Guiné-Bissau > Bissau > Abril de 2006 > O estado de ruína em que ficou o antigo palácio do governador, depois do golpe de Estado que derrubou Nino Vieira: aspecto exterior...
Guiné-Bissau > Bissau > 2006 > O estado de ruína em que ficou o antigo palácio do governador, depois do golpe de Estado (1998) que derrubou Nino Vieira: aspecto interior...
Guiné-Bissau > Barro > Abril de 2006 > Monumento em homenagem ao 1º Cabo Enfermeiro João Baptista da Slva, da CART 2412, morto em combate, em Bigene, em 21 de Setembro de 1968. Mandado erigir, em Barro, pela CART 2412 (1968/70). Pensava-se que este singelo monumento fúnebre tivesse sido destruído a seguir à independência.
Guiné-Bissau > Farim > Abril de 206 > Com o pai do nosso amigo Anízio (sentado, o segundo da esquerda, ao lado do Xico Allen e do Marques Lopes).
Guiné-Bissau > Bissau > Abril de 2006: o macaco e o chupa-chupa.
Créditos fotográficos: © Hugo Costa (2006)
1. Caros amigos e camaradas de tertúlia:
Acabo de chegar do sul da Itália. O meu périplo de 10 dias, entre 22 de Abril a 1 de Maio, pelas regiões de Lázio, Campânia, Basalicata, Calábria e Sicília, traduzido em 3300 km de carro e em 3300 fotografias, decorreu com a emoção e o cansaço, inerentes a projectos deste tipo. Dez dias é sempre pouco para descobrir, de carro, uma das mais fascinantes partes da Itália e do Mediterrâneo. Fascinantes e caóticas (como é região metropolitana de Nápoles)...
Confesso que, entretanto, tive saudades vossas e do nosso blogue. Das notícias que me chegaram, vou dando conta hoje e nos próximos dias. Começo por transcrever uma mensagem do Albano Costa, datada de anteontem à noite.
2. Mensagem de Albano Costa:
Caro LG
Espero que a estadia por terras transalpinas e junto dos vossos filhos tenha sido um momento de grande prazer. Eu, por cá, lá me fui entretendo no convívio à distância com os nossos guineenses. Eles lá andaram na sua maratona, a dar a volta à Guiné o mais rápido possível, mas queixaram-se das estradas, da inflação da estadia e do aluguer dos transportes. Isso é normal mas é mau porque aí cada vez menos se vai à Guiné...
Mas tudo correu muito bem. O Paulo [Salgado] e a esposa foram muito simpáticos e arranjaram uma casa que foi alugada e acabou por ficar mais barato. Quanto ao resto, quando o grupo é um bocada grande, torna-se sempre um pouco mais chato mas depois tudo se resolve. De acordo com a minha expereiência, o ideal é cimnco a seis pessoas, torna-se mais fácil.
Com respeito à viagem todos adoraram: têm imagens de muita pobreza mas também de grande beleza, peripécias muito engraçadas. Há imagens sobre a Guiné muito belas. A estátua, em Barro, lá está e já a enviei ao Afonso [M. F. Sousa] . O Pepito, o Paulo e Conceição Salgado foram impecáveis, sempre presentes para darem todo o apoio ao grupo.
Vou enviar algumas das fotos que recebi:
(i) as do palácio, dentro e fora, é melhor não publicar no blogue, podendo todavia circular por e-mail; dá pena ver o interior do palácio assim, ai isso dá (1);
(ii) monumento erigido em Barro (2) ;
(iii) outra foto foi tirada em Farim, com o pai do Anizio (3);
(iv) finalmente, a do macaco, que também teve direito a chupa-chupa, e mostrou que também gosta; felizmente, os chupas eram muitos...
Um abraço,
Albano
__________
Nota de L.G.
(1) Percebo (e respeito) os sentimentos do Albano Costa; mas julgo ser também nosso dever não ignorar ou escamotear a realidade: neste caso, mais este episódio (triste) da história recente da Guiné-Bissau... Não se entenda a publicação destas imagens como um sinal de saudosismo ou de defesa da pax lusitana...
(2) Vd post de 31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDVII: Em perigos e guerras esforçados...
(3) Anízio Indami, 22 anos, natural de Farim, estudante em S. Paulo... Vd post de 8 de Novembro de 2005 Guiné 63/74 - CCLXXX: Crianças de Farim ou como o mundo é pequeno (3).
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 2 de maio de 2006
sexta-feira, 21 de abril de 2006
Guiné 63/74 - P713: Tabanca Grande: Manuel Lema Santos, 1.º tenente da Reserva Naval, ex-Imediato da NRP Orion (1966/68)
O Lema Santos de ontem (1º tenente da marinha em 1972, que serviu como Imediato na NRP Orion, na Guiné, entre 1966 e 1968) e o de hoje (2004), empresário, residente em Massamá.
Julgo que é o Lema Santos é o primeiro oficial da classe de marinha que nos contacta e pede licença para entrar na nossa caserna... de tropa-macaca. É óbvio que o vamos receber de braços abertos: estamos todos de acordo que a história da guerra da Guiné só pode fazer-se juntando a malta dos três ramos das Forças Armadas Portugueses mais os nossos queridos turras. Até à data, e nas vésperas de completarmos um ano de existência, as tropas especiais, bem como a malta da marinha e da força aérea, está ainda subrepresentada na nossa tertúlia. Seria interessante tentar saber porquê...
Ao falar com este camarada pelo telefone, constatei que ele conhece todos os rios da Guiné, é um excelente contador de histórias, tem uma memória fotográfica e possui uma vasta rede de contactos pessoais e sociais... Welcome to board, captain!
© Lema Santos (2006)
1. Texto do Manuel Lema Santos, que me foi enviado em 5 de Abril de 2006 e que só agora, por razões de agenda (leia-se: engarrafamento de tráfego...), chega ao conhecimento dos nossos tertulianos (com o pedido de desculpas ao próprio, com quem já tinha tido uma longa e agradável conversa ao telefone).
Prezado Luis Graça,
Tenho seguido com atenção cuidada a descoberta do Blogueforanada e tenho de te cumprimentar porque, com esforço e determinação, conduzes naquele andamento tão espinhosa tarefa.
Estão satisfeitos, por certo, todos os bloguistas pela disponibilidade que lhes facultaste de se exprimirem livremente, sobre tão sensíveis quanto subjectivos temas, criticando, opinando, partilhando, mas também revivendo épocas tão conturbadas como controversas.
Também eles estão de parabéns porque o fazem por vontade própria, sem reservas, servindo uma causa comum: pesquisa e regresso ao passado, com esclarecimento e sem fantasmas.
Resumidamente, escreve-se história. Muitas vezes, tão do foro intímo de cada um que a exposição pública se torna penosa e de difícil conciliação pessoal.
Para mim não é diferente e daí o ter procurado o teu - quão difícil é assumir este teu - contacto pessoal telefónico para me apresentar previamente, no rigoroso respeito da ideia de quem, sabendo que pode partilhar igualmente informação interessante, sente alguma inibição em levar essa colaboração à prática.
Diga-se, em abono da verdade, que passei a estar em dívida contigo, pelo teu tempo pessoal disponibilizado à nossa conversa e simultaneamente à minha apresentação.
Guiné é tema único e também lá estive, envolvido naquela dramática vivência!
Não consigo compreender, no meu modesto entendimento e sem noções concertadas de estratégia militar, como é possível escrever a estória da Guiné sem estar a ela associada a própria história da Marinha de Guerra, conjuntamente com a história dos outros dois ramos das Forças Armadas.
Fui oficial da Marinha de Guerra da Reserva Naval, o que equivalia, em termos práticos, aos seus pares congéneres milicianos do exército. Não mais do que universitários, licenciados ou em vias disso, que, tendo de cumprir num horizonte próximo e ao serviço da cidadania o serviço militar obrigatório, optavam pela inscrição nesse ramo das Forças Armadas, vindo posteriormente a ser seleccionados ou não, de acordo com as exigências e os resultados dos testes prestados no ramo.
Fui apenas um entre os quase 3000 oficiais da Reserva Naval que, entre 1958 e 1982, desfilaram naquela Instituição; daqueles, cerca de um milhar terão desempenhado missões de serviço nas antigas colónias portuguesas, entre 1961 e 1975.
No meu caso, depois de um curso de seis meses na Escola Naval, a viagem de instrução de cadete e o juramento de bandeira com promoção a Aspirante (Outubro de 1965 a Maio de 1966) marcaram, em sucessão, instrução e formação, camaradagem, também crescimento.
Depois, já promovido a Subtenente, o destacamento para uma unidade naval na Guiné, o NRP Orion - P362 (LFG - Lancha de Fiscalização Grande) onde fui oficial Imediato de Maio de 1966 a Abril de 1968; uma unidade naval de 42 metros, com 2 oficiais, 4 sargentos e 22 praças entre outras 6 idênticas (Argos, Dragão, Hidra, Lira, Cassiopeia e Sagitário).
Seguiram-se inúmeras operações, apoios à navegação (LDG's, LDM's, LDP's, TT's, embarcações e batelões) e oceanografia, escoltas, fiscalização, transportes, ataques e respostas, evacuação de feridos, prisioneiros e até transporte de agentes da PIDE.
Na memória que o tempo em mim não apaga, esfumam-se relatos, acontecimentos, documentos, registos, afinal também História. Em tudo idêntica no tempo à que tenho vindo a ler no Blogueforanada mas, muito mais do que idêntica, complementando-se mutuamente.
Do Cacheu a Norte ao Cacine no Sul, com o Mansoa, Geba, Corubal, Grande de Buba, Tombali e Cumbijã pelo meio.
Numa enorme bolanha em que as marcas radar, a sonda e algumas vezes a sorte, nos serviam de anjos anti-encalhe.
Bijagós, mais um nome, mas num mundo à parte! Cabo Verde nas obrigatórias e periódicas docagens nos estaleiros.
Sem grande possibilidade de lhes soletrar os nomes que a memória aí não chega, o meu cumprimento a todos os militares do exército com quem convivi, especialmente no Cacheu, Barro, Ganturé (Bigene), Farim, Caió, Bissau, Nhacra, Mansoa, Bolama, Cacine, Cabedú e muitos outros locais, sem esquecer uma aventura radical na forma de uma ida a Cameconde, a 8 km de Cacine.
Foi ainda possível, vejam só, em 13 de Setembro de 1966 (alguém presente?) embarcar, em Cabedú, a companhia ali estacionada e, na LDM 307, transportá-la até à Ilha de Melo, efectuar um desembarque - nome de operação: SOL -, aguardar a praia-mar, voltar a reembarcar a companhia, levá-la de volta ao aquartelamento e regressar ao patrulha.
Éramos nómadas, mas nunca teria sido possível por o pé em terra em alguns locais sem lá estar o exército ou levarmos fuzileiros. Noutros, não teria sido possível lá passar, quem sabe?... sem o apoio dos T6 ou dos Fiat da FA. Na memória o som (a soundblaster possível na época) dos diferentes tipos de "instrumentação" utilizada nos "jogos de guerra", aquando das escoltas que efectuávamos nos abastecimentos ao aquartelamento de Bedanda (tenho material de som gravado).
Cafine, Cadique, Cufar, canhão sem recuo incluídos ou as peças anti-carro 57 mm com que éramos brindados na barra do Cacine, podiam ser bons exemplos mas os RPG's no Cacheu, a montante de Barro (Porto Coco, Jagali, Tancroal) e antes de Binta, também eram aperitivos a evitar.
Depois de 2500 horas de navegação e dois anos decorridos, o regresso ao Continente, já como 2º tenente. Família constituída e a necessidade de completar a minha formação académica e profissional levaram-me a prorrogar, por mais algum tempo, a minha permanência na Velha Escola. Em 1972, promovido a 1º tenente, pedi a passagem à disponibilidade.
Num passado comum a preservar, a minha homenagem pessoal a todo o enorme grupo de marinheiros da Marinha de Guerra que, ao longo de 13 anos, mantiveram bem alto a fasquia de valores pessoais e militares naquele território, lembrando especialmente aqueles para os quais, a implacável lei da vida, tornou o percurso mais curto.
Estarão sempre connosco.
Disponham do meu modesto conhecimento para qualquer colaboração entendida como útil.
Um abraço,
Lema Santos
Anexo: 2 fotos pessoais (1972 e 2004) - o facto de gostar de fotografia desde muito novo leva a que, de mim, a família tem poucas fotos.
2. Ficha pessoal do novo membro da nossa tertúlia, que me foi enviada nestes termos: "Na sequência da nossa conversa telefónica e para evitar complicações de apresentação, tomo a liberdade de te enviar uma ficha descritiva do meu perfil pessoal bem como os meus contactos. Grato pela disponibilidade e abertura que demonstraste. Um abraço e dispõe,
Manuel Lema Santos"
Nome > Manuel Lema Pires dos Santos (normalmente omito o Pires pelo facto de o não utilizar desde há muito)
Idade > 63 anos
Estado civil > Casado com Maria João Lema Santos, economista, com dois filhos de 21 e 17 anos respectivamente; 2 filhas de 1º casamento (37 e 36 anos respectivamente)
Formação académica:
(i) Liceu Pedro Nunes de 1952 a 1959; (ii) Curso de engenharia mecânica do IST, incompleto na licenciatura (6º ano da antiga reforma); (iii) Escola Naval (Curso Especial de Oficiais da Reserva Naval - 8 º CEORN) de Outubro de 1965 a Maio de 1966; (iv) Viagem de Instrução no NRP Corte Real em Abril de 1966, juramento de bandeira e promoção a Aspirante.
Formação Militar:
- Nomeado Imediato do NRP ORION - P 362 (guarnição de 2 oficiais, 4 sargentos e 22 praças), com promoção a SubTenente, em serviço na Guiné.
- Embarque para a Guiné em 31 de Maio de 1966.
- Permanência naquele lugar até 24 de Abril de 1968, cumpridas cerca de 2500 horas de navegação e algumas idas a Cabo Verde (Mindelo) para alagem (docagem).
- Promoção a 2º Tenente em 31 de Maio de 1967.
- No regresso e até Agosto de 1968, formador no Grupo nº 1 de Escolas da Armada (Vila Franca).
- De Agosto de 1968 a Maio de 1970, ajudante de Ordens do Comandante Naval do Continente e Base Naval de Lisboa
Formação Profissional:
- De Maio de 1970 a Novembro de 1972 dirigi, a pedido e como adjunto, o Serviço de Publicações do Estado Maior da Armada, primeiro estágio profissional na indústria gráfica, ramo que abracei até hoje.
- Promovido ao posto de 1º Tenente em Novembro de 1972, tendo pedido a passagem à disponibilidade.
- Final de 1972 - Admitido como Director de Produção da Livraria Bertrand (parque industrial da Venda Nova - Amadora); pedida a demissão em Fevereiro de 1977.
- Março de 1977 - Admitido como Chefe de Produção da Avery Portugal - B. Nascimento, Lda.; diversos estágios realizados na Alemanha, Dinamarca, Suécia e Espanha no âmbito da mesma indústria gráfica (serigrafia e etiquetagem). Pedida a demissão em Março de 1983.
- Entre 1984 e 1987 ainda passei em duas outras empresas em lugar equivalente (Selegrafe, Litografia Amorim e Copinaque);
Formação complementar:
- Desde aquela altura e até agora, primeiro como empresário em nome individual e depois em sociedade com a mulher, em M. Lema Santos - Comunicação Gráfica, Lda., pequeno estúdio gráfico, de índole familiar, na área digital/pré-impressão/Internet.
Actividades diversas:
- De 1969 a 1981, presidente da Direcção de uma associação cultural e desportiva (Clube Arte e Sport).
- Desde 1997 sócio e colaborador na AORN (Associação dos Oficiais da Reserva Naval) tendo aceite o lugar de vogal neste último elenco directivo; por divergências em questões de fundo afastei-me no final de 2004.
quinta-feira, 20 de abril de 2006
Guiné 63/74 - P712: Em louvor da AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) (Luís Graça)
Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > 2005 > "O jovem fruticultor Ansumane, da tabanca de Faro Sadjuma, junto à estrada entre Guiledje e Bedanda, mostra com orgulho um dos exemplares de ananás da variedade Cayenne Lisa, que ele acabou de colher.
"Trata-se de um fruticultor moderno que pratica a indução floral, o que lhe permite ter, a partir de Fevereiro de cada ano, uma produção de ananás que escoa para Bissau, numa altura em que o mercado está carente deste fruto, uma vez que só começa a ser vendido no início da época das chuvas, em Junho.
"As más estradas e a falta de meios de transporte adaptados são um factor que dificulta o aumento da área de produção, tendo em conta que ele cultiva igualmente abacates, citrinos, bananas, cola e outras culturas".
