aquela pobre gente.

Não voltei a ver aquele homem: provavelmente desiludi-o e ele desistiu.

Soube que havia mais gente como ele, com lepra e com tuberculose, famílias em que a miséria era tanta que, aos poucos e poucos, todos ficavam contagiados.

Lavadores, 13 de Dezembro de 2005.

Rui Esteves
Ex-furriel enfermeiro miliciano
CCAÇ 3327 (companhia açoriana independente)
Guiné, 1971-1973 (Teixeira Pinto/Cacheu, Bissássema/Tite)
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Nota de L.G.

(1) Sobre a lepra ou mal de Hansen, vd. a respectiva entrada na enciclopédia livre Wikipédia

(2) Hoje Canchungo, na região do Cacheu.

Vd. post de 7 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXX: Teixeira Pinto ou Canchungo ?

25 Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXI: Coisas sobre Canchungo (antiga Teixeira Pinto)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P343: O avô da velhice (S. Domingos e Teixeira Pinto, 1961)

Guiné > Teixeira Pinto > 1961 >

O corneteiro Marques, mano do Américo Marques, nosso camarada de tertúlia.

© Américo Marques (2005)

Já aqui falámos do Américo Marques e do seu mano, mais velho. Ambos estiveram na Guiné: O Américo foi soldado de transmissões, na 3ª CART do BART 6523 (Nova Lamego), entre Junho de 1973 e Setembro de 1974. Ele foi do contingente dos últimos soldados do Império...

Já publicámos a sua foto com a malta de Cansissé a celebrar, com os guerrilheiros do PAIGC, o fim da guerra e a promessa da tão desejada paz (1)...

Guiné > Teixeira Pinto > 1961 > Na época, não havia ainda guerra. E a farda dos expedicionários era a amarelinha...

© Américo Marques (2005)

O outro mano Marques esteve na Guiné entre 1961 e 1963, na região do Cacheu (S. Domingos e Teixeira Pinto). Era corneteiro, mas o Américo não disse a companhia ou o batalhão a que ele pertencia. Fez a a viagem no Ana Mafalda. E pode-se dizer, com propriedade, que ele é o avô da velhice. Na época ainda se usava a farda amarela. Em contraprtida, não ainda guerra. Em homenagem ao nosso avozinho, publicamos aqui duas as fotos dele, dessa época. Depois da peluda, ele emigrou para França, onde viveu cerca de 40 anos!

Como é sabido, a "guerra de libertação" da Guiné só começou, oficialmente para o PAIGC, em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao aquartelamento de Tite, no sul. Em Julho desse ano é, entretanto, aberta a "frente norte"... Não sei se o mano Marques mais velho ainda chegou a cheirar a pólvora...

De qualquer modo, não deixa de ser irónica a história destes dois irmãos. Pertencentes a duas gerações diferentes, acabam por ser mobilizados para o mesmo território ultramarino, para a mesma guerra: o mais velho em 1961, o mais novo em 1973, doze anos depois… Um está no princípio dos acontecmentos, na 1ª cena do 1º acto; o outro representa a último cena do último acto... Não serão caso único: a guerra colonial tocou quase todas as famílias e algumas delas viram ser mobilizados para o distante Ultramar mais do que um filho... No caso dos manos Marques, só faltou terem estado exactamente do mesmo sítio, para fazerem o pleno!
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(1) Vd. post de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVI: Américo Marques, o último soldado do Império (Cansissé, 1974)

Guiné 63/74 - P342: Projecto Guileje (8): 'Quem não tem mãe, mama na avó' (provérbio guineense)

"Já temos uma lista inicial de uma dúzia de militantes envolvidos no assalto final [ao quartel de Guiledje] e que irão ser entrevistados (som e imagem) para o nosso arquivo histórico" (Pepito).

© AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guiledje (2005)

Caro Luis:

Em referência ao que saiu hoje no nosso blogue [ Guiné 63/74 - CCCLVI: Antologia (33): os 'gringos açorianos' de Guileje (CCAV 8350, 1972/73)] , gostaria de dar as seguintes informações:

1. O texto que apresentas do jornalista Eduardo Dâmaso (Público) sobre o abandono de Guiledje, mereceu uma "resposta" do Comandante do PAIGC, Osvaldo Lopes da Silva, encarregue por Amílcar Cabral para fazer o reconhecimento e preparar as condições do assalto final a Guiledje (Cabral dizia: "se este quartel cai, tudo à volta também cai").

Trata-se de um documento histórico relevante (Público, 26 de Julho de 2004) com informações muito detalhadas de todos os preparativos militares então realizados.

2. Tem sido para nós mais fácil identificar e envolver nesta iniciativa as antigas milícias e população que vivia no quartel de Guiledje, porque continuaram a viver na zona e arredores. O mesmo não se passa com os guerrilheiros do PAIGC que, pelas características próprias da luta, vinham de diversas regiões do país para onde regressaram no fim da guerra. No entanto, já temos uma lista inicial de uma dúzia de militantes envolvidos no assalto final e que irão ser entrevistados (som e imagem) para o nosso arquivo histórico.

Por curiosidade, refiro-te que o topógrafo que vês na foto a fazer o levantamento topográfico do quartel, era um muito jovem militante do PAIGC que entrou no quartel dois dias depois de ele ter sido abandonado. Tem-nos prestado informações interessantíssimas em relação aos corredores de circulação da guerrilha e da população.

3. Paralelamente, já estão identificados os acampamentos do PAIGC na zona de Cantanhez, os quais irão igualmente ser reabilitados para permitir a todos ter uma ideia exacta dos contornos geográficos da guerra e aperceberem-se das condições de vida e luta da guerrilha. Entre eles situa-se o importante acampamento de Candjafra (e não Canjifara, como vem escrito no blogue), que irá ser integrado no percurso histórico do ecoturismo.

4. Sentimos clara e conscientemente que nesta iniciativa nos falta um historiador que organize e trabalhe a informação, que conduza o processo de recolha da "história". Mas como dizemos aqui na Guiné-Bissau, "quem não tem mãe, mama na avó". O que é preciso é salvar a memória, mesmo que com limitações, antes que ela desapareça à espera dos historiadores...

abraços
pepito

Guiné 63/74 - P341: A retirada de Guileje (José Neto)

Amigo:

Voltei a recordar, através do nosso blogue, a dramática retirada de Guileje, com as palavras do senhor Coronel Coutinho e Lima. Nessa altura andava eu muito atarefado com o meu curso em Águeda e só li "as gordas" que noticiavam o acontecimento.

Não foi surpresa para mim porque eu tinha a intuição de que, a partir dos "Strella", as aeronaves da FAP perdiam a liberdade dos céus, essencial para a hipotética sobrevivência daquele "martírio".

Estranho é que não haja alusão à Reportagem da SIC de 1996, "De Guileje a Gadamael - O Corredor da Morte", em que o senhor Coronel, acompanhado do ex-Alferes Manuel dos Reis, foram ao terreno explicar os factos e conversar com os "então inimigos" entre os quais o General "Nino" Vieira.

Eu tenho a gravação dessa reportagem em VHS e DVD. Se estiver interessado, posso enviar-lhe pelo correio uma cópia (2ª geração, mais fraquita,talvez).

É só mandar-me por este meio o endereço postal (1).

Cumprimentos do
Zé Neto
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(1) Nota de L.G.:

Caro camarada: Obrigado pela informação. Lembro-me de ter visto esse documentário da SIC, mas não tenho cópia em suporte digital. Se não for muita maçada, aceitarei a oferta de uma cópia em DVD, que passará a ficar disponível para consulta do resto do pessoal. A minha morada é a seguinte:

Prof Luís Graça,
Grupo de Disciplinas de Saúde Ocupacional,
Gabinete 2 A 47
Escola Nacional de Saúde Pública
Universidade Nova de Lisboa
Av Padre Cruz
1600-560 LISBOA

Também seria interessante o Zé Neto preparar um pequeno texto sobre este documentário da SIC, resumindo o essencial do que se viu e se disse. Seria muito útil para os nossos amigos e camaradas de tertúlia. O Zé Neto tem a vantagem, em relação à maior parte de nós, de ter conhecido Guileje, embora muito antes dos acontecimentos de Maio de 1973.

Guiné 63/74 - P340: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (3) (José Neto / A. Marques Lopes)

1. Caro amigo A. Marques Lopes

Aceito a sua divergência de opinião quanto ao que escrevi sobre aquilo que vem sendo tratado por alguns por "o demónio das Etnias" da Guiné-Bissau.

Prometo não voltar a "meter o pé na poça", porém, como última intervenção neste escaldante tema quero dizer-lhe (e a todos os bloguistas) que o meu escrito, muito ligeiro, foi motivado pelo post "Guiné 63/74 - CCCXLIII: Respeito pelos manjacos, se faz favor", subscrito por João Tunes.

É minha convicção que uma das ajudas que podemos dar aos nossos "ex-amigos e inimigos" não será propriamente "estar de fora" a enaltecer esta ou aquela etnia. A Internet também chega à Guiné-Bissau... E, muito ao contário que o mesmo senhor diz, "nós portugueses temos MUITO para ajudar os guineenses".

Cumprimentos do
Zé Neto

2. Amigo José Neto

Não me parece que tenha havido qualquer divergência entre as nossas duas posições sobre os povos da Guiné. Pessoalmente apenas tentei dar uma explicação sobre os objectivos que, na altura, teria aquele memorando do EME - Estado Maior do Exército, o qual, pelos vistos, como diz o Sousa de Castro, foi distribuído profusamente às NT em 1971.

Com mais este dado, acrescentarei que, dada a escalada da guerra, havia mesmo necessidade de cavar divergências entre os guineenses. Foi essa estratégia, "sabiamente" delineada, que terá contribuído, juntamente com o papel inestimável (ou inestimado ainda) da PIDE, para o assassinato de Amilcar Cabral; e que terá igualmente levado à desastrada manobra spinolista causadora da morte dos majores (e do esquecido alferes) em chão manjaco.

De resto, estou completamente de acordo consigo.

Um abraço
A. Marques Lopes

domingo, 11 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P339: Digitalização de mapas e de diapositivos (Humberto Reis / Carlos Fortunato)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > c. 1969/70 > O nosso Humberto Reis, furriel miliciano de operações especiais, o ranger da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).

Sempre descontraído e prestável, ontem como hoje...

© Humberto Reis (2005)

Mensagem do Humberto Reis:

Mandem o Luís para o mato, que é o que ele está a precisar (1). Não quero agradecimentos de ninguém pois ninguém me encomendou este sermão.

