Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Emapada > 2005 > O reencontro do Zé Teixeira com o Keba (à esquerda)... À direita, o Xico Allen, com quem o Zé Teixeira viajou em 2005, e que também tinha estado em Empada, embora já nais tarde (1972/74). De óculos, e vestido de azul, o Braima, que foi ajudante de enfermeiro do Zé Teixeira.
© José Teixeira (2006)
XVIII Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
Empada, 16 Novembro de 1969
O Marinho Caixeiro Conceição morreu (1). Era querido e estimado por todos. Passava o dia a cantar a cantar a morte o surpreendeu, quando no ataque do dia 14 estava na retrete. Talvez porque estivesse a cantar, não ouviu as saídas nem os gritos de avisos dos colegas que iam tomar banho. Quando sentiu o primeiro rebentamento junto à caserna tentou fugir, mas já era tarde, uma das primeiras granadas rebentou no telhado e meteu-lhe alguns estilhaços no corpo - o que lhe perfurou a nuca foi fatal -, e ainda foi projectado contra a parede, aumentando os estragos.
Eram vinte e uma e trinta, quando começou. Utilizaram seis morteiros 82, treze lança roquetes, bazucas, morteiro 60 e, claro, a costureirinhas, algumas com balas tracejantes. Tiveram sorte na pontaria e conseguiram metê-las quase todas dentro do quartel e povoação. Só junto às casernas rebentaram oito granadas. Junto ao arame caíram manga delas.
Além do Conceição,que morreu, ficaram feridos o Açoreano e quatro nativos. Na tabanca da Fátima (prostituta) caíram duas, mas não houve azar, pois os camaradas que lá estavam já se tinham escapulido.
Foram perseguidos até ao fundo da pista, mas às duas da manhã voltaram, aproximaram-se mesmo do arame junto à pista. Felizmente, desta vez não causaram danos. Se desta vez a pontaria fosse idêntica à do primeiro ataque, teria sido uma catástrofe.
Guiné > Região do Cacheu > Antotinha, a sul do Ingoré > 1968 > O Zé Teixeira, no início da comissão, prestando assistência à população local.
© José Teixeira (2006)
Empada, 21 de Novembro de 1969
É uma família muito simpática. Ela, Bijagó, e ele, Cabo Verdeano. Têm quatro filhos: Marcos, Lucas, Júlia e Victória. Muito trabalhadores, aproveitam o terreno cultivável, na impossibilidade de se dedicarem à pesca, a sua profissão, por medo da guerra.
A Júlia está muito marcada pelo ambiente militar que a rodeia, tem até um filho de branco e creio que foi prostituta, em tempos, em Bissau. Tem três filhos todos de tenra idade e é uma tentação cá para a malta. A sua liberdade de linguagem é um dos factores para que qualquer homem se sinta tentado a persegui-la e receber as suas benesses, por troca de umas moedas. A Victória, essa tem porte digno, alguns de nós já se lançaram ao engate, mas ela troca-lhe as voltas.
Até há pouco tempo, toda esta gente - três homens, três mulheres e cinco crianças - dormiam no mesmo compartimento da morança. Com os ataques seguidos de há dias, o medo aumentou, o que se compreende, pois na mesma noite tiveram de pegar por duas vezes nas crianças e fugir para o abrigo rasgado na terra e coberto com cibes, tendo caído duas granadas muito perto da sua casa.
Na luta pela sobrevivência, decidiram passar a dormir no minúsculo abrigo, pondo lá dois pequenos colchões, tendo como companheiros lagartos, formigas, cobras, etc. Os dois velhos da família, por falta de lugar no abrigo, continuam a dormir na morança.
Um clima muito quente e húmido, a terra muito húmida, uma pequena abertura para entrar, a enorme quantidade de bichos, a urina das crianças, o suor dos corpos... são estas as condições desta família. Quantas famílias, quantas Júlias haverá por esta terra !?
Empada, 20 de Novembro de 1969
O Kebá (2) aparecia todos os dias na Enfermaria. É o nosso ajudante no tratamentos da população. Trata as pequenas feridas. Elas já sabem:
- Kebá põe mercuro ! - e ele põe.
- Kebá, parte quinino! - e ele vai buscar LM. Vão-se embora todos contentes.
Ao Almoço lá lhe trazemos uma cantina cheia de comida. É a nossa paga. Há dias deixou de aparecer. Estranho, mas como tem duas mulheres e vários filhos no mato, admiti que tivesse ido embora.
Ontem vi-o a carregar barricas de água, da fonte para o jardim do chefe de posto. Perguntei-lhe porque deixou de aparecer e fiquei horrorizado. Estava preso por não pagar o Imposto de Pé Descalço (3).
Vim para o Quartel e a minha revolta fez-me agir. Um quarto de hora depois estava a casa do Chefe de Posto cercada por militares armados de G3 a exigirem a libertação do Kebá.
Safou a situação o nosso capitão que, apercebendo-se dos acontecimentos, dirigiu-se ao local e conseguiu a libertação do homem. Como não desarmámos, pois queríamos que o bandido fosse castigado, foi-nos prometido pela capitão que ia fazer uma exposição a Bissau para que fosse retirado de Empada (4).
Acalmada a situação fiquei à espera do castigo, mas parece que me foi dada razão.
Empada, 26 de Novembro de 1969
Na semana passada os Paras fizeram ronco em Gandembel, no “carreiro da morte” , matando 10 e aprisionando um capitão cubano, ferido com uma rajada no braço.
Este confessou ser de origem cubana e estar na Guiné há cinco anos, mobilizado por Fidel Castro (5). Dirigia-se a Conakry para uma reunião com o comando turra. Cerca de duas horas antes tinha passado no mesmo local o Nino com as rampas de lançamento de mísseis.
Já no Hospital em Bissau, foi visitado e reconhecido pelas senhoras do MNF – Movimento Nacional Feminino. Vivia no Bairro da Ajuda, quase em frente do hospital, com a esposa e três filhos. Foi apanhado na sexta feira e tinha no bolso um bilhete do UDIB da terça feira anterior.
A febre e o fim da Comissão atingiu completamente toda a malta da companhia... Nota-se um grande nervosismo, por sentirem que ainda faltam dois meses (6).
Dizem que é costume o IN atacarem nos últimos tempos de comissão. A nós já nos deram recentemente um morto. Por isso a preocupação é enorme.
Empada, 24 de Dezembro de 1969
É Natal. No ar uma camada de cacimba que nos dificulta a visão. Ao longe o troar das armas, o ribombar dos canhões, lembram os sinos da paz e, pela sua insistência, recordam-nos que é Natal.
Então, o espírito, o coração, todo o nosso ser, sente o Natal. Não o Natal que vivemos na hora presente, preocupados com a morte que nos espreita pela boca de um canhão, atentos ao menos sinal de perigo, para de arma em posição de rajada fazermos frente ao Inimigo.
Sente-se o Natal de nossas casas, a paz dos nossos lares e sofre-se não propriamente por estarmos em guerra, mas porque nos lembramos dos nossos. O seu Natal, não é Natal, porque falta alguém querido, alguém que sente e vive o Natal e outra maneira, em circunstâncias muito difíceis. Eles nem sonham !
© José Teixeira (2006)
____________
Notas do autor
(1)Vd.post de 11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXIV: Estórias do Zé Teixeira (2): o Conceição ou o morrer de morte macaca
(2) O Kebá passava o dia na Enfermaria. Não quis ser milícia, o que suponho se devia ao facto de ter 2 mulheres e vários filhos com o IN.
Conversámos várias vezes sobre este assunto. Disse-me que em tempos tinha deixado Empada e ido para o mato, localizou as mulheres e tentou convencê-las a virem com ele, mas estas não quiseram ou não as deixaram vir. Vivia este drama. Quando éramos atacados, ele mesmo dizia que não sabia se as suas mulheres estavam do outro lado.
Quando em 2005 tive o prazer de voltar a Empada, senti uma mão nas costas e alguém a perguntar-me se me lembrava dele. Olhei, o rosto dizia-me alguma coisa, mas o nome, esse, fora-se.
- Sou o Kebá.
Quantas histórias ali foram revividas. Imaginem o resto.
(3) Pelo que vim a saber era um pequeno (grande) imposto que toda a gente tinha de pagar, quer trabalhasse quer não, por isso lhe puseram o nome do Imposto do Pé Descalço.
(4) Tal veio a acontecer uns dias depois, ficando o Capitão na função de Chefe de Posto até à substituição.
(5) Esta não será, com certeza, a verdade (verdadeira) dos factos, mas foi assim que ma contaram. Estou apenas a transcrever o que escrevi na altura. Isso permitirá ajuizar como as mensagens eram passadas e eventualmente os factos deturpados por conveniência ou não.
(6) Na realidade, tivémos que esperar mais cinco meses...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 12 de março de 2006
quinta-feira, 9 de março de 2006
Guiné 63/74 - P602: Os rios (e os lugares) da nossa memória (3): Geba, Undunduma (Carlos Marques dos Santos)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. A tabanca, em autodefesa, guarnecida pelo Pelotão de Milicia nº 102, é visível ao fundo. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (se não erro), vê-se o Fur Mil Reis e o 1º Cabo Branco (LG).
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).
Texto do Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1).
Guiné > Rio Geba, junto ao Xime > Travessia de canoa para o Enxalé (1969),
© Carlos Marques Santos (2005)
Guiné > Rio Geba > Cais (1969)
© Carlos Marques Santos (2005)
Luís:
1. O tema do rio Geba levou-me a ir repescar estas velhas fotos. A qualidade não é famosa, mas apesar de tudo é o rio Geba retratado.
E eu que estive muitas vezes perto dele, vigiando a passagem dos barcos vindos de Bissau. Finete, os seus mangais e cajueiros. A Bor e o macaréu. Som impressionante da água, em força, a lutar contra aquilo que era natural.
Os rios correm para o mar. Este não! Ciclicamente corre contra o seu rumo natural. E as suas margens enlameadas, onde, enterrados até à cintura, recolhíamos os tão saborosos camarões.
Guiné > Zona Leste > Rio Undunduma, afluente do Rio Geba > 1969 >
© Carlos Marques Santos (2005)
Guiné > Zona leste > Rio Undunduma > Pôr do sol (1969)
© Carlos Marques Santos (2005)
2. Já agora e porque não, outro pequeno rio, o Undunduma, também motivo de memórias (1).
O nascer e o pôr do sol serão inesquecíveis, apesar das condições em que vivemos neste cenário.
Memórias de um tempo vivido e que passou.
Um abraço.
CMS
_______
Nota de L.G.:
(1) Vd. posts de
4 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVIII: Os dias felizes na ponte do Rio Undunduma (CCAÇ 12)
4 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIX: Os Solitários da CART 2339 na Ponte do Rio Undunduma e em Fá
3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).
Texto do Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1).
Guiné > Rio Geba, junto ao Xime > Travessia de canoa para o Enxalé (1969),
© Carlos Marques Santos (2005)
Guiné > Rio Geba > Cais (1969)
© Carlos Marques Santos (2005)
Luís:
1. O tema do rio Geba levou-me a ir repescar estas velhas fotos. A qualidade não é famosa, mas apesar de tudo é o rio Geba retratado.
E eu que estive muitas vezes perto dele, vigiando a passagem dos barcos vindos de Bissau. Finete, os seus mangais e cajueiros. A Bor e o macaréu. Som impressionante da água, em força, a lutar contra aquilo que era natural.
Os rios correm para o mar. Este não! Ciclicamente corre contra o seu rumo natural. E as suas margens enlameadas, onde, enterrados até à cintura, recolhíamos os tão saborosos camarões.
Guiné > Zona Leste > Rio Undunduma, afluente do Rio Geba > 1969 >
© Carlos Marques Santos (2005)
Guiné > Zona leste > Rio Undunduma > Pôr do sol (1969)
© Carlos Marques Santos (2005)
2. Já agora e porque não, outro pequeno rio, o Undunduma, também motivo de memórias (1).
O nascer e o pôr do sol serão inesquecíveis, apesar das condições em que vivemos neste cenário.
Memórias de um tempo vivido e que passou.
Um abraço.
CMS
_______
Nota de L.G.:
(1) Vd. posts de
4 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVIII: Os dias felizes na ponte do Rio Undunduma (CCAÇ 12)
4 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIX: Os Solitários da CART 2339 na Ponte do Rio Undunduma e em Fá
3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma
Guiné 63/74 - P601: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (17): Este gajo estava mesmo apanhado
Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > 2005 > Um militar da CCAÇ 2381 - Os Maiorais na fase final da sua comissão (1969/70)
© José Teixeira (2006)
Luís:
A paz, a felicidade e o amor estejam contigo.
Junto a última parte do meu diário. Coisas muito pessoais ficaram do lado de cá. No entanto vão algumas partes reflexo de um ser que nunca deixou de pensar que talvez não tenham interesse em fazer passar no Blogue. Deixo ao teu critério.
Segue também um pequeno texto sobre o que está neste momento na berra: a sexualidade em tempo de guerra. É mais uma brasa para a fogueira que merece ser alimentada, pois muita coisa há a dizer.
Zé Teixeira
XVII Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
Recorde-se os principais passos do nosso camarada Zé:
"Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970. Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional.
"Seguimos depois para Buba e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968]." Aí a CCAÇ 23881 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra.
"Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construiram a estrada Buba/Aldeia Formosa. Face ao desgaste físico e emocional fomos enviados, a partir de [Maio de] 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão [até ao regresso em Maio de 1970]".
O Diário do Zé Teixeira começou a ser publicado no nosso blogue no dia 1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968
Empada, 19 de Setembro de 1969
Preciso de desabafar, de me abrir com alguém. Dentro de mim existe uma tremenda confusão. Quero fugir deste ambiente bélico, em que só se pensa na sobrevivência. Em que se mata para não morrer. Em que não se faz nada a não ser estar atento para ouvir uma possível saída de morteiro, que pode ser a nossa desgraça. Em que se parte ao desconhecido numa terra vermelha, estranha, inóspita, que esconde armadilhas fatais.
Sou inocente, nesta guerra que me recuso a fazer.
Procuro na solidão e no estudo, melhor na simples leitura, pois não consigo concentrar-me, as forças que me faltam, já que ninguém consegue compreender o meu estado de espírito. Também não encontro ninguém com quem possa conversar estas coisas. Ninharias, dirão.
Em cada dia que passa a confiança em mim mesmo vai-se abaixo enquanto sinto crescer dentro de mim um estado de espírito de revolta contra todos os homens que fomentam as guerras. Queria ir a Bissau fazer história mas não sou capaz.
Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > 2005 > Restos de abrigos construídos nos antigos quartos dos furréis da CCAÇ 2381, aqui aquartelados em 1969.
© José Teixeira (2006)
Empada, 24 de Setembro de 1969
O IN ainda não decidiu deixar-me em paz. No dia 20 à noite apareceram por esta terra. Aliás, no dia dezoito também cá estiveram, mas foi de muito longe. Só notei porque o 81 funcionou, para que não se entusiasmassem. O ataque do dia 20 foi fraco, talvez o mais fraco ataque que sofri até à data e me fez correr para o abrigo. Poucas granadas rebentaram e caíram todas fora do arame. Também utilizaram a costureirinha, mas sem quaisquer efeitos.
Também fizeram duas visitas a Buba. Apenas assustaram.
Empada, 16 de Outubro de 1969
Do pelotão que está em Buba chegam novidades. Há dias houve por lá um terrível ataque com tentativa de assalto. Atacaram do sítio habitual do lado do rio com 10 Canhões s/r, enquanto do lado da pista fazia o desenvolvimento do assalto, procurando apanhar a tropa desprevenida.
Segundo dizem os meus colegas eram mais de duzentos, a avançarem em arco para que se as nossas forças saíssem as envolverem. Felizmente estava emboscado um Pelotão que os detectou. Parece que foi um tremendo fogachal, enquanto os Fuzas perseguiam os que atacaram do lado do rio que pretendiam reforçar as forças de assalto.
Ao fazer-se o reconhecimento, foi encontrado um rádio, sinal de que o ataque foi bem comandado e o fogo controlado por sentinelas avançadas. Foram descobertas e desenterradas 180 granadas de canhão s/recuo. Foi também ouvido ruído de viaturas.
Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > 2005 > Antigo abrigo de morteiro construído pela CCAÇ 2381, na fase final da sua comissão (1969/70)
© José Teixeira (2006)
Quando os Fuzas voltaram ao quartel, foram seguidos pelo IN que os atacou muito perto de Buba. Assim caíram entre dois fogos, o do IN e o de Buba que reagiu a um possível ataque sem saber que o fogo era destinado ao grupo de fuzas..
No dia anterior tinha havido uma coluna a Nhala ,onde apenas foi encontrada uma A/P com dispositivo anti-levantamento eléctrico que felizmente não funcionou por ter as pilhas gastas.
Nesta mina havia uma mensagem escrita: "Esta é para Alferes Gonçalves". Infelizmente este furriel (e não alferes) já está em Lisboa devido a um estilhaço que apanhou noutro ataque a Buba.