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005) (com a devida vénia)
Amigos e camaradas da Guiné:
1. Não é meu hábito desviar a vossa atenção daquilo que nos une à volta do nosso Blogue-fora-nada, usando e abusando do privilégio de ser o seu editor... E muito menos impôr-vos a minha visão dos problemas da Guiné, tanto de hoje como do passado... Temos, contudo, em comum a solicitude, a solidariedade, a simpatia, a (com)paixão e a amizade para com a Guiné e o seu povo...O que se passa hoje, na Guiné, seja bom ou mau, não nos deixa indiferentes... Já demos várias provas disso, no nosso blogue ou através da troca de e-mails.
2. Apraz-me, por isso, registar com agrado as notícias que o nosso amigo Pepito nos mandou. Acabo de ler, com atenção, o relatório de actividade de 2005 da ONG que ele fundou e dirige, há 14 anos. A AD - Acção para o Desenvolvimento tem hoje uma imagem de liderança, seriedade, competência, qualidade e eficácia, dentro e fora do país, que honra a sua direcção e os seus colaboradores, e que constitui um motivo de esperança para a população que serve.
3. O trabalho da AD (substituindo-se muitas vezes a um Estado que não existe, ou que se demite ou que pura e simplesmente não funciona) merece o nosso respeito e admiração. Tomei, por isso, a liberdade de divulgar, pela tertúlia, o relatório da actividade do no de 2005 (disponível em linha, em formato.pdf) para que os nossos amigos e camaradas conheçam melhor o trabalho feito por esta ONG guineense, em prol da democracia, da cidadania, da participação comunitária, da protecção da natureza, do desenvolvimento sustentado e integrado da Guiné bem como da preservação da sua identidade histórica e cultural, nos mais diversos sectores e domínios.
Aqui ficam os meus parabéns pelos resultados alcançados e sobretudo pela ambição do Pepito e dos seus amigos e parceiros de fazer sempre muito mais e melhor, dentro dos difíceis condicionalismos da actual situação política, social e económica daquele país lusófono...
Registo também a coragem (física e moral) e a coerência do autor do relatório, ao identificar e denunicar os vários demónios que ameaçam o futuro da Guiné-Bissau, alguns dos quais estão associados a poderosos lobbies ou grupos de interesses. O relatório cita pelo menos quatro ou cinco grandes demónios cujo crescimento se tornou notório em 2005:
(i) o eleitoralismo, o populismo, a demagogia, a intolerância e a violência por parte dos grupos políticos em luta pelo controlo do aparelho de Estado;
(ii) a perda do sentido de Nação, a amnésia histórica, o retorno ao tchon, o tribalismo, ("omnipresente em quase todas as situações, análises, explicações e decisões do dia a dia", p. 2);
(iii) a irrupção do tráfico de droga, o enriquecimento fácil, a corrupção da juventude, o branqueamento do dinheiro, a demissão ou conivência do poder judicial;
(iv) a biopirataria, que volta a estar na ordem do dia com a "venda de golfinhos" (p. 3);
(v) a caixa de Pandora que pode vir a tornar-se a "questão do petróleo", considerada durante anos como tabu político...
4. Os guineenses têm direito, como qualquer outro povo, a serem felizes, livres, saudáveis... A AD, o Pepito e todos os seus demais colaboradores estão no terreno a fazer coisas bonitas, não apenas para mas tmabém com (e através de) os homens e as mulheres da Guiné, que finalmente poderão vir a ser donos do seu destino...
Ao comemorar os seus 14 anos de existência, "a AD assume-se como uma organização que quer viver os desafios do seu tempo: a luta pela instauração da democracia; a procura de caminhos alternativos ao neoliberalismo para um desenvolvimento justo e solidário; e a participação no combate internacional à globalização enquanto expressão de desigualdades, exclusão e pobreza" (p. 4).
5. Não vou aqui analisar emn detalhe as múltiplas actividades realizadas pela AD em 2005... Naquilo que também nos toca, por razões históricas e sentimentais, destaco o Projecto Guiledje... É feito no relatório o ponto da situação:
(i) A iniciativa arrancou em 2005;
(ii) Estão a ser prosseguidos dois objectivos: por um lado, afirmar a responsabilidade moral que a AD tem "no resgate da história do local que constitui o berço da nacionalidade e das primeiras zonas libertadas na luta pela independência"; por outro, valorizar o ecoturismo como elemento dinamizador do desenvolvimento do Cantanhez (cuja mata era um das mais míticas no nosso tempo de combatentes);
(iii) A salvaguarda da memória histórica está a feita por várias vias: por um lado, criação de um rede (informal) de antigos militares portugueses que já disponibilizaram mais de um centena de fotografias antigas de Guiledje, Medjo e Gandembel, a par de testemunhos escritos, relatórios miliares, mapas e outros documentos; por outro, o registo em vídeo das narrativas de antigos milícias e de elementos antiga população local de Guiledje, bem como de antigos guerrilheiros do PAIGC; também se está a fazer o levantamento dos antigos acampamentos de guerrilha espalhados pelas matas do Cantanhez;
(iv) Toda esta informação ficará depois à disposição dos interessados no futuro Centro de Documentação Histórica, Cultural e Ambiental do Cantanhez...
6. Eu, pessoalmente, gostaria de, no futuro, poder canalizar mais apoios (materiais e imateriais) para esta ONG. Talvez o Pepito nos possa ajudar, falando-nos das suas necessidades e prioridades... Mas, para já, aqui vai o meu grande abraço, o nosso grande abraço de amigos e camaradas da Guiné, ao Pepito e à sua equipa, um abraço longo de 4 mil quilómetros, que é a distância física que nos separa... O importante, o mais importante, é o traço de união que nos mantém ligados à Guiné e ao seu povo, pela história, pela cultura, pela língua e até pela dura experiência da guerra...
7. Com a modéstia, a sensibilidade e a honestidade intelectual que lhe são próprias, o Pepito acaba de nos mandar duas palavras de agradecimento. Aqui ficam, para conhecimento de todos. Aproveito também para lhe agradecer a referência (elogiosa) que ele faz, no supracitado relatório, ao discreto e modesto trabalho do nosso blogue:
"Amigo Luís: Muito obrigado por teres difundido o nosso relatório da AD e também pelas palavras que nos tocaram muito.
"Vindas de quem vêm e de quem muito consideramos, têm um especial valor e dão-nos aquela coragem para continuar e para acreditar.
"É no silêncio de nós próprios que as relembramos quando nos assaltam dúvidas e decidimos continuar a lutar.
"Obrigado. Abraços amigos. pepito"
Guiné 63/74 - P711: Ainda o caso do Seni Candé (Pelotão de Milícias nº 143) (Hugo Moura Ferreira)
Texto do Hugo Moura Ferreira, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1621 e CCAÇ 6 (1966/68)
Caros amigos:
Depois de algumas tentativas, baseando-me apenas na data de nascimento do Seni Candé, não esperando pela informação do nome dos pais, voltei ao Arquivo Geral do Exército onde localizei o seu processo individual (1).
Conclui, conjuntamente com a pessoa que me facultou as indicações, que ambos os números indicados nas nossas mensagens estavam correctos.
Também concluímos que ele nunca foi das companhias territoriais (CCAÇ 6), mas sim do Pelotão de Milícia nº 143, comandado pelo Alferes de 2ª linha, Tala Biú Djaló, meu grande amigo, morto em combate em Conakry, durante a Op Mar Verde, como furriel da 1ª Companhia de Comandos Africanos.
Conversando, oficiosamente, naquele serviço do Exército, foi-me dito, no que se refere à Pensão perdida pelo Seni, que havia a possibilidade de ele poder requerer a sua reactivação.
Mas aqui começam as dificuldades maiores. Para tal, teria que estar em Portugal, para poder solicitar pessoalmente a comparência a uma nova Junta Médica e, ao mesmo tempo, caso se ausentasse, teria que ter uma morada no território nacional para poder ser contactado, consoante a evolução do processo.
Neste último ponto, naturalmente que eu não poria qualquer entrave em que a minha morada pessoal fosse utilizada para tal fim, mas antes haveria que se proceder em conformidade e a presença dele seria imprescindível.
Claro que este é o caso vertente do Seni Candé, mas como ele deve haver muitos mais que gostariam que os seus processos fossem reabertos... E que nós bem gostaríamos de ajudar também.
Naturalmente, penso que uma tarefa destas se me afigura de possibilidades muito remotas, no entanto, quem sabe se poderemos vir a ajudar algum deles, ou mesmo o Seni Candé.
Essa possibilidade ficará, se me permitem o alvitre, sem querer chutar a bola no inicio do jogo à consideração e disponibilidade do Jorge Neto que, numa primeira análise, teria que conversar com o interessado a propósito da questão.
Uma abraço a todos.
Moura Ferreira
_____
Nota de L.G.,
(1) Vd. posts anteriores:
5 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCVII: A pensão do Seni Candé
10 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXVI: O Seni Candé da minha CCAÇ 6 (Moura Ferreira)
9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DX: O abandono do Seni Candé (Zé Neto)
8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)
Caros amigos:
Depois de algumas tentativas, baseando-me apenas na data de nascimento do Seni Candé, não esperando pela informação do nome dos pais, voltei ao Arquivo Geral do Exército onde localizei o seu processo individual (1).
Conclui, conjuntamente com a pessoa que me facultou as indicações, que ambos os números indicados nas nossas mensagens estavam correctos.
Também concluímos que ele nunca foi das companhias territoriais (CCAÇ 6), mas sim do Pelotão de Milícia nº 143, comandado pelo Alferes de 2ª linha, Tala Biú Djaló, meu grande amigo, morto em combate em Conakry, durante a Op Mar Verde, como furriel da 1ª Companhia de Comandos Africanos.
Conversando, oficiosamente, naquele serviço do Exército, foi-me dito, no que se refere à Pensão perdida pelo Seni, que havia a possibilidade de ele poder requerer a sua reactivação.
Mas aqui começam as dificuldades maiores. Para tal, teria que estar em Portugal, para poder solicitar pessoalmente a comparência a uma nova Junta Médica e, ao mesmo tempo, caso se ausentasse, teria que ter uma morada no território nacional para poder ser contactado, consoante a evolução do processo.
Neste último ponto, naturalmente que eu não poria qualquer entrave em que a minha morada pessoal fosse utilizada para tal fim, mas antes haveria que se proceder em conformidade e a presença dele seria imprescindível.
Claro que este é o caso vertente do Seni Candé, mas como ele deve haver muitos mais que gostariam que os seus processos fossem reabertos... E que nós bem gostaríamos de ajudar também.
Naturalmente, penso que uma tarefa destas se me afigura de possibilidades muito remotas, no entanto, quem sabe se poderemos vir a ajudar algum deles, ou mesmo o Seni Candé.
Essa possibilidade ficará, se me permitem o alvitre, sem querer chutar a bola no inicio do jogo à consideração e disponibilidade do Jorge Neto que, numa primeira análise, teria que conversar com o interessado a propósito da questão.
Uma abraço a todos.
Moura Ferreira
_____
Nota de L.G.,
(1) Vd. posts anteriores:
5 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCVII: A pensão do Seni Candé
10 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXVI: O Seni Candé da minha CCAÇ 6 (Moura Ferreira)
9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DX: O abandono do Seni Candé (Zé Neto)
8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)
Guiné 63/74 - P710: O cheiro fétido dos navios que transportavam carne para canhão (Luís Graça)
Navio de carga Alenquer > Foi construído em Inglaterra em 1948. O seu comprimento era de cerca de 137 metros. A sua arqueação bruta não chegava às 5,3 mil toneladas. Armador: Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, Lisboa. Velocidade de cruzeiro: 13 nós. Nº de tripulantes: 37. Foi nesta embarcação que o José Martins (CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70) foi parar à Guiné...
Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2000)
N/M Ana Mafalda > Foi neste luxuoso paquete da nossa marinha mercante colonial que companhias como a CART 1690 (Geba, 1967/69), do A. Marques Lopes, ou a CART 2339 (Mansambo, 1968/69), do Carlos Marques dos Santos, partiram de Lisboa com destino à Guiné ...
O Ana Mafalda era um navio misto, de carga e de passageiros, construído pela CUF - Companhia União Fabril, em Lisboa, em 1951 e abatido em 1975. O seu comprimento era de 103 metros. A sua arqueação bruta pouco ultrapassava as 3,3 mil toneladas. Teve dois armadores: Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, Lisboa (1950-1972); e Companhia Nacional de Navegação, Lisboa (1972-1973). Velocidade de cruzeiro: 12 nós. Alojamentos para 16 passageiros em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira classe, no total de 52 passageiros. Nº de tripulantes: 47.
Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2000) (com a devida vénia)
1. A propósito do transporte de tropas para a Guiné (durante muito tempo, exclusivamente de barco), lancei para a tertúlia a seguinte questão, que não é inocente mas também não é provocatória:
- Vocês ainda se lembram do cheiro nauseabundo, fétido, do cheiro a merda e a vomitado, que vinha dos porões dos Niassas, dos Uíges e dos outros navios negreiros que transportavam a carne para canhão?... Oficiais e sargentos iam em 1ª classe e em classe turística, já não se devem lembrar muito bem desses malditos, inconfundíveis e indescritíveis cheiros… Mas o pobre soldado, meu Deus!, esse seguramente que ainda hoje se lembra desse cheiro nauseabundo, tão característico dos navios da nossa marinha mercante que foram fretados pela tropa.... Enfim, estamos a falar das duras condições em que chegavamos à Guiné, o tal sítio que ficava longe do Vietname...
Alguns camaradas apressaram-se a responder-me, dando o seu testemunho, fazendo um comentário ou contando uma pequena estória... Estou-lhes grato.
2. Mensagem do David Guimarães, com data de ontem:
Amigo Luís:
Boa estada em Itália. Isso importa. Depois continuarás esta amálgama de guerra em que estamos... Ainda bem, pois vale a pena... Acho que parar não, muitas histórias há a contar e muitos barcos a explorar. Isso, aqueles que nos levaram e trouxeram à guerra, embora eu fosse já um dos primeiros que gozei o privilégio de voltar em Avião 707 dos TAM [Transportes Aéreos Militares]... Que luxo!
3. Mensagem do Carlos Marques Santos:
(...) Só de propores que se fale dos cheiros dos nossos paquetes, já estou com náuseas. Cinco dias intermináveis!
Nem de sargento de dia se podia fazer o porão, onde desgraçadamente iam amontoados os soldados.
Só vivido. Contado ninguém acredita.
Eu e os meus fomos no Ana Mafalda. Esse era um autêntico negreiro.
4. Texto do José Martins:
Caro Luís: Antes de mais faz uma boa viagem e goza esses dias de calmaria (?) em Itália. Cuidado com os mafiosos!
Estórias da minha ida de barco, o Alenquer, é bastante soft. Levava apenas 12 passageiros. Creio que tenho algo escrito sobre a viagem. Em caso afirmativo irei enviar. Será uma estória fora do contexto normal.
Quanto à História (com H, grande) é fantástica. É digna de antologia, já que escritos como este não abundam. É pena porque estas histórias deviam/devem ser dadas à estampa.
Um abraço do José Martins
(ex-furriel miliciano de transmissões, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70)
5. O Marques Lopes tem uma descrição realista mas bem-humorada da sua viagem no Ana Mafalda: vd post de 28 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)
Aqui vão alguns excertos, para recordar:
(...) "Os alferes, sargentos e furriéis foram distribuídos pelos beliches dos camarotes de segunda e terceira classe. Em primeira classe ficou o capitão da companhia, o comandante do navio, o imediato, o oficial das máquinas, certamente, e uns mangas que se penduraram em nós à boleia, que eu não sei quem eram nem procurei saber.
"O Zé Soldado, sempre o mais fodido nestas situações, foi para o porão onde estavam montados uns beliches de ferro com umas enxergas em cima, e onde casa de banho não havia.
"Largámos às 12h00 do dia 8 de Abril de 1967. Foi uma bela viagem, como devem calcular, com os baldes dos dejectos do porão a serem despejados borda fora de manhã e ao fim da tarde (ao menos haja regras). Mas os despejos começaram logo à saída da barra do Tejo. Eu, pessoalmente, nunca tinha chamado tantas vezes pelo Gregório" (...).
6. Eu próprio já aqui evoquei a minha viagem no Niassa, em finais de Maio de 1969: vd post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau
(...) "Excertos do Diário de um tuga. Luis Graça (ex-furriel miliciano Henriques CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71).
(...) "Eis-nos nos tristes trópicos. Atravessámos hoje o Trópico de Câncer, com peixes voadores e alguns tubarões a acompanhar-nos (...).
"Alguém se lembrou de abrir uma garrafa de champagne como se tivéssemos atravessado o Equador em alegre cruzeiro pelo Atlântico Sul. Com um sorriso amarelo, também participei neste ritual de iniciação e ergui a minha taça:
- Afinal, estamos todos no mesmo barco!, - pensei.
"De resto, come-se e bebe-se o dia todo para matar o tédio da vida a bordo. Há os viciados da lerpa. Os oficiais superiores, esses, divertem-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da turística escreve cartas, aos pais, namoradas, noivas e mulheres, cartas que eu imagino já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades. As praças, essas, vomitam nos porões. Todo o navio fede e no meio do cheiro nauseabundo há um desgraçado de um desertor que vai a ferros" (...).