Sou possuidor da totalidade das cartas da Guiné-Bissau porque as comprei, por "carolice e saudades", em 1995 e 96 no tempo em que não sonhávamos em vir a ter este "Programa Espectacular" que o Luís arranjou e continua a acarinhar.

Se vocês soubessem o prazer que me dá olhar para aquelas cartas compreendiam o gosto que tenho em as partilhar convosco. Imagino a cara de alguns de vocês a recordarem as picadas e os trilhos que lá estão assinalados e a recuarem 30, 35 e 40 anos atrás.

A mim não me faz sentir velho, mas apenas saudoso de alguns tempos bons que passei naquela terra, apesar dos muito maus. Se não fossem esses tempos estaríamos agora aqui a conversar uns com os outros?

É engraçado que, se repararem na identificação dos Tertulianos, são mais os operacionais do que os outros, os que fizeram a guerra dentro do arame farpado. Atenção, não façamos distinções, pois sem o pessoal da manutenção, não tínhamos as rações de combate para levar para aqueles piqueniques que por vezes fazíamos algures; sem os maqueiros não tínhamos o mezinho para nos tapar o buraco parvo do raio de uma 7,62 que a Kalash do outro lado nos tinha feito na pele; sem o pessoal da ferrugem não tínhamos Unimog ou GMC para nos levar e, de preferência, trazer inteiros; sem o pessoal de transmissões não havia rádio nem para falar com o vizinho do mesmo Grupo de Combate. Todos precisavam de todos por isso, como sei que vocês precisam ABSOLUTAMENTE de mim.

Agora faço aqui uma pergunta para os entendidos em informática: tal como vocês também eu tenho um bom par de diapositivos daquele tempo; como se faz para digitalizar isso pois possuo um par deles de vistas aéreas de algumas zonas que devem ser agradáveis de rever (2).

Uma última questão antes de me ir embora: na passada sexta feira, dia 9, sabia que o nosso amigo Paulo Salgado regressava da Guiné para vir passar a época natalícia. Como tenho facilidade de acesso às áreas reservadas do aeroporto de Lisboa estive desde as 8,10 até às 09,00 na saída da sala de desembarque, após os controles de passaportes, à espera de o ver passar e fiquei a chuchar no dedo. Ainda fui à sala de embarque do voo das 9,55 para o Porto mas não o consegui ver. Se ele aparecer digam-me alguma coisa.

Um abraço
Humberto Reis
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Nota do L.G.

(1) Tinha mandado no dia 9 de Dezembro, ao pessoal da tertúlia, a seguinte mensagem:

Amigos & Camaradas de Tertúlia:

O Pai Natal do Humberto Reis fez-me chegar mais umas cartas (militares) da “nossa” Guiné… com alta resolução, de modo a permitir localizar os sítios por onde andámos no mato… No cabaz de Natal vinham as seguintes cartas: Mansoa (que inclui também Bissorã e Encheia), Cadoca, Guileje, Binta, Buba, Pelundo… Para já, podem consultar a carta de Mansoa e Bissorã.

Pessoalmente confesso que, com estas cartas militares (que temos vindo a disponibilizar no nosso blogue) e com as estórias que vocês têm contado (para não falar do valiosíssimo álbum de fotografias e de outros documentos…), conheço agora melhor a Guiné de 1969/71 do que naquela época em que lá estive…

Não se esqueçam de mandar um palavrinha de agradecimento ao Nosso Pai Natal…

(2) O Carlos Fortunato deu logo, a seguir, uma sugestão:

Humberto:
Sobre a digitalização dos diapositivos, aqui vai alguma informação. Os diapositivos que aparecem na nossa página sobre Bissorã, e no site sobre a minha companhia (CCAÇ 13 - Os Leões Negros) são 90% retirados de diapositivos, a sua qualidade é razoavel, e nalguns casos mesmo boa.

Depois de algumas tentativas por outros processos que não deram um mínimo de qualidade (scanner com adptador para esse efeito e fotografar), acabei por seleccionar os 100 melhores e levar a uma loja da Kodak para os converter em formato digital, dado possuirem equipamento para o efeito, e também por fazerem uma pequena limpeza ao diapositivo para retirarem manchas. O custo foi cerca de 200 euros, mas eles convertem quantidades mais pequenas.

Um abraço e bom Natal para todos.
Carlos Fortunato

Guiné 63/74 - P338: Antologia (33): os 'gringos açorianos' de Guileje (CCAV 8350, 1972/73)

Guine > Guileje > c. 1970/71> Dois militares portugueses, junto ao Obus 140.

Segundo informação do Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito), fundador e director executivo da AD, "a fotografia junto do Obus 140 foi-me dada por um militar português que lá esteve entre 70 e 71, na CCAÇ 2617, de nome Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos dosi militares".

A esta companhia, seguiram-se ainda outras duas: a CCAÇ 3477 (Dez 1971/Dez 1972) e a CCAV 8350 (1972/73).

© AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guileje (2005)

Segundo o comandante do COP 5, o então major de artilharia Coutinho e Lima, a base do PAIGC era em Canjifara, na Guiné-Conacri, o que permitia aos guerrilheiros uma grande actividade na região, "que se intensificou a partir do momento em que a artilharia portuguesa, até aí a utilizar morteiros de 11,4 milímetros, mudou para os obuses de 14 milímetros".

"A regulação de tiro com os de 11,4 milímetros tinha sido comprovadamente mais eficaz, mas estes morteiros acabaram e não foram substituídos por outros de características idênticas. Portanto, para lá do fogo de artilharia dos RPG 7, os guerrilheiros passaram a fazer emboscadas nas proximidades do quartel. O que foi uma machadada no moral das tropas, que andavam há meses a acumular a realização de obras imprescindíveis no aquartelamento - criado em 1964, mas nunca chegou a ter sequer uma segunda protecção de arame farpado - com a actividade operacional, acabando esta por se ressentir".
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1. Guileje continua a estar rodeado de mistério e de polémica. Faltam-nos trabalhos de investigação historiográfica séria, tanto de um lado como de outro. Por enquanto temos só ouvido o testemunho de alguns dos seus (poucos) protagonistas. É urgente que apareçam testemunhos (escritos) de guerrilheiros do PAIGC que estiveram no cerco de Guileje. A geração que fez a guerrilha está a envelhecer e a desaparecer. Segundo creio saber, o Pepito tem sobretudo contactos com antigas milícias, provavelmente de etnia fula, que estiveram do nosso lado. Não sei se há guineenses a tentar preservar essa memória.

O Pepito que, segundo creio, não foi combatente, será uma das poucas excepções na Guiné-Bissau, com o Projecto Guiledje, da sua ONG (AD - Acção para o Desenvolvimento). Por ouro lado, estamos a aguardar, com curiosidade, a dissertação de mestrado do nosso amigo guineense Leopoldo Amado, a defender na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Um dos testemunhos sobre os acontecimentos de Guileje, entre 18 e 22 de Maio de 1973, é o de Alexandre Coutinho e Lima, na altura major, à frente do Comando Operacional 5 (COP 5), baseado em Cacine. Foi este ficial quem, à revelia de Spínola, seu comandante-chefe, decidiu, de motu proprio, abandonar Guileje, retirando a CCAV 8350 para Gadamael-Porto, mais as milícias locais e mais meio milhar de civis. Essa decisão (corajosa, para uns; cobarde, para outros) custou-lhe a carreira militar.

Essa história foi recentemente contada pelo jornalista Eduardo Dâmaso, no suplemento dominical do Público, de 21 de Maio de 2004. Vale a pena seleccionar e divulgar esse texto, pelo seu valor documental, já que muitos dos nossos tertulianos e outros visitantes o não conhecem. A versão que encontrámos disponível na Net vem no Blogue Moçambique para Todos, e em particular numa secção dedicada ao 25 de Abril - O antes e o agora.

Agradecemos a estas duas fontes (O Público e o Blogue Moçambique para Todos) a possibilidade de fazer chegar aos membros da nossa tertúlia e a outros cibernautas a versão dos factos na pessoa do entrevistado, o hoje coronel na reforma Alexandre Coutinho e Lima. Parece que esta questão ainda hoje incomoda as chefias militares do Exército e até os homens que fizeram o 25 de Abril. O abandono de Guileje, sem honra nem glória, foi sempre considerado inaceitável por Spínola e os spinolistas.

O velho general, metido no atoleiro da Guiné, quereria muito provavelmente que Coutinho e Lima e os homens defendessem Guileje até ao último cartucho de G-3... À semelhança de Salazar, em relação ao pobre do General Vassalo e Silva, que comandava as NT aquando da invasão indiana de Goa, Damão e Diu, em 18/19 de Dezembro de 1961.

Outra questão, mais anedótica, tem a ver com a expressão "gringos açorianos". Segundo o post anterior, com data de ontem (Guiné 63/74 - CCCLV: Projecto Guileje (7): recuperação do quartel), e o artigo que agora publicamos, de Eduardo Dâmaso, haveria duas companhias cujos militares se intitulavam "gringos": a CCAÇ 3477 (Dez 1971/Dez 1972), os "Gringos de Guileje"; e a CCAV 8350 (1972/73), a os "Gringos Açorianos", os que abandonaram Guileje em 22 de Maio de 1973, tendo-se refugiado em Gadamael (1). L.G.

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Coronel Coutinho e Lima: Salvou 600 vidas mas foi castigado por Spínola

PÚBLICA, Domingo, 16 de Maio de 2004

Eduardo Dâmaso

Auto de corpo de delito

Acusação: ordenou a retirada de forças sob o seu comando do quartel de Guileje para Gadamael sem que para tal estivesse autorizado; mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do referido quartel, bem como material de guerra e munições; não cumpriu a missão que lhe foi atribuída.

Nessa luminosa madrugada de 22 de Maio de 1973, a sorte dava ares de voltar a sorrir aos "gringos açorianos" e a todos os outros "gringos" que faziam a guerra em Guileje, Sul da Guiné, contra o PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné-Bissau e Cabo-Verde). Eram quase seis da manhã e os "gringos" iam carregados que nem burros pelo trilho do mato que ligava o quartel de Guileje ao de Gadamael, uns oito ou nove quilómetros bem medidos na retaguarda do primeiro, mas a manhã levava-os para longe daquele buraco que já viam como cemitério dos seus próprios cadáveres trespassados pela metralha do inimigo.