Há tempos apareceu aqui por Empada um turra. Deu várias informações e foi para Buba integrado no Grupo de fuzas, para fazer de guia. Parece que conseguiu fugir levando uma G3 (1).
Empada, 26 de Outubro de 1969
Vejo-te, nesta manhã radiosa, em que o sol parece sorrir enamorado. A brisa bate de leve no teu rosto, ciumenta do teu olhar. Os pássaros, nos seus chilreios cantam hinos de louvor à tua beleza. Até as pedras da rua se sentem orgulhosas por te servirem de trono.
Eu vejo-te passar através do meu espírito, do meu coração enamorado. Sinto ciúmes de tudo o que te rodeia, de tudo o que amas, pois é amor que me roubas. Quem me dera ter-te a meu lado e de mãos dadas, cabeça erguida, altivos, felizes e confiantes, palmilharmos o caminho da vida . . .
Ontem procedeu-se à rendição do Pelotão estacionado em Buba. Parece que Sector está em brasa. Durante um mês foram atacados sete vezes. Num ataque de tiro ao alvo, meteram nove canhoadas numa parede de caserna . . sem ninguém. Que sorte.
_______
Notas do autor:
(1) A história foi muito mal contada na altura pelos Fuzas. No meu regresso em fim de Comissão vinha também no Niassa um fuza que tinha sofrido um castigo e foi expulso da Guiné. Contou-me este, que o tal Turra não fugiu. Um dos Fuzas tinha perdido a G3 e era preciso justificá-la. Por outro lado as suas informações eram a causa para eventuais futuras acções de combate, com assaltos a bases do IN, o que era sempre arriscado. A solução foi amarrar o gajo e atirá-lo ao rio fazendo-o desaparecer e passando a informação que tinha conseguido fugir.
(2) Comentário do autor em 2006: "Este gajo estava mesmo apanhado"...
© José Teixeira (2006)
Luís:
A paz, a felicidade e o amor estejam contigo.
Junto a última parte do meu diário. Coisas muito pessoais ficaram do lado de cá. No entanto vão algumas partes reflexo de um ser que nunca deixou de pensar que talvez não tenham interesse em fazer passar no Blogue. Deixo ao teu critério.
Segue também um pequeno texto sobre o que está neste momento na berra: a sexualidade em tempo de guerra. É mais uma brasa para a fogueira que merece ser alimentada, pois muita coisa há a dizer.
Zé Teixeira
XVII Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
Recorde-se os principais passos do nosso camarada Zé:
"Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970. Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional.
"Seguimos depois para Buba e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968]." Aí a CCAÇ 23881 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra.
"Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construiram a estrada Buba/Aldeia Formosa. Face ao desgaste físico e emocional fomos enviados, a partir de [Maio de] 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão [até ao regresso em Maio de 1970]".
O Diário do Zé Teixeira começou a ser publicado no nosso blogue no dia 1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968
Empada, 19 de Setembro de 1969
Preciso de desabafar, de me abrir com alguém. Dentro de mim existe uma tremenda confusão. Quero fugir deste ambiente bélico, em que só se pensa na sobrevivência. Em que se mata para não morrer. Em que não se faz nada a não ser estar atento para ouvir uma possível saída de morteiro, que pode ser a nossa desgraça. Em que se parte ao desconhecido numa terra vermelha, estranha, inóspita, que esconde armadilhas fatais.
Sou inocente, nesta guerra que me recuso a fazer.
Procuro na solidão e no estudo, melhor na simples leitura, pois não consigo concentrar-me, as forças que me faltam, já que ninguém consegue compreender o meu estado de espírito. Também não encontro ninguém com quem possa conversar estas coisas. Ninharias, dirão.
Em cada dia que passa a confiança em mim mesmo vai-se abaixo enquanto sinto crescer dentro de mim um estado de espírito de revolta contra todos os homens que fomentam as guerras. Queria ir a Bissau fazer história mas não sou capaz.
Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > 2005 > Restos de abrigos construídos nos antigos quartos dos furréis da CCAÇ 2381, aqui aquartelados em 1969.
© José Teixeira (2006)
Empada, 24 de Setembro de 1969
O IN ainda não decidiu deixar-me em paz. No dia 20 à noite apareceram por esta terra. Aliás, no dia dezoito também cá estiveram, mas foi de muito longe. Só notei porque o 81 funcionou, para que não se entusiasmassem. O ataque do dia 20 foi fraco, talvez o mais fraco ataque que sofri até à data e me fez correr para o abrigo. Poucas granadas rebentaram e caíram todas fora do arame. Também utilizaram a costureirinha, mas sem quaisquer efeitos.
Também fizeram duas visitas a Buba. Apenas assustaram.
Empada, 16 de Outubro de 1969
Do pelotão que está em Buba chegam novidades. Há dias houve por lá um terrível ataque com tentativa de assalto. Atacaram do sítio habitual do lado do rio com 10 Canhões s/r, enquanto do lado da pista fazia o desenvolvimento do assalto, procurando apanhar a tropa desprevenida.
Segundo dizem os meus colegas eram mais de duzentos, a avançarem em arco para que se as nossas forças saíssem as envolverem. Felizmente estava emboscado um Pelotão que os detectou. Parece que foi um tremendo fogachal, enquanto os Fuzas perseguiam os que atacaram do lado do rio que pretendiam reforçar as forças de assalto.
Ao fazer-se o reconhecimento, foi encontrado um rádio, sinal de que o ataque foi bem comandado e o fogo controlado por sentinelas avançadas. Foram descobertas e desenterradas 180 granadas de canhão s/recuo. Foi também ouvido ruído de viaturas.
Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > 2005 > Antigo abrigo de morteiro construído pela CCAÇ 2381, na fase final da sua comissão (1969/70)
© José Teixeira (2006)
Quando os Fuzas voltaram ao quartel, foram seguidos pelo IN que os atacou muito perto de Buba. Assim caíram entre dois fogos, o do IN e o de Buba que reagiu a um possível ataque sem saber que o fogo era destinado ao grupo de fuzas..
No dia anterior tinha havido uma coluna a Nhala ,onde apenas foi encontrada uma A/P com dispositivo anti-levantamento eléctrico que felizmente não funcionou por ter as pilhas gastas.
Nesta mina havia uma mensagem escrita: "Esta é para Alferes Gonçalves". Infelizmente este furriel (e não alferes) já está em Lisboa devido a um estilhaço que apanhou noutro ataque a Buba.
Há tempos apareceu aqui por Empada um turra. Deu várias informações e foi para Buba integrado no Grupo de fuzas, para fazer de guia. Parece que conseguiu fugir levando uma G3 (1).
Empada, 26 de Outubro de 1969
Vejo-te, nesta manhã radiosa, em que o sol parece sorrir enamorado. A brisa bate de leve no teu rosto, ciumenta do teu olhar. Os pássaros, nos seus chilreios cantam hinos de louvor à tua beleza. Até as pedras da rua se sentem orgulhosas por te servirem de trono.
Eu vejo-te passar através do meu espírito, do meu coração enamorado. Sinto ciúmes de tudo o que te rodeia, de tudo o que amas, pois é amor que me roubas. Quem me dera ter-te a meu lado e de mãos dadas, cabeça erguida, altivos, felizes e confiantes, palmilharmos o caminho da vida . . .
Ontem procedeu-se à rendição do Pelotão estacionado em Buba. Parece que Sector está em brasa. Durante um mês foram atacados sete vezes. Num ataque de tiro ao alvo, meteram nove canhoadas numa parede de caserna . . sem ninguém. Que sorte.
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Notas do autor:
(1) A história foi muito mal contada na altura pelos Fuzas. No meu regresso em fim de Comissão vinha também no Niassa um fuza que tinha sofrido um castigo e foi expulso da Guiné. Contou-me este, que o tal Turra não fugiu. Um dos Fuzas tinha perdido a G3 e era preciso justificá-la. Por outro lado as suas informações eram a causa para eventuais futuras acções de combate, com assaltos a bases do IN, o que era sempre arriscado. A solução foi amarrar o gajo e atirá-lo ao rio fazendo-o desaparecer e passando a informação que tinha conseguido fugir.
(2) Comentário do autor em 2006: "Este gajo estava mesmo apanhado"...
Guiné 63/74 - P600: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral
1. Começo por agradecer ao Paulo Raposo a gentileza do envio, pelo correio, de um documento, ilustrado, com a sua história na Guiné, que é também a história da CCAÇ 2405 (Mansoa, Galomaro, Dulombi...) do BCCAÇ 2852 (Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70), um relato do seu envolvimento pessoal e militar, com a sua visão (muito própia e assumida) das coisas, com as suas alegrias e tristezas (a morte do seu pai, por exemplo, durante a comissão; o desastre no Rio Corubal, no Cheche...).
É um documento notável que eu gostaria de poder partilhar com o resto da tertúlia, se ele para tanto me der autorização para tal... O Paulo esteve em Madina do Boé, no Fiofioli, conheceu camaradas que eu, o Humberto, o Tony Levezinho, o Fernandes e o Jorge Cabral também conhecemos, em Bambadinca, como o Beja Santos... O Paulo foi alferes miliciano, com a especialidade de minas e armadilhas, na CCAÇ 2405, sendo portanto camarada de outros dois membros da nossa tertúlia, o Victor David e Rui Felício (1) .
Por sua vez, o Rui, já o sabemos, é um excelente contador de estórias. O Paulo mandou-te também cópia de várias dessas estórias, que são deliciosas, e a que eu vou chamar estórias de Dulombi. Publica-se hoje a primeira dessas estórias, com a devida vénia e um grande abraço aos camaradas de Dulombi e Galomaro: Paulo, Victor e Rui...
2. O nosso vagomestre Cabral (por Rui Felício)
O Natal aproximava-se…
Antes da data prevista, chegara-nos um presente inesperado! Um periquito….
O furriel Cabral foi-nos mandado para substituir o furriel vagomestre, uns meses antes falecido em acidente de viação na estrada de Galomaro-Bafatá numa viagem de reabastecimento de viveres à nossa Companhia…
O Cabral era uma jóia de pessoa, simpatiquíssimo, um tanto ingénuo e crédulo, sempre bem disposto e que rapidamente granjeou a estima de todos.
Natural de Bissau, de etnia pepel, um verdadeiro e retinto preto da Guiné…
Estudara em Lisboa, e, incorporado no exército, fez o curso de sargentos milicianos até que foi promovido a furriel e mobilizado, em rendição individual, para a Guiné, sua terra natal…
Calhou-lhe em sorte (ou azar…), ser destacado para a nossa Companhia numa altura em que já tinhamos cumprido um ano e meio de comissão.
Portanto já éramos, claramente, velhinhos experientes, com tudo o que de bom e de mau isso significava.
Ora um periquito no seio de tantos velhinhos era coisa que prometia animar a rotina e que não se podia desperdiçar.
O Sargento Vargas, que já tinha feito uma comissão em Angola como furriel miliciano e que metera o chico no fim da mesma, combinou pregar uma partida ao Cabral, de conluio com os seus camaradas (furriéis Veiga, Ribas, Trombinhas, Rebelo e muitos outros… ).
Deu conhecimento disso aos alferes e explicou-lhes o plano.
O cabo Xico, responsável pelo bar da messe conjunta de oficiais e sargentos, foi avisado que depois de jantar lhe seria pedida uma rodada de aniz escarchado, bebida incolor, em tudo semelhante à água, excepto no sabor muito doce e no grau alcoólico, como é evidente.
E o cabo deveria satisfazer o pedido colocando à frente de cada um dos presentes sentados à mesa, um cálice cheio da referida bebida….
Só que…(!)… apenas o cálice do furriel Cabral deveria conter aniz! Todos os restantes seriam cheios com água……..
E assim foi feito…
Sempre que os comparsas engoliam os repectivos cálices, alguém se prontificava a pagar mais uma rodada para todos…. E o cabo Xico lá ia levantando os cálices trazendo-os de novo cheios, um com aniz para o Cabral e um para cada um dos restantes, com água…
O Cabral foi perdendo a timidez, ganhando alegria, e com a voz entaramelada era já ele próprio que ordenava ao cabo Xico:
- Mais uma ( hic.. ) rodada que pago eu agora ( hic… ), se fachabôri, rrr…rápido e com ( hic…) bons modos! Hic..hic…
E gargalhava sem ele próprio perceber a razão de tão súbita e inusitada alegria….
Muitas rodadas depois, o Sargento Vargas, resolveu acabar por ali com a brincadeira, receoso de que o Cabral não resistisse muito mais aos efeitos de tanto aniz…e aconselhou a que todos fossem para a rua tomar o ar fresco da noite…
Quem não estava muito pelos ajustes era o Carbral que queria beber mais um cálice… Confessava ser a primeira vez que tinha bebido aniz e que nunca sonhara que fosse uma bebida tão deliciosamente doce…
E intimou o cabo Xico, socorrendo-se de toda a autoridade que as suas divisas lhe conferiam:
- Ou trazes mais uma ( hic… ) rodada ou levas uma ( hic… ) porrada!... Escolhe!
Como o cabo Xico, por indicação do Sargento Vargas, não cumprisse a ordem, o Cabral deu um impulso para se levantar e para coagir o Xico a cumprir a ordem.
Mas o peso do aniz foi mais forte que o impulso… e o Cabral caiu de borco no chão …inanimado!
O furriel enfermeiro Ribas, ali presente, apercebeu-se, primeiro que todos, da gravidade da situação e foi rápidamente buscar uma injecção de coramina que de imediato ministrou no corpo inanimado do Cabral…
Alguns segundos depois o Cabral retomava os sentidos e foi ajudado a dirigir-se ao seu abrigo onde o deitaram e o adormeceram….
Entre risos e alguns suspiros de alivio por a brincadeira não ter resultado em tragédia, todos se dirigiram para os respectivos abrigos, remoendo as peripécias do sucedido…
A noite passou…
E o alvorecer, marcado pelo som ritmado dos pilões a descascar o arroz e pelas orações matinais dos homens grandes da tabanca, foi acordando os militares que, a pouco e pouco começavam a sua azáfama diária.
Uns a irem buscar água para abastecer os diversos bidons espalhados pelo aquartelamento, transformados em reservatórios, os das transmissões e da secretaria para os respectivos locais de trabalho e os operacionais em preparação do próximo patrulhamento ou na limpeza das armas.
Na messe, alguns alferes, sargentos e furriéis matavam o bicho matinal e recordavam as cenas da noite anterior e, especialmente, reviviam os pormenores da bebedeira do Cabral.
Com os olhos encovados, ar de ressaca ainda mal curada, e alguma vergonha pelo sucedido, surge o furriel Cabral, que com um sorriso amarelo cumprimentou os presentes:
- Bom dia!
Quase em coro, com um largo sorriso, os presentes retribuiram:
- Bom dia pá! Passaste bem a noite?
- Nem me lembro bem…. Só sei que estou com uma sede terrivel.. e umas náuseas e dor de cabeça insuportáveis….- retorquiu o Cabral
E continuou:
- Mas já falei com o Ribas e ele diz que isso é natural e que mais umas horas tudo voltará ao normal...
E, ainda confuso, perguntou:
- Quantos anizes a gente bebeu ontem?... Eu acho que até 15 contei.. mas depois a minha memória não tem mais nada registado… Vocês contaram-nos ?... O cabo Xico deve ter tomado nota, com certeza….
O Xico, atrás do balcão, matreiro, antecipou-se na resposta:
- Apontei 17, meu furriel, e dessas rodadas, 3 são da sua conta… Logo que puder, agradeço-lhe que salde a dívida….
E o Cabral, pressuroso, puxando da carteira:
- Eh pá, desculpa lá… Vamos a contas… Eu ontem nem me preocupei com isso…
O Ribas, ali presente é que atalhou o diálogo:
- Nada disso, tu apanhaste a bebedeira, mas quem paga somos nós, fica tranquilo…
- Há uma coisa que me tem metralhado o cérebro desde que acordei – confidenciou o Cabral…
E continuou:
- Sei que de todos nós, o único que realmente se embebedou a sério fui eu… Reparei, segundo me lembro, que vocês todos não aparentavam estar tão mal como eu...pelo contrário…
Os circunstantes mordiam o riso, mas tentavam manter a compostura para não denunciarem toda a tramóia.
E deixaram o Cabral continuar o seu devaneio:
- Sou forçado a concluir que branco aguenta vinho como o caraças!
Resposta imediata do Vargas:
- Claro.. há diferenças entre brancos e pretos… Essa é uma delas: a capacidade de aguentar a bebida…
E perante o rebentar de gargalhadas dos presentes, incapazes de se conterem por mais tempo, sentenciou:
- Por alguma razão somos brancos! Já devias ter compreendido isso!
[Abro um parentesis para garantir que neste diálogo não há o menor resquício de racismo! O à vontade com o que o Vargas assim falou só se explica exactamente porque não havia racismo entre nós. Se o houvesse, penso que jamais teria sido dito de uma forma tão inocent]
EPÍLOGO
Durante vários dias o segredo manteve-se e o Cabral devia continuar a matutar se de facto existiam diferenças fisicas e morfológicas entre um branco e um preto, que justificassem tal diferença na capacidade de aguentar bebedeiras.