7. Testemunho do Carlos Vinhal:
Caros camaradas.
Eu também foi um digno passageiro do Ana Mafalda.
Não há dúvida que o Ana Mafalda se fartou de levar gente para a Guiné. Parece que a grande maioria dos tertulianos viajaram nele.
Quando a minha Companhia embarcou no Ana Mafalda no Cais do Porto do Funchal, já ele vinha com lotação esgotada. Juro que é verdade. Trazia de Lisboa uma Companhia açoriana (CCAÇ 2726) e ainda lá conseguiram meter mais uma madeirense.
O navio já trazia uma vedação em madeira que dividia o barco a meio, para impedir que açorianos e madeirenses se juntassem e trocassem mimos entre eles. Ainda houve umas escaramuças através das grades, mas nada digno de registo ou que fosse contra o RDM. Só um pouco de álcool à mistura.
Confesso humildemente que nunca desci aos porões, porque não tive coragem. Espreitei uma vez cá de cima lá para baixo e chegou. Por sorte não me tocou nenhum Sargento de Dia a bordo.
Apesar de tudo a viagem foi tão pequena que o sofrimento não deve ter sido muito e apenas se dormiram 4 noites a bordo. Durante o dia o pessoal andava cá por cima.
Alguém falou de imundicie, e de fome ninguém fala? Eu já fui dos sortudos que vieram de avião, mas tenho amigos que regressaram também de navio e queixam-se de que a alimentação no regresso era inferior e de pior qualidade, comparada com a de ida. Subentende-se que para lá nos queriam gordinhos, para cá cada um que se desenrascasse - passe o termo pouco ortodoxo.
Cordiais saudações.
Carlos Vinhal
____________
Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2000)
N/M Ana Mafalda > Foi neste luxuoso paquete da nossa marinha mercante colonial que companhias como a CART 1690 (Geba, 1967/69), do A. Marques Lopes, ou a CART 2339 (Mansambo, 1968/69), do Carlos Marques dos Santos, partiram de Lisboa com destino à Guiné ...
O Ana Mafalda era um navio misto, de carga e de passageiros, construído pela CUF - Companhia União Fabril, em Lisboa, em 1951 e abatido em 1975. O seu comprimento era de 103 metros. A sua arqueação bruta pouco ultrapassava as 3,3 mil toneladas. Teve dois armadores: Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, Lisboa (1950-1972); e Companhia Nacional de Navegação, Lisboa (1972-1973). Velocidade de cruzeiro: 12 nós. Alojamentos para 16 passageiros em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira classe, no total de 52 passageiros. Nº de tripulantes: 47.
Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2000) (com a devida vénia)
1. A propósito do transporte de tropas para a Guiné (durante muito tempo, exclusivamente de barco), lancei para a tertúlia a seguinte questão, que não é inocente mas também não é provocatória:
- Vocês ainda se lembram do cheiro nauseabundo, fétido, do cheiro a merda e a vomitado, que vinha dos porões dos Niassas, dos Uíges e dos outros navios negreiros que transportavam a carne para canhão?... Oficiais e sargentos iam em 1ª classe e em classe turística, já não se devem lembrar muito bem desses malditos, inconfundíveis e indescritíveis cheiros… Mas o pobre soldado, meu Deus!, esse seguramente que ainda hoje se lembra desse cheiro nauseabundo, tão característico dos navios da nossa marinha mercante que foram fretados pela tropa.... Enfim, estamos a falar das duras condições em que chegavamos à Guiné, o tal sítio que ficava longe do Vietname...
Alguns camaradas apressaram-se a responder-me, dando o seu testemunho, fazendo um comentário ou contando uma pequena estória... Estou-lhes grato.
2. Mensagem do David Guimarães, com data de ontem:
Amigo Luís:
Boa estada em Itália. Isso importa. Depois continuarás esta amálgama de guerra em que estamos... Ainda bem, pois vale a pena... Acho que parar não, muitas histórias há a contar e muitos barcos a explorar. Isso, aqueles que nos levaram e trouxeram à guerra, embora eu fosse já um dos primeiros que gozei o privilégio de voltar em Avião 707 dos TAM [Transportes Aéreos Militares]... Que luxo!
3. Mensagem do Carlos Marques Santos:
(...) Só de propores que se fale dos cheiros dos nossos paquetes, já estou com náuseas. Cinco dias intermináveis!
Nem de sargento de dia se podia fazer o porão, onde desgraçadamente iam amontoados os soldados.
Só vivido. Contado ninguém acredita.
Eu e os meus fomos no Ana Mafalda. Esse era um autêntico negreiro.
4. Texto do José Martins:
Caro Luís: Antes de mais faz uma boa viagem e goza esses dias de calmaria (?) em Itália. Cuidado com os mafiosos!
Estórias da minha ida de barco, o Alenquer, é bastante soft. Levava apenas 12 passageiros. Creio que tenho algo escrito sobre a viagem. Em caso afirmativo irei enviar. Será uma estória fora do contexto normal.
Quanto à História (com H, grande) é fantástica. É digna de antologia, já que escritos como este não abundam. É pena porque estas histórias deviam/devem ser dadas à estampa.
Um abraço do José Martins
(ex-furriel miliciano de transmissões, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70)
5. O Marques Lopes tem uma descrição realista mas bem-humorada da sua viagem no Ana Mafalda: vd post de 28 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)
Aqui vão alguns excertos, para recordar:
(...) "Os alferes, sargentos e furriéis foram distribuídos pelos beliches dos camarotes de segunda e terceira classe. Em primeira classe ficou o capitão da companhia, o comandante do navio, o imediato, o oficial das máquinas, certamente, e uns mangas que se penduraram em nós à boleia, que eu não sei quem eram nem procurei saber.
"O Zé Soldado, sempre o mais fodido nestas situações, foi para o porão onde estavam montados uns beliches de ferro com umas enxergas em cima, e onde casa de banho não havia.
"Largámos às 12h00 do dia 8 de Abril de 1967. Foi uma bela viagem, como devem calcular, com os baldes dos dejectos do porão a serem despejados borda fora de manhã e ao fim da tarde (ao menos haja regras). Mas os despejos começaram logo à saída da barra do Tejo. Eu, pessoalmente, nunca tinha chamado tantas vezes pelo Gregório" (...).
6. Eu próprio já aqui evoquei a minha viagem no Niassa, em finais de Maio de 1969: vd post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau
(...) "Excertos do Diário de um tuga. Luis Graça (ex-furriel miliciano Henriques CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71).
(...) "Eis-nos nos tristes trópicos. Atravessámos hoje o Trópico de Câncer, com peixes voadores e alguns tubarões a acompanhar-nos (...).
"Alguém se lembrou de abrir uma garrafa de champagne como se tivéssemos atravessado o Equador em alegre cruzeiro pelo Atlântico Sul. Com um sorriso amarelo, também participei neste ritual de iniciação e ergui a minha taça:
- Afinal, estamos todos no mesmo barco!, - pensei.
"De resto, come-se e bebe-se o dia todo para matar o tédio da vida a bordo. Há os viciados da lerpa. Os oficiais superiores, esses, divertem-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da turística escreve cartas, aos pais, namoradas, noivas e mulheres, cartas que eu imagino já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades. As praças, essas, vomitam nos porões. Todo o navio fede e no meio do cheiro nauseabundo há um desgraçado de um desertor que vai a ferros" (...).
7. Testemunho do Carlos Vinhal:
Caros camaradas.
Eu também foi um digno passageiro do Ana Mafalda.
Não há dúvida que o Ana Mafalda se fartou de levar gente para a Guiné. Parece que a grande maioria dos tertulianos viajaram nele.
Quando a minha Companhia embarcou no Ana Mafalda no Cais do Porto do Funchal, já ele vinha com lotação esgotada. Juro que é verdade. Trazia de Lisboa uma Companhia açoriana (CCAÇ 2726) e ainda lá conseguiram meter mais uma madeirense.
O navio já trazia uma vedação em madeira que dividia o barco a meio, para impedir que açorianos e madeirenses se juntassem e trocassem mimos entre eles. Ainda houve umas escaramuças através das grades, mas nada digno de registo ou que fosse contra o RDM. Só um pouco de álcool à mistura.
Confesso humildemente que nunca desci aos porões, porque não tive coragem. Espreitei uma vez cá de cima lá para baixo e chegou. Por sorte não me tocou nenhum Sargento de Dia a bordo.
Apesar de tudo a viagem foi tão pequena que o sofrimento não deve ter sido muito e apenas se dormiram 4 noites a bordo. Durante o dia o pessoal andava cá por cima.
Alguém falou de imundicie, e de fome ninguém fala? Eu já fui dos sortudos que vieram de avião, mas tenho amigos que regressaram também de navio e queixam-se de que a alimentação no regresso era inferior e de pior qualidade, comparada com a de ida. Subentende-se que para lá nos queriam gordinhos, para cá cada um que se desenrascasse - passe o termo pouco ortodoxo.
Cordiais saudações.
Carlos Vinhal
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Guiné 63/74 - P709: Estórias do Zé Teixeira (8): Síndrome de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
Guiné-Bissau > Desenho inserido na publicação Conhecer para amar, amar para proteger: Rio Grande de Buba e Lagoa de Cufada. Bissau: Tiniguena. 1995.Imagem gentilmente cedida por José Teixeira (2006).
Aqui vão mais estórias do Zé Teixeira... Chamemos-lhe narrativas autobiográficas. Escrevê-las faz-lhe bem a ele; lê-las faz-nos bem a nós...
Obrigado, Zé! Foste um herói, és um herói!
(LG)
Síndrome de guerra
Passados uns meses do regresso, em plena Baixa do Porto, assisti a um embate de duas viaturas. O estrondo assustou-me e desatei a correr, parecia um carteirista logo após ter feito a maroteira de sacar a carteira a algum incauto.
Parei no Carmo a cerca de 800 metros, ofegante e desorientado, o meu corpo tremia todo. Sentei-me numa cadeira no Café piolho e pus-me a reflectir sobre o acontecido. Revi a cena e procurei compreender-me. As conclusões foram simples e rápidas: Vieram-me à memória as cenas de sangue que vivi na Guiné, o sangue ainda quente que senti nas minhas mãos, os feridos e mortos que entraram na minha vida como enfermeiro à força. Tive medo de que houvesse feridos e tudo voltasse a acontecer.
Ainda não sou capaz de parar junto de um acidente em estrada. Não dá para entender.
Passados uns anos sentia-me muito irritável. Tudo me angustiava. Reagia sobretudo com a família de forma menos correcta o que não era consentâneo com a minha maneira de pensar, ser e estar na vida.
Procurei um neurologista amigo. Falei largos minutos, mais de uma hora, talvez. A receita deixou-me de boca aberta:
- São efeitos secundários da guerra que viveste, e que estão a vir ao de cima. Os medicamentos não curam isso. Só o tempo te vai ajudar.
E o tempo tem vinmdo, de facto, a ajudar. Aconselhou-me a deixar o tabaco, o que não era problema, pois desde que fui para a tropa que tinha saído dos meus hábitos. Deixar de tomar café, o que foi mais difícil. Aguentei oito dias e para comemorar, voltei . Só que felizmente foi ao fim da tarde e com estava em desintoxicação, passei a noite sem dormir e depois… aguentei mais de dez anos. Hoje tomo um por dia, da parte de manhã.
Aconselhou-me ainda a não abusar do álcool, o que também não era problema, pelo que ainda aqui estou.
Em 1999 tive de fazer um exame ao aparelho auditivo, devido a uns ruídos estranhos que sentia e por cá ficaram. Trata-se de artero-esclerose dos vasos capilares auditivos, que origina um ruído do sangue ao forçar a sua passagem nos vasos. Nada de grave, só que levarei esses ruídos para a cova um dia. Incomoda, mas não dói, nem afecta a saúde.
O estranho é a descoberta que o médico fez. Tenho uma quebra de audição nos sons agudos de cerca de 20%. Pergunta-me o médico:
- Andou na guerra ?
- Sim estive na Guiné entre 1968 a 1970.
- Mas andou mesmo nas zonas de combate ?
- Sim, sofri muitos ataques, acompanhei ataques, sofri emboscadas . . .
- Então está explicado a sua quebra de audição nos agudos. Chama-se síndrome de guerra e está dentro dos limites previstos, não se preocupe porque não vai evoluir, disse o médico.
Chega de estórias estranhas à guerra, mas que são reflexos da guerra que vivi.
Venham mais cinco, para contar mais estórias destas que as há por aí.
José Teixeira
Ex-1.º Cabo Aux Enf
CCAÇ 2381
Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70
Aqui vão mais estórias do Zé Teixeira... Chamemos-lhe narrativas autobiográficas. Escrevê-las faz-lhe bem a ele; lê-las faz-nos bem a nós...
Obrigado, Zé! Foste um herói, és um herói!
(LG)
Síndrome de guerra
Passados uns meses do regresso, em plena Baixa do Porto, assisti a um embate de duas viaturas. O estrondo assustou-me e desatei a correr, parecia um carteirista logo após ter feito a maroteira de sacar a carteira a algum incauto.
Parei no Carmo a cerca de 800 metros, ofegante e desorientado, o meu corpo tremia todo. Sentei-me numa cadeira no Café piolho e pus-me a reflectir sobre o acontecido. Revi a cena e procurei compreender-me. As conclusões foram simples e rápidas: Vieram-me à memória as cenas de sangue que vivi na Guiné, o sangue ainda quente que senti nas minhas mãos, os feridos e mortos que entraram na minha vida como enfermeiro à força. Tive medo de que houvesse feridos e tudo voltasse a acontecer.
Ainda não sou capaz de parar junto de um acidente em estrada. Não dá para entender.
Passados uns anos sentia-me muito irritável. Tudo me angustiava. Reagia sobretudo com a família de forma menos correcta o que não era consentâneo com a minha maneira de pensar, ser e estar na vida.
Procurei um neurologista amigo. Falei largos minutos, mais de uma hora, talvez. A receita deixou-me de boca aberta:
- São efeitos secundários da guerra que viveste, e que estão a vir ao de cima. Os medicamentos não curam isso. Só o tempo te vai ajudar.
E o tempo tem vinmdo, de facto, a ajudar. Aconselhou-me a deixar o tabaco, o que não era problema, pois desde que fui para a tropa que tinha saído dos meus hábitos. Deixar de tomar café, o que foi mais difícil. Aguentei oito dias e para comemorar, voltei . Só que felizmente foi ao fim da tarde e com estava em desintoxicação, passei a noite sem dormir e depois… aguentei mais de dez anos. Hoje tomo um por dia, da parte de manhã.
Aconselhou-me ainda a não abusar do álcool, o que também não era problema, pelo que ainda aqui estou.
Em 1999 tive de fazer um exame ao aparelho auditivo, devido a uns ruídos estranhos que sentia e por cá ficaram. Trata-se de artero-esclerose dos vasos capilares auditivos, que origina um ruído do sangue ao forçar a sua passagem nos vasos. Nada de grave, só que levarei esses ruídos para a cova um dia. Incomoda, mas não dói, nem afecta a saúde.
O estranho é a descoberta que o médico fez. Tenho uma quebra de audição nos sons agudos de cerca de 20%. Pergunta-me o médico:
- Andou na guerra ?
- Sim estive na Guiné entre 1968 a 1970.
- Mas andou mesmo nas zonas de combate ?
- Sim, sofri muitos ataques, acompanhei ataques, sofri emboscadas . . .
- Então está explicado a sua quebra de audição nos agudos. Chama-se síndrome de guerra e está dentro dos limites previstos, não se preocupe porque não vai evoluir, disse o médico.
Chega de estórias estranhas à guerra, mas que são reflexos da guerra que vivi.
Venham mais cinco, para contar mais estórias destas que as há por aí.
José Teixeira
Ex-1.º Cabo Aux Enf
CCAÇ 2381
Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70
Guiné 63/74 - P708: Estórias do Zé Teixeira (7): Um atribulado regresso (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
José Teixeira, ex- 1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70.
Atribulado regresso
Quando soubemos a data definitiva da partida de Bissau foi um alegre alvoroço (1). Cada um pensava como ia conseguir descortinar a família no cais de desembarque, em Lisboa, tal seria a multidão. Os Enfermeiros decidiram fazer um cartaz com uma cruz vermelha e a palavra Empada para se dar a reconhecer às respectivas famílias.
Escreveu-se para as famílias a dar a informação e a pedir para estas corresponderam da mesmo modo. Chegados ao cais, após uma noite não dormida no alto Tejo, com Lisboa à vista, há que desfraldar o cartaz e as famílias foram dando sinais, só a minha é que não aparecia. Fiquei sozinho com o cartaz, já enrolado e continuei a percorrer o barco de ponta a ponta com os olhos postos na enorme plateia de gente que acenava, chamava, gritava pelos nomes dos seus queridos, só eu, nada.
Lá vislumbrei a minha cunhada e o meu irmão. Saltei de alegria, comecei a dar pancadas na borda do barco com o pau da bandeira e nesse instante entrei num estado de amnésia. Desliguei-me desta cena e continuei a procura, por estranho que pareça, da minha família, que tinha acabado de localizar. Fui dos últimos a descer do barco, deixei os trastes, junto de um colega que estava já com os seus familiares e fui à procura de quem já tinha localizado, mas não me recordava.