Os soldados sedentos, famintos e, alguns, doentes, abandonavam Guileje em passo lento e levavam malas de viagem, sacos militares, armas, mochilas. Transportavam tudo o que era imprescindível para refazer a vida da tropa noutro quartel qualquer. Entre eles marchavam 600 guineenses, igualmente cheios de fome, sede e doenças, que recuavam também para a zona do aquartelamento de Gadamael, alguns dos quais já muito idosos e um deles paralítico, que teve de ser transportado às costas por soldados. A população da tabanca de Guileje levava a casa na trouxa e a família pela mão sem olhar para trás. Na retaguarda, num qualquer ponto fixo no horizonte da densa mata do Sul, só ficavam os canhões do PAIGC que, por aqueles dias, não escolhiam entre soldados portugueses e civis guineenses.

Uns e outros compunham uma coluna de gente que protagonizava um episódio histórico na guerra colonial portuguesa: as Forças Armadas comandadas na Guiné por António Spínola batiam em retirada do quartel de Guileje, o único que a tropa portuguesa deixou livre à ocupação pelo inimigo em toda a guerra colonial. O PAIGC, tolhido pela surpresa, só viria a ocupar a guarnição militar três dias depois da retirada.

A retirada de Guileje foi o culminar de um complexo processo político-militar que começou a desenhar-se na Guiné após o assassinato de Amílcar Cabral, em Janeiro de 1973. O PAIGC desencadeou então uma ofensiva simultânea no Norte e no Sul da Guiné cercando os quartéis de Guidage, junto à fronteira com o Senegal, e de Guileje, encostado à Guiné-Conacri.

Essa operação, a que chamaram "Amílcar Cabral", foi um momento decisivo na guerra que coincidiu com a utilização dos mísseis Strella, de fabrico soviético, que abateram pela primeira vez um Fiat G-91 da Força Aérea a 25 de Março desse ano. Nessa semana a "arma desconhecida, tipo foguete", como foi qualificada no relatório da ocorrência, atingiu seis aeronaves portuguesas e num dos casos morreu mesmo o piloto, tenente-coronel Brito. A maior parte destas acções aconteceu precisamente na zona de Guileje, área do Comando Operacional 5 (COP5) criado menos de seis meses antes para fazer face ao previsível agravamento da guerra na frente sul, mas para onde não foram enviados mais do que 108 homens.

A partir deste novo dado da guerra, os mísseis terra-ar, ficou muito condicionada a utilização de meios aéreos no apoio de fogo às tropas terrestres, na deslocação de feridos, no transporte logístico e na regulação de tiro da artilharia. Os efeitos do conflito passaram a ser devastadores nas fileiras portuguesas. Segundo números oficiais das Forças Armadas, só entre 13 e 27 de Maio morreram 38 soldados e 155 foram feridos na frente sul da guerra. Em todo o primeiro semestre de 1973 registaram-se 135 mortes de militares portugueses em todo o território guineense. Foram as semanas da viragem da guerra a favor de um inimigo mais numeroso, mais bem armado e preparado.

Nesse Maio de chumbo, Bissau não evacuava feridos há semanas lá das bandas do Sul. Os aviões não se arriscavam a um voo que podia ser o último. Em Guileje, com a moral arrasada, os soldados não tinham nem água, nem comida, nem munições, o inimigo atacava a 500 metros, ou menos, do quartel. Ficar ali para cativeiro ou morte certa nem pensar, antes marchar em retirada. Ainda por cima, naquela época do ano, o Sul da Guiné submergia com a intensidade das chuvas e uma parte do território estava intransitável.

Nos dias anteriores à retirada, as bombas do inimigo abatiam-se sobre o quartel e dele quase nada restou de pé. Ficaram as orações dos "gringos açorianos" inscritas nas poucas pedras que sobravam: "Santo Cristo dos Milagres nesta capelinha oramos para sempre sorte dares aos gringos açorianos." Ou as dos "Piratas de Guileje", uns e outros da companhia de cavalaria 8350, estacionada no Sul entre 72 e 74.

Os RPG7 da guerrilha rebentavam no ar e caíam em chuveiro sobre o quartel, deixando marcas de destruição em todo o lado. Nos seis abrigos amontoavam-se soldados e população. Do dia 18 em diante, até à evacuação, muita fome ali se passou porque os flagelamentos do PAIGC foram praticamente incessantes.

Minhas declarações em 28 de Maio de 1973

"Durante a manhã [21 de Maio] tinha havido um ataque próximo em que predominaram os rebentamentos de RPG. Ao princípio da tarde, as mulheres, desesperadas com falta de água, foram à bolanha (cerca de 500 metros do quartel), tendo sido flageladas pelo IN com RPG e imediatamente recolhidas pelas NT que foram em seu socorro. A Força Aérea que apareceu a apoiar, após o ataque das 15h15 às 16h30, o mais intenso de todos e o que provocou o morto e muitos danos materiais, foi informada que o quartel estava sem transmissões, tendo prometido ir lá de noite, se possível, e no dia seguinte, logo de manhã."

A base dos guerrilheiros era em Canjifara, Conacri, o que permitia ao PAIGC uma grande actividade na região, que se intensificou a partir do momento em que a artilharia portuguesa, até aí a utilizar morteiros de 11,4 milímetros, mudou para os obuses de 14 milímetros. A regulação de tiro com os de 11,4 milímetros tinha sido comprovadamente mais eficaz, mas estes morteiros acabaram e não foram substituídos por outros de características idênticas. Portanto, para lá do fogo de artilharia dos RPG7, os guerrilheiros passaram a fazer emboscadas nas proximidades do quartel. O que foi uma machadada no moral das tropas, que andavam há meses a acumular a realização de obras imprescindíveis no aquartelamento - criado em 1964, mas nunca chegou a ter sequer uma segunda protecção de arame farpado - com a actividade operacional, acabando esta por se ressentir.

É neste cenário que o então major Alexandre Coutinho e Lima decide bater em retirada, depois de intensas movimentações nos últimos dias a pedir reforços de tropas especiais que nunca chegaram. Assim que chegou a Gadamael, nessa manhã de 22 de Maio, foi imediatamente preso e acusado de ter cometido um crime militar ao ordenar a retirada de forças sob o seu comando sem autorização superior. Também mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do quartel que comandava, material de guerra e munições. A justiça militar imputou ao major uma falta grave: não ter cumprido a missão que lhe foi atribuída pelo comandante-chefe das tropas portuguesas na Guiné, António Spínola, e pagou por isso com um ano de prisão, que só viria a ser interrompido por uma amnistia nos primeiros dias a seguir ao 25 de abril de 1974.

Na versão seca do formalismo da linguagem militar, o major não cumpriu a missão que lhe foi atribuída. Mas, para as mais de 600 pessoas cercadas pelo fogo dos guerrilheiros independentistas, a decisão do agora coronel reformado Coutinho e Lima salvou-os de morrer no inferno de Guileje.

Para essas pessoas e para milhares de soldados que viam a derrota e a morte a aproximar-se nas frentes de guerra da Guiné, o coronel Coutinho e Lima foi um herói, que teve a coragem de decidir de acordo com a sua consciência. Mas ainda hoje é um homem perplexo com a actuação de Spínola neste processo e, em concreto, pela diferença de tratamento que deu às duas situações mais dramáticas naquela guerra.

Ao cerco de Guidage, a norte, Spínola respondeu com reforços imediatos e um ataque de comandos à base do PAIGC em Kumbamory, em território senegalês, uma acção que veio aliviar a pressão do PAIGC sobre Guidage. Já em relação a Guileje, Spínola nunca autorizou um reforço de homens e meios operacionais, deixando a guarnição abandonada à sua sorte, acabando também por não conseguir evitar a desgraça de Gadamael, onde o PAIGC atacou entre as 14h00 e as 18h00 do dia 31 de Maio, bombardeando o quartel com mais de 700 granadas e provocando cinco mortos e 14 feridos, numa acção que foi apenas o início de intensos flagelamentos que prosseguiram nos dias seguintes, causando um total de 24 mortos e 147 feridos.

Trinta e um anos depois da retirada do quartel de Guileje, as Forças Armadas ainda lidam mal com o episódio. O único quartel português abandonado pelas tropas coloniais é um episódio que representa uma espécie de pedra no sapato do Exército e das Forças Armadas em geral, que transformou o seu principal protagonista num rosto incómodo tanto para as hierarquias como, aparentemente, para os próprios militares do Movimento das Forças Armadas (MFA).

Para os militares de Guileje, o pesadelo começou a desenhar-se a partir do dia 10 de Maio, ainda sem o perceberem. A melhor descrição da situação militar ali vivida é feita pelo próprio Spínola, que a 11 de Maio se desloca de helicóptero a Guileje e, numa comunicação às tropas, fez saber que se esperava um agravamento da situação. Ficou claro que a Força Aérea não faria operações de rotina como até aí. Deixou, porém, a garantia de que, em momentos de combate mais sérios, os aviões voariam mais alto e utilizariam bombas mais potentes no apoio de fogo. O transporte de feridos muito graves seria também assegurado. Palavras vãs, tal nunca aconteceu.

Um dia antes da visita, a vida corria com alguma normalidade no aquartelamento de Guileje. O único facto anormal era dado pelo desaparecimento do miliciano [ milícia ] Aliu Bari, que saíra de espingarda às costas dizendo que ia à caça, mas não voltou mais. Ao fim de um par de horas, começaram a sair grupos de patrulhamento na estrada de Mejo com o objectivo de tentar encontrar o miliciano [ milícia ] Bari, que, admitia-se, podia ter-se perdido ou sido mordido por uma cobra.

Alguns patrulhamentos depois, já a 12 de Maio, porém, uma mina rebenta na estrada do Mejo e morrem dois comandantes de secção da milícia, o que afecta as tropas, sobretudo do contingente guineense e da população, onde os dois homens eram vistos como líderes.

No dia 18, dois grupos de combate que realizavam trabalhos de detecção de minas e instalação de um sistema de segurança para uma nova operação de reabastecimento, junto ao cruzamento da estrada Guileje-Gadamael, foram atacados por mais de 100 guerrilheiros emboscados. Das sete às oito da manhã os soldados portugueses e os milicianos [ milícias ] guineenses ao seu serviço estiveram debaixo de intenso fogo de metralhadora, armas automáticas e morteiros RPG. O balanço final foi dramático: dois mortos, nove feridos graves. Mais tarde, um destes feridos, um cabo, veio a morrer.

Tinha sido pedido apoio de fogo aéreo a Bissau, que não foi concedido por falta de condições meteorológicas. Aos pedidos de deslocação dos feridos foi respondido que as baixas deveriam ser levadas para Gadamael e daí para Cacine por via fluvial, o que não aconteceu por já não haver maré que permitisse o transporte.