Descansámo-lo quando, um certo dia, o Ribas se prontificou a contar-lhe a verdade Que o Cabral aceitou com a maior desportivismo! Era de facto uma jóia de pessoa…
Vim a encontrá-lo uns anos mais tarde em Lisboa, por mero acaso, e perguntei-lhe o que fazia na Grande Tabanca.
Disse-me que cursava Economia para depois regressar à Guiné e colaborar na consrução do seu País independente.
Soube que, passados poucos anos, já licenciado, morreu de doença, em Bissau, por falta de assistência médica, medicamentosa e hospitalar…
Como a dele, também a ilusão de muitos outros guineenses, bem intencionados, que se deixaram enganar pelos ineptos e corruptos politicos que invadiram o poder daquela bela terra… Que a têm continuadamente destruido, em prol das suas ambições e do seu nepotismo!
Mas enfim.. A terra é deles.. Centremos as nossas preocupações em Portugal…
Nesta nossa terra que cá vai andando… cantando e rindo… umas vezes para os lados, outras para trás e poucas , muito poucas vezes, para a frente…
Rui Felício
DULOMBI
CCAÇ 2405
Ex-Alf Mil Inf
______________
Nota de L. G.
(1) Vd post de 12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXV: Paulo Raposo e Rui Felício, dois novos camaradas (CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70)
quarta-feira, 8 de março de 2006
Guiné 63/74 - P599: Dia Internacional da Mulher (4): 'Fermero, ká na tem patacão pra paga, fica ku minha mudjer' (Zé Teixeira)
Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > O Zé Teixeira com um antigo milícia, o Braima de Mampatá.
© José Teixeira (2005)
XVI Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
© José Teixeira:
Empada, 11 de Setembro de 1969
Conheci a Mariama no primeiro dia que aqui cheguei. A sua alegria contagiante, as suas brincadeiras e a maneira como sabia fazer-se respeitada, tudo isso fez com que simpatizasse logo com ela. De manhã vinha acordar-me:
- Tissera, corpo stá bom ?
Ao fim da tarde de hoje, passou pela enfermaria, como sempre, mas vinha diferente; olhos inchados, cabelo muito arranjado, a alegria habitual tinha desaparecido.
- Mariama Corpo di bó ?
- Ká stá bom, hodje manga di chátisse.
- Porquê? Qui passa ?
- Meu pai diz a minha Mãe: 'Põe Mariama bonito. Hodje ela vai cása cum alfaiate'. Mim ká na sibi qui vai cása. Mim ká miste alfaiate.E acrescentou:
- Eu fui trabalhar na bolanha , manhã cedo, muito trabalho. Vem, lava roupa de Catarino (1) e passo tua roupa a ferro. Chega a minha mãe e conta a verdade. Eu não sabia que ia casar...
As lágrimas escorriam-lhe para o regaço. Não gosta do Sanhá e parece que nem sabia que o pai a tinha vendido como se faz com os animais. Sabia o que a esperava mais dia menos dia, mas nunca com um velho.
Nos Beafadas a cerimónia de casamento é diferente dos Fulas. Ao fim da tarde a bajuda segue para a morança do futuro marido, acompanhada por outras bajudas em festa: aí espera-a um jantar.
Em tempos apreciei um casamento fula em Mampatá. O casamento foi programado com antecedência. A festa durou dois dias com muita animação e até batuque. Este foi controlado pelo Sargento da Milícia, que a determinada altura mandou parar a batucada e vingou o silêncio. A noiva seguiu para casa do noivo às costas de um ancião coberto com um lençol de modo a ficar escondida dos olhares dos curiosos e, segundo me disseram, no dia seguinte tinha de pôr à porta o lençol com manchas de sangue para demonstrar que estava virgem.
Guiné-Bissau > 2005 > Campanha sanitária: "Usa camisinha na hora di ten"... Trinta anos depois da independência, o que é mudou na condição da mulher guineense ? Uma pergunta de difícil resposta, mas que não nos deixa indiferentes (LG).
© José Teixeira (2005)
A conversa com Mariama prolongou-se. Apresentou-me a Fanta, minha nova lavandera e deixou-me a dar largas aos meus pensamentos… Vieram-me à memória os jovens de Nápoles, e os da Ribeira . . . A Fármara de Mampatá que gostava do Amadu e era feliz; da Jubae, e da Yeró.
Esta última casada à força, presa fácil da tropa, que o marido me ofereceu como pagamento por lhe ter salvo o pai de uma doença (2), da Fatinha (siriana), cujo marido não se cansava de lhe bater. . e era tão bonita !... Da Suade … das suas lágrimas, quando à sua volta toda agente dançava ao som do batuque.
Pergunto a mim mesmo, como é possível em pleno século XX, ainda haver este tipo de escravidão. Como é possível um pai vender sua filha por uma vaca e três carneiros !
_________
Notas do L.G.
(1) Jorge Catarino, meu companheiro nas artes de seringa e grande amigo
(2) Quando cheguei a Mampatá, veio ter comigo pedir quinino para o pai que estava com muitas dores. O Furriel enfermeiro que fui substituir disse-me:
- Este gajo tem o pai a morrer, eu estou a dar-lhe um comprimido por dia de X medicamento. Não lhe dês mais que um por dia, pois só tens esta caixa e em Aldeia Formosa não há.
Assim fiz e no dia seguinte, já sozinho, fui ver o doente. Velho de cabelos brancos, amarelo como cera, há mais de um mês de cama, sem forças etc,etc.
Reuni com o Alferes comandante do Destacamento e decidimos pedir a evacuação, à revelia das ordens que havia, o que gerou ameaças solenes para o Alferes do Comandante de Quebo, o qual teve como resposta:
- Sr. Major, eu não sou médico nem enfermeiro, o meu enfermeiro diz-me que não se responsabiliza pela saúde do homem. O Sr. Major responsabiliza-se ?
Assim o velho, foi evacuado. Esteve cerca de dois meses internado, fez uma operação ao intestino e regressou, para alegria dos familiares, muito melhor. Quando deixei Mampatá estava vivinho da costa.
Como prémio ou pagamento do meu trabalho, o filho, disse-me:
- Fermero, Ká na tem patacão pra paga. Fica ku minha mudjer.
Este gesto gerou outra conversa que como esta história não coube no meu diário.
© José Teixeira (2005)
XVI Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
© José Teixeira:
Empada, 11 de Setembro de 1969
Conheci a Mariama no primeiro dia que aqui cheguei. A sua alegria contagiante, as suas brincadeiras e a maneira como sabia fazer-se respeitada, tudo isso fez com que simpatizasse logo com ela. De manhã vinha acordar-me:
- Tissera, corpo stá bom ?
Ao fim da tarde de hoje, passou pela enfermaria, como sempre, mas vinha diferente; olhos inchados, cabelo muito arranjado, a alegria habitual tinha desaparecido.
- Mariama Corpo di bó ?
- Ká stá bom, hodje manga di chátisse.
- Porquê? Qui passa ?
- Meu pai diz a minha Mãe: 'Põe Mariama bonito. Hodje ela vai cása cum alfaiate'. Mim ká na sibi qui vai cása. Mim ká miste alfaiate.E acrescentou:
- Eu fui trabalhar na bolanha , manhã cedo, muito trabalho. Vem, lava roupa de Catarino (1) e passo tua roupa a ferro. Chega a minha mãe e conta a verdade. Eu não sabia que ia casar...
As lágrimas escorriam-lhe para o regaço. Não gosta do Sanhá e parece que nem sabia que o pai a tinha vendido como se faz com os animais. Sabia o que a esperava mais dia menos dia, mas nunca com um velho.
Nos Beafadas a cerimónia de casamento é diferente dos Fulas. Ao fim da tarde a bajuda segue para a morança do futuro marido, acompanhada por outras bajudas em festa: aí espera-a um jantar.
Em tempos apreciei um casamento fula em Mampatá. O casamento foi programado com antecedência. A festa durou dois dias com muita animação e até batuque. Este foi controlado pelo Sargento da Milícia, que a determinada altura mandou parar a batucada e vingou o silêncio. A noiva seguiu para casa do noivo às costas de um ancião coberto com um lençol de modo a ficar escondida dos olhares dos curiosos e, segundo me disseram, no dia seguinte tinha de pôr à porta o lençol com manchas de sangue para demonstrar que estava virgem.
Guiné-Bissau > 2005 > Campanha sanitária: "Usa camisinha na hora di ten"... Trinta anos depois da independência, o que é mudou na condição da mulher guineense ? Uma pergunta de difícil resposta, mas que não nos deixa indiferentes (LG).
© José Teixeira (2005)
A conversa com Mariama prolongou-se. Apresentou-me a Fanta, minha nova lavandera e deixou-me a dar largas aos meus pensamentos… Vieram-me à memória os jovens de Nápoles, e os da Ribeira . . . A Fármara de Mampatá que gostava do Amadu e era feliz; da Jubae, e da Yeró.
Esta última casada à força, presa fácil da tropa, que o marido me ofereceu como pagamento por lhe ter salvo o pai de uma doença (2), da Fatinha (siriana), cujo marido não se cansava de lhe bater. . e era tão bonita !... Da Suade … das suas lágrimas, quando à sua volta toda agente dançava ao som do batuque.
Pergunto a mim mesmo, como é possível em pleno século XX, ainda haver este tipo de escravidão. Como é possível um pai vender sua filha por uma vaca e três carneiros !
_________
Notas do L.G.
(1) Jorge Catarino, meu companheiro nas artes de seringa e grande amigo
(2) Quando cheguei a Mampatá, veio ter comigo pedir quinino para o pai que estava com muitas dores. O Furriel enfermeiro que fui substituir disse-me:
- Este gajo tem o pai a morrer, eu estou a dar-lhe um comprimido por dia de X medicamento. Não lhe dês mais que um por dia, pois só tens esta caixa e em Aldeia Formosa não há.
Assim fiz e no dia seguinte, já sozinho, fui ver o doente. Velho de cabelos brancos, amarelo como cera, há mais de um mês de cama, sem forças etc,etc.
Reuni com o Alferes comandante do Destacamento e decidimos pedir a evacuação, à revelia das ordens que havia, o que gerou ameaças solenes para o Alferes do Comandante de Quebo, o qual teve como resposta:
- Sr. Major, eu não sou médico nem enfermeiro, o meu enfermeiro diz-me que não se responsabiliza pela saúde do homem. O Sr. Major responsabiliza-se ?
Assim o velho, foi evacuado. Esteve cerca de dois meses internado, fez uma operação ao intestino e regressou, para alegria dos familiares, muito melhor. Quando deixei Mampatá estava vivinho da costa.
Como prémio ou pagamento do meu trabalho, o filho, disse-me:
- Fermero, Ká na tem patacão pra paga. Fica ku minha mudjer.
Este gesto gerou outra conversa que como esta história não coube no meu diário.
Guiné 63/74 - P598: Dia Internacional da Mulher (3): Referências e experiências vividas com as mulheres (ou bajudas) da Guiné durante a guerra (Mário Dias) e Mulher da Minha Terra, poema de Eunice Borges (Conceição Salgado)
1. Mensagem do Mário Dias
Caro Luis
Tenho andado a dar voltas à tola para satisfazer o teu pedido de referências e experiências vividas com as mulheres (ou bajudas) da Guiné durante a guerra. Sobre este assunto pouco tenho a dizer e julgo que, melhor do que eu, outros tertulianos o poderão fazer.
Se até 1961, antes da guerra, tive aventuras facilmente imagináveis, a partir dessa data, não sofri as privações que os nossos camaradas sofreram, nem me envolvi em românticas aventuras porque já era casado e tinha família constituída em Bissau.
No entanto, não deixo de prestar a minha homenagem às mães, esposas, companheiras e amigas, nossas e do inimigo, que connosco partilharam as agruras daqueles tempos. A história não poderá de forma alguma esquecê-las.
Continuando as minhas crónicas sobre o que era a vida na Guiné antes da guerra, para que todos os camaradas tertulianos sintam que o ambiente era semelhante ao que existe hoje, instalada a paz, envio mais um capítulo sobre Bissau. Conto fazer algo semelhante sobre Farim e Bafatá, por serem as terras onde habitei com carácter mais permanente. Isto, claro, se vires nisso algum interesse.
Um grande abraço para todos os tertulianos e para as mulheres a minha singela homenagem no dia que lhes é dedicado. E que não sejam esquecidas nos restantes 364 dias do ano.
Mário Dias
************
2. Mensagem de Conceição Salgado:
Caro Luís,
Segue um poema de homenagem à mulher, sem fundamnetalismos ou feminilismos
doentios. Homenagem a todas as mulheres seja qual for a latitude ou longitude. E uma foto da Mãe-África, como fundo, será que é possível?
Mantenhas
Bissau, 8 de Março de 2006
Conceição Salgado
Mãe-África (escultura)
MULHER DA MINHA TERRA
Mulher da minha terra,
Mulher sofredora,
Mulher escrava,
Que só conhece deveres,
Vem!
Vem que já brilha
Para ti uma nova luz!
Vem de fronte erguida
E grita bem alto
Que ser mulher não é desdouro!
Vem!
Ser mulher não é ser fraca,
Ser mulher não é
Obedecer sem perceber,
Seguir sem conhecer o caminho,
Dar, sem receber
Não! Mulher da minha terra!
Vem!
Vem conhecer o teu valor
De ser mulher,
Deixa a ignorância
E vem aprender a ser mulher!
Vem!
Não precisas de adornos fúteis
Para seres bela
Mesmo coberta de farrapos.
Vem dar o teu contributo,
A tua palavra,
Até mesmo o teu olhar
Tem o seu valor como mulher!
Vem!
Mulher-criança!
Mulher-jovem
Mulher-mãe
Mulher velhinha,
Todas hoje unidas
No mesmo amor,
Vem glorificar
A Natureza que te fez
Mulher.
Eunice Borges
(nascida em Cabo Verde, descende das mais antigas famílias do arquipélago dos Bijagós)
Fonte: Antologia Poética da Guiné-Bissau (Lisboa: Editorial Inquérito, 1990) (1)
_________
Nota de L.G.
(1) Vd Breve resenha sobre a literatura da Guiné-Bissau (Filomena Embaló, 2004)
Caro Luis
Tenho andado a dar voltas à tola para satisfazer o teu pedido de referências e experiências vividas com as mulheres (ou bajudas) da Guiné durante a guerra. Sobre este assunto pouco tenho a dizer e julgo que, melhor do que eu, outros tertulianos o poderão fazer.
Se até 1961, antes da guerra, tive aventuras facilmente imagináveis, a partir dessa data, não sofri as privações que os nossos camaradas sofreram, nem me envolvi em românticas aventuras porque já era casado e tinha família constituída em Bissau.
No entanto, não deixo de prestar a minha homenagem às mães, esposas, companheiras e amigas, nossas e do inimigo, que connosco partilharam as agruras daqueles tempos. A história não poderá de forma alguma esquecê-las.
Continuando as minhas crónicas sobre o que era a vida na Guiné antes da guerra, para que todos os camaradas tertulianos sintam que o ambiente era semelhante ao que existe hoje, instalada a paz, envio mais um capítulo sobre Bissau. Conto fazer algo semelhante sobre Farim e Bafatá, por serem as terras onde habitei com carácter mais permanente. Isto, claro, se vires nisso algum interesse.
Um grande abraço para todos os tertulianos e para as mulheres a minha singela homenagem no dia que lhes é dedicado. E que não sejam esquecidas nos restantes 364 dias do ano.
Mário Dias
************
2. Mensagem de Conceição Salgado:
Caro Luís,
Segue um poema de homenagem à mulher, sem fundamnetalismos ou feminilismos
doentios. Homenagem a todas as mulheres seja qual for a latitude ou longitude. E uma foto da Mãe-África, como fundo, será que é possível?
Mantenhas
Bissau, 8 de Março de 2006
Conceição Salgado
Mãe-África (escultura)
MULHER DA MINHA TERRA
Mulher da minha terra,
Mulher sofredora,
Mulher escrava,
Que só conhece deveres,
Vem!
Vem que já brilha
Para ti uma nova luz!
Vem de fronte erguida
E grita bem alto
Que ser mulher não é desdouro!
Vem!
Ser mulher não é ser fraca,
Ser mulher não é
Obedecer sem perceber,
Seguir sem conhecer o caminho,
Dar, sem receber
Não! Mulher da minha terra!
Vem!
Vem conhecer o teu valor
De ser mulher,
Deixa a ignorância
E vem aprender a ser mulher!
Vem!
Não precisas de adornos fúteis
Para seres bela
Mesmo coberta de farrapos.
Vem dar o teu contributo,
A tua palavra,
Até mesmo o teu olhar
Tem o seu valor como mulher!
Vem!
Mulher-criança!
Mulher-jovem
Mulher-mãe
Mulher velhinha,
Todas hoje unidas
No mesmo amor,
Vem glorificar
A Natureza que te fez
Mulher.
Eunice Borges
(nascida em Cabo Verde, descende das mais antigas famílias do arquipélago dos Bijagós)
Fonte: Antologia Poética da Guiné-Bissau (Lisboa: Editorial Inquérito, 1990) (1)
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Nota de L.G.