Minha mãe e meus irmãos fixaram-se no sítio onde estavam e olhavam para mim lá em cima, estranhavam que não descesse e mais estranharam quando desembarquei, passei por duas vezes a cerca de dois metros deles, não os ouvia chamar por mim e continuava à sua procura.
Matosinhos > O Zé Teixeira, hoje, ex-gerente bancário, reformado, contador de estórias da Guiné, apaixonado pela Guiné e pelo seu povo... Voltou lá em 2005...
Encontrei a minha namorada, hoje minha esposa, e lá continuamos à procura, até que sinto uma mão a agarrar-me. Era o meu irmão que tinha saltado a barreira de controlo. Claro que este momento de reencontro foi de extrema felicidade, mas notei por parte da minha mãe, alguma frieza que se alastrou a toda a família e que durou por cerca de 8 dias.
Argumentavam que eu os tinha localizado do barco. Eu negava. Insistiam que passei junto a eles já no Cais por duas vezes e chamavam por mim, que eu olhava e continuava em frente. Eu negava. Pois é, preocupava-me mais em procurar a namorada que a minha querida mãe.
O mal estar em surdina era profundo. Evitavam falar comigo. Pensei em sair de casa, apesar de estar sem cheta e desempregado. Um dia, minha irmã, que não tinha ido esperar-me, chegou da escola nocturna e sentou-se a beira da minha cama. Era a única que procurava entender-me. O assunto foi o que nos desunia. Começou por comigo refazer a história que eu negava. Dizia ela:
- Tu andavas no barco de um lado para o outro, fazias muitos gestos para as pessoas que estavam no Cais e, em determinado momento, localizaste a nossa família. Dizem que entraste em euforia, aos saltos e bateste com um pau na borda do barco.
Pegou na régua que trazia com ela e repetiu o gesto na borda da cama:
- Truz ! Truz ! Truz!
Três pancadas que senti na minha cabeça e fez-se luz, na minha memória. Revi num ápice todas as cenas que se passaram e era tudo verdadeiro o que minha mãe afirmava.
Saltei da cama e fui ter com ela que já dormia a sono solto.
Deixo aos prezados leitores a construção do imaginário que se seguiu.
© José Teixeira (2006)
Vd. também o Blogue > Os Maiorais de Empada
___________
Nota de L.G.
(1) Vd post de 14d e Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi
Atribulado regresso
Quando soubemos a data definitiva da partida de Bissau foi um alegre alvoroço (1). Cada um pensava como ia conseguir descortinar a família no cais de desembarque, em Lisboa, tal seria a multidão. Os Enfermeiros decidiram fazer um cartaz com uma cruz vermelha e a palavra Empada para se dar a reconhecer às respectivas famílias.
Escreveu-se para as famílias a dar a informação e a pedir para estas corresponderam da mesmo modo. Chegados ao cais, após uma noite não dormida no alto Tejo, com Lisboa à vista, há que desfraldar o cartaz e as famílias foram dando sinais, só a minha é que não aparecia. Fiquei sozinho com o cartaz, já enrolado e continuei a percorrer o barco de ponta a ponta com os olhos postos na enorme plateia de gente que acenava, chamava, gritava pelos nomes dos seus queridos, só eu, nada.
Lá vislumbrei a minha cunhada e o meu irmão. Saltei de alegria, comecei a dar pancadas na borda do barco com o pau da bandeira e nesse instante entrei num estado de amnésia. Desliguei-me desta cena e continuei a procura, por estranho que pareça, da minha família, que tinha acabado de localizar. Fui dos últimos a descer do barco, deixei os trastes, junto de um colega que estava já com os seus familiares e fui à procura de quem já tinha localizado, mas não me recordava.
Minha mãe e meus irmãos fixaram-se no sítio onde estavam e olhavam para mim lá em cima, estranhavam que não descesse e mais estranharam quando desembarquei, passei por duas vezes a cerca de dois metros deles, não os ouvia chamar por mim e continuava à sua procura.
Matosinhos > O Zé Teixeira, hoje, ex-gerente bancário, reformado, contador de estórias da Guiné, apaixonado pela Guiné e pelo seu povo... Voltou lá em 2005...
Encontrei a minha namorada, hoje minha esposa, e lá continuamos à procura, até que sinto uma mão a agarrar-me. Era o meu irmão que tinha saltado a barreira de controlo. Claro que este momento de reencontro foi de extrema felicidade, mas notei por parte da minha mãe, alguma frieza que se alastrou a toda a família e que durou por cerca de 8 dias.
Argumentavam que eu os tinha localizado do barco. Eu negava. Insistiam que passei junto a eles já no Cais por duas vezes e chamavam por mim, que eu olhava e continuava em frente. Eu negava. Pois é, preocupava-me mais em procurar a namorada que a minha querida mãe.
O mal estar em surdina era profundo. Evitavam falar comigo. Pensei em sair de casa, apesar de estar sem cheta e desempregado. Um dia, minha irmã, que não tinha ido esperar-me, chegou da escola nocturna e sentou-se a beira da minha cama. Era a única que procurava entender-me. O assunto foi o que nos desunia. Começou por comigo refazer a história que eu negava. Dizia ela:
- Tu andavas no barco de um lado para o outro, fazias muitos gestos para as pessoas que estavam no Cais e, em determinado momento, localizaste a nossa família. Dizem que entraste em euforia, aos saltos e bateste com um pau na borda do barco.
Pegou na régua que trazia com ela e repetiu o gesto na borda da cama:
- Truz ! Truz ! Truz!
Três pancadas que senti na minha cabeça e fez-se luz, na minha memória. Revi num ápice todas as cenas que se passaram e era tudo verdadeiro o que minha mãe afirmava.
Saltei da cama e fui ter com ela que já dormia a sono solto.
Deixo aos prezados leitores a construção do imaginário que se seguiu.
© José Teixeira (2006)
Vd. também o Blogue > Os Maiorais de Empada
___________
Nota de L.G.
(1) Vd post de 14d e Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi
Guiné 63/74 - P707: Estórias cabralianas (9): Má chegada, pior partida
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Jovem fula ou mandinga vestido o seu grandbubu, e protegemdo-se da canícula por intermédio do seu inseparável chapéu automático (dois luxos que chegavam à tabancas do interior, graças ao comércio dos djilas do tchon francês e ao patacon ganho na tropa) (LG).
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).
N/M Alfredo da Silva: foto obtida (com a devida vénia) do excelente sítio Navios Mercantes Portugueses, de visita obrigatória para quem quiser relembrar ou conhecer o nosso passado de potência marítima...
O Alfredo da Silva era um navio misto, de carga e de passageiros, construído pela CUF - Companhia União Fabril, em Lisboa, em 1949 e abatido em 1973. Ostenta de resto o nome do fundador daquele grupo económico cujos interesses, na Guiné, eram representados pela sua subsidiária, a famosa Casa Gouveia. O seu comprimento não chegava aos 103 metros. A sua arqueação bruta era de 3374 toneladas. Teve dois armadores: Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, Lisboa (1950-1972); e Companhia Nacional de Navegação, Lisboa (1972-1973). Velocidade de cruzeiro: 12 nós. Alojamentos para 20 passageiros em primeira classe e 68 em classe turística, num total de 88 passageiros. N.º de tripulantes: 45. Foi este navio da marinha mercante que levou até à Guiné o nosso amigo e camarada Jorge Cabral, em 1969.
Texto de Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71):
Má chegada, pior partida – mas sempre sob a ameaça de uma porrada
Com destino à Guerra, viajei no Alfredo da Silva, quase um cacilheiro, durante doze dias. Em primeira classe, sete oficiais e uma dona puta em pré-reforma habitavam um ambiente de opereta, jantando de gravata, com a estafada dama na mesa do comando. Depois havia a valsa… Cheirava a mofo, a decadência, ao fim do Império…
Cheguei à noite, sentindo logo a África, no calor, na cor, na humidade. A bordo subiram militares, e o putativo marido da senhora, cuja profissão nunca descobri. Um sargento gago carimbou-me a guia de marcha e assinalou:
- Pel. Caç. Nat. 63. - Bem lhe perguntei o significado da sigla e para onde ia, mas não sabia ou não quis dizer.
Desembarcado, apanhei uma boleia num camião militar carregado de batatas, que me deixou no Biafra, depósito de alferes em trânsito por Bissau.
Talvez para impressionarem o periquito, todos se mostraram totalmente apanhados. Quanto ao meu destino foram animadores…
- É pá, vais para um pelotão de nharros. É só embrulhar. Estás lixado.
Apresentado no Quartel-General, ordenaram-me a partida para o Xime. Tinha que tomar um Barco no dia seguinte, às tantas horas. Regressado ao Biafra, aconselharam-me a não ir:
- Recusa-te. Os Barcos são sempre atacados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fá Mandinga > 1970 > Um dia o Jorge Cabral sonhou que podia ser fula entre os fulas, mandinga entre os mandingas, guinéu entre os guinéus, homem entre os homens e até louco entre os loucos... Afinal, todos nós temos direito a um pouco de loucura e de humanidade, o que implica pôr-nos na pele do outro (LG).
© Jorge Cabral (2005)
Confiante na experiência dos velhinhos, falhei o embarque tendo voltado ao Q.G. Aí um Capitão barrigudo, passou-me a um Major nervoso, que me remeteu para um Tenente-Coronel que, quase apopléctico, me descompôs:
- Começa mal! Está a pedir uma porrada. As ordens são para cumprir. Desapareça da minha vista!
Desapareci, e o certo é que fui de avião para Bafatá.
Muitos dias, muitos meses, mais de dois anos passaram e eu continuei no mato. (As cunhas funcionavam na perfeição. Chegados a Bissau, em rendição individual, podiam ser encaixados, sem grande escândalo, em qualquer Repartição.) Tinha porém de ser rendido, e a solução foi encontrada a nível de Batalhão, substituindo-me por um alferes da Companhia de Mansambo.
Entretanto o meu Pelotão foi para a ponte do rio Undunduma e a Missirá voltou o Pel Caç Nat 52, tendo eu permanecido mais três semanas, e entrado ainda numa operação, na qual morreram dois soldados africanos que, indo a fumar o mesmo cigarro, accionaram uma mina anti-pessoal reforçada.
Finalmente, e após uns dias em Bambadinca, embarquei no Xime com destino a Bissau. Recusara à chegada, mas afinal regressava de barco… e ao Biafra. Agora eu era o velhinho e o apanhado.
No dia da partida, eu que cismara aparecer em Lisboa vestido com o grandbubu azul, bordado a ouro, que comprara a um djila senegalês em Missirá, resolvera mandar encurtar a vestimenta a um costureiro de rua. Enquanto esperava, passou por mim um furriel conhecido, que me alertou, o voo havia sido antecipado. À pressa, pego no fato, meto-me num táxi e vou para Bissalanca (toda a minha bagagem, fotografias, o meu diário, os versos que escrevi, ficaram no Biafra).
Chegado ao aeroporto enverguei o meu traje, causando o espanto e o riso dos passageiros, militares. Eis que sou cercado por um Coronel e dois Majores, os quais em coro me determinam:
– Não pode ir assim, é uma vergonha, lembre-se que é um oficial, blá, blá, blá…
Tento contestar:
- Se um fula pode embarcar com um fato europeu, porque não posso eu ir vestido à fula?
Nada feito, se persistir não vou e levarei uma porrada. Obrigado a obedecer, lá entro no avião, no qual segue também o Coronel, o que impediu de me fardar a bordo.
Teimoso porém, mal chego a Lisboa, envergo o grandbubu, e é com ele vestido que abraço a família. Franze o sobrolho o meu pai que me diz que o Carnaval ainda não chegou, que tenha juízo e não o faça passar vergonhas… Quanto à minha mãe, chora, talvez de alegria, mas muito mais de tristeza. Coitado do filho…enlouqueceu.
Num destes dias vou de novo vestir o meu grandbubu. Pode ser que tenha conquistado o direito a um pouco de loucura. Talvez…
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).
N/M Alfredo da Silva: foto obtida (com a devida vénia) do excelente sítio Navios Mercantes Portugueses, de visita obrigatória para quem quiser relembrar ou conhecer o nosso passado de potência marítima...
O Alfredo da Silva era um navio misto, de carga e de passageiros, construído pela CUF - Companhia União Fabril, em Lisboa, em 1949 e abatido em 1973. Ostenta de resto o nome do fundador daquele grupo económico cujos interesses, na Guiné, eram representados pela sua subsidiária, a famosa Casa Gouveia. O seu comprimento não chegava aos 103 metros. A sua arqueação bruta era de 3374 toneladas. Teve dois armadores: Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, Lisboa (1950-1972); e Companhia Nacional de Navegação, Lisboa (1972-1973). Velocidade de cruzeiro: 12 nós. Alojamentos para 20 passageiros em primeira classe e 68 em classe turística, num total de 88 passageiros. N.º de tripulantes: 45. Foi este navio da marinha mercante que levou até à Guiné o nosso amigo e camarada Jorge Cabral, em 1969.
Texto de Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71):
Má chegada, pior partida – mas sempre sob a ameaça de uma porrada
Com destino à Guerra, viajei no Alfredo da Silva, quase um cacilheiro, durante doze dias. Em primeira classe, sete oficiais e uma dona puta em pré-reforma habitavam um ambiente de opereta, jantando de gravata, com a estafada dama na mesa do comando. Depois havia a valsa… Cheirava a mofo, a decadência, ao fim do Império…
Cheguei à noite, sentindo logo a África, no calor, na cor, na humidade. A bordo subiram militares, e o putativo marido da senhora, cuja profissão nunca descobri. Um sargento gago carimbou-me a guia de marcha e assinalou:
- Pel. Caç. Nat. 63. - Bem lhe perguntei o significado da sigla e para onde ia, mas não sabia ou não quis dizer.
Desembarcado, apanhei uma boleia num camião militar carregado de batatas, que me deixou no Biafra, depósito de alferes em trânsito por Bissau.
Talvez para impressionarem o periquito, todos se mostraram totalmente apanhados. Quanto ao meu destino foram animadores…
- É pá, vais para um pelotão de nharros. É só embrulhar. Estás lixado.
Apresentado no Quartel-General, ordenaram-me a partida para o Xime. Tinha que tomar um Barco no dia seguinte, às tantas horas. Regressado ao Biafra, aconselharam-me a não ir:
- Recusa-te. Os Barcos são sempre atacados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fá Mandinga > 1970 > Um dia o Jorge Cabral sonhou que podia ser fula entre os fulas, mandinga entre os mandingas, guinéu entre os guinéus, homem entre os homens e até louco entre os loucos... Afinal, todos nós temos direito a um pouco de loucura e de humanidade, o que implica pôr-nos na pele do outro (LG).
© Jorge Cabral (2005)
Confiante na experiência dos velhinhos, falhei o embarque tendo voltado ao Q.G. Aí um Capitão barrigudo, passou-me a um Major nervoso, que me remeteu para um Tenente-Coronel que, quase apopléctico, me descompôs:
- Começa mal! Está a pedir uma porrada. As ordens são para cumprir. Desapareça da minha vista!
Desapareci, e o certo é que fui de avião para Bafatá.
Muitos dias, muitos meses, mais de dois anos passaram e eu continuei no mato. (As cunhas funcionavam na perfeição. Chegados a Bissau, em rendição individual, podiam ser encaixados, sem grande escândalo, em qualquer Repartição.) Tinha porém de ser rendido, e a solução foi encontrada a nível de Batalhão, substituindo-me por um alferes da Companhia de Mansambo.
Entretanto o meu Pelotão foi para a ponte do rio Undunduma e a Missirá voltou o Pel Caç Nat 52, tendo eu permanecido mais três semanas, e entrado ainda numa operação, na qual morreram dois soldados africanos que, indo a fumar o mesmo cigarro, accionaram uma mina anti-pessoal reforçada.
Finalmente, e após uns dias em Bambadinca, embarquei no Xime com destino a Bissau. Recusara à chegada, mas afinal regressava de barco… e ao Biafra. Agora eu era o velhinho e o apanhado.
No dia da partida, eu que cismara aparecer em Lisboa vestido com o grandbubu azul, bordado a ouro, que comprara a um djila senegalês em Missirá, resolvera mandar encurtar a vestimenta a um costureiro de rua. Enquanto esperava, passou por mim um furriel conhecido, que me alertou, o voo havia sido antecipado. À pressa, pego no fato, meto-me num táxi e vou para Bissalanca (toda a minha bagagem, fotografias, o meu diário, os versos que escrevi, ficaram no Biafra).
Chegado ao aeroporto enverguei o meu traje, causando o espanto e o riso dos passageiros, militares. Eis que sou cercado por um Coronel e dois Majores, os quais em coro me determinam:
– Não pode ir assim, é uma vergonha, lembre-se que é um oficial, blá, blá, blá…
Tento contestar:
- Se um fula pode embarcar com um fato europeu, porque não posso eu ir vestido à fula?