Adivinhava-se um mortícinio. Os soldados começaram a perceber que estavam entregues à sua sorte. O major Coutinho Lima enviou uma mensagem para Bissau a pedir a deslocação de um delegado a Guileje para analisar o problema dos apoios e efectivos para as colunas de reabastecimento. A resposta é negativa.

Às 16h00 ainda do dia 18 colocou-se a necessidade de reabastecer a unidade de água, num local situado a quatro quilómetros do quartel. O grupo de combate que habitualmente fazia segurança a esta saída manifestou-se relutante em sair do quartel. Só o fez quando o próprio Coutinho e Lima saiu à frente do grupo.

A operação decorreu sem problemas mas durante essa noite regressou o fogo inimigo. O quartel foi bombardeado pela noite dentro, em oito momentos diferentes; todos os rebentamentos de obuses ocorreram dentro zona de arame farpado. Compreenderam então que a regulação de tiro da artilharia do PAIGC era feita a partir de informações prestadas pelo miliciano [ milícia ] Bari, que tinha desertado para o inimigo. Era a primeira vez que o inimigo acertava no quartel.

Na manhã seguinte, os militares portugueses contaram 85 rebentamentos no interior do quartel. Coutinho Lima parte nessa manhã com um grupo de combate para Gadamael e daí para Cacine, para assegurar o transporte dos feridos e do morto, mas também na esperança de "encontrar alguém" do Comando-Chefe a quem pudesse expor a situação. Ao mesmo tempo, o drama adensava-se em Guileje: o inimigo passou todo o dia 19 a bombardear o quartel.

Coutinho Lima só consegue falar com a Repartição Operacional na madrugada de 20 e pede que Bissau envie para Guileje uma companhia de tropa especial (comandos ou pára-quedistas), viaturas e estivadores para assegurar o reabastecimento. Volta a pedir autorização para se deslocar a Bissau, o que acontece no dia 21. Aí, expõe a situação a Spínola e pede, de novo, reforços. O comandante-chefe dá-lhe uma resposta negativa quanto ao reforço de uma companhia de tropas especiais, retira-lhe o comando e entrega-o ao coronel Rafael Durão.

Coutinho e Lima é mandado de regresso a Guileje na qualidade de 2º comandante do COP5. Chega a Guileje ao fim da tarde do dia 21 e o quadro com que se depara é devastador: um furriel morto, depósitos alimentares destruídos, celeiros de arroz a arder, população refugiada dentro do quartel, falta de água e medicamentos, antenas de transmissões de rádio destruídas, poucas munições, abrigos e valas de defesa atingidos, centenas de rebentamentos dentro do quartel.

Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973

"A estadia nos abrigos era praticamente insuportável, pois neles se encontravam, além das NT, toda a população (homens, mulheres e crianças, cerca de 500 pessoas). Houve vários desmaios, onde o calor era imenso e o cheiro nauseabundo. Após as saídas do fogo IN [Inimigo], os rebentamentos demoravam cerca de 3 segundos só dando tempo ao pessoal para se deitar. De algumas vezes não se ouviram as saídas e houve vários rebentamentos no ar, que não eram de RPG; muitas granadas eram também perfurantes, devendo ter sido uma destas que provocou a morte do furriel, bem como outra que abriu uma brecha, de lado, num dos abrigos, ficando a armação de ferro à mostra. Todo o pessoal estava arrasadíssimo, não só física como psiquicamente, pois há cerca de 72 horas que o quartel estava a ser continuamente flagelado. Com a deserção do miliciano [ milícia ] Aliu Bari, a população estava alarmadíssima porque até aí o Inimigo não sabia onde eram os campos de arroz do pessoal de Guileje, não conhecia o trilho da população entre Gadamael e Guileje, nem tão-pouco sabia onde era o poço da água onde se fazia o reabastecimento, mas agora passava a ter conhecimento, através do referido desertor, de tudo isto."

O medo estava instalado nos abrigos de Guileje. Mas também a fome, a sede, a doença. O inimigo estava a menos de 500 metros do quartel a acertar o fogo com homens empoleirados nas árvores. A descrença era total e já ninguém esperava reforços de lado nenhum. Batiam as 21 horas do dia 21 de Maio quando Coutinho e Lima mandou reunir todos os oficiais e, depois de analisada a situação, decidiu retirar de madrugada para Gadamael pelo trilho da população. De imediato elaborou uma mensagem em que pedia autorização para retirar. Foram improvisadas umas antenas, mas a mensagem nunca chegou a seguir, apesar das tentativas que duraram toda a noite. A última que seguira fora no dia 21, às 14h15, a dizer "Estamos cercados por todos os lados."

Três décadas depois, Coutinho e Lima pergunta-se a si próprio que outra coisa poderia fazer: "Tinha-se perdido muito tempo. Mesmo que tivéssemos conseguido comunicar para Bissau naquele dia e tivessem decidido enviar reforços, as tropas não chegariam antes de três ou quatro dias, espaço de tempo que nunca conseguiríamos aguentar naquelas condições. Antes disso, o inimigo completaria o cerco poderosíssimo que estava a fazer com a consequente captura ou aniquilamento de toda a guarnição militar e população."

Ou ficava e a sua companhia era chacinada e o que restasse dela apanhado à mão pelo PAIGC ou, pelo contrário, recuava para Gadamael de imediato, jogando no efeito surpresa.Tomada a decisão de partir, foi elaborado um plano de destruições e inutilizações de material que não pudesse ser utilizado pelo PAIGC: minas Claymore, material de criptografia, incluindo as máquinas, arquivos, equipamento de transmissões, obuses, viaturas e armamento pesado. "Não fui pressionado por ninguém para retirar e parti do princípio que a minha vida militar acabava ali", diz Coutinho e Lima.

Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973

"Entre todos os factores que me levaram a decidir pela retirada, avulta a missão de defesa da população, cerca de 500 pessoas (...) [que] aceitou de bom grado a ordem para se preparar para seguir para Gadamael, não tendo havido nenhuma manifestação de pesar - 'choro' -, quer quando foi iniciada a retirada, quer na chegada a Gadamael."

Deviam ser umas quatro da tarde quando a coluna entrou na parada do quartel de Gadamael-Porto. Coutinho e Lima é preso e enviado para Bissau, para a fortaleza de Amura, comando militar da Guiné. Não iria esperar muito até sentir a ira de Spínola, que o transfere para o depósito de adidos no aquartelamento de Bra com ordens inabaláveis: encerramento num quarto em regime de incomunicabilidade total e o vencimento reduzido a metade. Ali fica um mês e só uma consulta de psiquiatria altera as condições da sua prisão: passa a receber visitas, tem licença para se entreter na horta da guarnição e ler jornais.

Todos os requerimentos que fez para poder dar explicações e aulas de Educação Física foram indeferidos pelo punho do próprio Spínola. Nessa fase, lia, fazia paciências com cartas, escrevia. Começou a perceber então que a sua situação gerava entre os militares um grande movimento de solidariedade. Não tinha dinheiro para contratar um advogado e houve uma quotização entre os oficiais, que asseguraram os 50 contos necessários para pagar a sua defesa ao advogado Manuel João da Palma Carlos. como é assegurado o subestabelecimento da causa num conjunto de mais quatro advogados, todos eles oficiais milicianos a prestar serviço na Guiné: Barros Moura, Correia Pinto, Sacadura Bote e Maia Costa. Estes oficiais chegaram a ser ameaçados por Spínola com o envio para a frente de combate por se terem disponibilizado a defender o "presumido delinquente".

Depois de libertado em Maio de 1974 é colocado na Academia Militar, no gabinete de estudos, e recebeu a metade do vencimento que lhe tinha sido retirado. Nunca chegou a ser julgado, mas não requereu qualquer reparação por danos morais, já que era sua profunda convicção a inutilidade da acção enquanto Spínola liderasse a JSN [Junta de Salvação Nacional].

"Acho que nunca fui prejudicado na progressão militar, mas na parte final, quando tinha de fazer um ano de comando para a promoção - devia comandar uma unidade de artilharia -, fiquei com a sensação de que andaram a passar a bola de um lado para outro", diz hoje, passados 30 anos.


Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973

"Relativamente à acusação de não ter cumprido a missão que me foi atribuída, solicito informação sobre qual parte da missão deixou de ser cumprida. Se se pretende referir à alínea 'garante a defesa eficiente dos aglomerados populacionais e o socorro em tempo oportuno dos reordenamentos da sua zona', declaro que defendi o estacionamento de Guileje até à altura da retirada, por considerar a posição absolutamente insustentável."

O tempo foi passando na vida de Alexandre Coutinho e Lima e as más memórias desvanecendo-se. Mas o mistério da recusa de conceder um reforço militar a Guileje permanece. "Nunca mais falei com Spínola sobre isso!" De há 31 anos para cá só ficou o silêncio.

Recordo-me de me terem perguntado num dos interrogatórios se tinha pensado nas consequências do meu acto para a Pátria. Limitei-me a responder que a minha preocupação era mais com a vida dos meus homens e da população do que com os altos valores da Pátria.
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(1) Vd. também post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael Transcrição do artigo de Serafim Lobato - "Estamos Cercados por Todos Os Lados" -, publicado na Pública, suplemento dominical do Público (28 de Dezembro de 2003).

sábado, 10 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P337: Projecto Guileje (7): recuperação do quartel

Guiné- Bissau > Guileje > 2005 > Restos da estrutura (pilares de cimento armado) que sustentava a rede de arame farpado do antigo aquartelamento. Mais de trinta anos depois, a natureza volta a impor o seu domínio sobre os homens e as suas máquinas de guerra.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Notícias dos nossos amigos da AD - Acção para o Desenvolvimento, a ONG guineense fundada e dirigida pelo Pepito (Carlos Schwarz):



Começaram os preparativos para a recuperação do Quartel de Guileje > 4 de Dezembro de 2005 > Reportagem

O Projecto Guiledje (respeitando a grafia usada pelos nossos amigos) (1) vai ser uma das prioridades da AD para 2006.

Parece haver um grande entusiasmo à volta desta iniciativa por parte dos quadros desta ONG guineense, mas também das "comunidades locais envolvidas, em especial as de Guiledje, Medjo e Iemberém, assim como do nosso parceiro europeu, o Instituto Marquês de Valle Flôr".