(1) Vd Breve resenha sobre a literatura da Guiné-Bissau (Filomena Embaló, 2004)
Guiné 63/74 - P597: Dia Internacional da Mulher (2): As Tias Lili Caneças de antigamente (João Tunes)
Guiné > Chulame > 1971 > Catotinha e sua mãe, manjaca
© Rui Esteves (2005)
Texto do João Tunes, um tertuliano que não precisa de adjectivos e, muito menos, de: (i) licença para entrar e sair da nossa caserna, (ii) licença de porte de arma, (iii) licença para exercer a arte de blogar a toda hora, (iv) licença para entrar a matar, nos interpelar, emocionar, provocar, criticar, estarrecer, encostar à parede, pôr-nos em sentido, pôr-nos em pelota, nus, na parada, indefesos, fodidos... e, por fim, (v) licença para, assim de repente, fazer de medium e deixar-nos em paz connosco mesmos e com os outros e com os nossos fantasmas de estimação. É um prestidigitador. Um feiticeiro. Um mauro....
Como se diz agora, em bom economês, este João Tunes é uma mais-valia para esta tertúlia de cotas, de gajos marados da guerra de sessenta e troca o passo... Em boa verdade, eu não o posso tratar com menos mimos do que ele me (mal)trata, desbaratando o seu grande talento de manipulador de palavras, de fabricante de letras, de produtor de idiossincracias... (LG) .
2. O texto do João, que já circulou previamente pela tertúlia, mereceu do Afonso M. F. Sousa o seguinte comentário:
"Um texto magnífico, com exemplares figuras de estilo ! ...e a facilidade com que a pena desliza, dando forma à lucidez do espírito !
"Uma delícia, os seus escritos! Parabéns, grande escritor !"
3. Este Comandante Luís, entre tantas qualidades, ainda guarda a de irreverente desafiador. Topo o género de tipos como este - na sua ternura perante a vida, gostam de ver ramos, por gastos que sejam, a rebentarem de botões de primavera, puxando brios à seiva, adiando a secura de se tornarem paus secos só prestáveis para a lareira da velhice.
Sabendo que se lá queremos ir com azedume ou rancor mal seco, fodidos e mal pagos, vamo-nos tristes, assim nos secando no resto das nossas vidas, pouco merecendo a boa aventurança de, afinal, termos vindo da Guiné com cabedal e cachola prontos ao riso e à recordação, exorcizando lágrimas agarradas ao corpo mais as malvadas réplicas sádicas na flor da alma. Como diria o outro, este Nosso Comandante Luís é um Senhor! E julgo que é assim que ele, um Comandante, recusando-se ser Coma Andante, generoso e diligente, conserva composta, operacional e bem arreada esta tropa do nosso Blogue-Esquadrão.
Guiné- Bissau > Portogole > Mulher balanta com os filho às costas. Fonte: Africanidades > 21.11.05 > Tchon balanta (região balanta). © Jorge Neto (2005)
Pois o Comandante Luís lançou novo mote - puxarmos das recordações para comemorarmos condignamente o dia de amanhã - 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. Mais uma das suas boas ideias, disse para mim, abalançando-me aos preparos de não o deixar lançar desafios na bolanha sem resposta condizente, de costureirinha que seja.
Matutei um ror de coisas, olhando o teclado a ver se, entre a formatura das letras, me surgia inspiração ou ideia pífia mas sincera que fosse.
Pensei na viúva de Amílcar Cabral, pensando-lhe o drama do assassinato a frio e à vista do companheiro e um dos maiores líderes africanos de todos os tempos. Que nos combateu e tanto nos esforçámos por combater. Não encontrei dados que me inspirassem. Nem sei se está morta, viva ou onde pára. Desisti.
Passei às comandantes e guerrilheiras do PAIGC, algumas insignes e heróicas. Não encontrei dados. Foi-se o motivo.
Julgava safar-me a pensar nas nossas bajudas, nas nossas lavadeiras, nas guineenses que vimos curvadas sobre a lavra e a safra acartando os filhos nas dobras dos seus lenços. Fiz as contas ao horizonte médio de vida das e dos guineenses e restou-me a tristeza funda de prever que a maioria já não terá um centímetro de vida para receber homenagem que seja. Passei à frente.
Restaram-me as nossas, as portuguesas - as noivas, as esposas, as mães e as irmãs dos mancebos camuflados que fomos, trocando-lhes a companhia por uma G3, essa gaja volúvel e mais puta que a puta rainha das putas. E aí defendi-me da emoção, tanta que me levava, pela certa, à lamechice pimba. E disse-me: basta, não vou por aí.
E festa é festa, até no Dia da Mulher. Haja baile até, se para tanto aprouver. Siga a dança então e com o riso da paródia que é o melhor dos exorcismos. Numa boa paródia, não há memória em que diabo entre que até a ele não lhe apeteça dançar. E enquanto o diabo dança, antes lhe dê para dançar que para guerrear, as diabruras esmorecem e nós descansamos. Até na memória, dando-nos calma de repouso e até preguiça de sesta. E não é disso que estamos precisados? A merecida sesta dos guerreiros?
Com inspiração falida, cansado de esperar inspiração vinda do teclado, fui ao baú dos textos publicados e desenterro este que julgo valer, pelo menos se festejado no gozo da antinomia:
"Tropecei nas Senhoras do Movimento Nacional por duas vezes. Eram uma espécie das Tias de hoje (Lili Caneças lá não faltaria, estou convencido disso), normalmente casadas com dignatários do regime salazarista-marcelista. Ocupavam o tempo a acarinhar a rapaziada que ia para a guerra colonial ou já lá tinha batido com os costados."
"Na primeira vez, estava eu perfilado e em sentido, comandando o meu pelotão, no Cais de Alcântara, a aguardar o embarque no Niassa que nos ia levar para a Guiné. Imaginem o estado de espírito. As famílias amontoavam-se nos varandins da Estação a acenar com lenços porque as despedidas estavam feitas. A tropa em formatura a gramar o discurso patrioteiro de um General qualquer. As lágrimas a caírem por dentro. Cada um a olhar de soslaio para os varandins, com uma tristeza infinita nos olhos ao ver a bruma dos lenços a acenarem sem se distinguirem os rostos. E uma raiva contra a sorte do destino a subir-nos até à garganta. A certo momento, avançam as senhoras do MNF, todas com aspecto de terem vindo directamente do cabeleireiro, sorrisos afivelados como os que fazem as meninas de um qualquer balcão de recepção, com saquinhos de pano a tiracolo para oferecerem a cada militar do Império um maço de cigarros de marca Aviz. Eu olhei o rosto da senhora que se postou na minha frente e senti uma navalhada da hipocrisia da situação em estar a ver aquela cara e não os rostos que eu queria ver mas não distinguia entre os lenços dos varandins. A senhora entende-me um maço Aviz e diz-me sorridente "parabéns senhor alferes, por ir defender a pátria". Senti a raiva crescer-me. Mas tinha que estar perfilado e em sentido. E tinha uma data de homens sob o meu comando. Crispei os dedos das palmas da mão esticadas. Disse-lhe entre dentes como um sussurro, não perdendo a compostura na formatura: "meta o Aviz na cona e desapareça-me da vista!". A senhora circulou para junto de outro militar, conservando o sorriso do protocolo. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias."
Guiné > Mato Farroba > Catió > Abril de 1970 > João Tunes, oficial (miliciano) de transmissões.
© João Tunes (2005).
"A segunda e última vez que contactei o MNF, foi no primeiro Natal passado na Guiné, em que a malta do Pelundo teve direito à visita da Presidenta da coisa, D. Cilinha Supico Pinto em pessoa. Ela foi lá numa visita ultra-rápida, demorou uns minutos a distribuir discos da Amália Rodrigues a cada militar e zarpou para o helicóptero. Os militares ficaram atónitos, para que é que queriam o disco se ninguém tinha gira-discos? Quando o helicóptero se preparava para subir, a malta já se tinha recomposto da surpresa e desatou quase toda a correr para o heliporto improvisado e, ainda o heli tinha as rodas no chão, a discaria da Amália subiu aos céus do Pelundo transformados em discos voadores. Foi a escolta merecida que a D. Supico teve na sua viagem de regresso do Pelundo. A tropa ficou fascinada com aquela nuvem de discos da D. Amália que pareciam querer tapar o céu e desatou toda aos gritos "Oh Supico, mete-os na cona!". Ela deve ter sorrido. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias."
"Com o passar dos anos, vêm-me os remorsos. Tantas ofensas a tão respeitáveis Senhoras. Sabendo todos que as suas pudicas partes anatómicas não foram feitas para armazenarem maços de tabaco ou discos, mesmo que sejam da marca Aviz ou transportem a voz da Amália. Espero bem que outras prestações gloriosas as tenham compensado dos insultos da tropa chateada. Ainda para mais, fomos, com o apoio delas e dos seus esposos, defender a pátria e o império. Felizes, fomos. Patriotas também. Como o caraças! Só que, às vezes, na tropa, as palavras resvalavam para a ordinarice. Acontece. As minhas atrasadas desculpas, na parte que me toca."
Fonte > Primeiro (?) Bogue do João Tunes > Bota Cima > Homenagem ao MNF >
Com as melhores saudações a todos os estimados camaradas tertulianos.
João Tunes
© Rui Esteves (2005)
Texto do João Tunes, um tertuliano que não precisa de adjectivos e, muito menos, de: (i) licença para entrar e sair da nossa caserna, (ii) licença de porte de arma, (iii) licença para exercer a arte de blogar a toda hora, (iv) licença para entrar a matar, nos interpelar, emocionar, provocar, criticar, estarrecer, encostar à parede, pôr-nos em sentido, pôr-nos em pelota, nus, na parada, indefesos, fodidos... e, por fim, (v) licença para, assim de repente, fazer de medium e deixar-nos em paz connosco mesmos e com os outros e com os nossos fantasmas de estimação. É um prestidigitador. Um feiticeiro. Um mauro....
Como se diz agora, em bom economês, este João Tunes é uma mais-valia para esta tertúlia de cotas, de gajos marados da guerra de sessenta e troca o passo... Em boa verdade, eu não o posso tratar com menos mimos do que ele me (mal)trata, desbaratando o seu grande talento de manipulador de palavras, de fabricante de letras, de produtor de idiossincracias... (LG) .
2. O texto do João, que já circulou previamente pela tertúlia, mereceu do Afonso M. F. Sousa o seguinte comentário:
"Um texto magnífico, com exemplares figuras de estilo ! ...e a facilidade com que a pena desliza, dando forma à lucidez do espírito !
"Uma delícia, os seus escritos! Parabéns, grande escritor !"
3. Este Comandante Luís, entre tantas qualidades, ainda guarda a de irreverente desafiador. Topo o género de tipos como este - na sua ternura perante a vida, gostam de ver ramos, por gastos que sejam, a rebentarem de botões de primavera, puxando brios à seiva, adiando a secura de se tornarem paus secos só prestáveis para a lareira da velhice.
Sabendo que se lá queremos ir com azedume ou rancor mal seco, fodidos e mal pagos, vamo-nos tristes, assim nos secando no resto das nossas vidas, pouco merecendo a boa aventurança de, afinal, termos vindo da Guiné com cabedal e cachola prontos ao riso e à recordação, exorcizando lágrimas agarradas ao corpo mais as malvadas réplicas sádicas na flor da alma. Como diria o outro, este Nosso Comandante Luís é um Senhor! E julgo que é assim que ele, um Comandante, recusando-se ser Coma Andante, generoso e diligente, conserva composta, operacional e bem arreada esta tropa do nosso Blogue-Esquadrão.
Guiné- Bissau > Portogole > Mulher balanta com os filho às costas. Fonte: Africanidades > 21.11.05 > Tchon balanta (região balanta). © Jorge Neto (2005)
Pois o Comandante Luís lançou novo mote - puxarmos das recordações para comemorarmos condignamente o dia de amanhã - 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. Mais uma das suas boas ideias, disse para mim, abalançando-me aos preparos de não o deixar lançar desafios na bolanha sem resposta condizente, de costureirinha que seja.
Matutei um ror de coisas, olhando o teclado a ver se, entre a formatura das letras, me surgia inspiração ou ideia pífia mas sincera que fosse.
Pensei na viúva de Amílcar Cabral, pensando-lhe o drama do assassinato a frio e à vista do companheiro e um dos maiores líderes africanos de todos os tempos. Que nos combateu e tanto nos esforçámos por combater. Não encontrei dados que me inspirassem. Nem sei se está morta, viva ou onde pára. Desisti.
Passei às comandantes e guerrilheiras do PAIGC, algumas insignes e heróicas. Não encontrei dados. Foi-se o motivo.
Julgava safar-me a pensar nas nossas bajudas, nas nossas lavadeiras, nas guineenses que vimos curvadas sobre a lavra e a safra acartando os filhos nas dobras dos seus lenços. Fiz as contas ao horizonte médio de vida das e dos guineenses e restou-me a tristeza funda de prever que a maioria já não terá um centímetro de vida para receber homenagem que seja. Passei à frente.
Restaram-me as nossas, as portuguesas - as noivas, as esposas, as mães e as irmãs dos mancebos camuflados que fomos, trocando-lhes a companhia por uma G3, essa gaja volúvel e mais puta que a puta rainha das putas. E aí defendi-me da emoção, tanta que me levava, pela certa, à lamechice pimba. E disse-me: basta, não vou por aí.
E festa é festa, até no Dia da Mulher. Haja baile até, se para tanto aprouver. Siga a dança então e com o riso da paródia que é o melhor dos exorcismos. Numa boa paródia, não há memória em que diabo entre que até a ele não lhe apeteça dançar. E enquanto o diabo dança, antes lhe dê para dançar que para guerrear, as diabruras esmorecem e nós descansamos. Até na memória, dando-nos calma de repouso e até preguiça de sesta. E não é disso que estamos precisados? A merecida sesta dos guerreiros?
Com inspiração falida, cansado de esperar inspiração vinda do teclado, fui ao baú dos textos publicados e desenterro este que julgo valer, pelo menos se festejado no gozo da antinomia:
"Tropecei nas Senhoras do Movimento Nacional por duas vezes. Eram uma espécie das Tias de hoje (Lili Caneças lá não faltaria, estou convencido disso), normalmente casadas com dignatários do regime salazarista-marcelista. Ocupavam o tempo a acarinhar a rapaziada que ia para a guerra colonial ou já lá tinha batido com os costados."
"Na primeira vez, estava eu perfilado e em sentido, comandando o meu pelotão, no Cais de Alcântara, a aguardar o embarque no Niassa que nos ia levar para a Guiné. Imaginem o estado de espírito. As famílias amontoavam-se nos varandins da Estação a acenar com lenços porque as despedidas estavam feitas. A tropa em formatura a gramar o discurso patrioteiro de um General qualquer. As lágrimas a caírem por dentro. Cada um a olhar de soslaio para os varandins, com uma tristeza infinita nos olhos ao ver a bruma dos lenços a acenarem sem se distinguirem os rostos. E uma raiva contra a sorte do destino a subir-nos até à garganta. A certo momento, avançam as senhoras do MNF, todas com aspecto de terem vindo directamente do cabeleireiro, sorrisos afivelados como os que fazem as meninas de um qualquer balcão de recepção, com saquinhos de pano a tiracolo para oferecerem a cada militar do Império um maço de cigarros de marca Aviz. Eu olhei o rosto da senhora que se postou na minha frente e senti uma navalhada da hipocrisia da situação em estar a ver aquela cara e não os rostos que eu queria ver mas não distinguia entre os lenços dos varandins. A senhora entende-me um maço Aviz e diz-me sorridente "parabéns senhor alferes, por ir defender a pátria". Senti a raiva crescer-me. Mas tinha que estar perfilado e em sentido. E tinha uma data de homens sob o meu comando. Crispei os dedos das palmas da mão esticadas. Disse-lhe entre dentes como um sussurro, não perdendo a compostura na formatura: "meta o Aviz na cona e desapareça-me da vista!". A senhora circulou para junto de outro militar, conservando o sorriso do protocolo. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias."
Guiné > Mato Farroba > Catió > Abril de 1970 > João Tunes, oficial (miliciano) de transmissões.
© João Tunes (2005).
"A segunda e última vez que contactei o MNF, foi no primeiro Natal passado na Guiné, em que a malta do Pelundo teve direito à visita da Presidenta da coisa, D. Cilinha Supico Pinto em pessoa. Ela foi lá numa visita ultra-rápida, demorou uns minutos a distribuir discos da Amália Rodrigues a cada militar e zarpou para o helicóptero. Os militares ficaram atónitos, para que é que queriam o disco se ninguém tinha gira-discos? Quando o helicóptero se preparava para subir, a malta já se tinha recomposto da surpresa e desatou quase toda a correr para o heliporto improvisado e, ainda o heli tinha as rodas no chão, a discaria da Amália subiu aos céus do Pelundo transformados em discos voadores. Foi a escolta merecida que a D. Supico teve na sua viagem de regresso do Pelundo. A tropa ficou fascinada com aquela nuvem de discos da D. Amália que pareciam querer tapar o céu e desatou toda aos gritos "Oh Supico, mete-os na cona!". Ela deve ter sorrido. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias."