Nada feito, se persistir não vou e levarei uma porrada. Obrigado a obedecer, lá entro no avião, no qual segue também o Coronel, o que impediu de me fardar a bordo.
Teimoso porém, mal chego a Lisboa, envergo o grandbubu, e é com ele vestido que abraço a família. Franze o sobrolho o meu pai que me diz que o Carnaval ainda não chegou, que tenha juízo e não o faça passar vergonhas… Quanto à minha mãe, chora, talvez de alegria, mas muito mais de tristeza. Coitado do filho…enlouqueceu.
Num destes dias vou de novo vestir o meu grandbubu. Pode ser que tenha conquistado o direito a um pouco de loucura. Talvez…
quarta-feira, 19 de abril de 2006
Guiné 63/74 - P706: Aqueles que não constam do Memorial dos Mortos do Ultramar (Jorge Cabral)
Mensagem do nosso camarada Jorge Cabral:
Amigo Luís,
Oxalá tenhas passado umas boas férias. Gostaria de deixar claro que a reflexão publicada expressa apenas a procura do significado da Guerra na minha vida, a qual obviamente só ganhará sentido se assentar na análise de uma vivência muito própria. Evidentemente que éramos diferentes, passámos experiências diferentes e somos diferentes.
És o dono e administrador do blogue, que transformaste numa ampla e livre tribuna, na qual muitos colaboram, da forma e do modo que desejam. Por mim optei desde o início por contar estórias…, até porque não gosto de recordar tristezas. E fá-lo-ei enquanto mo deixares. Diz o Carlos Marques dos Santos, para quem envio um abraço, que não tem estórias para contar porque viveu sempre “entre quatro arames farpados”. Claro que discordo… mas não discuto.
Fui a semana passada visitado pelo Reitor da Universidade Amílcar Cabral de Bissau, Prof. Doutor Idrissa Embaló, de quem sou amigo. Levei-o a visitar o Memorial dos Mortos no Ultramar, e tivemos ocasião de constatar o grande número de soldados africanos mortos na Guiné, quase todos fulas. Ele comoveu-se, até porque lá encontrou o nome do tio, falecido no desastre do Cheche (2).
Também há poucos dias apareceu no meu escritório um guineense. Conversa puxa conversa, então não é que o homem foi soldado do Pel Caç Nat 58 que era comandado por um meu amigo e colega ?! Esteve preso e foi torturado, tendo assistido à execução de alguns comandos meus conhecidos, tendo-me descrito como foi morto o Ten Jamanca, em Bambadinca (3).
Parece que, quer queira quer não, continuo ligado à Guiné. Todos estes homens morreram por terem pertencido ao Exército Português. Então porque não constam os seus nomes do Memorial?
Envio uma estória-relato das peripécias da minha chegada e das vicissitudes da minha partida, ocorridas nos distantes anos de 1969 e 1971, respectivamente, e como sempre
Um Grande, Grande Abraço
Jorge
___________
Notas do editor
(1) Vd. post 12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVIII: Reflexão de Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63): recordar ou esquecer a Guiné ? E qual delas ?
(2) Vd post de 3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)
Da lista dos 47 mortos no desastre do Cheche (elaborada pelo José Martins), constam os seguintes, naturais da Guiné:
3 Soldados:
Alfa Jau, natural da Guiné – CCAÇ 1790
Judite Embuque, natural de Guiné – CCAÇ 1790
Tijane Jaló, natural de Piche – Gabu, Guiné – CCAÇ 1790
1 Civil: Um caçador nativo não identificado.
(3) Pertenceu à 1ª Companhia de Comandos Africanos: vd post de 11 de JUlho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri . Participou ´na Op Mar Verdade (invasão da Guiné-Conacri, em 22 de Novembro de 1970).
(...) "O estranho e inexplicável rebate de consciência do supervisor da 1ª CCA (o então major Leal de Almeida) que inicialmente se teria recusado a participar na Op Mar Verde; o momento de hesitação do capitão graduado comando e herói Bacar Jaló; e, mais tarde, a deserção do filho da puta do tenente graduado Januário e dos seus homens, além da forma bizarra como actuou no terreno a equipa do alferes graduado Jamanca (as expressões em itálico não são minhas, mas do comandante Alpoim Galvão) não deixam, entretanto, de pôr em causa a tão proclamada eficácia, eficiência, disciplina e espírito de corpo dos comandos, sendo factos reveladores desta verdade tão simples e comezinha: mesmo os profissionais da guerra, mesmo a tropa de elite, por muito máquinas que sejam, não deixam de ser tão livres, responsáveis, vulneráveis e… até mortais como os outros homens, civis ou militares". (...)
Amigo Luís,
Oxalá tenhas passado umas boas férias. Gostaria de deixar claro que a reflexão publicada expressa apenas a procura do significado da Guerra na minha vida, a qual obviamente só ganhará sentido se assentar na análise de uma vivência muito própria. Evidentemente que éramos diferentes, passámos experiências diferentes e somos diferentes.
És o dono e administrador do blogue, que transformaste numa ampla e livre tribuna, na qual muitos colaboram, da forma e do modo que desejam. Por mim optei desde o início por contar estórias…, até porque não gosto de recordar tristezas. E fá-lo-ei enquanto mo deixares. Diz o Carlos Marques dos Santos, para quem envio um abraço, que não tem estórias para contar porque viveu sempre “entre quatro arames farpados”. Claro que discordo… mas não discuto.
Fui a semana passada visitado pelo Reitor da Universidade Amílcar Cabral de Bissau, Prof. Doutor Idrissa Embaló, de quem sou amigo. Levei-o a visitar o Memorial dos Mortos no Ultramar, e tivemos ocasião de constatar o grande número de soldados africanos mortos na Guiné, quase todos fulas. Ele comoveu-se, até porque lá encontrou o nome do tio, falecido no desastre do Cheche (2).
Também há poucos dias apareceu no meu escritório um guineense. Conversa puxa conversa, então não é que o homem foi soldado do Pel Caç Nat 58 que era comandado por um meu amigo e colega ?! Esteve preso e foi torturado, tendo assistido à execução de alguns comandos meus conhecidos, tendo-me descrito como foi morto o Ten Jamanca, em Bambadinca (3).
Parece que, quer queira quer não, continuo ligado à Guiné. Todos estes homens morreram por terem pertencido ao Exército Português. Então porque não constam os seus nomes do Memorial?
Envio uma estória-relato das peripécias da minha chegada e das vicissitudes da minha partida, ocorridas nos distantes anos de 1969 e 1971, respectivamente, e como sempre
Um Grande, Grande Abraço
Jorge
___________
Notas do editor
(1) Vd. post 12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVIII: Reflexão de Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63): recordar ou esquecer a Guiné ? E qual delas ?
(2) Vd post de 3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)
Da lista dos 47 mortos no desastre do Cheche (elaborada pelo José Martins), constam os seguintes, naturais da Guiné:
3 Soldados:
Alfa Jau, natural da Guiné – CCAÇ 1790
Judite Embuque, natural de Guiné – CCAÇ 1790
Tijane Jaló, natural de Piche – Gabu, Guiné – CCAÇ 1790
1 Civil: Um caçador nativo não identificado.
(3) Pertenceu à 1ª Companhia de Comandos Africanos: vd post de 11 de JUlho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri . Participou ´na Op Mar Verdade (invasão da Guiné-Conacri, em 22 de Novembro de 1970).
(...) "O estranho e inexplicável rebate de consciência do supervisor da 1ª CCA (o então major Leal de Almeida) que inicialmente se teria recusado a participar na Op Mar Verde; o momento de hesitação do capitão graduado comando e herói Bacar Jaló; e, mais tarde, a deserção do filho da puta do tenente graduado Januário e dos seus homens, além da forma bizarra como actuou no terreno a equipa do alferes graduado Jamanca (as expressões em itálico não são minhas, mas do comandante Alpoim Galvão) não deixam, entretanto, de pôr em causa a tão proclamada eficácia, eficiência, disciplina e espírito de corpo dos comandos, sendo factos reveladores desta verdade tão simples e comezinha: mesmo os profissionais da guerra, mesmo a tropa de elite, por muito máquinas que sejam, não deixam de ser tão livres, responsáveis, vulneráveis e… até mortais como os outros homens, civis ou militares". (...)
Guiné 63/74 - P705: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (3): De Santa Margarida ao Uíge
N/M Uíge > Foto da excelente página Navios Mercantes Portugueses (com a devida vénia)...
O Uíge era um navio misto, de carga e de passageiros, construído na Bélgica em 1954 e abatido em 1978. O seu comprimento não chegava aos 150 metros. A sua arqueação bruta era de 10 mil toneladas. Armador: Companhia Colonial de Navegação, Lisboa. Velocidade de cruzeiro: 16 nós. Alojamentos para 4 passageiros em classe de luxo, 74 em primeira classe, 493 em classe turística, no total de 571 passageiros... Nº de tripulantes: 139. Na viagem que levou o Paulo Raposo até à Guiné, em finais de Julho de 1968, transportava dois batalhões, ou seja, cerca de 1200 homens.
N/M Uíge > Final de Julho de 1968 > A caminho de Bissau > "A alegria do regresso quase que compensa a tristeza da partida". O Paulo Raposo é o segundo a contra da esquerda.
© Paulo Raposo (2006)
III parte do testemunho do Paulo Raposo (ex- Alf Mil de Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70> Galomaro e Dulombi).
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 10-14
SANTA MARGARIDA
Após termos dado a instrução aos soldados em Abrantes, lá fomos para o grande campo de Santa Margarida para tirar o IAO, a Instrução de Adaptação Operacional.
Santa Margarida era, na realidade, parecida com aquilo que víamos nos filmes de cowboys. Uma avenida muito larga e comprida, com uma capela ao fundo. De um lado e de outro dessa larga avenida havia enormes quartéis de todos os ramos do Exército. Estavam lá os carros de combate, a Engenharia, a Infantaria, as Comunicações, o Estado Maior de Brigada, etc.
Continuando depois da capela, havia o grande campo de tiro para onde íamos fazer fogo real.
Passado o IAO tivemos duas semanas de férias, para nos despedirmos da família, antes de embarcarmos.
Era precisamente neste período de férias que muitos rapazes se aproveitavam do dinheiro recebido do subsídio de embarque, para fugirem.
Um país não se constrói com aqueles que têm por hábito fugir e na volta, habilmente, dão-lhe uma componente política para se justificarem, mais perante eles próprios que perante os outros. Só se tem autoridade para criticar depois do dever cumprido.
Sobre este tema deixo aqui uma história:O Comodoro Cunha Aragão era um assanhado oponente de Salazar. Era amigo de meu pai e visita de minha casa. Em 1960 estava a comandar o aviso Afonso de Albuquerque, quando a União Indiana desencadeia a acção militar contra Goa.
Quando surge a primeira salva de tiros proveniente dos navios indianos que deu origem à invasão de Goa, o Comodoro Cunha Aragão agarra nos retratos de Salazar e Tomaz, que estavam no navio, e, atirando-os borda fora, diz:
- Vamo-nos bater por Portugal, não por estes gajos.
Este gesto custou-lhe as estrelas de Almirante. Foi ferido em combate, foi vencido, mas foi um bravo.
Uma coisa é a Pátria, outra são os regimes. Uma coisa é a Alta Política e outra é a baixa política. Hoje não sabemos distinguir uma da outra.
O EMBARQUE
No final de Julho de 1968, no Cais de Conde de Óbidos, lá embarcámos no Uíge. Seguiram os BCAÇ 2851 e 2852.
A largada foi terrível. O barco a afastar-se do cais é muito doloroso para nós, com as carpideiras que para lá eram enviadas, para nos desmoralizarem ainda mais.
Depois do navio largar e passar S. Julião da Barra, fomos para o bar à espera que nos chamassem para o almoço.
O Major Branco, que comandava interinamente o nosso Batalhão, uma vez que o nosso Comandante, Ten. Cor. Pimentel Bastos já tinha seguido de avião, perguntou ao nosso Capitão:
- Embarcaram todos os rapazes?
O Capitão respondeu de imediato:
- Sim, sim, meu Comandante.
Ele sabia lá!
Em conversa, o Cap Medina, que comandava uma companhia do outro batalhão que seguiia connosco e estava a partir para a sua segunda comissão, disse algo de que nunca me esqueci:
- A alegria do regresso quase que compensa a tristeza da partida.
Na realidade foi bem assim.
Durante os cinco dias que se seguiram, o ambiente a bordo não podia ser o melhor. Conversávmos muito uns com os outros enquanto passeávamos ao longo do tombadilho.
O nosso espírito era unânime. De política, nada sabíamos. Sabíamos apenas que aquela ida para África era o preço que tínhamos de pagar para ter um lugar na sociedade. E se na na vida tínhamos de passar sacrifícios, então iríamos passá-los de uma assentada para o resto da vida.
A defesa do Ultramar para nós, naquela altura, era uma coisa que não nos dizia directamente respeito, nem nos apercebíamos que África era fonte de abastecimento das nossas matérias primas.
O que é que íamos defender na Guiné, território que estava rodeado de países francófonos ? A população estava dividida por várias etnias, a função pública era ocupada por caboverdianos, os comerciantes eram senegaleses e a religão dominante a muçulmana.
Portugueses europeus não os havia por lá.
O Uíge era um navio misto, de carga e de passageiros, construído na Bélgica em 1954 e abatido em 1978. O seu comprimento não chegava aos 150 metros. A sua arqueação bruta era de 10 mil toneladas. Armador: Companhia Colonial de Navegação, Lisboa. Velocidade de cruzeiro: 16 nós. Alojamentos para 4 passageiros em classe de luxo, 74 em primeira classe, 493 em classe turística, no total de 571 passageiros... Nº de tripulantes: 139. Na viagem que levou o Paulo Raposo até à Guiné, em finais de Julho de 1968, transportava dois batalhões, ou seja, cerca de 1200 homens.
N/M Uíge > Final de Julho de 1968 > A caminho de Bissau > "A alegria do regresso quase que compensa a tristeza da partida". O Paulo Raposo é o segundo a contra da esquerda.
© Paulo Raposo (2006)
III parte do testemunho do Paulo Raposo (ex- Alf Mil de Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70> Galomaro e Dulombi).
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 10-14
SANTA MARGARIDA
Após termos dado a instrução aos soldados em Abrantes, lá fomos para o grande campo de Santa Margarida para tirar o IAO, a Instrução de Adaptação Operacional.
Santa Margarida era, na realidade, parecida com aquilo que víamos nos filmes de cowboys. Uma avenida muito larga e comprida, com uma capela ao fundo. De um lado e de outro dessa larga avenida havia enormes quartéis de todos os ramos do Exército. Estavam lá os carros de combate, a Engenharia, a Infantaria, as Comunicações, o Estado Maior de Brigada, etc.
Continuando depois da capela, havia o grande campo de tiro para onde íamos fazer fogo real.
Passado o IAO tivemos duas semanas de férias, para nos despedirmos da família, antes de embarcarmos.
Era precisamente neste período de férias que muitos rapazes se aproveitavam do dinheiro recebido do subsídio de embarque, para fugirem.
Um país não se constrói com aqueles que têm por hábito fugir e na volta, habilmente, dão-lhe uma componente política para se justificarem, mais perante eles próprios que perante os outros. Só se tem autoridade para criticar depois do dever cumprido.
Sobre este tema deixo aqui uma história:O Comodoro Cunha Aragão era um assanhado oponente de Salazar. Era amigo de meu pai e visita de minha casa. Em 1960 estava a comandar o aviso Afonso de Albuquerque, quando a União Indiana desencadeia a acção militar contra Goa.
Quando surge a primeira salva de tiros proveniente dos navios indianos que deu origem à invasão de Goa, o Comodoro Cunha Aragão agarra nos retratos de Salazar e Tomaz, que estavam no navio, e, atirando-os borda fora, diz:
- Vamo-nos bater por Portugal, não por estes gajos.
Este gesto custou-lhe as estrelas de Almirante. Foi ferido em combate, foi vencido, mas foi um bravo.
Uma coisa é a Pátria, outra são os regimes. Uma coisa é a Alta Política e outra é a baixa política. Hoje não sabemos distinguir uma da outra.
O EMBARQUE
No final de Julho de 1968, no Cais de Conde de Óbidos, lá embarcámos no Uíge. Seguiram os BCAÇ 2851 e 2852.
A largada foi terrível. O barco a afastar-se do cais é muito doloroso para nós, com as carpideiras que para lá eram enviadas, para nos desmoralizarem ainda mais.
Depois do navio largar e passar S. Julião da Barra, fomos para o bar à espera que nos chamassem para o almoço.
O Major Branco, que comandava interinamente o nosso Batalhão, uma vez que o nosso Comandante, Ten. Cor. Pimentel Bastos já tinha seguido de avião, perguntou ao nosso Capitão:
- Embarcaram todos os rapazes?
O Capitão respondeu de imediato:
- Sim, sim, meu Comandante.
Ele sabia lá!