Foto nº 1 - O topógrafo faz o levantamento dos últimos pontos da quadrícula.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Contando com a colaboração de várias tabancas dos arredores, começou por se proceder à limpeza e demarcação da área do antigo quartel, "tendo-se identificado os diversos vestígios que facilitarão a localização das antigas infraestruturas militares".

O levantamento e elaboração da planta topográfica do quartel e arredores (cerca de 6 ha) deverão estar concluídos no final da primeira quinzena de Dezembro de 2005. Nelas ficarão registadas "as fundações das antigas instalações, os abrigos subterrâneos, os marcos, as trincheiras, a linha de pilares de arame farpado e as árvores mais imponentes que vão ser preservadas".

Foto nº 2 - O bom humor do nosso amigo Pepito não faltou na reportagem fotográfica que ele fez para nós.

Legenda: "Para que qualquer projecto tenha sucesso, exige-se o sacrifício de um animal para escorraçar os maus espíritos".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

É aguardada a chegada a Bissau, em 13 de Janeiro de 2006, do arquitecto responsável pela recuperação paisagista do local. Ele vai trabalhar com a equipa local na reconversão do quartel, incluindo "a instalação das palhotas para os ecoturistas, o centro de formação e aprendizagem rural, a sede do parque transfronteiriço, o centro de documentação histórico e as restantes infraestruturas de apoio organizativo".

Foto nº 3 - A presença dos chefes tradicionais locais é bem vinda e, mais do que isso, é "a garantia de que estão connosco e com o projecto".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Ainda este mês pensa-se poder fazer um furo de água de grande profundidade, de 40 a 60 metros, que irá permitir abastecer o quartel e as tabancas limítrofes.

O repórter fotográfico free-lancer Paulo Barata esteve na Guiné-Bissau no passado mês de Novembro, "onde produziu uma centena de fotos de excelente qualidade que irá servir para editar 9 cartões postais de Cantanhez e criar um cartaz de promoção ecoturística da zona".

Foto nº 4- A leitura da Corão e o juramento de fidelidade dos presentes é "garantia da união de todos na implementação do projecto".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Ainda segundo a nossa fonte, "em Portugal, o Capitão José Neto [membro da nossa tertúlia] disponibilizou cerca de 150 fotos de Guiledje dos anos 1967-68 que irão ser em breve digitalizadas com a colaboração do Filipe Santos" (que organizou o sítio da AD na NET e que pertence à Escola Superior de Educação de Leiria, um dos parceiros portugueses da AD - Acção para o Desenvolvimento).

Foto nº 5 - As escavações feitas têm trazido à superfície restos de armamento, carros, jericãs, etc.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Está igualmente avançada "a elaboração do Atlas Florístico de Cantanhez, preparado pelo especialista belga Professor François Malaisse [do Jardim Nacional Botânico da Bélgica], o qual será editado em Abril de 2006".

A AD anda agora à procura de "um especialista que faça o levantamento da fauna selvagem desta zona".




Foto nº 6 - "O pessoal estava mesmo com fome depois de terem feito mais de 4 horas de trabalho voluntário de limpeza e escavações no interior do antigo quartel".

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)










Foto nº 7 - Estas placas servem para se marcar a localização de cada uma das infraestruturas que existia antigamente.

A este propósito veja-se uma planta do aquartelamento, por nós publicada, de 1966, e da autoria do então Capitão Nuno Rubim, hoje coronel e talvez o maior especialista português em história da artilharia.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)


Recorde-se que Guileje fica(va) entre Mejo, a noroeste, na estrada que da(va) a Bedanda; Gadamel fica(va) a sul, ou sudeste, mesmo na fronteira. A localidade e o aquartelamento de Guileje eram cortados pela estrada que ligava a Mejo (à esquerda) e a Gadamael (à direita).

Foto nº 8 - Estes são antigos combatentes do Exército Português em Guileje, e que viviam no quartel. Presume-se que fossem milícias. O seu conhecimento do terreno permitiu mais facilmente a localização de cada um dos edifícios do quartel.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Por Guileje passaram diversas unidades, as duas últimas terão sido a CCAC 3477 (1970/71) e a CCAV 8350 (1972/73), esta uma unidade constituída essencialmente por soldados açorianos, incluindo gente da Ilha do Pico, segundo informações do Pepito.

Estima-se que vivessem na tabanca de Guileje cerca de 600 africanos, entre civis e militares, na altura em que o aquartelamento foi abandonado, em 22 de Maio de 1973, pelas NT (CCAV 8350, 1972/73), depois de um cerco de 5 dias pela guerrilha do PAIGC.

Foto nº 9 - "A reza final é um momento de grande união e de engajamento nas actividades que iremos fazer ao longo destes 4 anos", comenta o nosso repórter fotográfico, o Eng. Carlos Schwarz, mais conhecido na sua terra como Pepito.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)


E, por fim, uma referência simpática ao nosso Blogue e à nossa tertúlia: "De salientar que, também em Portugal, um grupo de antigos militares que fez a guerra na Guiné-Bissau e que se juntaram numa tertúlia, tomaram a iniciativa de criar a ONG (Organização Nova Guiledje), destinada a contribuir e dar apoio a esta iniciativa".

Este recado é para o Humberto Reis, que é o pai da criança... Na realidade, a ideia da ONG - Organização Nova Guiledje não passa disso mesmo, uma ideia bonita que terá de se reproduzir em ideias concretas e efectivas no domínio da cooperação e da solidariedade.

Foto nº 10 - O futuro do projecto de Guileje também pode passar pela inteligência e generosidade de muitos outros actores e figurantes que não aparecem nesta sequência fotográfica, incluindo os militares portugueses que por lá passaram... Pelo menos uma dúzia de companhias, perfazendo mais de 1500 homens...

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Ainda recentemente perguntei ao Pepito se tinha contactos com os ex-militares açorianos. A resposta dele foi não, embora ele saiba que nos Açores e em particular na Ilha do Pico vivem alguns dos que lá estiveram, provavelmente integrados no grupo dos "gringos açorianos" (sic), a CCAÇ 3477 (1971/72). Mas a CCAV 8352 (que só lá esteve seis meses, entre Dez 1971 e Mai 1973) , também era constituída por pessoal açoriano (2).

Na mesma data (21 de Novembro último), o Pepito mandou-me, em anexo, "um quadro que um amigo meu português, António Estácio, me ajudou a fazer, listando todas as companhias que passaram por Guiledje, onde estão os nomes de algumas pessoas que nos têm disponibilizado documentos (fotografias, memórias e informações)"... É uma lista ainda "muito limitada, a necessitar de identificar mais pessoas interessadas em colaborar e a precisar algumas das datas em dúvida".

Aqui fica a lista das unidades militares que estiverem aquarteladas em Guileje (1964-1973):

Unidade / Período de tempo / Pessoa de Contacto

CCAÇ 676 / De Set 1964 a (?) / Ninguém

CCAÇ 726 / De Out 1964 a (?) / Teco

CCAÇ 1424 /De Jul a Nov 1966 / Ninguém (2)

CCAÇ 1477 / De Dez 1966 a Jun 1967 / Ninguém (2)

CART 1613 / De Jun 1967 a Mai 1968 / José Neto (2)

CCAÇ 2316 / De Mai 1968 a Jul 1969 / Ninguém

CART 2410 / De Jul 1969 a Mar 1970 / Ninguém

CCAÇ 2617 (Magriços) / De Mar 1970 a Fev 1971 / Abílio (2)

CCAÇ 3325 / De Fev a Dez 1971 / Parracho

CCAÇ 3477 (Gringos de Guiledje) / De Dez 1971 a Dez 1972 / Ninguém

CCAV 8350/72 (Gringos Açorianos ) / De Dez 1972 a Mai 1973) / Ninguém (2)
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(1) Vd. post de 6 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXL: O melhor que Portugal nos deixou foi a língua (Pepito)

(2) Vd. post de 5 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXIX: José Neto, outro senhor de Guileje (CART 1613, 1967/68) . O nome completo do Abílio, da CCAÇ 2617 (Magriços): Abílio Alberto Pimentel da Assunção.

O Capitão (hoje, coronel) Nuno Rubim deve ter pertencido a uma das Companhias que esteve em Guileje no ano de 1966: a CCAÇ 1424 ou a CCAÇ 1477.

Por fim, da CCAV 8350, temos notícia do ex-furriel miliciano, ranger, Casimiro Carvalho (que pertenceu à Guarda Nacional Republicana / Brigada de Trânsito, estando hoje reformado). Encontramos no sítio da Associação de Operações Especiais (AOE) uma mensagem e o contacto dele, no livro de visitas, com data de 4 de Setembro de 2004:

"É a primeira vez que escrevo aqui. Fui do 2º Curso de Sargentos de 72. Fui para a Guiné integrado na CCAV 8350, infelizmente célebre por ter estado no maldito Inferno Guileje-Gadamael Porto.

"Para quem me conhece sou o da BT/GNR (aposentado), para os restantes sou mais um orgulhoso RANGER que aqui deixa a sua marca indelével. Parabéns pelo site, parabéns aos carolas que dão o seu tempo... e não só, em prol desta família tão grande que dá pelo nome de RANGERS (...). José Carvalho

Guiné 63/74 - P336: Cancioneiro de Mansoa (4): a arte de ser 'ranger' (Magalhães Ribeiro)

Dos cadernos do Magalhães Ribeiro, ex-furriel milicano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, o mesmo que em 9 de Setembro de 1974 teve o privilégio de arriar a última bandeira portuguesa, no quartel de Mansoa (1), na presença de altos representantes do PAIGC que, por sua vez, hastearam a bandeira da nova República da Guiné-Bissau...


Têm 3 minutos p’ra estar na parada

Safa!... desta já eu me livrei!
A recruta estava concluída,
Nova etapa se apresentava,
Chegara a hora da partida.

Nova guia de marcha recebi,
Dizia: apresente-se no C.I.O.E.
Em baixo noutra linha, Lamego;
Bem, pensei, vamos lá ver como é.

Chegado à cidade logo vi:
C.I., quer dizer, Centro de Instrução,
O.E., Operações Especiais;
«Meti-me noutra alhada, pois então!»

- Você vai p’ró quartel em Penude…
Rápido, já devia lá estar!
- Mas, eu ainda agora cheguei…
- Caluda qu’aqui, até tens de voar!

Lá andamos uns tantos quilómetros
Num Unimog que, de repente, parou:
Apenas se viam dois barracões
À volta, mato... - A gente já chegou?

Veio um aspirante e berrou: - Desçam…
Vão ali, e apresentem-se, já!
Comecei então a entender,
Não estávamos ali para tomar chá.