"Com o passar dos anos, vêm-me os remorsos. Tantas ofensas a tão respeitáveis Senhoras. Sabendo todos que as suas pudicas partes anatómicas não foram feitas para armazenarem maços de tabaco ou discos, mesmo que sejam da marca Aviz ou transportem a voz da Amália. Espero bem que outras prestações gloriosas as tenham compensado dos insultos da tropa chateada. Ainda para mais, fomos, com o apoio delas e dos seus esposos, defender a pátria e o império. Felizes, fomos. Patriotas também. Como o caraças! Só que, às vezes, na tropa, as palavras resvalavam para a ordinarice. Acontece. As minhas atrasadas desculpas, na parte que me toca."
Fonte > Primeiro (?) Bogue do João Tunes > Bota Cima > Homenagem ao MNF >
Com as melhores saudações a todos os estimados camaradas tertulianos.
João Tunes
Guiné 63/74 - P596: Dia Internacional da Mulher (1): Sara Martins, presente! (José Martins) e A Guerra no Feminino (Manuela Gonçalves)
1. Mandei ontem um inocente convite (ou melhor: sugestão) à nossa tertúlia:
"Amigos & camaradas: Estórias de mulheres… na guerra e na paz, precisam-se! Amanhã é dia (internacional) das bajudas e das mulheres grandes (com o devido respeito pelas nossas mulheres grandes, da caserna ao lado)…
"Vejo que os nossos tertulianos, com excepção do Zé Teixeira, do Jorge Cabral, do VB, da Zélia e de poucos mais, são muito recatados"…
... As respostas não se fizeram esperar.
2. Texto do José Martins (ex-furriel miliciano de transmissõres, CCAÇ 5 - Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70):
Luís: Mando um texto que escrevi em 1999, dois dias depois de a minha mãe ter partido ao encontro da PAZ, já que por cá viveu duas GUERRAS.
Martins
SARA DA SILVA MARCELINO MARTINS
(11/10/1911 * 15/05/1999)
Descendente de uma família de insignes militares do Regimento de Infantaria nº 7 de Leiria, em três fases distintas da sua vida, viu partir seu Pai para a I Grande Guerra, França, e dois dos seus Filhos para a Guerra do Ultramar, Guiné; e assistiu ainda à incorporação dos seus Netos no Exército Português.
Por outro lado, os Soldados da Paz também fizeram parte da sua vida: O Marido como Ajudante do Comando dos Bombeiros Municipais de leiria e um Filho como Bombeiro da mesma Corporação, tendo um Neto sido Bombeiro Voluntário da Corporação de Avintes.
Lisboa, 17 de Maio de 1999.
************
3. A Nela, já aqui referida em tempos (1), não faz mas devia fazer parte da nossa tertúlia, juntamente com o seu marido: ele foi nosso camarada na época de 1969/70, foi no Niassa em Maio de 1969 - o mesmo é dizer que fomos juntos, ele e o pessoal metropolitano da CCAÇ 2590, a futura CCAÇ 12 - esteve em Ingoré e foi gravemente ferido na explosão de uma mina anticarro... Ela, jovem estudante universitára e então namorada, viveu a guerra à distância, com a morte na alma... Já casada, anos depois, desloca-se à Guiné-Bissau, com a família, para exorcizar os seus fantasmas... Da paixão à cooperação foi um passo... Mais recentemente, descobriu o nosso blogue, que visita regularmente, e mais do que isso mantém o seu próprio blogue: Caminhos por onde andei...
Hoje voltou a escrever-me, dizendo:
"No Blog, vou revivendo e recordando com o meu marido. Continuarei a blogar. Estamos a tentar digitalizar os slides de 69/70, época da luta (nunca chamei turras aos guerrilheiros) e 81/82, época em que estivemos lá como cooperantes.
"No meu blog, as memórias e factos, alguns bem curiosos, irão aparecendo. Continuem com a vossa tertúlia! Passo por lá diariamente. Os meus cumprimentos. Manuela Gonçalves".
No Dia Internacional da Mulher, a Nela, companheira de um camarada nosso (cujo nome e unidade desconhecemos, mas que terá viajado connosco no memso barco, na mesma altura), merece o devido destaque.
Com a sua licença, tomo a liberdade de reproduzir aqui dois dos seus posts em que ela evoca esse doloroso tempo em que elo de comunicação entre os homens que faziam a guerra na Guiné e as mulheres (mães, namoradas, madrinhas de guerra...) que ficavam na retaguarda, se fazia através do frágil e suspeito aerograma...
4. Blogue da Nela [Manuela Gonçalves] > Caminhos por onde andei > 7 de Janeiro de 2006 > Guiné-Bissau (1)
Esta noite, ao navegar pelos blogs que visito habitualmente, fui parar, através de hiperligações de posts, ao Blogue Fora-Nada, que reúne documentos e memórias de ex-combatentes da Guiné-Bissau.
Não fui combatente na Guiné, mas esses caminhos foram percorridos por mim de modo e tempo diferentes... Tornaram-se mesmo decisivos na minha vida de jovem estudante universitária rebelde, namorada de um alferes miliciano que para ali fora enviado para a guerra, mais tarde meu companheiro de vida (já lá vão 35 anos) e de mulher e mãe, que considerou importante ir para Bissau, como cooperante!
A Guiné dos aerogramas despertara um desejo imenso de conhecer a Guiné das bolanhas, das tabancas, dos mosquitos, dos rios e pântanos e das gentes que ali viviam, dos flupes, dos mandingas, dos papéis, de Amílcar Cabral, dos guerrilheiros do PAIGC...
Nunca tinha aceite a Guerra Colonial, mas uma vez que ela tinha entrado nas nossas vidas abruptamente e deixado incapacidades físicas ao maridão, senti uma vontade imensa de viajar para aquele pequeno país e conhecê-lo bem!
Era como que uma necessidade intrínseca de compreender bem uma etapa importante da vida vivida pelo companheiro de route!
Bissau, Bafatá, Mansoa, São Domingos, Ingoré eram locais que precisávamos (re)visitar.
E fomos lá! Também os nossos filhos nos acompanharam, crianças ainda, viram e pisaram as picadas que , anos antes, o pai cruzara, sempre alerta! Agora podíamos circular livremente, apesar do mau estado das estradas, mas em paz e liberdade!
Gostei da Guiné-Bissau! Voltar lá foi um modo de exorcizar fantasmas de guerra que habitavam a nossa casa!
Hei-de voltar ao tema!
Nela [Manuela Gonçalves]
Terça-feira, 7 de Março de 2006 > Guiné-Bissau (2)
Andei a rever fotos antigas. Com elas caminhei por memórias bem aninhadas em mim, por vidas vividas, por estradas perdidas, por espaços guardiães das minhas / nossas vivências. Nossas, cá da casa, mas sobretudo minhas e do companheiro de tantos anos.
Foi em 1969, Maio, que ele foi para a Guiné. A bordo do Niassa e integrado numa companhia que fora formada em Estremoz. Rendição individual, quando nada fazia prever que ainda fosse até à Guerra. A faculdade ficou para trás, os sonhos adiados por uns anos.
Da Guiné, chegavam aerogramas que eu lia e tentava decifrar. Sim, naquela época, era preciso decifrar as palavras, como aquelas em que me dizia que tinha dado um passeio até ao Senegal. Eu sabia que tal significava que tinham feito uma incursão em terras senegalesas e fiquei receando que fosse feito prisioneiro. Pouco tempo antes, um grupo de oficiais tinha desertado e procurado asilo na Suécia.
Na faculdade, eu continuava o curso e a apoiar as lutas estudantis contra a guerra colonial. E escrevia cartas, cartas, aerogramas. Sempre muito cautelosa, sabia-se lá quem poderia ler as nossas palavras.
Recebia aerogramas aos pares. Um dia não recebi. O silêncio continuou por duas longas semanas. Não fazia ideia do que poderia ter acontecido. Passaram diversos cenários pela minha mente, todos deduzidos pelas conversas que tínhamos tido, pelas utopias que partilhávamos, pelas palavras que não eram escritas. Teria sido apanhado no Senegal? Teria ido ele para o Senegal? Estaria morto? Ferido? Os jornais falavam da captura de um major cubano.
Que se passava? Um aerograma de um amigo, Alferes Baptista, no Q.G. em Bissau, deu – me a notícia: uma mina tinha rebentado com o Unimog, quando ele e o seu pelotão 60 seguiam numa patrulha. Ele estava no HMP em Bissau, em coma. Era dia 13 de Novembro de 1969, 10:30 da manhã.
Restava-me esperar que o trouxessem para Lisboa e falar diariamente com um médico, amigo de uma tia, que prestava serviço no Hospital em Bissau. E de longe fui acompanhando o seu estado! Mais tarde um lacónico aerograma dele, muito parco em palavras, cheio de silêncios, confirmava-a.
Apesar de toda a dor e angústia sentidas, uma grande alegria: ele estava vivo. Os sonhos continuavam adiados, mas não jogados fora. Uma nova etapa nas nossas vidas havia começado!
Nela [Manuela Gonçalves]
____________
Nota de L.G.
(1) Vd. pots de 9 de Janeiro de 2006 > Guine 63/74 - CDXXXV: O que os outros (blogues) dizem de nós (1): Caminhos por onde andei
"Amigos & camaradas: Estórias de mulheres… na guerra e na paz, precisam-se! Amanhã é dia (internacional) das bajudas e das mulheres grandes (com o devido respeito pelas nossas mulheres grandes, da caserna ao lado)…
"Vejo que os nossos tertulianos, com excepção do Zé Teixeira, do Jorge Cabral, do VB, da Zélia e de poucos mais, são muito recatados"…
... As respostas não se fizeram esperar.
2. Texto do José Martins (ex-furriel miliciano de transmissõres, CCAÇ 5 - Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70):
Luís: Mando um texto que escrevi em 1999, dois dias depois de a minha mãe ter partido ao encontro da PAZ, já que por cá viveu duas GUERRAS.
Martins
SARA DA SILVA MARCELINO MARTINS
(11/10/1911 * 15/05/1999)
Descendente de uma família de insignes militares do Regimento de Infantaria nº 7 de Leiria, em três fases distintas da sua vida, viu partir seu Pai para a I Grande Guerra, França, e dois dos seus Filhos para a Guerra do Ultramar, Guiné; e assistiu ainda à incorporação dos seus Netos no Exército Português.
Por outro lado, os Soldados da Paz também fizeram parte da sua vida: O Marido como Ajudante do Comando dos Bombeiros Municipais de leiria e um Filho como Bombeiro da mesma Corporação, tendo um Neto sido Bombeiro Voluntário da Corporação de Avintes.
Lisboa, 17 de Maio de 1999.
************
3. A Nela, já aqui referida em tempos (1), não faz mas devia fazer parte da nossa tertúlia, juntamente com o seu marido: ele foi nosso camarada na época de 1969/70, foi no Niassa em Maio de 1969 - o mesmo é dizer que fomos juntos, ele e o pessoal metropolitano da CCAÇ 2590, a futura CCAÇ 12 - esteve em Ingoré e foi gravemente ferido na explosão de uma mina anticarro... Ela, jovem estudante universitára e então namorada, viveu a guerra à distância, com a morte na alma... Já casada, anos depois, desloca-se à Guiné-Bissau, com a família, para exorcizar os seus fantasmas... Da paixão à cooperação foi um passo... Mais recentemente, descobriu o nosso blogue, que visita regularmente, e mais do que isso mantém o seu próprio blogue: Caminhos por onde andei...
Hoje voltou a escrever-me, dizendo:
"No Blog, vou revivendo e recordando com o meu marido. Continuarei a blogar. Estamos a tentar digitalizar os slides de 69/70, época da luta (nunca chamei turras aos guerrilheiros) e 81/82, época em que estivemos lá como cooperantes.
"No meu blog, as memórias e factos, alguns bem curiosos, irão aparecendo. Continuem com a vossa tertúlia! Passo por lá diariamente. Os meus cumprimentos. Manuela Gonçalves".
No Dia Internacional da Mulher, a Nela, companheira de um camarada nosso (cujo nome e unidade desconhecemos, mas que terá viajado connosco no memso barco, na mesma altura), merece o devido destaque.
Com a sua licença, tomo a liberdade de reproduzir aqui dois dos seus posts em que ela evoca esse doloroso tempo em que elo de comunicação entre os homens que faziam a guerra na Guiné e as mulheres (mães, namoradas, madrinhas de guerra...) que ficavam na retaguarda, se fazia através do frágil e suspeito aerograma...
4. Blogue da Nela [Manuela Gonçalves] > Caminhos por onde andei > 7 de Janeiro de 2006 > Guiné-Bissau (1)
Esta noite, ao navegar pelos blogs que visito habitualmente, fui parar, através de hiperligações de posts, ao Blogue Fora-Nada, que reúne documentos e memórias de ex-combatentes da Guiné-Bissau.
Não fui combatente na Guiné, mas esses caminhos foram percorridos por mim de modo e tempo diferentes... Tornaram-se mesmo decisivos na minha vida de jovem estudante universitária rebelde, namorada de um alferes miliciano que para ali fora enviado para a guerra, mais tarde meu companheiro de vida (já lá vão 35 anos) e de mulher e mãe, que considerou importante ir para Bissau, como cooperante!
A Guiné dos aerogramas despertara um desejo imenso de conhecer a Guiné das bolanhas, das tabancas, dos mosquitos, dos rios e pântanos e das gentes que ali viviam, dos flupes, dos mandingas, dos papéis, de Amílcar Cabral, dos guerrilheiros do PAIGC...
Nunca tinha aceite a Guerra Colonial, mas uma vez que ela tinha entrado nas nossas vidas abruptamente e deixado incapacidades físicas ao maridão, senti uma vontade imensa de viajar para aquele pequeno país e conhecê-lo bem!
Era como que uma necessidade intrínseca de compreender bem uma etapa importante da vida vivida pelo companheiro de route!
Bissau, Bafatá, Mansoa, São Domingos, Ingoré eram locais que precisávamos (re)visitar.
E fomos lá! Também os nossos filhos nos acompanharam, crianças ainda, viram e pisaram as picadas que , anos antes, o pai cruzara, sempre alerta! Agora podíamos circular livremente, apesar do mau estado das estradas, mas em paz e liberdade!
Gostei da Guiné-Bissau! Voltar lá foi um modo de exorcizar fantasmas de guerra que habitavam a nossa casa!
Hei-de voltar ao tema!
Nela [Manuela Gonçalves]
Terça-feira, 7 de Março de 2006 > Guiné-Bissau (2)
Andei a rever fotos antigas. Com elas caminhei por memórias bem aninhadas em mim, por vidas vividas, por estradas perdidas, por espaços guardiães das minhas / nossas vivências. Nossas, cá da casa, mas sobretudo minhas e do companheiro de tantos anos.
Foi em 1969, Maio, que ele foi para a Guiné. A bordo do Niassa e integrado numa companhia que fora formada em Estremoz. Rendição individual, quando nada fazia prever que ainda fosse até à Guerra. A faculdade ficou para trás, os sonhos adiados por uns anos.
Da Guiné, chegavam aerogramas que eu lia e tentava decifrar. Sim, naquela época, era preciso decifrar as palavras, como aquelas em que me dizia que tinha dado um passeio até ao Senegal. Eu sabia que tal significava que tinham feito uma incursão em terras senegalesas e fiquei receando que fosse feito prisioneiro. Pouco tempo antes, um grupo de oficiais tinha desertado e procurado asilo na Suécia.
Na faculdade, eu continuava o curso e a apoiar as lutas estudantis contra a guerra colonial. E escrevia cartas, cartas, aerogramas. Sempre muito cautelosa, sabia-se lá quem poderia ler as nossas palavras.
Recebia aerogramas aos pares. Um dia não recebi. O silêncio continuou por duas longas semanas. Não fazia ideia do que poderia ter acontecido. Passaram diversos cenários pela minha mente, todos deduzidos pelas conversas que tínhamos tido, pelas utopias que partilhávamos, pelas palavras que não eram escritas. Teria sido apanhado no Senegal? Teria ido ele para o Senegal? Estaria morto? Ferido? Os jornais falavam da captura de um major cubano.
Que se passava? Um aerograma de um amigo, Alferes Baptista, no Q.G. em Bissau, deu – me a notícia: uma mina tinha rebentado com o Unimog, quando ele e o seu pelotão 60 seguiam numa patrulha. Ele estava no HMP em Bissau, em coma. Era dia 13 de Novembro de 1969, 10:30 da manhã.
Restava-me esperar que o trouxessem para Lisboa e falar diariamente com um médico, amigo de uma tia, que prestava serviço no Hospital em Bissau. E de longe fui acompanhando o seu estado! Mais tarde um lacónico aerograma dele, muito parco em palavras, cheio de silêncios, confirmava-a.
Apesar de toda a dor e angústia sentidas, uma grande alegria: ele estava vivo. Os sonhos continuavam adiados, mas não jogados fora. Uma nova etapa nas nossas vidas havia começado!