Em conversa, o Cap Medina, que comandava uma companhia do outro batalhão que seguiia connosco e estava a partir para a sua segunda comissão, disse algo de que nunca me esqueci:
- A alegria do regresso quase que compensa a tristeza da partida.
Na realidade foi bem assim.
Durante os cinco dias que se seguiram, o ambiente a bordo não podia ser o melhor. Conversávmos muito uns com os outros enquanto passeávamos ao longo do tombadilho.
O nosso espírito era unânime. De política, nada sabíamos. Sabíamos apenas que aquela ida para África era o preço que tínhamos de pagar para ter um lugar na sociedade. E se na na vida tínhamos de passar sacrifícios, então iríamos passá-los de uma assentada para o resto da vida.
A defesa do Ultramar para nós, naquela altura, era uma coisa que não nos dizia directamente respeito, nem nos apercebíamos que África era fonte de abastecimento das nossas matérias primas.
O que é que íamos defender na Guiné, território que estava rodeado de países francófonos ? A população estava dividida por várias etnias, a função pública era ocupada por caboverdianos, os comerciantes eram senegaleses e a religão dominante a muçulmana.
Portugueses europeus não os havia por lá.
Guiné 63/74 - P704: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)
Texto de Idálio Reis (CCAÇ 2317, 1968/69) que me chegou, via e-mail, através do Zé Teixeira:
Em plena Semana Santa, recebi um telefonema questionando-me sobre um certo itinerário pessoal vivido enquanto militar na Guiné. A interpelação, ainda que de uma voz que me era inteiramente estranha, em breve tomou uma empatia síntona que agradavelmente me era entusiasmante, e com a candura que se absorve em certos momentos, tentei então responder à imprevisibilidade surtida:
- Sim, sou eu, o Reis da CCAÇ 2317, que acompanhou desde sempre, do ajudar a nascer ao ver morrer (por abandono), algures na estrada/picada de Gadamael-Guilege(cruzamento)-Aldeia Formosa-Buba, um aquartelamento chamado Gandembel com uma anexa, a Ponte Balana.
E por solicitação, comprometi-me e vou escrever, do fundo do tempo, estórias daqui e doutros locais por onde passámos, como Guilege, Buba, Nova Lamego, Cansissé, etc, desde as mais suaves até às mais pungentes e dramáticas (o tombar de tantos companheiros mortos em pleno viço da vida, os gritos lancinantes dos feridos mais graves, o espectro da fome por falta de víveres, o sentimento do medo, o apego à vida,...).
Eis ainda os incontidos ecos de Gandembel que parecem continuar a ressoar tão fortemente e que todos os anos nos irmana em confraternização para os sentirmos porventura mais nossos, tão incontornáveis eles se assumem.
É obvio, que me entroso com incontido júbilo na Tertúlia. Apraz-me registar tal facto, para nesta primeira mensagem poder dar o meu testemunho de apreço aos que tiveram o lampejo de quererem congregar uns fora-nada e de lhes ofertar o privilégio dessa sublime manifestação tão transcendente quanto encantatória, que o recordar também é viver. Bem hajam!
Só alguns sumários dados pessoais. É isso, chamo-me Idálio Rodrigues Ferreira Reis, vivo onde nasci, num pequeno casario do concelho de Cantanhede, a meia dezena de quilómetros a poente da portagem da A1 em Mealhada. Apresto-me para entrar em fase de aposentação, para reencetar uma outra forma de estar na vida, em que me seduz pensar ir dispôr de todo o tempo para fazer o que melhor me aprouver. Até lá, não obsto que se disponibilize do meu endereço electrónico: idalio.reis@sapo.pt.
Um pequeno aditamento esclarecedor. A CCAÇ 2317 que pertencia ao BCaç 2835, esteve em comissão de soberania desde meados de Janeiro de 1968 até ao início de Dezembro de 1969. Foi comandada ab initio por um tal Capitão Barroso de Moura, que a abandonou a cerca de meio desse tempo com regresso ao Continente. Desde que deixou a Companhia, foi cidadão que jamais vi, ainda que saiba que já se reformou com a patente de tenente-general.
A tal passagem por Guilege, onde se encontrava a CART 1613, foi curta - de 20 de Março a 8 de Abril de 1968 - e serviu essencialmente como local de depósito de materiais destinados à construção de um aquartelamento junto ao célebre corredor de Guileje, por onde o PAIGC fazia passar grande parte dos seus reabastecimentos originários da ex-Guiné-Conacri.
Nesse lapso de tempo, várias colunas se fizeram desde Gadamael; numa missão de protecção, a 28 de Março, no cruzamento de Guilege, o meu grupo de combate num baptismo de fogo externo demasiado intenso (vimos militares não negros, porventura cubanos!), perdeu dois homens, a quem presto a minha sentida homenagem: Domingos Ferreira da Costa e Manuel Joaquim Meireles Ferreira.
Até à próxima. Que toda a Tertúlia desfrute de uma Páscoa muito feliz, com todos os seus.
Afectuosamente, Idálio Reis.
Em plena Semana Santa, recebi um telefonema questionando-me sobre um certo itinerário pessoal vivido enquanto militar na Guiné. A interpelação, ainda que de uma voz que me era inteiramente estranha, em breve tomou uma empatia síntona que agradavelmente me era entusiasmante, e com a candura que se absorve em certos momentos, tentei então responder à imprevisibilidade surtida:
- Sim, sou eu, o Reis da CCAÇ 2317, que acompanhou desde sempre, do ajudar a nascer ao ver morrer (por abandono), algures na estrada/picada de Gadamael-Guilege(cruzamento)-Aldeia Formosa-Buba, um aquartelamento chamado Gandembel com uma anexa, a Ponte Balana.
E por solicitação, comprometi-me e vou escrever, do fundo do tempo, estórias daqui e doutros locais por onde passámos, como Guilege, Buba, Nova Lamego, Cansissé, etc, desde as mais suaves até às mais pungentes e dramáticas (o tombar de tantos companheiros mortos em pleno viço da vida, os gritos lancinantes dos feridos mais graves, o espectro da fome por falta de víveres, o sentimento do medo, o apego à vida,...).
Eis ainda os incontidos ecos de Gandembel que parecem continuar a ressoar tão fortemente e que todos os anos nos irmana em confraternização para os sentirmos porventura mais nossos, tão incontornáveis eles se assumem.
É obvio, que me entroso com incontido júbilo na Tertúlia. Apraz-me registar tal facto, para nesta primeira mensagem poder dar o meu testemunho de apreço aos que tiveram o lampejo de quererem congregar uns fora-nada e de lhes ofertar o privilégio dessa sublime manifestação tão transcendente quanto encantatória, que o recordar também é viver. Bem hajam!
Só alguns sumários dados pessoais. É isso, chamo-me Idálio Rodrigues Ferreira Reis, vivo onde nasci, num pequeno casario do concelho de Cantanhede, a meia dezena de quilómetros a poente da portagem da A1 em Mealhada. Apresto-me para entrar em fase de aposentação, para reencetar uma outra forma de estar na vida, em que me seduz pensar ir dispôr de todo o tempo para fazer o que melhor me aprouver. Até lá, não obsto que se disponibilize do meu endereço electrónico: idalio.reis@sapo.pt.
Um pequeno aditamento esclarecedor. A CCAÇ 2317 que pertencia ao BCaç 2835, esteve em comissão de soberania desde meados de Janeiro de 1968 até ao início de Dezembro de 1969. Foi comandada ab initio por um tal Capitão Barroso de Moura, que a abandonou a cerca de meio desse tempo com regresso ao Continente. Desde que deixou a Companhia, foi cidadão que jamais vi, ainda que saiba que já se reformou com a patente de tenente-general.
A tal passagem por Guilege, onde se encontrava a CART 1613, foi curta - de 20 de Março a 8 de Abril de 1968 - e serviu essencialmente como local de depósito de materiais destinados à construção de um aquartelamento junto ao célebre corredor de Guileje, por onde o PAIGC fazia passar grande parte dos seus reabastecimentos originários da ex-Guiné-Conacri.
Nesse lapso de tempo, várias colunas se fizeram desde Gadamael; numa missão de protecção, a 28 de Março, no cruzamento de Guilege, o meu grupo de combate num baptismo de fogo externo demasiado intenso (vimos militares não negros, porventura cubanos!), perdeu dois homens, a quem presto a minha sentida homenagem: Domingos Ferreira da Costa e Manuel Joaquim Meireles Ferreira.
Até à próxima. Que toda a Tertúlia desfrute de uma Páscoa muito feliz, com todos os seus.
Afectuosamente, Idálio Reis.
terça-feira, 18 de abril de 2006
Guiné 63/74 - P703: Do Porto a Bissau (10): Os seis 'mosqueteiros' são foto da semana da ONG AD (Albano Costa)
Guiné-Bissau > Bissau > Instalações da AD- Acção para o Desenvolvimento > Parte do grupo (Manuel Costa, à esquerda; Marques Lopes, Hugo Costa e Armindo Pereira, à direita) junto com o Pepito, director da ONG (ao centro).
O Albano Costa mandou-me, no dia 14 de Abril de 2006, Sexta-feira Santa, às 20h49, estas imagens dos nossos mosqueteiros. Presumo que sejam ainda de Bissau. A sua chegada a Bissau foi notícia. Inclusive a sua visita à Rádio Comunitária Voz de Quelelé deu direito à foto da semana do sítio da AD - Acção para o Desenvolvimento, com a seguinte legenda:
"Chegou esta semana a Bissau a expedição de um grupo de 6 portugueses da cidade do Porto, 4 dos quais fizeram o serviço militar na Guiné-Bissau durante a guerra colonial (1963 a 1974). A amizade que os une a esta terra, levou-os a vir durante 2 semanas recordar locais onde viveram e conviver com antigos amigos em diferentes localidades do país: Quinhamel, Candjambari, Farim, Bafatá e Bambadinca. O Marques Lopes, o Xico Allen, o Marques Lopes, o Manuel Costa, a Inês e o Hugo estiveram na Rádio Comunitária de Quelélé e ainda irão visitar o antigo quartel de Guiledje e as extraordinárias e belas Matas de Cantanhez".
O Albano também me transmitiu a notícia de que o segundo grupo, que partiu de avião na 6ª feira passada, chegou bem e estava a instalar-se em Bissau (Casimiro e Ernesto, do Porto; António Almeida e José Clímaco Saagum, de Lisboa)...
Algumas dificuldades de alojamento foram prontamente resolvidas graças ao apoio local (nomeadamente do nosso camarada Paulo Salgado, cooperante, administrador hospitalar). Segundo os nossos camaradas, os preços na hotelaria, dentro e fora de Bissau, foram inflaccionados nos últimos anos.
Guiné-Bissau > Bissau > A Inês, divertidíssima, distribuindo balões. Ao fundo, o jipe do Xico Allen, o veterano destas expedições de amizade e de paz...
Guiné-Bissau > Bissau > O Hugo com um pequeno chimpanzé (?). Convenhamos que esta imagem não é politicamente correcta... Verifica-se que, tal como no nosso tempo de combatentes, animais como os macacos e os símios, nossos parentes classificadospelos zoólogos, tal como o Homo Sapiens Sapiens, na ordem dos Primatas, continuam a ser aprisionados e tratados como animais de estimação na Guiné-Bissau dos dias de hoje...
Guiné-Bissau > Bissau > À sombra do secular poilão... Na imagem, distingue-se o Marques Lopes e o Armindo (na primeira fila) e o Manuel Costa (de pé), rodeados de jovens locais.
Guiné-Bissau > Bissau > O Manuel Costa, num gesto ternurento, com uma jovem mãe e o seu bebé.
Créditos fotográficos:
© Albano Costa / Hugo Costa (2006)
O Albano Costa mandou-me, no dia 14 de Abril de 2006, Sexta-feira Santa, às 20h49, estas imagens dos nossos mosqueteiros. Presumo que sejam ainda de Bissau. A sua chegada a Bissau foi notícia. Inclusive a sua visita à Rádio Comunitária Voz de Quelelé deu direito à foto da semana do sítio da AD - Acção para o Desenvolvimento, com a seguinte legenda:
"Chegou esta semana a Bissau a expedição de um grupo de 6 portugueses da cidade do Porto, 4 dos quais fizeram o serviço militar na Guiné-Bissau durante a guerra colonial (1963 a 1974). A amizade que os une a esta terra, levou-os a vir durante 2 semanas recordar locais onde viveram e conviver com antigos amigos em diferentes localidades do país: Quinhamel, Candjambari, Farim, Bafatá e Bambadinca. O Marques Lopes, o Xico Allen, o Marques Lopes, o Manuel Costa, a Inês e o Hugo estiveram na Rádio Comunitária de Quelélé e ainda irão visitar o antigo quartel de Guiledje e as extraordinárias e belas Matas de Cantanhez".
O Albano também me transmitiu a notícia de que o segundo grupo, que partiu de avião na 6ª feira passada, chegou bem e estava a instalar-se em Bissau (Casimiro e Ernesto, do Porto; António Almeida e José Clímaco Saagum, de Lisboa)...
Algumas dificuldades de alojamento foram prontamente resolvidas graças ao apoio local (nomeadamente do nosso camarada Paulo Salgado, cooperante, administrador hospitalar). Segundo os nossos camaradas, os preços na hotelaria, dentro e fora de Bissau, foram inflaccionados nos últimos anos.
Guiné-Bissau > Bissau > A Inês, divertidíssima, distribuindo balões. Ao fundo, o jipe do Xico Allen, o veterano destas expedições de amizade e de paz...
Guiné-Bissau > Bissau > O Hugo com um pequeno chimpanzé (?). Convenhamos que esta imagem não é politicamente correcta... Verifica-se que, tal como no nosso tempo de combatentes, animais como os macacos e os símios, nossos parentes classificadospelos zoólogos, tal como o Homo Sapiens Sapiens, na ordem dos Primatas, continuam a ser aprisionados e tratados como animais de estimação na Guiné-Bissau dos dias de hoje...
Guiné-Bissau > Bissau > À sombra do secular poilão... Na imagem, distingue-se o Marques Lopes e o Armindo (na primeira fila) e o Manuel Costa (de pé), rodeados de jovens locais.
Guiné-Bissau > Bissau > O Manuel Costa, num gesto ternurento, com uma jovem mãe e o seu bebé.
Créditos fotográficos:
© Albano Costa / Hugo Costa (2006)
Guiné 63/74 - P702: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (2): Aspirante em Elvas, Tancos e Abrantes
O Paulo Enes Lage Raposo foi Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70> Galomaro e Dulombi).
Publica-se a II parte de O meu testemunho.
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 7-10 (1)
© Paulo Raposo (2006)
ELVAS
Passado este período sou enviado em Setembro para Elvas, para o B.C. 8, já graduado como Aspirante a Oficial miliciano.
Aí dei instrução a duas incorporações de soldados. Foi um trabalho gratificante mas duro, pôr rapazes, com os músculos viciados no trabalho manual do campo, a marchar e a manusear as armas.
Elvas era uma cidade bonita, e o quartel estava instalado num antigo convento, dentro das muralhas da cidade, junto à porta poente. Dali se avistava o Forte de Elvas, prisão militar para os desertores.
O forte não tinha água canalizada. Eram os reclusos que, diariamente, iam buscar água à fonte que ficava no exterior. O transporte da água era feito numas barricas que eram carregadas às costas. Houve muito boa gente que se ofereceu para pagar o custo da instalação de uma canalização.
Os reclusos, porém, sempre se recusaram pois era uma maneira de diariamente saírem das suas celas. Fui visitar o Forte uma vez, impressionou-me muito.
Como o nosso quartel era na cidade, a carreira de tiro estava bem fora das muralhas. Ai dávamos instrução de tiro aos soldados. Como se usavam munições reais, os procedimentos na carreira de tiro eram muito severos. Os soldados eram colocados em linha e a ordem carregavam as armas com as munições, apontavam e disparavam, ora deitados, ora em pé, para os alvos que estavam na barreira.
Todos estes procedimentos eram feitos a ordem de comando.
Um dia, depois de eu dar a ordem de fogo, um soldado roda, vira-se com a arma apontada para mim e, premindo o gatilho, diz:
- Meu Aspirante, a arma não dispara.
Nossa Senhora me salvou. A arma estava travada.
No fim de cada incorporação havia exercícios finais, que realizávamos no campo.
Os exercícios finais da primeira incorporação a que dei instrução em Elvas, coincidiram no mês de Dezembro. Fomos a pé desde Elvas até aos arredores de Sta. Eulália. Ai montámos o bivaque, nome que se dá à disposição das tendas pela sua forma geométrica.
Cada homem levava um pano de tenda. Cada tenda, ou bivaque, era montada por um grupo de três homens. Arranjavam-se duas estacas. Um pano de tenda fazia uma água, o segundo a água oposta e o terceiro pano fazia o fecho de um dos lados e cobria o chã. Os panos eram ligados por cordas que passavam pelos olhais.
A parte aberta ficava obviamente virada contra o vento. Naqueles três dias que dormimos no campo passei o maior frio da minha vida. De manhã as poçaas de agua estavam geladas.