- Aonde é o quartel?... perguntei.
- Estás a querer gozo, ó piço?
- Perguntar não ofende!... disse eu.
- Tu já estás no quartel, ó chouriço!

Ora esta especialidade
Também conhecida por Ranger,
Não pode ser descrita no íntimo,
Não vá ser lida por um nabo qualquer.

Não só devido ao grande risco
De interpretações distorcidas
Mas pela dignidade e respeito
Que a todos Rangers são devidas.

Porque… por muito que se rebusque,
Por muitas palavras que escrevamos,
Jamais se dirá da camaradagem
E das amizades qu’ali enraizamos.

Para ultrapassar a instrução,
Seus efeitos psíquicos e físicos,
Aprende-se onde, além das teorias,
Se esgotam os limites práticos.

Ao longo de onze semanas
Muitas vezes abismado constatei
Q’uma réstea de alma reservava
Depois de pensar já arrebentei.

Mas para não criar mais um tabu
E ser acusado de coisas esconder,
Só me resta dar uma ligeira noção
Do que no curso nos é proposto vencer.

Assim, um Ranger é aquele que:
Vê um Fantasma e beija um morto,
Numa Largada faz uma noitada
E na Guerrilheira não fica absorto.

Tal como Cristo vai ao Calvário
Nos Esgotos prova, mas não abusa;
Seu dia tem 24 horas
E ao Esforço final não se recusa.

Dá o que pode na Dureza 11
O que não pode na Ranger ousa
Vai de Slide e vem de Rapel
Dança a Chula-picada e repousa.

Se a Primeira dose for de bom tinto,
Disfarça sempre o Zig Zag
Ressacas, só na Piscina Ranger
Antes que o Vampiro a estrague.

Vai pescar em Parido e Reconcos,
Namora a Meadas com paixão,
Adora campismo no parque Vilar,
Só bebe águas marca Balsemão!

Desvendados estes segredos,
Nestas esclarecedoras quadras,
Fica quase tudo aqui escrito
Que é possível dizer, em palavras.

Mas se leu isto e tem dúvidas
E pretender conhecer algo mais,
Ofereça-se como voluntário
Para as Operações Especiais.

Para o curso de Ranger concluir
Diga-se, em abono da verdade,
São precisas três características:
Carácter, Energia, e Dignidade

Mas só se é Ranger a 100%
Da mais elitista qualidade
Se este for ainda dotado de:
Disciplina, Patriotismo e Lealdade


- Atenção, têm três minutos p’ra estar na parada...
E, assim, em Penude, pr’ó combate nos preparamos
Éramos só cento e tal, mas o nosso lema diz;
“Que os muitos por ser poucos não temamos”.

Magalhães Ribeiro - Soldado Instruendo nº 114 CIOE - Penude - Turno: 4º/73 - 3ª equipa - 4º Grupo

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(1) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P335: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela"

Publicamos hoje a IV (e última) parte do depoimento do brigadeiro Hélio Felgas. Selecção: minha e do Humberto Reis. Fonte: "Os últimos guerreiros do império" (Amadora: Erasmo, 1995. 135-139)

Trata-se do Capº III de um relatório que o então coronel, comandante do agrupamento de Bafatá, enviou ao General Spínola, "então meu Comandante-Chefe, onde defendia que a concessão da independência à Guiné Portuguesa não iria agravar, antes pelo contrário, a situação em qualquer das outras Províncias Ultramarinas".

Nesse documento Hélio Felgas defendia igualmente o seu ponto de visat segundo o qual "só no campo político podia ser encontrada uma solução honrosa e vantajosa, já que as nossas possibilidades militares se encontravam muitos reduzidas", face a um inimigo que se fortalecera em demasia.

No capítulo III do relatório, o autor debruça-se sobre "as nossas possibilidades militares". Algunas das suas frases, merecm destaque:

"Não é com os actuais meios, mesmo reforçados, que podemos vencer o Inimigo de hoje".

"Ou se faz a guerra ou se acaba com ela. Assim é que não chegaremos a qualquer solução favorável".

"Há que abandonar radicalmente largos pedaços de território e concentrar os meios em áreas reduzidas que deverão ficar totalmente passadas a ferro".

"Há que empregar largamente os desfolhantes e outros agentes químicos que destruam as culturas".

"Ou se destrói tudo ou de nada serve a operação".

"Deve ou não deve a Aviação atacar e destruir estas tabancas e a sua população ? Valerá a pena um tal massacre ou não valerá? Isto é que é preciso saber (...)".

"Calculando, por baixo, os efectivos In na Guiné, diremos que ele tem 10 000 homens em armas (só combatentes). Nós temos 20000, mas uma boa parte é consumida nas guarnições dos aquartelamentos. Precisaríamos ter 60000, pelo menos. E, mesmo assim, a proporção seria de 1 para 6, o que, neste tipo de guerra, é ainda pouco".

"(...) o problema não é essencialmente militar. É acima de tudo, político".


As nossas possibilidades militares

Neste final de 1968 a situação militar na Guiné chegou a um ponto tal que só muito dificilmente e com muito optimismo se poderá antever uma melhoria significativa.
Nos gabinetes e em frente da carta talvez não seja difícil encontrar-se uma solução vitoriosa. Os cercos, as batidas, os golpes de mão, o reordenamento das populações e sua autodefesa, tudo isso é aí fácil de fazer. No mato, porém, é muito difícil, e quem escreve isto tem 3 anos de mato.

Mesmo que venham mais helicópteros, mais «paras», mais Artilharia e mais Aviação e ainda que os efectivos das forças terrestres sejam aumentados e estas sejam adequadamente dotadas com as granadas, munições e armas colectivas que agora lhes faltam, mesmo que isso suceda em breve prazo, nem assim o nosso êxito militar será garantido. O inimigo está demasiado bem armado, bem apoiado pela população, bem organizado e bem enraizado num terreno que lhe é favorável, para poder ser batido e expulso, pelo menos com a facilidade que se julga.

Realize-se uma operação em larga escala e veja-se o resultado: uns mortos e uns feridos (nossos e deles), umas armas apreendidas, uns acampamentos destruídos e que mais ? Mais nada. Se ao Inimigo não convier o contacto, basta esconder-se no mato e esperar que as nossas tropas se retirem. Ele lá ficará e reaparecerá quando quiser, talvez até emboscando as NT quando elas, julgando-se vitoriosas, regressarem aos aquartelamentos.

Aliás, o que se entende por uma operação em larga escala ? 4 on 5 companhias de forças terrestres, uma ou duas de «paras» e comandos e a Aviação. Que faremos com estes efectivos? Uma operação, mais nada. Alguns dias depois tudo estará na mesma.
Há dias, aproveitando um PCV de uma Operação, andei «à cata» de acampamentos inimigos. Descobriram-se 5 ou 6. Assim que eram descobertos chamava-se a Aviação que os bombardeava. Mas o que era a Aviação ? Era uma parelha de Fiats que lançava as suas bombas, aliás com grande precisão. no objectivo indicado pelo PCV. Ou então eram os T-6 (só um), igualmente com excelente pontaria.

E eu pensei: com estes pilotos, se em vez de dois Fiats tivessem aparecido 15 ou 20, outros tantos T-6 e uma meia dúzia de helis armados então sim, ter-se-ia feito uma acção lucrativa, em especial se fosse coordenada com o lançamento de uma companhia em helis.

Não é com os actuais meios, mesmo reforçados, que podemos vencer o Inimigo de hoje.
Em minha opinião, toda a actividade militar na Guiné tem de ser mudada. Há que abandonar radicalmente largos pedaços de território e concentrar os meios em áreas reduzidas que deverão ficar totalmente «passadas a ferro». A actual dispersão não pode dar qualquer resultado.

Ou se faz a guerra ou se acaba com ela. Assim é que não chegaremos a qualquer solução favorável.

Há que empregar largamente os desfolhantes e outros agentes químicos que destruam as culturas. De que serve atacar um acampamento In se a um quilómetro de distância ficaram tabancas e lavras que voltarão a ser utilizadas pelo In, apoiando-o e permitindo-lhe que lá se mantenha? Ou se destrói tudo ou de nada serve a operação.
O que e preciso definir bem é este problema da população civil sob controlo do In. Dezenas de milhares de nativos vivem nas regiões sob domínio do In, em tabancas perfeitamente visíveis do ar. Deve ou não deve a Aviação atacar e destruir estas tabancas e a sua população ? Valerá a pena um tal massacre ou não valerá? Isto é que é preciso saber, pois enquanto estas populações existirem o In aguentar-se-á, estruturar-se-á e estará em condições de nos incomodar.

For outro lado, convém, talvez, olharmos para o que se passa no Vietname - que tem bastantes semelhanças com a Guiné. Mais de meio milhão de norte-americanos extraordinariamente bem armados e auxiliados por 850000 soldados sul-vietnamitas. nao conseguem liquidar um adversário que conta apenas 140000 homens, dos quais só 80000 são tropas regulares do Vietname do Norte. A proporção é de 1 para 10, em forças terrestres. Além disso, o Vietcong e o seu aliado norte-vietnamês não utilizam nem Aviação nem Marinha e só apresentaram uma amostra de blindados.
Apesar desta desproporção, o Vietcong não foi vencido e esta prestes a vencer.
Na Guiné, o In não é tão bom combatente como o Vietcong e o apoio externo que tem recebido, agora importante, não se compara com o que a Rússia e a China concedem ao Vietcong. Essas são as duas principais diferenças que notamos. Aliás, em parte compensada pela deficiência dos nossos efectivos, do nosso armamento, da nossa instrução militar, do nosso apoio aéreo e naval.

Para podermos dominar a guerrilha na Guiné precisaríamos triplicar, pelo menos, os efectivos agora existentes nos três ramos das forças armadas. E mesmo assim ficaríamos longe da proporção viet-namita (que não foi suficiente, note-se, para se obter a vitória militar). Calculando, por baixo, os efectivos In na Guiné, diremos que ele tem 10 000 homens em armas (só combatentes). Nós temos 20000, mas uma boa parte é consumida nas guarnições dos aquartelamentos. Precisaríamos ter 60000, pelo menos. E, mesmo assim, a proporção seria de 1 para 6? o que, neste tipo de guerra, é ainda pouco.

Eu bem sei que quem não conhece o mato da Guiné, nem as dificuldades deste tipo de guerra, sente-se inclinado a considerar exageradas as minhas palavras. Infelizmente, tenho a certeza do que afirmo. Deixou-se o In inchar demais para se poder agora desalojá-lo com os meios que temos.