Nela [Manuela Gonçalves]
____________
Nota de L.G.
(1) Vd. pots de 9 de Janeiro de 2006 > Guine 63/74 - CDXXXV: O que os outros (blogues) dizem de nós (1): Caminhos por onde andei
terça-feira, 7 de março de 2006
Guiné 63/74 - P595: Assalto ao destacamento IN de Seco Braima, na margem direita do Rio Corubal (Janeiro de 1970, CCAÇ 12, CAÇ 2404, CART 2413)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Subsector do Xitole > 1970 > Forças da CCAÇ 12 (na foto, o 2º Grupo de Combate, dos furriéis milicianos Humberto Reis e Tony Levezinho) atravessando uma bolanha, a caminho da península de Galo Corubal-Satecuta, na margem direita do Rio Corubal. O Humberto vem atrás dos homens da bazuca e do lança-rockets (igual à dos páras). E, mais atrás, os 1ºs cabos (metropolitanos) Alves e Branco. Participei na operação, abaixo relatada, integrado desta vez no 4º Gr Combate. Como me dizia amavelmente o meu capitão Brito - era um gentleman! - , eu era o peão de nicas, o tapa-buracas, o suplente, o que substituía os camaradas furriéis doentes, convalescentes, desenfiados ou em férias... Não sei por que carga de água é que os psicotécnicos (ou os pides...) disseram que eu era bom para apontador de armas pesadas de infantaria. Como a CCAÇ 12 era uma companhia de intervenção, não tendo armas pesadas, eu tornei-me um polivalente, um pau para toda a obra ... (LG)
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).
Extractos de:
História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971. Capítulo II. 22-23. (Documento policopiado, elaborado pelo ex-furriel mil Henriques, com a colaboração e a cumplicidade de muita gente, a começar pelo sargento Piça, mandado classificar como reservado pelo comandante da unidade e distribuído, à sua revelia, aos quadros metropolitanos, na véspera da sua rendição individual, em finais de Fevereiro e princípios de Março de 1971... Não creio que tenha sido nenhum crime de lesa-pátria...) (LG).
(7) Janeiro de 1970: 3 assaltos a objectivos INDurante o período de Janeiro a Abril de 1970, coincidindo com a época seca, a CCAÇ 12 desenvolveria uma intensa actividade operacional ofensiva, realizando 7 operações a nível de Batalhão (das quais 6 com contacto), 3 operações a nível de Companhia (uma com contacto e as outras com vestígios do IN) e ainda 10 acções, além da actividade de rotina.
(7.1) Op Navalha Polida: assalto imediato ao destacamento IN de Seco Braima
Em 2, às 5h00, dava-se início à Op Navalha Polida para uma batida à região de Galo Corubal-Satecuta-Seco Braima, e em que participaram 3 Gr Comb da CCAÇ 12 (Dest A), além de forças da CCÇ 2404 (Dest B) e CART 2413 (Dest C), [estas duas últimas sediadas, respectivamente, em Mansambo e Xitole].
Sabia-se, em consequência da Op Lança Afiada (1), que o IN ocupava a península de Galo Corubal-Satecuta (2) cujas bolanhas eram cultivadas por uma numerosa população de balantas e beafadas.
Mais recentemente um RVIS efectuado pela Força Aérea e uma emboscada que 1 Gr Comb da CART 2413 sofreu entre o Xitole e a Ponte dos Fulas, viriam confirmar a existência de 1 bigrupo naquela área.
A missão das NT era bater a península de Galo Corubal-Satecuta-Seco Braima, procurando aniquilar os elementos IN armados, aprisionar a população e destruir todos os meios de vida.
Desenrolar da acção:
Os 3 Destacamentos encontraram-se por volta das 9h00 perto da ponte sobre o Rio Jagarajá, na estrada Mansambo-Xitole, tendo iniciadoimediatamente a progressão a corta-mato em direcção ao objectivo.
Pelas 17h00 atingiram o local de pernoita, tendo-se emboscado junto a um antigo trilho que conduzia a Galo Corubal. A instalação foi feita de forma a conseguir-se apoio mútuo entre os Dest e a neutralizar uma eventual acção de surpresa do IN.
No dia seguinte, às 3h30, os Dest B e C iniciaram o movimento em direcção a Satecuta. E uma hora mais tarde o Dest A começou a deslocar-se para a região de Seco Braima (3), tendo ouvido por volta das 7h00 ruídos do pilão e vozes humanas.
Dirigindo-se imediatamente nessa direcção, o Dest A [CCAÇ 12] teve de cambar um curso de água, utilizando uma ponte submersível feita de troncos de cibe, deixando então de ouvir as vozes por se encontrar numa baixa.
Entretanto, o 4º Gr Comb ficava emboscado junto ao ponto de cambança. Continuada a progressão ao longo da margem, ouviram-se de novo vozes. Feita a aproximação de maneira cautelosa, verificou-se que havia ali um destacamento avançado do IN que deveria constituir o dispositivo de segurança próxima da tabanca de Seco Braima.
Como era impossível qualquer manobra de envolvimento sem ser detectado, devido ao capim e à vegetação arbustiva, o Comandante do Dest A deu ordem para que os homens da frente fizessem um assalto imediato. O acampamento foi atacado à granada de mão, tendo-se ouvido gritos lancinantes de dor.
Apesar de surpreendido, o IN reagiu rapidamente com armas automáticas, ao mesmo tempo que retirava, levando dois corpos de arrasto (no terreno havia sinais de arrastamento de 2 corpos através do capim e vestígios de sangue).
Concentrando o fogo na direcção da retirada do IN, os 2 Gr Comb (1º e 2º ) do Dest A tomaram o acampamento que era constituído por 5 casas de mato. Feita a batida a zona, encontrou-se o seguinte material:
5 granadas de RPG-2,
1 carregador de Metralhadora Ligeira Degtyarev,
2 lâminas 18 cartuchos,
além de vários utensílios e um balaio cheio de arroz.
Entretanto, já os Dest B e C tinham atingido o acampamento de Satecuta, de resto abandonado. Porém, devido aos rebentamentos que se ouviam da direcção de Seco Braima, alguns elementos IN, de passagem em Satecuta, foram alertados e na fuga seriam interceptados pelo Dest C [CART 2413] que abriu fogo sobre eles. 0 IN reagiu da vários pontos da mata. Na perseguição as NT fizeram um prisioneiro que ficara para trás, ferido.
Quase simultaneamente os 2 Gr Comb do Dest A em Seco Braima começariam a ser flagelados com canhão s/r e mort 82, instalados na margem esquerda do Rio Corubal, em frente de Ponta Jai. Foi entretanto pedido apoio aéreo e dada ordem de retirada pelo PCV. Enquanto os bombardeiros T 6 martelavam as posições do IN, as NT retiraram mas ordenadamente.
Os 3 Dest encontraram-se na estrada por volta das 13h00, tendo o Dest C seguido para o Xitole e os Dest B e A para Mansambo em coluna apeada (até à Ponte dos Fulas e ponte do Rio Bissari, respectivamente).
Em resultado da acção das NT, o IN teve 2 mortos prováveis e vários feridos confirmados, além dum capturado (4).
O IN manifestar-se ainda nos subsectores de Xitole Mansambo:
(i) a 19 (montando 2 minas A/P, na estrada, das quais uma foi accionada por uma viatura, com rebentamento de pneu, e a outra detectada e levantada, verificando-se pela sua análise que estava completamente nova);
(ii) a 20 (fazendo um pequeno grupo vindo do sul queimadas na região de Moricanhe);
(iii) e a 21 (flagelando de sudoeste o aquartelamento de Mansambo durante meia-hora, com Mort 82, lança-rockets e armas automáticas, sem consequências).
__________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts de:
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli
14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
(2) Na margem direita do Rio Corubal, entre os Rios Bissari e Pulom. Vd. mapa do Xime
(3) Também conhecido por Darsalame, junto ao Rio Pulom, e antes de Satecuta .Vd. mapa do Xime
(4) Informação complementar, fornecida pela história do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70): Esta operação envolveu 3 grupos de combate da CAÇ 12, mais 2 da CART 2413 (Xitole) e 3 da CCAǪ 2404 (Mansambo).
O acampamento de Satecuta tinha vestígios recentes, tendo sido abandonado há cerca de uma semana.
O prisioneiro, de nome Jomel Nanquitande, foi deixado para trás pelos seus companheiros, que no entanto recuperaram a sua arma. O seu ferimento não era grave, aos olhos de um tuga. Após uma semana de recuperação e de interrogatórios, o Jomel seria obrigado pelas NT a participar como guia para um assalto de mão ao acampamento IN de Ponta Varela que conhecia bem [, a sudoeste do Xime, na direcção de Madina Colhido]: Op Borboleta Destemida (CCAÇ 12, a 4 GR Comb + CART 2520, a 2 Gr Comb, 13 de Janeiro de 1970).
Devido ao muito cansaço dos Destamentos A e B, "alguns homens tiveram que ser recolhidos em viaturas no Rio Bissari".
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).
Extractos de:
História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971. Capítulo II. 22-23. (Documento policopiado, elaborado pelo ex-furriel mil Henriques, com a colaboração e a cumplicidade de muita gente, a começar pelo sargento Piça, mandado classificar como reservado pelo comandante da unidade e distribuído, à sua revelia, aos quadros metropolitanos, na véspera da sua rendição individual, em finais de Fevereiro e princípios de Março de 1971... Não creio que tenha sido nenhum crime de lesa-pátria...) (LG).
(7) Janeiro de 1970: 3 assaltos a objectivos INDurante o período de Janeiro a Abril de 1970, coincidindo com a época seca, a CCAÇ 12 desenvolveria uma intensa actividade operacional ofensiva, realizando 7 operações a nível de Batalhão (das quais 6 com contacto), 3 operações a nível de Companhia (uma com contacto e as outras com vestígios do IN) e ainda 10 acções, além da actividade de rotina.
(7.1) Op Navalha Polida: assalto imediato ao destacamento IN de Seco Braima
Em 2, às 5h00, dava-se início à Op Navalha Polida para uma batida à região de Galo Corubal-Satecuta-Seco Braima, e em que participaram 3 Gr Comb da CCAÇ 12 (Dest A), além de forças da CCÇ 2404 (Dest B) e CART 2413 (Dest C), [estas duas últimas sediadas, respectivamente, em Mansambo e Xitole].
Sabia-se, em consequência da Op Lança Afiada (1), que o IN ocupava a península de Galo Corubal-Satecuta (2) cujas bolanhas eram cultivadas por uma numerosa população de balantas e beafadas.
Mais recentemente um RVIS efectuado pela Força Aérea e uma emboscada que 1 Gr Comb da CART 2413 sofreu entre o Xitole e a Ponte dos Fulas, viriam confirmar a existência de 1 bigrupo naquela área.
A missão das NT era bater a península de Galo Corubal-Satecuta-Seco Braima, procurando aniquilar os elementos IN armados, aprisionar a população e destruir todos os meios de vida.
Desenrolar da acção:
Os 3 Destacamentos encontraram-se por volta das 9h00 perto da ponte sobre o Rio Jagarajá, na estrada Mansambo-Xitole, tendo iniciadoimediatamente a progressão a corta-mato em direcção ao objectivo.
Pelas 17h00 atingiram o local de pernoita, tendo-se emboscado junto a um antigo trilho que conduzia a Galo Corubal. A instalação foi feita de forma a conseguir-se apoio mútuo entre os Dest e a neutralizar uma eventual acção de surpresa do IN.
No dia seguinte, às 3h30, os Dest B e C iniciaram o movimento em direcção a Satecuta. E uma hora mais tarde o Dest A começou a deslocar-se para a região de Seco Braima (3), tendo ouvido por volta das 7h00 ruídos do pilão e vozes humanas.
Dirigindo-se imediatamente nessa direcção, o Dest A [CCAÇ 12] teve de cambar um curso de água, utilizando uma ponte submersível feita de troncos de cibe, deixando então de ouvir as vozes por se encontrar numa baixa.
Entretanto, o 4º Gr Comb ficava emboscado junto ao ponto de cambança. Continuada a progressão ao longo da margem, ouviram-se de novo vozes. Feita a aproximação de maneira cautelosa, verificou-se que havia ali um destacamento avançado do IN que deveria constituir o dispositivo de segurança próxima da tabanca de Seco Braima.
Como era impossível qualquer manobra de envolvimento sem ser detectado, devido ao capim e à vegetação arbustiva, o Comandante do Dest A deu ordem para que os homens da frente fizessem um assalto imediato. O acampamento foi atacado à granada de mão, tendo-se ouvido gritos lancinantes de dor.
Apesar de surpreendido, o IN reagiu rapidamente com armas automáticas, ao mesmo tempo que retirava, levando dois corpos de arrasto (no terreno havia sinais de arrastamento de 2 corpos através do capim e vestígios de sangue).
Concentrando o fogo na direcção da retirada do IN, os 2 Gr Comb (1º e 2º ) do Dest A tomaram o acampamento que era constituído por 5 casas de mato. Feita a batida a zona, encontrou-se o seguinte material:
5 granadas de RPG-2,
1 carregador de Metralhadora Ligeira Degtyarev,
2 lâminas 18 cartuchos,
além de vários utensílios e um balaio cheio de arroz.
Entretanto, já os Dest B e C tinham atingido o acampamento de Satecuta, de resto abandonado. Porém, devido aos rebentamentos que se ouviam da direcção de Seco Braima, alguns elementos IN, de passagem em Satecuta, foram alertados e na fuga seriam interceptados pelo Dest C [CART 2413] que abriu fogo sobre eles. 0 IN reagiu da vários pontos da mata. Na perseguição as NT fizeram um prisioneiro que ficara para trás, ferido.
Quase simultaneamente os 2 Gr Comb do Dest A em Seco Braima começariam a ser flagelados com canhão s/r e mort 82, instalados na margem esquerda do Rio Corubal, em frente de Ponta Jai. Foi entretanto pedido apoio aéreo e dada ordem de retirada pelo PCV. Enquanto os bombardeiros T 6 martelavam as posições do IN, as NT retiraram mas ordenadamente.
Os 3 Dest encontraram-se na estrada por volta das 13h00, tendo o Dest C seguido para o Xitole e os Dest B e A para Mansambo em coluna apeada (até à Ponte dos Fulas e ponte do Rio Bissari, respectivamente).
Em resultado da acção das NT, o IN teve 2 mortos prováveis e vários feridos confirmados, além dum capturado (4).
O IN manifestar-se ainda nos subsectores de Xitole Mansambo:
(i) a 19 (montando 2 minas A/P, na estrada, das quais uma foi accionada por uma viatura, com rebentamento de pneu, e a outra detectada e levantada, verificando-se pela sua análise que estava completamente nova);
(ii) a 20 (fazendo um pequeno grupo vindo do sul queimadas na região de Moricanhe);
(iii) e a 21 (flagelando de sudoeste o aquartelamento de Mansambo durante meia-hora, com Mort 82, lança-rockets e armas automáticas, sem consequências).
__________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts de:
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli
14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
(2) Na margem direita do Rio Corubal, entre os Rios Bissari e Pulom. Vd. mapa do Xime
(3) Também conhecido por Darsalame, junto ao Rio Pulom, e antes de Satecuta .Vd. mapa do Xime
(4) Informação complementar, fornecida pela história do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70): Esta operação envolveu 3 grupos de combate da CAÇ 12, mais 2 da CART 2413 (Xitole) e 3 da CCAǪ 2404 (Mansambo).
O acampamento de Satecuta tinha vestígios recentes, tendo sido abandonado há cerca de uma semana.
O prisioneiro, de nome Jomel Nanquitande, foi deixado para trás pelos seus companheiros, que no entanto recuperaram a sua arma. O seu ferimento não era grave, aos olhos de um tuga. Após uma semana de recuperação e de interrogatórios, o Jomel seria obrigado pelas NT a participar como guia para um assalto de mão ao acampamento IN de Ponta Varela que conhecia bem [, a sudoeste do Xime, na direcção de Madina Colhido]: Op Borboleta Destemida (CCAÇ 12, a 4 GR Comb + CART 2520, a 2 Gr Comb, 13 de Janeiro de 1970).
Devido ao muito cansaço dos Destamentos A e B, "alguns homens tiveram que ser recolhidos em viaturas no Rio Bissari".
segunda-feira, 6 de março de 2006
Guiné 63/74 - P594: A viúva do régulo Sambel de Contabane: um símbolo (Zé Teixeira)
Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > A mulher do régulo local. A que está a ordenhar a vaca é casada com o régulo de Sinchã Sambel, antigo milícia, filho do antigo régulo de Contabane.
© José Teixeira (2005)
Luís, saúde, paz e felicidade:
Muito feliz a tua ideia de colocares a foto da mulher do Régulo Sambel de Contabane (1) como referência, no excelente trabalho da Zélia sobre as Mulheres-Coragem.
De facto, esta mulher e seu marido muito sofreram com a guerra. A tabanca de Contabane foi atacada e incendiada em 22 de Junho de 1968, ficando destruída ao ponto de o pelotão da CCAÇ 2382 que lá se encontrava, ter regressado a Aldeia Formosa com a roupa que trazia no corpo. Tudo o resto foi queimado.