No B.C. 8 fiz lá dois grandes amigos, ambos também Aspirantes. Um era o Sobreiro, a quem nunca mais vi, ew o outro o Baptista, do Porto, que embora tenha também seguido para a Guiné, nunca mais me cruzei com ele.
TANCOS
De Elvas segui para o Polígono de Tancos, para tirar a especialidade de Minas e Armadilhas. Aí passei um tempo agradável. As formalidades militares estavam reduzidas ao mínimo. A porta de Armas do Centro onde tínhamos instrução, costumava lá estar uma praça de vez em quando, não era sempre. Ali aprendi a manusear todos os tipos de explosivos e detonadores com o maior a vontade. Perdi o medo mas não o respeito àquele material.
Frequentemente visitávamos os nossos vizinhos paraquedistas, que nos recebiam sempre da melhor maneira. Várias vezes nos convidaram para saltar da Torre, mas não tiveram voluntarios.
ABRANTES
De Tancos segui para Abrantes, aonde fomos formar o nosso Batalhão [BCAÇ 2852].
A minha companhia era a 2405, comandada pelo Capitão miliciano Jerónimo, natural de Lourenço Marques. Quanto a Alferes havia o David e o Felício, para além de mim. Eram ambos de Coimbra e, como tinham andado nas greves estudantis, passaram por Lamego para tirarem o curso de operações especiais. Coitados, penaram bem por lá.
Por último o Alferes Rijo, que passou a ser o primeiro por questões de antiguidade (na tropa a antiguidade é um posto) e veio substituir um rapaz que deu baixa. Antes de começar a guerra já estava cansado.
Quanto a Furriéis havia-os de todas as proveniências, mas muito amigos. No que diz respeito aos soldados, eram na sua maioria Beirões, leais, sãos e generosos. Tínhamos ainda dois Sargentos.
O médico que mais tempo nos acompanhou, foi o Carlos Pereira Alves, hoje famoso cirurgião nos Capuchos. Era e é um grande amigo.
Por último tínhamos o capelão, o Padre Zé, que era da nossa idade. Costumávamos meter-nos com ele, por causa das revistas de toda a espécie que por lá apareciam. Nunca mais soube dele.
Ali começou a fase de adaptação de uns aos outros.
Uma companhia de caçadores é constituída por 4 grupos de combate. Cada grupo de combate era comandado por um Alferes e era dividido em três secções. Cada secção era constituída por 9 homens e comandada por um Furriel.
Quanto a armamento, cada homem tinha uma espingarda automática G3 e cada secção tinha uma arma pesada. A primeira secção tinha uma G3 com cano reforçado HK, a segunda secção tinha um morteiro 60 mm e a terceira secção tinha um cano de lançaamento de granadas de bazuca.
Veio-se a provar depois na Guiné, devido à densa vegetação, que a melhor de todas as armas era o dilagrama. O dilagrama era um sistema que se adaptou à G3. Colocava-se na G3 uma munição sem projéctil e no topo do tubo da arma colocava-se uma granada de mão apoiada num dispositivo.
O disparo fazia de catapulta que lançava a granada de mão a bem uns 30 metros e rebentava em cima do inimigo. Houve muitos acidentes fatais com este sistema (2) pois os soldados às vezes colocavam munições com projéctil e então a granada rebentava-lhes no tubo.
Os meus Furriéis eram o Ferreira, de Anadia, o Nogueira, de Soure, e o Tavares, de Pinhel. Eram os melhores.
Todos os anos nos vamos reunindo, somos como se fosse uma família. Os almoços que fazemos de confraternização duram quase sempre a tarde toda. À entrada colocamos uma caixa onde cada um põe o valor do almoço. Coloca-se o que se quiser, e se se quiser. Sobra sempre dinheiro. Não há gente como esta.
Cada ano aparece sempre mais um, por efeito de passa-palavra. Neste ano de 1997, o Baptista veio de Paris para estar presente ao almoço. Há alguns em França e na Alemanha.
Como o quartel de Abrantes não comportava com todos os rapazes, a mim e a alguns outros, deram-nos um subsídio de pernoita, e passámos a dormir na cidade.
Na cidade aluguei um quarto, na casa de uma senhora viúva, a meias com outro rapaz, também Aspirante, que já estava mobilizado para a Guiné.
Como a nossa vida no Quartel era dura, em virtude da instrução que estavámos a dar aos soldados, à noite, depois do jantar, era tiro e queda. Assim que púnhamos a cabeça na almofada não ouviamos mais nada.
Acontece porém que aquele rapaz com quem partilhava o quarto, tinha um dormir muito agitado. Como já estava mobilizado para a Guiné, todas as noites gritava como se já estivesse na guerra.
Passados três meses, depois de eu ter sido mobilizado, e ele já ter seguido para a Guiné, foi a minha vez de começar a ter noites agitadas, que duraram ate alguns anos após o meu regresso.
Era a rotina dos tempos de guerra.
____________
Notas de L.G.
(1) Vd post de 12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra
(2) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
(...) "Foi nessa altura que um dilagrama, ao ser descavilhado, rebentou à boca da arma, por deficiência da alavanca de segurança, tendo atingido o prisioneiro Malan Mané e o Soldado Iero Jau (2º Gr Comb) que o conduzia e que teve morte quase instantânea. Entretanto já tinham sido feridos o 1º Cabo Mateus (3º Cr Comb) com um tiro no joelho e dois picadores da milícia [do Xime]" (...).
Publica-se a II parte de O meu testemunho.
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 7-10 (1)
© Paulo Raposo (2006)
ELVAS
Passado este período sou enviado em Setembro para Elvas, para o B.C. 8, já graduado como Aspirante a Oficial miliciano.
Aí dei instrução a duas incorporações de soldados. Foi um trabalho gratificante mas duro, pôr rapazes, com os músculos viciados no trabalho manual do campo, a marchar e a manusear as armas.
Elvas era uma cidade bonita, e o quartel estava instalado num antigo convento, dentro das muralhas da cidade, junto à porta poente. Dali se avistava o Forte de Elvas, prisão militar para os desertores.
O forte não tinha água canalizada. Eram os reclusos que, diariamente, iam buscar água à fonte que ficava no exterior. O transporte da água era feito numas barricas que eram carregadas às costas. Houve muito boa gente que se ofereceu para pagar o custo da instalação de uma canalização.
Os reclusos, porém, sempre se recusaram pois era uma maneira de diariamente saírem das suas celas. Fui visitar o Forte uma vez, impressionou-me muito.
Como o nosso quartel era na cidade, a carreira de tiro estava bem fora das muralhas. Ai dávamos instrução de tiro aos soldados. Como se usavam munições reais, os procedimentos na carreira de tiro eram muito severos. Os soldados eram colocados em linha e a ordem carregavam as armas com as munições, apontavam e disparavam, ora deitados, ora em pé, para os alvos que estavam na barreira.
Todos estes procedimentos eram feitos a ordem de comando.
Um dia, depois de eu dar a ordem de fogo, um soldado roda, vira-se com a arma apontada para mim e, premindo o gatilho, diz:
- Meu Aspirante, a arma não dispara.
Nossa Senhora me salvou. A arma estava travada.
No fim de cada incorporação havia exercícios finais, que realizávamos no campo.
Os exercícios finais da primeira incorporação a que dei instrução em Elvas, coincidiram no mês de Dezembro. Fomos a pé desde Elvas até aos arredores de Sta. Eulália. Ai montámos o bivaque, nome que se dá à disposição das tendas pela sua forma geométrica.
Cada homem levava um pano de tenda. Cada tenda, ou bivaque, era montada por um grupo de três homens. Arranjavam-se duas estacas. Um pano de tenda fazia uma água, o segundo a água oposta e o terceiro pano fazia o fecho de um dos lados e cobria o chã. Os panos eram ligados por cordas que passavam pelos olhais.
A parte aberta ficava obviamente virada contra o vento. Naqueles três dias que dormimos no campo passei o maior frio da minha vida. De manhã as poçaas de agua estavam geladas.
No B.C. 8 fiz lá dois grandes amigos, ambos também Aspirantes. Um era o Sobreiro, a quem nunca mais vi, ew o outro o Baptista, do Porto, que embora tenha também seguido para a Guiné, nunca mais me cruzei com ele.
TANCOS
De Elvas segui para o Polígono de Tancos, para tirar a especialidade de Minas e Armadilhas. Aí passei um tempo agradável. As formalidades militares estavam reduzidas ao mínimo. A porta de Armas do Centro onde tínhamos instrução, costumava lá estar uma praça de vez em quando, não era sempre. Ali aprendi a manusear todos os tipos de explosivos e detonadores com o maior a vontade. Perdi o medo mas não o respeito àquele material.
Frequentemente visitávamos os nossos vizinhos paraquedistas, que nos recebiam sempre da melhor maneira. Várias vezes nos convidaram para saltar da Torre, mas não tiveram voluntarios.
ABRANTES
De Tancos segui para Abrantes, aonde fomos formar o nosso Batalhão [BCAÇ 2852].
A minha companhia era a 2405, comandada pelo Capitão miliciano Jerónimo, natural de Lourenço Marques. Quanto a Alferes havia o David e o Felício, para além de mim. Eram ambos de Coimbra e, como tinham andado nas greves estudantis, passaram por Lamego para tirarem o curso de operações especiais. Coitados, penaram bem por lá.
Por último o Alferes Rijo, que passou a ser o primeiro por questões de antiguidade (na tropa a antiguidade é um posto) e veio substituir um rapaz que deu baixa. Antes de começar a guerra já estava cansado.
Quanto a Furriéis havia-os de todas as proveniências, mas muito amigos. No que diz respeito aos soldados, eram na sua maioria Beirões, leais, sãos e generosos. Tínhamos ainda dois Sargentos.
O médico que mais tempo nos acompanhou, foi o Carlos Pereira Alves, hoje famoso cirurgião nos Capuchos. Era e é um grande amigo.
Por último tínhamos o capelão, o Padre Zé, que era da nossa idade. Costumávamos meter-nos com ele, por causa das revistas de toda a espécie que por lá apareciam. Nunca mais soube dele.
Ali começou a fase de adaptação de uns aos outros.
Uma companhia de caçadores é constituída por 4 grupos de combate. Cada grupo de combate era comandado por um Alferes e era dividido em três secções. Cada secção era constituída por 9 homens e comandada por um Furriel.
Quanto a armamento, cada homem tinha uma espingarda automática G3 e cada secção tinha uma arma pesada. A primeira secção tinha uma G3 com cano reforçado HK, a segunda secção tinha um morteiro 60 mm e a terceira secção tinha um cano de lançaamento de granadas de bazuca.
Veio-se a provar depois na Guiné, devido à densa vegetação, que a melhor de todas as armas era o dilagrama. O dilagrama era um sistema que se adaptou à G3. Colocava-se na G3 uma munição sem projéctil e no topo do tubo da arma colocava-se uma granada de mão apoiada num dispositivo.
O disparo fazia de catapulta que lançava a granada de mão a bem uns 30 metros e rebentava em cima do inimigo. Houve muitos acidentes fatais com este sistema (2) pois os soldados às vezes colocavam munições com projéctil e então a granada rebentava-lhes no tubo.
Os meus Furriéis eram o Ferreira, de Anadia, o Nogueira, de Soure, e o Tavares, de Pinhel. Eram os melhores.
Todos os anos nos vamos reunindo, somos como se fosse uma família. Os almoços que fazemos de confraternização duram quase sempre a tarde toda. À entrada colocamos uma caixa onde cada um põe o valor do almoço. Coloca-se o que se quiser, e se se quiser. Sobra sempre dinheiro. Não há gente como esta.
Cada ano aparece sempre mais um, por efeito de passa-palavra. Neste ano de 1997, o Baptista veio de Paris para estar presente ao almoço. Há alguns em França e na Alemanha.
Como o quartel de Abrantes não comportava com todos os rapazes, a mim e a alguns outros, deram-nos um subsídio de pernoita, e passámos a dormir na cidade.
Na cidade aluguei um quarto, na casa de uma senhora viúva, a meias com outro rapaz, também Aspirante, que já estava mobilizado para a Guiné.
Como a nossa vida no Quartel era dura, em virtude da instrução que estavámos a dar aos soldados, à noite, depois do jantar, era tiro e queda. Assim que púnhamos a cabeça na almofada não ouviamos mais nada.
Acontece porém que aquele rapaz com quem partilhava o quarto, tinha um dormir muito agitado. Como já estava mobilizado para a Guiné, todas as noites gritava como se já estivesse na guerra.
Passados três meses, depois de eu ter sido mobilizado, e ele já ter seguido para a Guiné, foi a minha vez de começar a ter noites agitadas, que duraram ate alguns anos após o meu regresso.
Era a rotina dos tempos de guerra.
____________
Notas de L.G.
(1) Vd post de 12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra
(2) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
(...) "Foi nessa altura que um dilagrama, ao ser descavilhado, rebentou à boca da arma, por deficiência da alavanca de segurança, tendo atingido o prisioneiro Malan Mané e o Soldado Iero Jau (2º Gr Comb) que o conduzia e que teve morte quase instantânea. Entretanto já tinham sido feridos o 1º Cabo Mateus (3º Cr Comb) com um tiro no joelho e dois picadores da milícia [do Xime]" (...).
Guiné 63/74 - P701: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)
Guiné > Região do Oio > Mansabá > Emblema da CART 2732 ( 1970/72)
© Carlos Vinhal (2006)
Texto de Carlos Vinhal (ex-furrel miliciano):
No dia 17 de Abril de 2006 faz 36 anos que a CART2732 desembarcou em Bissau. Assim, a jeito de homenagem aos valorosos militares que compunham a minha Companhia, elaborei uma breve história.
BREVE HISTÓRIA DA CART 2732
A CART2732 foi constituída em 23 de Fevereiro de 1970, tendo como Unidade Mobilizadora a BAG 2, sita no Pico de S. Martinho, no Funchal, Ilha da Madeira. A sua concentração fez-se na Posição Fortificada do Palheiro Ferreira, destacamento daquela Unidade.
A maior parte do seu pessoal era originário da Ilha da Madeira, com excepção dos Oficiais, Sargentos e Praças Especialistas.
Em 7 de Abril de 1970 a CART2732 recebeu o seu Estandarte.
No dia 13 de Abril realizou-se no Cais do Porto do Funchal a cerimónia de despedida da Companhia. Ao acto estiveram presentes o Governador do Distrito Autónomo do Funchal, Coronel Braancamp Sobral e o Comandante Militar da CTI da Madeira, Brigadeiro Nascimento.
A CART 2732, sob o comando interino do Alf Mil Art Manuel Casal, embarcou nesse mesmo dia, cerca das 12H00, no navio Ana Mafalda, que largou pouco depois com destino à Guiné. No cais ficou uma multidão de populares, familiares e amigos dos militares, que ali se deslocaram para assistirem à cerimónia de despedida, embarque e partida da Companhia.
A CART2732 desembarcou no cais de Bissau pelas 16H00 do dia 17 de Abril de 1970, ficando alojada em tendas de campanha no Depósito de Adidos.
Guiné > Região do Oio > Mansabá > Vista aérea do aquartelamento.
© Carlos Vinhal (2006)
No dia 20 de Abril realizou-se a parada de apresentação da Companhia ao Comandante-Chefe do CTI da Guiné, General António de Spínola.
Na manhã do dia seguinte, seguiu para Mansabá [entre Mansoa e Farim, na região do Oio], onde chegou cerca das 13H00 para render a CCAÇ 2403. Neste mesmo dia, Mansabá foi flagelada pelo IN com morteiro 82 e armas ligeiras, causando 16 feridos na população. Assim estava consumado o baptismo de fogo.
A CART 2732 ficou administrativa e operacionalmente dependente do BCAÇ 2885 sediado em Mansoa. Por sua vez a minha Companhia ficou com o Pel Caç Nat 57; o Pel Art 21; o Pel Mil 253; 1 Esquadra de Morteiros 81 e 2 AML Daimler, como adidos.
A minha Companhia ficou com uma ZA de aproximadamente 1036 Km2.
No dia 22 de Abrild e 1970 assumiu o Comando da CART 2732 o Capitão de Inf Carreto Maia, ex-comandante da CCAÇ 2403, em substituição do Capitão Prego Gamado que tinha dado baixa ao HMP [Hospital Militar Principal] antes do embarque no Funchal.
No dia 20 de Junho de 1970 a CART passou a ser comandada pelo Capitão de Art José Maria Belo para substituir o Capitão Carreto Maia que tinha terminado a sua Comissão de Serviço na Guiné.
Em Setembro de 1970 o Capitão José Maria Belo deu baixa ao HMP.
Em Outubro de 1970 assumiu o comando da Companhia o Capitão de Art Domingos Alberto Pinto Catalão que por sua vez baixou ao HM241 em Fevereiro, Março e Junho de 1971 . Em Agosto de 1971 foi evacuado definitivamente para o HMP.