Esta afirmação pode parecer chocante, em especial para as pessoas que não conhecem o assunto com a profundidade que eu conheço. E com certeza que não me acarretará simpatias ou louvores, em especial por parte das pessoas que só gostam de ouvir aquilo que lhes agrade. É evidente que eu ficaria muito mais bem visto se traçasse o quadro da situação militar na Guiné, muito mais optimista, ainda que menos verdadeiro. Talvez até fosse louvado se afirmasse que a guerra na Guiné, tendo chegado ao ponto a que chegou, se pode vencer no campo militar e sem grande dificuldade.

Mas isso não o faço eu, até porque a euforia duraria pouco e seria, em breve, desmentido pelos factos. Eu desejo salientar que só pode mostrar-se optimista a quem conhecer a guerra da Guiné apenas do seu gabinete ou da sala de operações. Eu desejo afirmar que não estou imbuído de qualquer senti-mento derrotista. Continuo a demonstrá-lo no mato, mantendo uma actividade ofensiva a que não poupo os meus subordinados nem me poupo a mim. Mas o que acho é que chegou a altura de se dizer a verdade. E a verdade é que, na Guiné, estamos apenas aguentando a situação. Estamos à espera que o In adquira suficiente estrutura e capacidade militar para correr connosco. Limitamo-nos a espicaçá-lo e ao de leve. Mostramo-nos incapazes de o desalojar definitivamente seja de que área for.

E tudo isto porque não temos meios nem efectivos militares adequados e suficientes.
Mas ainda que os tivéssemos e que conseguíssemos empurrar o In em todas as frentes, até às fronteiras, que faríamos depois? Como conseguiríamos evitar novas infiltrações enquanto o Senegal e a República da Guiné derem a ajuda que dão ao PAIGC9 . A guerra no Vietname ensina-nos que o bombardeamento do Senegal ou do República da Guiné não resolveria o problema, pelo contrário, complicá-lo-ia. E isto porque o problema não é essencialmente militar. É acima de tudo, político, a guerra na Guiné só pode acabar se Portugal conseguir convencer o Senegal e a República da Guiné deixarem de auxiliar o PAIGC ou qualquer outro movimento cujo objectivo seja independência da Guiné-Bissau.

Não nos parece, porém, que em face da mentalidade internacional agora vigente, alguém bem informado considere possível Senegal ou a República da Guiné apoiarem a nossa política ultramarina. Porque só apoiando essa política os governos de Dakar e Conakry poderiam suspender o auxílio ao PAIGC.

Guiné 63/74 - P334: Os poetas da Guiné-Bissau (1): Julião Soares Sousa

Selecção de Jorge Santos.

Autor: Julião Soares Sousa

CANTOS DO MEU PAÍS

Canto as mãos que foram escravas
nas galés
corpos acorrentados a chicote
nas américas

Canto cantos tristes
do meu País
cansado de esperar
a chuva que tarda a chegar

Canto a Pátria moribunda
que abandonou a luta
calou seus gritos
mas não domou suas esperanças

Canto as horas amargas
de silêncio profundo
cantos que vêm da raiz
de outro mundo
estes grilhões que ainda detêm
a marcha do meu País

In: "Um Novo Amanhecer". Coimbra: Livraria Minerva.1996.

Nota encontrada na Net sobre o autor:

"The author is a native of Bula, República da Guiné-Bissau. In 1990 he contributed to the review A Gália of the Associação Galaico-portuguesa da Língua (Santiago), and the newspaper A cabra. He has also contributed poetry to Journal da Maia. At the time these poems were published the author was Coordenador Geral do Grupo de Reflexão e Debate / África, located in Coimbra. A student of history specializing in Portuguese expansion, he was active in the Estudantina Universitária de Coimbra from 1992".

Fonte: RICHARD C. RAMER > Old & Rare Books > RECENT PORTUGUESE PUBLICATIONS BULLETIN 19 > October 1999

Guiné 63/74 - P333: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (2) (João Tunes)


Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969:

Um dos grupos de combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade . De pé, na terceira fila, os furriéis milicianos António Levezinho e Humberto Reis, membros da nossa tertúlia. Os soldados, do recrutamento local, eram fulas e futa-fulas. Estes, em geral distinguiam-se dos restantes pela sua elevada estatura. A CCAÇ 12 fazia parte da "nova força africana" e, por sugestão do próprio Spínola, ficou afecta à Zona Leste (que correspondia, grosso modo, ao chão fula).

© António Levezinho (2005)

Camarada Luís, nosso Cmdt em Chefe do "Nosso Blogue",

Li com toda a atenção o texto do nosso camarada José Neto sobre a questão da diferenciação/divisão étnica. Penso que percebi a intenção nobre das suas palavras. Sobretudo sábias quando relativiza, e muito bem, a constituição de qualquer forma de hierarquizar superioridades ou inferioridades étnicas. Mas julgo que não me será levado a mal se disser que, no essencial, respeitando e admirando o seu espírito pacificador, discordo dele. Sobretudo, quando diz:

"É hora de ajudarmos os guineenses a alhearem-se das suas divisões ditas culturais e prosseguir o seu destino com as PESSOAS que constituem o seu povo. Isto de "respeitem os meus", "os outros são uns malandros" não leva a lado nenhum. Nós já há muito que esquecemos os Celtas, Vândalos, Suevos, Iberos e outros que tais que povoaram este cantinho da Europa, onde continuamos a fazer força para "entrar"."

A diversidade étnica da Guiné, tendo para mais em conta o elevadíssimo número de etnias concentradas num pequeno território, é um problema, mas também um bem. Um mal, porque é favorável, ainda nas suas condições sócio-económicas locais, mais à divisão e aos egoímos do que à consolidação da unidade nacional. Um bem, na medida em que enriquece o mosaico cultural e usos e costumes da Guiné e exprime a força das persistências culturais e sociais das várias etnias ali presentes e que souberam, face à ocupação militar portuguesa e á proximidade de etnias muito diferentes, preservar as suas culturas e os seus hábitos.

E julgo que o "milagre" desta permanência de vizinhanças, mantendo-se intocáveis as endogenias próprias de cada etnia, foi possível pela conjugação de dois factores - a unificação de salvaguarda perante o ocupante europeu (quando ele existiu); o país ser pobre (não propício a processos de acumulação capitalista e á consequente estratificação social) e, simultaneamente, o terreno ser de tal forma fértil que os mais desvalidos não correm o risco de serem derrotados pela fome (a doença é o grande "exterminador").

O fim da ocupação portuguesa levou os guineenses a terem de resolver, entre si, dois problemas (novos mas que já existiam no seio da guerrilha):

- Por um lado, a questão dos "caboverdianos", cuja supremacia, pela sua escolarização, se manifestava - no lado colonial - pela sua ocupação dos lugares administrativos do aparelho de domínio colonial, e, na guerrilha, por ocuparem os maiores lugares de destaque entre os quadros destacados do PAIGC e, na altura da independência, serem os com melhores condições para substituírem os portugueses nos comandos do aparelho do Estado. Sabe-se como o problema foi "resolvido".

- Segundo, como, "resolvido" o primeiro, se iam arrumar as várias etnias em termos de prevalência social, contando aqui a superioridade numérica forte de uma das etnias (com um correspondente peso no aparelho militar) face a outras, com hábitos e tradições de se auto-atribuírem finalidades aristocráticas na escala de valores infra-africanas. Ao mesmo tempo que tinham de se entender com a afirmação virgem de um espírito de unidade nacional, por si próprios, desaparecido que foram os factores "unificadores" quer da oposição ao ocupante colonial e, depois, liquidada a "supremacia caboverdiana".

O domínio colonial tudo fez, dividir para reinar, para explorar e acirrar os conflitos infra-guineenses. A "psico" tentava virar as populações indígenas e os guerrilheiros contra os "chefes caboverdianos" do PAIGC; dava um claro favorecimento às etnias islamizadas (sobretudo, os fulas) por considerar que, por via dessa influência religiosa, seriam mais relapsos a aceitarem os fundamentos ideológicos do PAIGC, com maior capacidade de penetrarem no comunitarismo próprio das etnias de cultura animista (e não foi por acaso que o PAIGC penetrou mais profundamente nas regiões balantas e menos nas regiões fulas).

Entretanto, o assassinato de Amílcar Cabral, com as batutas e os dedos da Pide e de Spínola, foi possível como fruto das divisões inter-étnicas e da aversão aos caboverdianos que a "psico" conseguiu transportar para o campo inimigo. Uma das nossas heranças que ficaram na Guiné, foi essa.

A unidade nacional não se decide nem se decreta. É mais uma questão de tempo que de vontade. E de condições sociais, políticas, culturais e económicas, umas objectivas e outras subjectivas. O exemplo da "uniformidade" portuguesa, que o camarada José Neto invoca, não colhe, porque uma excepção nunca vale para valer como regra. Olhe-se aqui, para o lado, para os espanhóis. Para os belgas, os suíços, os franceses, os da Grã-Bretanha, os italianos, os jugoslavos, por aí fora. E como é nada (tirando a moeda e a liberdade de circulação de pessoas e mercadorias) a identidade e a unidade europeias.

Portugal, no quadro europeu, por razões que se podem discutir mas que levavam a uma outra conversa larga, é um caso quase único, verdadeiramente excepcional, beneficando da uniformidade longeva das fronteiras e do expansionismo ultramarino e migratório que aliviou tensões internas. E se o caso português não serve como exemplo para a Europa, como podia funcionar para África? Quando, exactamente, a herança que lá deixámos foi a do acirrar rivalidades para impedir o espírito de unidade nacional que nos era um factor adverso (em termos de domínio colonial e de actuação militar) e uma pedra de toque da ideologia independentista?

Voltando ao bem que é a riqueza da diferenciação étnica da Guiné. Se for possível, não sei se é, nem sei se não é, seria óptimo para os guineenses e para o mundo, que em vez de um quadro uniforme de africanos engravatados, de pasta numa mão, computador na outra e telemóvel ao ouvido, eles não perdessem a sua enorme e polifacetada riqueza cultural das suas diversidades e raízes.

De qualquer forma, tudo o que se faça para um povo se "alhear" das suas realidades, imprimindo-lhe uma uniformidade não aceite, é chover no molhado. É adiar e agravar o problema. Que só é problema se não for sublimado culturalmente e quiser serresolvido pela força das armas (o que, infelizmente, tem acontecido vezes demais). De qualquer forma, é um problema (até de soberania cultural) que só os guineenses devem e podem resolver.