Seu filho, o actual Régulo de Sinchã Sambel, era à data soldado da milícia em Mampatá Forea, onde eu fui parar dias depois deste acontecimento. Este soldado da milícia é actualmente o Régulo de Sinchã Sambel, junto a Saltinho. Tive o prazer de conviver com a esposa deste em 2005. Ainda se recordava de mim, quando estive em Mampatá: era uma bajuda bem bonita.
Partilho inteiramente com as ideias da Zélia. Esposas e mães que por cá ficaram, basta olhar para as nossas mães. Quanto sofreram ! E as mães de lá, que firmavam na Tabanca. Seus filhos na tropa, na milícia, suas crianças na Tabanca, elas mesmas a sofrerem os ataques, tal como nós. Quantas casas incendiadas ou destruidas ! Quantas viram seus filhos, grandes e pequenos, morrerem com uma bala ou estilhaço assassino !
E as que estavam do outro lado ?!... E as que serviam de transportadoras de equipamento de guerra, as que trabalhavam clandestinamente nas bolanhas para que os combatentes tivessem que comer ?!... As suas crianças, como reagiam quando nós aparecíamos com a G3 em rajada a varrer ?!...
- Ou matas ou morres ! - diziam-te. Tantos inocentes de ambas as bandas, meu Deus ! Dois casos, apenas para reflectir.
Guiné > Mampatá > 1968> O 1º cabo enfermeiro Teixeira com a sua Maimuna.
© José Teixeira (2005)
A minha Maimuna (bebé que me acompanhava em Mampatá Forea, sentada no meu ombro -vd. O Meu Diário)(2): um dia depois do almoço, levei-a para o meu abrigo para tentar que dormisse um pouco, mas chorou tanto que a levei à mãe e perguntei o que se passava, pois nunca chorava e ... Disse-me a Ansaro (mãe):
- Se queres que ela durma, deita-te e põe a menina atrás de ti que ela adormece logo. - E assim aconteceu, muito agarradinha a mim, para meu espanto. Porquê ?
A mãe à noite quando ia dormir amarrava a Maimuna às costas tal como durante o dia a carregava, para que no caso de haver ataque, ao fugir, levasse a criança com ela.
Em Buba, uma mãe habitualmente dormia com a sua bebé amarrada às costas pelas mesmas razões. Num período em que estivemos cerca de um mês sem ataques à povoação - apenas atacavam as colunas e as equipas de construção da estrada de Buba para Aldeia Formosa -, fomos atacados às cinco da manhã.
Essa mãe, que descansada, não amarrou a si a criança, fugiu para o abrigo e na precipitação deixou a criança na Morança. Reagiu e voltou atrás para recuperar a bebé. Uma granada de morteiro caíu em cima da casa e atingiu a mãe com vários estilhaços, impedindo-a de entrar e recuperar a bebé. A Morança ardeu e a criança ficou carbonizada. A mãe, tratei-a eu dos ferimentos fisicos e chorei com ela a perda da sua bebé. Ainda hoje parece que sinto os seus gritos de desespero e a sua vontade de morrer.
Em sua memória fiz um poema. Foi a forma de extravazar a dor que senti.
Uma granada,
Vinda não sei de onde,
Lançada não sei por quem,
Rebentou...
E aquela criança,
Que brincava além...
A morte a levou...
Na areia brincava...
E sua mãe,
Que seus paninhos lavava,
Estremeceu.
Num triste pressentimento
Seu olhar volveu...
Um grito ! ( desmaiou)
No preciso momento
Em que seu filho morreu...
Zé Teixeira
_____________
Notas de L.G.
(1) Contabane: ficava na estrada entre o Saltinho e Quebo (Aldeia Formosa)
(2) Vd. post de 31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDVI: Maimuna, uma história de amor (José Teixeira)
Guiné 63/74 - P593: A última parte do diário do Zé Teixeira
Guiné > Uma propaganda pérfida e cínica, a do regime de Salazar-Caetano, que criou nas populaçõe africanas a falsa (e trágica) ilusão de que eram portuguesas, tão portuguesas como os minhotos ou os alentejanos; por outro lado, minimizou e desprezou os combatentes do PAIGC, reduzindo-os ao estatuto de pobres mercenários, por conta de interesses estrangeiros, a quem se podia estender facilmente uma nota de 1000 pesos em troca da sua rendição e da entrega da sua arma... (LG)
© José Teixeira (2005)
Guiné > Material (muito pobre e tosco...) de propaganda das NT recolhido pelo ex- 1º cabo enfermeiro Teixeira (CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
Fica-se na dúvida sobre o público-alvo: os pobres soldados e quadros milicianos a quem era preciso incutir e reforçar permanentemente a ideia de que, na Guiné, era a Pátria que estava em perigo; ou os guineenses, que nem sequer sabiam onde ficava Lisboa e quem era o homem grande de Lisboa... (LG)
© José Teixeira (2005)
1. Texto do Zé Teixeira:
Olá, Luís: Estive sem computador uns dias, pelo que só agora voltei ao blogue e. . . não me queria sentir a estrela da companhia, mas da maneira como me pintas, até pareço ser. Olha que não era bem assim, apesar de já nessa altura sentir que todo o homem é meu irmão , mesmo os que estavam da outra banda da barricada.
Pedes-me para continuar a escrever coisas da minha memória... Ainda tenho uma pequena parte do Diário que não te enviei. A parte que falta é muito voltada para mim mesmo na sua maior parte, pois caminhava para o fim da comissão e tinha de me readaptar ao Zé Teixeira do antes da guerra. Claro que esta parte não vou pôr em comum. Mesmo assim parece-me que ainda tenho alguma coisa para reflectir com os tertulianos e a dar a conhecer mais algumas aventuras.
Brevemente enviarei a última parte.
Há naturalmente outras estórias para contar, mas face ao desenvolvimento do Blogue e sobretudo os últimos artigos que colocaste, parece-me que por muitas coisas que tenha para contar, ficarei sempre muito longe das estórias que os camaradas têm para pôr em comum. São estórias verdadeiras que se ouvia contar em surdina, mas que agora contadas pelos próprios até me arrepiam.
Curvo-me respeitosamente perante tantos mártires da Pátria, que morreram porque os senhores da nossa terra não eram dignos de ser portugueses, quanto mais líderes deste País de brandos costumes.
Foram cerca de 10.000 os jovens, em Angola, Moçambique e Guiné, que foram enviados para a morte, os quais já foram esquecidos. Mas também os que se entregaram a esse projecto, as milícias locais e a população ultramarina, aliciados pela máquina da propaganda segundo a qual eram portugueses... Quantos desses não faleceram durante a guerra ?!.... Mas também os outros, filhos valorosos da Guiné, que se bateram contra nós, com bravura, e que morreram. Estes, sim, por uma causa naturalmente justa.
Um fraternal abraço
do Zé Teixeira
© José Teixeira (2005)
Guiné > Material (muito pobre e tosco...) de propaganda das NT recolhido pelo ex- 1º cabo enfermeiro Teixeira (CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
Fica-se na dúvida sobre o público-alvo: os pobres soldados e quadros milicianos a quem era preciso incutir e reforçar permanentemente a ideia de que, na Guiné, era a Pátria que estava em perigo; ou os guineenses, que nem sequer sabiam onde ficava Lisboa e quem era o homem grande de Lisboa... (LG)
© José Teixeira (2005)
1. Texto do Zé Teixeira:
Olá, Luís: Estive sem computador uns dias, pelo que só agora voltei ao blogue e. . . não me queria sentir a estrela da companhia, mas da maneira como me pintas, até pareço ser. Olha que não era bem assim, apesar de já nessa altura sentir que todo o homem é meu irmão , mesmo os que estavam da outra banda da barricada.
Pedes-me para continuar a escrever coisas da minha memória... Ainda tenho uma pequena parte do Diário que não te enviei. A parte que falta é muito voltada para mim mesmo na sua maior parte, pois caminhava para o fim da comissão e tinha de me readaptar ao Zé Teixeira do antes da guerra. Claro que esta parte não vou pôr em comum. Mesmo assim parece-me que ainda tenho alguma coisa para reflectir com os tertulianos e a dar a conhecer mais algumas aventuras.
Brevemente enviarei a última parte.
Há naturalmente outras estórias para contar, mas face ao desenvolvimento do Blogue e sobretudo os últimos artigos que colocaste, parece-me que por muitas coisas que tenha para contar, ficarei sempre muito longe das estórias que os camaradas têm para pôr em comum. São estórias verdadeiras que se ouvia contar em surdina, mas que agora contadas pelos próprios até me arrepiam.
Curvo-me respeitosamente perante tantos mártires da Pátria, que morreram porque os senhores da nossa terra não eram dignos de ser portugueses, quanto mais líderes deste País de brandos costumes.
Foram cerca de 10.000 os jovens, em Angola, Moçambique e Guiné, que foram enviados para a morte, os quais já foram esquecidos. Mas também os que se entregaram a esse projecto, as milícias locais e a população ultramarina, aliciados pela máquina da propaganda segundo a qual eram portugueses... Quantos desses não faleceram durante a guerra ?!.... Mas também os outros, filhos valorosos da Guiné, que se bateram contra nós, com bravura, e que morreram. Estes, sim, por uma causa naturalmente justa.
Um fraternal abraço
do Zé Teixeira
Guiné 63/74 - P592: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)
Uma fotografia recentíssima do José Martins (ex-furriel miliciano de transmissões, da CCA 5, Canjadude, 1968/70), "tirada no meu lugar de meditação e recordação". © José Martins (2006)
1. Texto do José Martins (CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70):
Caro João e, por extensão, caro Luís:
Estive a ler os últimos momentos passados em Canjadude.
Voltei a visitar aqueles lugares e é curioso que, após mais de trinta anos a seguir ao meu regresso, pela primeira vez não estive lá sozinho. Passados estes anos ao folhear o álbum de fotografias, cuja capa foi feita com o tecido do meu camuflado, foi folheado e comentado com a minha mulher a meu lado.
Pelo relato da última noite, calculo que a entrega do destacamento aos novos inquilinos não foi muito pacífica.
Em conversa com alguém que esteve lá contigo nos últimos dias - creio que o Capitão Miliciano Silva de Mendonça, de que já te enviei o contacto -, sei que pagaram aos africanos seis meses de pré e, como se o contrato de trabalho de muitos anos e muita lealdade tivesse terminado, disseram-lhes, em nome de quem nunca os conheceu e viveu junto deles, vão à vossa vida.
Também em conversa tida com o Capitão Figueiredo Barros, soube que o Salazar Saliú Queta, Soldado Africano da Psico-social, foi sumariamente executado, por degolação, assim que o PAIGC tomou conta do aquartelamento. Este relato foi feito pelo Fernando Saliu Queta, filho do nosso nharo.
Foi assim que se passou? Gostava de saber, já que estou a tentar escrever uma pequena resenha sobre a CCAÇ 5, além de pretender agregar alguns elementos para constituir a história da unidade com o maior número de factos possível.
Mudando de assunto.
Asim que me for possível, tentarei pôr em comum algumas fotos que retratam os mesmos locais das tuas fotos, mas quatro anos antes: o posto de rádio, o Aeroporto da Portela de Canjadude, o Clube Militar, a Parada do Aquartelamento, etc.
Espero também que alguns dos camaradas espalhados por este canteiro junto ao mar, que conheça Gatos Pretos, os encaminhem para este convívio, para que possamos trocar experiências e recordações e, quem sabe, promover um encontro (...).
Um forte abraço
José Martins
2. Resposta do João Carvalho (ex-furriel enfermeiro da CCAÇ 5, Canjadude, 1973/74)
Olá:
Agradeço o email. Não sei como mas passou-me completamente ao lado, na lista que me tinhas enviado do pessoal que esteve em Canjadude, o nome do meu ex-capitão Mendonça. Recordo-me muitíssimo bem dele. Lembro-me que ainda fui uma ou duas vezes a casa dele, mas depois perdi o contacto. Em algumas das fotos por mim enviadas, aparece o camarada Mendonça. Se falares com ele, pede-lhe o email, para juntar à tua lista, e para que eu também o possa contactar. Há por vezes promenores dos quais eu já não me lembro muito bem, e assim pode-se confirmar alguns factos, para repor a verdade.
Em relação ao Salazar (não o que caiu da bendita cadeira), o professor de Canjadude, desconhecia o facto da sua morte. Tenho imensa pena. Apesar de eu pessoalmente não simpatizar muito com ele, acho que não merecia uma morte dessas. A maldita guerra e os ajustes de contas, têm sido uma vergonha da sociedade ao longo dos milénios. Quem diria que no fim do século XX e princípio do XXI ainda se fazem coisas [dessas]...
Enquanto nós estivemos em Canjadude não tive conhecimento de nenhum acto semelhante a este que aconteceu ao Salazar. Devem ter esperado pela nossa saída.
Sabes, estes emails e o blogue do Luís têm mexido comigo. (Provavelmente com os camaradas acontece o mesmo). Parece-me um pouco, a terapia do stress pós-traumático. (Nem sempre é fácil...).
Um grande abraço
João Carvalho
1. Texto do José Martins (CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70):
Caro João e, por extensão, caro Luís:
Estive a ler os últimos momentos passados em Canjadude.
Voltei a visitar aqueles lugares e é curioso que, após mais de trinta anos a seguir ao meu regresso, pela primeira vez não estive lá sozinho. Passados estes anos ao folhear o álbum de fotografias, cuja capa foi feita com o tecido do meu camuflado, foi folheado e comentado com a minha mulher a meu lado.
Pelo relato da última noite, calculo que a entrega do destacamento aos novos inquilinos não foi muito pacífica.
Em conversa com alguém que esteve lá contigo nos últimos dias - creio que o Capitão Miliciano Silva de Mendonça, de que já te enviei o contacto -, sei que pagaram aos africanos seis meses de pré e, como se o contrato de trabalho de muitos anos e muita lealdade tivesse terminado, disseram-lhes, em nome de quem nunca os conheceu e viveu junto deles, vão à vossa vida.
Também em conversa tida com o Capitão Figueiredo Barros, soube que o Salazar Saliú Queta, Soldado Africano da Psico-social, foi sumariamente executado, por degolação, assim que o PAIGC tomou conta do aquartelamento. Este relato foi feito pelo Fernando Saliu Queta, filho do nosso nharo.
Foi assim que se passou? Gostava de saber, já que estou a tentar escrever uma pequena resenha sobre a CCAÇ 5, além de pretender agregar alguns elementos para constituir a história da unidade com o maior número de factos possível.
Mudando de assunto.
Asim que me for possível, tentarei pôr em comum algumas fotos que retratam os mesmos locais das tuas fotos, mas quatro anos antes: o posto de rádio, o Aeroporto da Portela de Canjadude, o Clube Militar, a Parada do Aquartelamento, etc.
Espero também que alguns dos camaradas espalhados por este canteiro junto ao mar, que conheça Gatos Pretos, os encaminhem para este convívio, para que possamos trocar experiências e recordações e, quem sabe, promover um encontro (...).
Um forte abraço
José Martins
2. Resposta do João Carvalho (ex-furriel enfermeiro da CCAÇ 5, Canjadude, 1973/74)
Olá:
Agradeço o email. Não sei como mas passou-me completamente ao lado, na lista que me tinhas enviado do pessoal que esteve em Canjadude, o nome do meu ex-capitão Mendonça. Recordo-me muitíssimo bem dele. Lembro-me que ainda fui uma ou duas vezes a casa dele, mas depois perdi o contacto. Em algumas das fotos por mim enviadas, aparece o camarada Mendonça. Se falares com ele, pede-lhe o email, para juntar à tua lista, e para que eu também o possa contactar. Há por vezes promenores dos quais eu já não me lembro muito bem, e assim pode-se confirmar alguns factos, para repor a verdade.
Em relação ao Salazar (não o que caiu da bendita cadeira), o professor de Canjadude, desconhecia o facto da sua morte. Tenho imensa pena. Apesar de eu pessoalmente não simpatizar muito com ele, acho que não merecia uma morte dessas. A maldita guerra e os ajustes de contas, têm sido uma vergonha da sociedade ao longo dos milénios. Quem diria que no fim do século XX e princípio do XXI ainda se fazem coisas [dessas]...
Enquanto nós estivemos em Canjadude não tive conhecimento de nenhum acto semelhante a este que aconteceu ao Salazar. Devem ter esperado pela nossa saída.
Sabes, estes emails e o blogue do Luís têm mexido comigo. (Provavelmente com os camaradas acontece o mesmo). Parece-me um pouco, a terapia do stress pós-traumático. (Nem sempre é fácil...).