Nós, portugueses, não temos nada para "ajudar" (deixámos maus exemplos e péssimas heranças, não temos "psico" para ajudar á festa). Persistir na ideia de "ajudar os guineenses" a resolver os seus problemas políticos é, parece-me ser, um paternalismo retardado. Perdemos essa oportunidade nos séculos que lá estivemos, e em vez disso, trouxemos escravos e o amendoim, dividimos e metralhámos. Agora, resta cooperar e confiar na sua capacidade de que resolvam, entre si, os seus problemas de diferenças. Desejando-lhes o melhor, é claro.

Abraços a todos os camaradas tertulianos.
João Tunes

Guiné 63/74 - P332: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (1) (A. Marques Lopes)

Guiné > Cacheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968 > "Os Jagudis", o grupo de combate do Alferes Lopes :

"Na altura, o General Spínola deu indicação para se dividir a companhia em pelotões de acordo com as etnias (o tirar partido das rivalidades entre eles). Como eu era o alferes mais antigo, o comandante da companhia perguntou-me o que é que eu queria: 'Quero os balantas', disse eu. E o meu grupo de combate foi quase todo de balantas (tinha um cabo fula, o Mamadu, e três furriéis brancos, além de mim). Ouviam a rádio do PAIGC mas demo-nos sempre bem. Porque eu sempre fiz por isso. Por exemplo: um dia, fui com um que estava doente através da mata até Bigene, porque em Barro não havia médico; emprestei dinheiro a todos, mas todos me pagaram quando me vim embora"...

© A. Marques Lopes (2005).


Caros camaradas:

Percebo as intenções daquela monografia do EME- Estado Maior do Exército que o Sousa de Castro (1) nos trouxe ao conhecimento (as intenções do EME , as do nosso camarada também sei que foi o seu inestimável papel de informação de todos nós sobre como as coisas eram e como se gizaram para nos fazer estar lá): foi, com certeza um documento que chegou aos escalões superiores, não creio que tenha chegado aos alferes nem aos outros, pelo menos nunca tive informação de nada do género (eu não estava em 1971, mas é natural que tivesse havido mais coisas idênticas...).

Era o elemento para o trabalho psicológico dos mais responsáveis, para a sua actuação junto da população, para o tratamento e saber que partido tirar junto de cada etnia. Não vejo mal nisso como método, pelo contrário, acho que eram fundamentais acções desse género, é dos livros: há que conhecer o meio em que nos movemos.

De um modo geral estou de acordo com o documento, sobretudo nos aspectos da organização sociológica de cada etnia, dos usos e costumes de cada uma, das vivências e relaçõe internas, do passado e conflitos históricos entre elas. Creio que tudo isso foi tirado de trabalhos de investigadores e historiadores da época mais remota do colonialismo. E seria assim na altura, não tenho dúvidas.

Já as tenho quando se transmitiu, intencional ou intencionalmente, não sei, ideias já não acertadas, em minha opinião, sobre o comportamento individual dos elementos de cada etnia. Possivelmente, a transmissão dessas ideias, vindas do colonialismo antigo, não teve em conta que durante os anos da guerra alguma coisa mudou no comportamento das populações, que pela situação em si quer pela própria acção político-pedagógica do PAIGC. Transmitiram-se, como diz o Luís Graça, alguns estereótipos já não consentâneos com a realidade.

Alguns exemplos da minha experiência:

- como já vos disse num dos meus posts anteriores, dos mais antigos, quando me foi dado escolher, escolhi os balantas para o meu pelotão em Barro; porque sabia que trabalhavam de sol a sol nas bolanhas, uma práctica adquirida nos tempos em que foram escravizados pelas etnias islamizadas, ainda antes da chegada dos portugueses à Guiné, eram esforçados trabalhadores; porque sabia da sua frontalidade, se gostassem de mim mostravam, se não gostassem eu também o veria - mas gostaram de mim; ladrões? também ouvi falar nisso, e não digo que não seja essa a sua tradição "com a consciência de um acto não criminoso", como diz a monografia, no entanto, também vos contei num post anterior, emprestei dinheiro a todos quando estive em Barro e, quando me vim embora, todos me pagaram - certamente uma situação diferente da "manifestação de perícia própria da tribo";

- mas tinha no meu pelotão um cabo fula, o único, o Mamadu, um grande amigo meu e amigo de todos, na paz e na guerra; o Lamine Turé, um guineense do meu pelotão em Geba, era fula e grande guerreiro, ficou ferido quando eu o fui; preguiçosos, os fulas? penso que se referem, sem explicações, à situação decorrente dos cânones da sua religião: o homem manda, tem profissões dignas (ourives, ferreiro...), a mulher trabalha no campo (na bolanha...), por isso eles estão à porta da morança, na sua arte, ou a falar e a jogar, e a mulher (ou mulheres) a trabalhar;

- quanto aos felupes, Susana, Varela e também da zona de S. Domingos, entrando pelo Senegal, é verdade que eram conhecidos por terem hábitos guerreiros característicos: cortavam a cabeça do inimigo, seccionavam a calote superior do crâneo e bebiam por aí o sangue do morto, como forma de adquirirem as suas potencialidades; com arco e flechas, alguns dos incluídos nas tropas portuguesas eram mais temíveis em acção do que com G3; quanto a casamentos, a felupe que casou com Luís Cabral (caboverdeano) deve, então, ter cometido uma "falta muito grave"...

Há diferenças, evidentemente, e por alguma razão tem havido acusações de tribalismo em várias situações conturbadas da Guiné-Bissau. O próprio Amilcar Cabral escalpelizou essas diferenças no livro "Unidade e Luta" e apontou caminhos para o seu encontro.

De um modo geral, acho que aquela monografia dá uma ideia, para quem não sabe nada. Terá sido esse o objectivo.

A. Marques Lopes
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(1) E-mail posterior (9.12.2005) do Sousa de Castro: "Não há dúvida nenhuma que a minha intenção foi informar a tertúlia do que se escrevia na época, nem me incomoda se alguns tertulianos estão de acordo ou não, nem tenho conhecimento nem vivência para poder opinar sobre esta pequena monografia. Esta brochura foi distribuída a todos os combatentes que embarcaram, em Janeiro de 1971, mas não me recordo se foi no RAP 2 ou nos ADIDOS em Lisboa. De qual quer modo dentro de algum tempo vou enviar mais um capítulo desta pequena monografia".

quinta-feira, 8 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P331: Do Pel Caç Nat 51 aos demónios étnicos que atormentam o povo da Guiné (José Neto)

1. Texto do nosso amigo e camarada José Neto (2º sargento da CART 1613, Guileje, 1967/68; hoje capitão reformado):

Meu caro amigo Luis Graça:

Acabo de ler o arrazoado sobre Manjacos, Felupes e por aí fora. E chamo-lhe arrazoado pelo seguinte:

Muito cedo, aos 21 anos, fui para Macau como Soldado de Artilharia. Naquela cidade maravilhosa adquiri instrução e aprendi a conviver com pessoas que tinham da vida uma visão diferente da que me fora ensinada. Note que, ao tempo, da guarnição faziam parte dois Batalhões de Moçambicanos, que entre si se denominavam por Landins e Macuas. Dizia-se que eram rivais em África, mas ali eram militares e apenas disputavam o aprumo com que serviam o Exército Português.

Vim de Macau (empurrado pelos Decretos) dez anos depois, com o posto de 2º sargento, casado com a filha dum camarada (metropolitano), uma filha com 17 meses e uma riqueza interior que, modéstia à parte, não encontrei na generalidade dos meus camaradas de cá.

Quatro meses depois (1962) avancei (... em força) para Cabinda e lá encontrei os Cabindas e os Mossorongos. Diferentes... iguais, isso nunca me incomodou.

Em fins de 1966 calhou-me a Guiné.

Em 1970 aí vai o seu amigo para Angola, já 1º sargento e aprovado para ir ao Curso de Oficiais em Águeda (ECS). Em Calunda, que fica naquele pequeno rectângulo que o mapa de Angola tem à direita, encontrei de tudo. Numa tribo mandavam os homens, noutra as mulheres, uns eram indolentes, outros diligentes, enfim a África era assim. E agora apetece-me perguntar: E a Europa é diferente?

Voltemos à Guiné.

Ali só privei com Fulas, de Buba, Colibuia, Cumbijã e Guilege (Guiledje). Islamisados, inteligentes, sobrevivendo com muito engenho e, principalmente, de sorriso aberto e franco.

Tive o privilégio de, com o meu Capítão (Eurico de Deus Corvacho), ser recebido, em Aldeia Formosa, pelo senhor Cherno Rachide, o chefe espiritual daquela zona que se estendia para além da fonteira (1).

Fiquei impressionadíssimo com o porte e as palavras sábias que nos dispensou. Na despedida apenas nos disse (em francês!!!): "Procurem não maltratar o meu povo".

Em Guilege fui amigo (repito: "amigo") do Régulo porque tinhamos um traço comum: Ele também esteve em Macau, fazendo parte (como soldado) duma companhia guineeense para ali destacada no fim da II Guerra Mundial. Era um chefe inteligente e de poucas palavras.

E também tive em Guilege uma "caldeirada" chamada Pelotão de Caçadores Nativos nº 51. Era comandado por um Alferes Miliciano (Perneco) e os furriéis e cabos eram metropolitanos. Eram cerca de trinta soldados de várias etnias (cá estão as malfadadas etnias) e criavam-nos mais problemas que os duzentos e tal transmontanos, minhotos, beirões e algarvios. Esquecia-me que também tínhamos três alentejanos.

Aquele Pelotão era uma pequena amostra do que é hoje a República da Guiné Bissau.

E por fim a minha opinião: É hora de ajudarmos os guineenses a alhearem-se das suas divisões ditas culturais e prosseguir o seu destino com as PESSOAS que constituem o seu povo. Isto de "respeitem os meus, os outros são uns malandros" não leva a lado nenhum.

Nós já há muito que esquecemos os Celtas, Vândalos, Suevos, Iberos e outros que tais que povoaram este cantinho da Europa, onde continuamos a fazer força para "entrar".

Cumprimentos do
Zé Neto.
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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)

(2) Que dizer deste comentário de um homem vivido e sábio como o Zé Neto ? Apenas reforçar a sua sugestão: o que importa são as pessoas... E é com cada um dos guineenses, com a sua individualidade como pessoa, que a Guiné-Bissau vai construindo o seu futuro e ainda vai ser um grande país... Aqui fazemos força por isso.
L.G.