Um grande abraço
João Carvalho
domingo, 5 de março de 2006
Guiné 63/74 - P591: Mulheres e mães-coragem (Zélia Neno)
Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > Viúva de Chambel, régulo de Cantabane. Na pessoa desta mulher guineense, fica aqui uma singela homenagem da nossa tertúlia a todas as mulheres, mães, namoradas, esposas, amantes ou companheiras de todos os combatentes da guerra colonial ou da guerra de libertação (como queiram), de 1963 a 1974... (LG)
© José Teixeira (2006)
Texto da Zélia Neno:
Uma vez mais aqui estou, tentando não fugir ao tema generalista do blogue, vou falar de pessoas que também viveram o drama da Guerra Colonial mas tão pouco têm sido focadas em qualquer texto ou livro ao longo do tempo, e porque se está a aproximar o dia 8 de Março que, não sendo o da Mãe, é O DIA DA MULHER.
Porquê? Porque as mulheres que viveram esse período da Guerra Colonial não devem ser esquecidas. Algumas, militares, normalmente enfermeiras paraquedistas, que à época tiveram de ultrapassar certos tabus para seguir essa carreira de resignação (à família e ao meio que lhes era querido), de coragem e amor ao próximo, contribuindo para que muitos feridos sentissem seu sofrimento amenizado ou até conseguissem sobreviver, as quais bem merecem ser lembradas e reconhecidas.
As outras quem eram? - Simplesmente MULHERES. Algumas já esposas, que sofreram nessa qualidada, mas a minha singela e mais profunda homenagem é para todas aquelas Mães que deste lado do Oceano ficavam a orar a Deus e Nossa Senhora para que os filhos regressassem sãos e salvos, o que infelizmente nem sempre aconteceu, e mães houve que por lá tiveram mais do que um filho em simultâneo.
Hoje, como mãe, atrevo-me a perguntar: quem terá sofrido mais? Os filhos lutando naquela guerra, ou suas mães que, a tão longa distância, nada sabiam deles durante semanas e semanas, casos houve de meses e anos (caso dos aprisionados), alimentadas pela Esperança que as fazia aguardar ansiosamente notícias suas ou contando cada dia que ainda faltava para abraçar os seus queridos meninos?
Quantas noites elas não conseguiram dormir ? Quantas lágrimas, algumas de sangue, lhes marcaram os rostos? Será que “as mães desta guerra” também não sofreram ou sofrem (as que ainda vivem) de stress pós-traumático ou de qualquer outra doença mental, provocada por essa situação? Sofrimento num coração de mãe deixa marcas irreparáveis!
Ao percorrer algumas daquelas picadas, onde ainda se vê marcas das minas anticarro que ali deflagraram, decerto causando muito sofrimento, não consegui evitar que as lágrimas me corressem pela cara, nem sequer imaginar qual inferno eu teria vivido se tivesse sido uma dessas mães. Elas tinham “fibra”, eu não (ou penso que não).
Mãe é Mãe, foi e é no seu ventre que se forma (claro, com a ajuda de um pai) e se desenvolve aquele pequenino ser, que desde logo se torna tão importante em nossa vida mais até do que o ar que necessitamos para viver e que, quando crescidos e chegada a ocasião que pensamos ser a oportuna, embora a evolução do tempo nos induza às vezes a errar, temos que fazer como a águia, quando ainda no ninho seus filhotes já estão crescidos e aptos para voar, no mais supremo acto de amor, lhes dá o derradeiro empurrão para que descubram suas asas e aprendam a fazer uso delas, sempre sob a sua protecção, vivendo assim o privilégio de terem nascido.
Esta oportunidade nem sequer foi dada às mães dos ex-combatentes, pois foram obrigadas a vê-los partir, tão jovens ainda, com regresso incerto, ficando sem poder dar um carinho, uma palavra de conforto ou sua protecção quando eles mais precisavam, nem tão pouco saber da sua vivência diária, o que acontecia só quando algum aerograma chegava e casos houve em que nessa ocasião quem o escrevera já não se encontrava no mundo dos vivos.
Não posso nem devo esquecer todas as outras mulheres de raça negra, espalhadas pelas ex-colónias, pois também elas sofreram, como mães de combatentes, quer seus filhos se enquadrassem, como milícias, nas nossas fileiras quer nas do inimigo.
Como viviam em pleno cenário de guerra, mesmo sendo população civil, sofreram as dores físicas de ferimentos e amputações, viram suas crianças chorar e gemer pelo medo ou pela dor e até morrerem em seus braços sem nada poderem fazer para as salvar, pois em situações de ataques, o que viam elas em seu redor? Sofrimento e Destruição!
Estas são as MULHERES E MÃES-CORAGEM do meu país de então, Continental e Ultramarino, e é para elas esta minha homenagem escrita, póstuma para muitas delas mas não em vão.
Zélia Neno
N.B.- Perdoem-me se com estas palavras feri a sensibilidade de alguém, cuja mãe somente esteja viva em seu coração.
© José Teixeira (2006)
Texto da Zélia Neno:
Uma vez mais aqui estou, tentando não fugir ao tema generalista do blogue, vou falar de pessoas que também viveram o drama da Guerra Colonial mas tão pouco têm sido focadas em qualquer texto ou livro ao longo do tempo, e porque se está a aproximar o dia 8 de Março que, não sendo o da Mãe, é O DIA DA MULHER.
Porquê? Porque as mulheres que viveram esse período da Guerra Colonial não devem ser esquecidas. Algumas, militares, normalmente enfermeiras paraquedistas, que à época tiveram de ultrapassar certos tabus para seguir essa carreira de resignação (à família e ao meio que lhes era querido), de coragem e amor ao próximo, contribuindo para que muitos feridos sentissem seu sofrimento amenizado ou até conseguissem sobreviver, as quais bem merecem ser lembradas e reconhecidas.
As outras quem eram? - Simplesmente MULHERES. Algumas já esposas, que sofreram nessa qualidada, mas a minha singela e mais profunda homenagem é para todas aquelas Mães que deste lado do Oceano ficavam a orar a Deus e Nossa Senhora para que os filhos regressassem sãos e salvos, o que infelizmente nem sempre aconteceu, e mães houve que por lá tiveram mais do que um filho em simultâneo.
Hoje, como mãe, atrevo-me a perguntar: quem terá sofrido mais? Os filhos lutando naquela guerra, ou suas mães que, a tão longa distância, nada sabiam deles durante semanas e semanas, casos houve de meses e anos (caso dos aprisionados), alimentadas pela Esperança que as fazia aguardar ansiosamente notícias suas ou contando cada dia que ainda faltava para abraçar os seus queridos meninos?
Quantas noites elas não conseguiram dormir ? Quantas lágrimas, algumas de sangue, lhes marcaram os rostos? Será que “as mães desta guerra” também não sofreram ou sofrem (as que ainda vivem) de stress pós-traumático ou de qualquer outra doença mental, provocada por essa situação? Sofrimento num coração de mãe deixa marcas irreparáveis!
Ao percorrer algumas daquelas picadas, onde ainda se vê marcas das minas anticarro que ali deflagraram, decerto causando muito sofrimento, não consegui evitar que as lágrimas me corressem pela cara, nem sequer imaginar qual inferno eu teria vivido se tivesse sido uma dessas mães. Elas tinham “fibra”, eu não (ou penso que não).
Mãe é Mãe, foi e é no seu ventre que se forma (claro, com a ajuda de um pai) e se desenvolve aquele pequenino ser, que desde logo se torna tão importante em nossa vida mais até do que o ar que necessitamos para viver e que, quando crescidos e chegada a ocasião que pensamos ser a oportuna, embora a evolução do tempo nos induza às vezes a errar, temos que fazer como a águia, quando ainda no ninho seus filhotes já estão crescidos e aptos para voar, no mais supremo acto de amor, lhes dá o derradeiro empurrão para que descubram suas asas e aprendam a fazer uso delas, sempre sob a sua protecção, vivendo assim o privilégio de terem nascido.
Esta oportunidade nem sequer foi dada às mães dos ex-combatentes, pois foram obrigadas a vê-los partir, tão jovens ainda, com regresso incerto, ficando sem poder dar um carinho, uma palavra de conforto ou sua protecção quando eles mais precisavam, nem tão pouco saber da sua vivência diária, o que acontecia só quando algum aerograma chegava e casos houve em que nessa ocasião quem o escrevera já não se encontrava no mundo dos vivos.
Não posso nem devo esquecer todas as outras mulheres de raça negra, espalhadas pelas ex-colónias, pois também elas sofreram, como mães de combatentes, quer seus filhos se enquadrassem, como milícias, nas nossas fileiras quer nas do inimigo.
Como viviam em pleno cenário de guerra, mesmo sendo população civil, sofreram as dores físicas de ferimentos e amputações, viram suas crianças chorar e gemer pelo medo ou pela dor e até morrerem em seus braços sem nada poderem fazer para as salvar, pois em situações de ataques, o que viam elas em seu redor? Sofrimento e Destruição!
Estas são as MULHERES E MÃES-CORAGEM do meu país de então, Continental e Ultramarino, e é para elas esta minha homenagem escrita, póstuma para muitas delas mas não em vão.
Zélia Neno
N.B.- Perdoem-me se com estas palavras feri a sensibilidade de alguém, cuja mãe somente esteja viva em seu coração.
Guiné 63/74 - P590: A pensão do Seni Candé (Hugo Moura Ferreira)
1. Mensagem do Hugo Moura Ferreira, de 24 de Fevereiro de 2006
Meus amigos:
Tal como lhes tinha dito que ia fazer, visitei o Arquivo Geral do Exército, tentando encontrar algo relacionado com o Seni Candé, ou mesmo o seu processo individual.
Como eles ali não têm nada digitalizado, por enquanto no que se refere às PU (Províncias Ultramarinas), não foi possível pesquisar nada. Muito menos quanto à hipótese de ele ter adquirido aqui outros nomes por erro de registo.
Assim ali o que me disseram foi para que tentasse saber os nomes do pai e da mãe, já que com a data de nascimento apenas (10 de Fevereiro de 1947) não seria também possível.
Assim, para dar continuidade ao que me propus fazer queria pedir a ajuda, caso seja possivel, do Jorge Neto que talvez localmente consiga obter essa informação.
Ficarei a aguardar qualquer notícia para poder dar continuidade, embora nos pareça difícil alterar a situação.
No meu caso, só no FIM de todas as tentativas é que as classificarei de infrutíferas ou não. Mas até lá...um abraço.
Moura Ferreira
2. Resposta anterior do Jorge Neto, de 10 de Fevereiro de 2006:
Caros tertulianos,
Pelas informações que consegui apurar não podemos fazer muito pelo Seni Candé (2), pelo menos para já. Parece que em 1982 o governo português passou para o governo guineense a responsabilidade do pagamento das pensões de reforma, invalidez, etc., dos antigos combatentes que haviam lutado no lado luso. Como devem imaginar, depois de 1982 nunca mais ninguém recebeu nada. Em troca, Portugal perdoou a dívida à Guiné-Bissau.
Assim sendo, actualmente a responsabilidade pelo pagamento das pensões a estes homens é do Estado guineense. Ao longo do fim-de-semana irei ainda estabelecer mais um contacto para averiguar tudo isto.
Só a título de curiosidade!... O homem faz anos hoje. Estive a ouvir as gravações outra vez e apercebi-me que nasceu a 10/02/47.
Um bom fim-de-semana,
JN (Africanidades)
__________
(1) Vd. posts de:
8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)
10 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXVI: O Seni Candé da minha CCAÇ 6 (Moura Ferreira)
(2) Vd. post de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DX: O abandono do Seni Candé (Zé Neto)
Meus amigos:
Tal como lhes tinha dito que ia fazer, visitei o Arquivo Geral do Exército, tentando encontrar algo relacionado com o Seni Candé, ou mesmo o seu processo individual.
Como eles ali não têm nada digitalizado, por enquanto no que se refere às PU (Províncias Ultramarinas), não foi possível pesquisar nada. Muito menos quanto à hipótese de ele ter adquirido aqui outros nomes por erro de registo.
Assim ali o que me disseram foi para que tentasse saber os nomes do pai e da mãe, já que com a data de nascimento apenas (10 de Fevereiro de 1947) não seria também possível.
Assim, para dar continuidade ao que me propus fazer queria pedir a ajuda, caso seja possivel, do Jorge Neto que talvez localmente consiga obter essa informação.
Ficarei a aguardar qualquer notícia para poder dar continuidade, embora nos pareça difícil alterar a situação.
No meu caso, só no FIM de todas as tentativas é que as classificarei de infrutíferas ou não. Mas até lá...um abraço.
Moura Ferreira
2. Resposta anterior do Jorge Neto, de 10 de Fevereiro de 2006:
Caros tertulianos,
Pelas informações que consegui apurar não podemos fazer muito pelo Seni Candé (2), pelo menos para já. Parece que em 1982 o governo português passou para o governo guineense a responsabilidade do pagamento das pensões de reforma, invalidez, etc., dos antigos combatentes que haviam lutado no lado luso. Como devem imaginar, depois de 1982 nunca mais ninguém recebeu nada. Em troca, Portugal perdoou a dívida à Guiné-Bissau.
Assim sendo, actualmente a responsabilidade pelo pagamento das pensões a estes homens é do Estado guineense. Ao longo do fim-de-semana irei ainda estabelecer mais um contacto para averiguar tudo isto.
Só a título de curiosidade!... O homem faz anos hoje. Estive a ouvir as gravações outra vez e apercebi-me que nasceu a 10/02/47.
Um bom fim-de-semana,
JN (Africanidades)
__________
(1) Vd. posts de:
8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)
10 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXVI: O Seni Candé da minha CCAÇ 6 (Moura Ferreira)
(2) Vd. post de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DX: O abandono do Seni Candé (Zé Neto)
Guiné 63/74 - P589: A dolce vita de Canjadude, até ao dia 27 de Abril de 1973 (João Carvalho)
Guiné > Zona leste > Algures > 1973 > Uma Daimler, avariada, é levada em cima de uma GMC... Sítio ? Talvez Bambadinca, talvez Bafatá, junto ao Rio Geba... quando o João Carvalho veio de férias à metrópole... © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Canjadude > 1973 > O Bar da CCAÇ 5, onde se fizeram muitos terrafianços. © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Canjadude > 1973 > O sentido de humor dos tugas da CCAÇ 5: Placa, em pedra, que sinaliza o "Aeroporto da Portela de Canjadude", com data de 2-11-68, e que tem a assinatura da CCAÇ 5 / CART 2338. © João Carvalho (2006)
Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Canjadude > 1973 > Posto de rádio da CCAÇ 5
"onde eu, ilegalmente, muitas vezes passei umas boas horas a jogar King" (JC) © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Canjadude > 1973 > Um furriel miliciano enfermeiro... em serviço no posto de rádio. © João Carvalho (2006).
Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Canjadude > 1973 > O João Carvalho deve ter batido umas boas sonecas neste cadeirão, no posto de rádio... © João Carvalho (2006)
Olá Luís
Venho complementar a informação descrita no aerograma sobre o ataque a Canjadude em 27 de Abril de 1973, com mísseis terra-terra Katyusha (1).
1 - A razão da existência de um Unimog estacionado (contra a qual eu choquei) num local em que não era habitual haver viaturas foi a seguinte:
Tinha sido enviado para Canjadude um grupo de milícia africana para uma operação. Qual a finalidade ou objectivo dessa operação, eu desconheço. Sei é que esse grupo foi transportado desde Nova Lamego até Canjadude no referido Mercedes Unimog.
2 - Depois do ataque, constou que os mísseis não teriam sido levados para aquela zona, com a finalidade de serem lançados sobre Canjadude, mas sim sobre Nova Lamego e que o que originou a alteração dos alvos teria sido o PAIGC ter detectado (ou ter sido perseguido por) o grupo de milícias.
Não sei se esta versão corresponderá à realidade, nem se alguém terá dados para confirmá-la ou desmenti-la. O que me leva a supor que haja pelo menos um mínimo de verdade nisto, é que em todo o tempo que estive em Canjadude,esta foi a única vez que um grupo exterior à companhia CCAÇ 5 passou por lá para uma operação.
Observações pessoais:
Será que haveria informações que o PAIGC iria atacar Nova Lamego? Terá sido por isso que foi enviado um grupo de milícias para tentar que isso não acontecesse ? É evidente que atacar com mísseis Nova Lamego ou Canjadude, o impacto político-militar seria muito diferente:
- Manga de ronco!!! - diríamos nós, na época. Ou melhor: já não me lembro bem se a expressão utilizada era esta para grande façanha).
Anexo duas fotos a cores, mais algumas, a preto e branco, que ilustram a calmaria - direi mais, a dolce vita ! - em que se vivia em Canjadude, antes do famoso ataque com foguetões:
(i) Uma tirada quando vim de férias à Metrópole: uma Daimler, avariada, em cima de um GMC, talvez em Bambadinca... (a memória é fraca, se alguém me confirmar, eu agradeço!).
(ii) O nosso bar em Canjadude, vendo-se um dos bancos em que eu estava sentado quando se ouviu o lançamento dos mísseis terra-terra Katyusha. Neste bar foram feitos muitos terrafianços. (Não sei se a expressão era utilizada também nas outras companhias para designar farras com muita, muita, bebida).
Abraços para ti e para todos os tertulianos
João Carvalho
__________
Nota de L.G.:
(1) Vd post de 5 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIX: O ataque de foguetões a Canjadude, em Abril de 1973 (João Carvalho)
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