Em 11 de Novembro de 1970 a CART 2732 deixou de pertencer ao BCAÇ 2885, passando a estar integrada no Comando Operacional n.º 6, reactivado pela necessidade da construção da estrada Mansabá-Farim. O COP6 ficou instalado em Mansabá e a CART apoiou, fornecendo todos os meios logísticos necessários à sua operacionalidade.
Em Outubro de 1971 assumiu o comando da CART o Capitão Mil Armando Vieira dos Santos Caeiro.
Na ausência de capitães, o comando da Companhia foi quase sempre assegurado pelo Alf Mil Art Manuel Casal.
Em 17 de Janeiro de 1973, a CART 2732 completou 21 meses de Comissão na Guiné. E em 21 desse mês, completou 21 meses de permanência em Mansabá.
No dia 8 de Fevereiro de 1972 começou a rendição pela CCAÇ 2753, pelo que 2 Gr Comb da CART2732 partiram para Bissau.
No dia 23 de Fevereiro os 2 últimos Gr Comb da CART deixaram Mansabá com destino a Bissau.
No dia 19 de4 Março de 1972, cerca das 18H00, um avião da FAP partiu do aeroporto de Bissau levando a bordo a CART2732 com destino a Lisboa, onde chegou cerca das 23H30. Os militares da Ilha da Madeira seguiram no dia seguinte para o Funchal.
É minha obrigação lembrar a memória daqueles que partiram do Funchal e que, por morrerem, não regressaram connosco. São eles:
- Alf.Mil.ºArt.ª MA Couto que em 6 de Outubro de 1970 foi vítima do rebentamento de 1 mina A/P;
- Soldado Malcata que em 16 de Maio de 1971 faleceu por motivo de doença;
- Soldado Silvestre que em 17 de Maio de 1971 faleceu por motivo de acidente;
- Soldado Vieira que em 6 de Dezembro de 1971 foi morto numa emboscada;
- e, por fim, Soldado Barbosa que foi ferido na mesma emboscada, acabando por morrer no HM 241 em 17 de Dezembro de 1971.
Por eles direi sempre PRESENTE.
Carlos Vinhal
Fonte: Companhia de Artilharia 2732. História da Unidade 1970-1971-1972.
Guiné 63/74 - P700: Tabanca Grande: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Quebo > 2005 > O Zé Teixeira de visita aos seus amigos de Aldeia Formosa (ou Quebo). (O Teixeira foi 1º cabo enfermeiro na CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
© José Teixeira (2006)
1. Texto de Antero Santos (ex-furriel miliciano da CCAÇ 3566 e da CCAÇ 18, 1972/74):
Por curiosidade fiz uma pesquisa sobre Aldeia Formosa e encontrei um conjunto de notícias sobre a Guiné e a Guerra Colonial. Não imaginava que pudesse encontrar tanta informação.
Cheguei à Guiné em 23 de Março de 1972 e fiz parte de CCAÇ 3566 - Os Metralhas [a mesma unidade a que pertenceu o Xico Allen, agora em digressão pela Guiné, juntamente com outros camaradas do Porto e de Lisboa]; a partir de 4 de Janeiro de 1973 e até ao fim da comissão passei a fazer parte da Companhia Africana CCAÇ 18 - Aldeia Formosa (Quebo para os africanos), tendo regressado [ à Metrópole] em 24 de Junho de 1974.
De momento pretendo somente acrescentar uma nota acerca do chefe religioso Cherno Rachid que também conheci pessoalmente: faleceu em 1973 (dentro de dias informo a data exacta) durante o período em que estive em Aldeia Formosa (1).
Na realidade o poder deste chefe religioso era enorme: a guerra parou para que um conjunto de autoridades religiosas dos países vizinhos se deslocasse a Aldeia Formosa para participar no seu funeral.
Antero Santos
Ex-furriel miliciano
2. Comentário de Luís Graça:
Saúdo o nosso camarada Antero e faço votos para que se junte, rapidamente, à nossa tertúlia de amigos e camaradas da Guiné. Na realidade, ele pode ser o ilustre representante de duas unidades de que ainda sabemos pouco: a CCAÇ 3566 (Os Metralhas) e a CCAÇ 18.
Por outro lado, ele pode dar-nos o testemunho da sua vivência dos dias passados em Aldeia Formosa e do seu conhecimento pessoal do Cherno Rachid, uma figura que era respeitada, segundo creio saber hoje, tanto pelas autoridades portuguesas como pelo PAIGC (Provavelmente o que escrevi sobre ele em 10 de Janeiro de 1970 não era inteiramente justo, podendo estar enviesado pelo meu parti-pris político-ideológico da época).
_____________
Nota de L.G.
(1) Vd post de 15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)
(...) "Excertos do diário de um tuga. L.G.
"Bambadinca. 10 de Janeiro de 1970:
"0 Cherno Rachid é a autoridade máxima do Islão na Guiné. De etnia futa-fula, vive em Aldeia Formosa [Quebo], rodeado duma auréola de lenda e santidade: a sua simples presença, asseguram os meus soldados, faz malograr qualquer ataque dos guerrilheiros àquela povoação onde aliás esta sediado um batalhão, e os seus mezinhos (amuletos ou talismãs) imunizam os homens-grandes, quer dizer, aqueles que praticam os preceitos do Alcorão, contra as balas do inimigo.
"0 ascendente que ele tem sobre a população islamizada da Guiné, confere uma dimensão política à sua personalidade de mauro (sábio). E o general Spínola reconhece-o, chegando ao ponto de ir expressamente a Aldeia Formosa para visitar o Cherno Rachid e consultá-lo sobre problemas que obviamente nada terão a ver com a exegese do Déftere (Alcorão).
"Pode dizer-se que ele é o chefe ideológico (e não apenas religioso e espiritual) da casta feudal que se aliou ao colonialismo português contra o movimento nacionalista de libertação.
"Tive hoje, aliás, a oportunidade de conhecer pessoalmente o Cherno Rachid e constatar o seu carisma e o poder de atracção que ele exerce sobre os africanos islamizados. Esteve vários dias em Bambadinca, de visita ao chão fula. Com avioneta ou helicóptero, às ordens, claro!
"Sentado numa esteira, de pernas trançadas, recebia nos seus aposentos privativos os fiéis que, descalços como na mesquita, o iam cumprimentar, trazendo-lhe presentes, sobretudo em dinheiro (às vezes mesmo somas importantes!) em troca duma oração, dum conselho ou dum objecto cabalístico.
"Como seria de esperar, o Cherno Rachid, acompanhado da sua comitiva de servos e discípulos, foi depois por seu turno apresentar cumprimentos às autoridades militares locais (comando do batalhão)... Noblesse oblige!" (...)
© José Teixeira (2006)
1. Texto de Antero Santos (ex-furriel miliciano da CCAÇ 3566 e da CCAÇ 18, 1972/74):
Por curiosidade fiz uma pesquisa sobre Aldeia Formosa e encontrei um conjunto de notícias sobre a Guiné e a Guerra Colonial. Não imaginava que pudesse encontrar tanta informação.
Cheguei à Guiné em 23 de Março de 1972 e fiz parte de CCAÇ 3566 - Os Metralhas [a mesma unidade a que pertenceu o Xico Allen, agora em digressão pela Guiné, juntamente com outros camaradas do Porto e de Lisboa]; a partir de 4 de Janeiro de 1973 e até ao fim da comissão passei a fazer parte da Companhia Africana CCAÇ 18 - Aldeia Formosa (Quebo para os africanos), tendo regressado [ à Metrópole] em 24 de Junho de 1974.
De momento pretendo somente acrescentar uma nota acerca do chefe religioso Cherno Rachid que também conheci pessoalmente: faleceu em 1973 (dentro de dias informo a data exacta) durante o período em que estive em Aldeia Formosa (1).
Na realidade o poder deste chefe religioso era enorme: a guerra parou para que um conjunto de autoridades religiosas dos países vizinhos se deslocasse a Aldeia Formosa para participar no seu funeral.
Antero Santos
Ex-furriel miliciano
2. Comentário de Luís Graça:
Saúdo o nosso camarada Antero e faço votos para que se junte, rapidamente, à nossa tertúlia de amigos e camaradas da Guiné. Na realidade, ele pode ser o ilustre representante de duas unidades de que ainda sabemos pouco: a CCAÇ 3566 (Os Metralhas) e a CCAÇ 18.
Por outro lado, ele pode dar-nos o testemunho da sua vivência dos dias passados em Aldeia Formosa e do seu conhecimento pessoal do Cherno Rachid, uma figura que era respeitada, segundo creio saber hoje, tanto pelas autoridades portuguesas como pelo PAIGC (Provavelmente o que escrevi sobre ele em 10 de Janeiro de 1970 não era inteiramente justo, podendo estar enviesado pelo meu parti-pris político-ideológico da época).
_____________
Nota de L.G.
(1) Vd post de 15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)
(...) "Excertos do diário de um tuga. L.G.
"Bambadinca. 10 de Janeiro de 1970:
"0 Cherno Rachid é a autoridade máxima do Islão na Guiné. De etnia futa-fula, vive em Aldeia Formosa [Quebo], rodeado duma auréola de lenda e santidade: a sua simples presença, asseguram os meus soldados, faz malograr qualquer ataque dos guerrilheiros àquela povoação onde aliás esta sediado um batalhão, e os seus mezinhos (amuletos ou talismãs) imunizam os homens-grandes, quer dizer, aqueles que praticam os preceitos do Alcorão, contra as balas do inimigo.
"0 ascendente que ele tem sobre a população islamizada da Guiné, confere uma dimensão política à sua personalidade de mauro (sábio). E o general Spínola reconhece-o, chegando ao ponto de ir expressamente a Aldeia Formosa para visitar o Cherno Rachid e consultá-lo sobre problemas que obviamente nada terão a ver com a exegese do Déftere (Alcorão).
"Pode dizer-se que ele é o chefe ideológico (e não apenas religioso e espiritual) da casta feudal que se aliou ao colonialismo português contra o movimento nacionalista de libertação.
"Tive hoje, aliás, a oportunidade de conhecer pessoalmente o Cherno Rachid e constatar o seu carisma e o poder de atracção que ele exerce sobre os africanos islamizados. Esteve vários dias em Bambadinca, de visita ao chão fula. Com avioneta ou helicóptero, às ordens, claro!
"Sentado numa esteira, de pernas trançadas, recebia nos seus aposentos privativos os fiéis que, descalços como na mesquita, o iam cumprimentar, trazendo-lhe presentes, sobretudo em dinheiro (às vezes mesmo somas importantes!) em troca duma oração, dum conselho ou dum objecto cabalístico.
"Como seria de esperar, o Cherno Rachid, acompanhado da sua comitiva de servos e discípulos, foi depois por seu turno apresentar cumprimentos às autoridades militares locais (comando do batalhão)... Noblesse oblige!" (...)
segunda-feira, 17 de abril de 2006
Guiné 63/74 - P699: Vamos apoiar a candidatura do Arquipélago de Bijagós a Património Natural e Cultural Mundial (Pepito)
Cartaz da exposição Arquipélago dos Bijagós, um património a preservar (Lisboa, Abril-Junho de 2006)
Fonte: CIDAC - Centro de Intervenção o para o Desenvolvimento Amílcar Cabral (2006)
1. Uma sugestão do Pepito, membro da nossa tertúlia e director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento (ONG com sede no Bairro de Quelelé, Bissau):
Para os que tenham possibilidade de visitar, segue informação da Exposição “Arquipélago dos Bijagós, um património a preservar”, que terá lugar entre 22 de Abril e 30 de Junho próximos em Lisboa, no Museu Nacional de História Natural.
Trata-se de uma iniciativa conjunta do CIDAC, Instituto Marquês de Valle Flor, Museu Nacional de História Natural e Associação dos Estudantes Guineenses em Portugal.
Esta exposição esteve já patente em Paris no ano passado (no Palais de la Porte Dorée), tendo tido grande sucesso. A informação que vos passo está acessível no site do CIDAC.
O objectivo é a classificação do Arquipélago dos Bijagós em Sítio de Património Natural e Cultural Mundial (UNESCO).
Vale a pena visitar, divulgar e apoiar!!!
2. Comentário de L.G.:
Eu sou o primeiro da nossa tertúlia de amigos e camaradas da Guiné a subscrever esta sugestão do Pepito. Não conheço os Bijagós mas tenho suficiente informação para perceber a importância da sua riqueza, em termos da sua biodiversidade e do seu património cultural, para os guineenses e para o resto da humanidade. Retomo aqui o essencial dos argumentos aduzidos na página do CIDAC:
(i) O Arquipélago dos Bijagós (onde alguns de nós já passaram férias: ainda há dias estive, na Madalena, com o Albano Costa e a Zélia, mulher do Xico Allen e mãe da Inês, a ver fotos do Arquipélago nos anos 90) é o único arquipélago da costa ocidental africana;
(ii) É composto por oitenta e oito ilhas espalhadas numa superfície de dez mil km2;
destas ilhas, apenas uma vintena estão sistematicamente ocupadas; das restantes h´
há algumas que são objecto de ocupação sazonal enquanto outras são lugares considerados sagrados pelo povo bijagó;
(iii) Com cerca de 30 mil habitantes, maioritariamente composta pela etnia que dá o nome à ilha, o arquipélago dos Bijagós possui uma riqueza excepcional, do pontod e vista do património natural e cultural;
(iv) Depois da independência, e sobretudo nos últimos vinte anos, o arquipélago tem vindo a sofrer fortes pressões exógenas, devido às suas potencialidades económicas em termos de recursos piscatórios, agrícolas e turísticos;
(v) As interferências do exterior não têm tido impacto positivo na vida dos Bijagós, afectando negativamente o sistema sócio-ecológico das ilhas;
(vi) Conscientes deste perigo, diversas instituições nacionais e internacionais uniram esforços com vista à salvaguarda do património natural e cultural dos Bijagós;
(vii) Estas acções passaram pela realização de importantes trabalhos científicos, nomeadamente a elaboração de uma cartografia completa do Arquipélago e a criação de uma Reserva de Biosfera, no âmbito de um programa da UNESCO;
(viii) Foram criados em 2000 dois grandes Parques Nacionais para uma maior protecção da biodiversidade (hipopótamos, tartarugas, manatins, etc.)
(ix) Dois conceituados fotógrafos profissionais, Jean François Hellio e Nicolas Van Ingen, passaram dois meses com os Bijagós em dois períodos do ano (estação seca e estação das chuvas);
(x) No Museu Nacional de História Natural, em Lisboa, está patente ao público a selecção dos trabalhos desses fotógrafos, assim como de objectos representativos do modo de vida dos bijagós.
Fonte: CIDAC - Centro de Intervenção o para o Desenvolvimento Amílcar Cabral (2006)
1. Uma sugestão do Pepito, membro da nossa tertúlia e director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento (ONG com sede no Bairro de Quelelé, Bissau):
Para os que tenham possibilidade de visitar, segue informação da Exposição “Arquipélago dos Bijagós, um património a preservar”, que terá lugar entre 22 de Abril e 30 de Junho próximos em Lisboa, no Museu Nacional de História Natural.
Trata-se de uma iniciativa conjunta do CIDAC, Instituto Marquês de Valle Flor, Museu Nacional de História Natural e Associação dos Estudantes Guineenses em Portugal.
Esta exposição esteve já patente em Paris no ano passado (no Palais de la Porte Dorée), tendo tido grande sucesso. A informação que vos passo está acessível no site do CIDAC.
O objectivo é a classificação do Arquipélago dos Bijagós em Sítio de Património Natural e Cultural Mundial (UNESCO).
Vale a pena visitar, divulgar e apoiar!!!
2. Comentário de L.G.:
Eu sou o primeiro da nossa tertúlia de amigos e camaradas da Guiné a subscrever esta sugestão do Pepito. Não conheço os Bijagós mas tenho suficiente informação para perceber a importância da sua riqueza, em termos da sua biodiversidade e do seu património cultural, para os guineenses e para o resto da humanidade. Retomo aqui o essencial dos argumentos aduzidos na página do CIDAC:
(i) O Arquipélago dos Bijagós (onde alguns de nós já passaram férias: ainda há dias estive, na Madalena, com o Albano Costa e a Zélia, mulher do Xico Allen e mãe da Inês, a ver fotos do Arquipélago nos anos 90) é o único arquipélago da costa ocidental africana;
(ii) É composto por oitenta e oito ilhas espalhadas numa superfície de dez mil km2;
destas ilhas, apenas uma vintena estão sistematicamente ocupadas; das restantes h´
há algumas que são objecto de ocupação sazonal enquanto outras são lugares considerados sagrados pelo povo bijagó;
(iii) Com cerca de 30 mil habitantes, maioritariamente composta pela etnia que dá o nome à ilha, o arquipélago dos Bijagós possui uma riqueza excepcional, do pontod e vista do património natural e cultural;
(iv) Depois da independência, e sobretudo nos últimos vinte anos, o arquipélago tem vindo a sofrer fortes pressões exógenas, devido às suas potencialidades económicas em termos de recursos piscatórios, agrícolas e turísticos;
(v) As interferências do exterior não têm tido impacto positivo na vida dos Bijagós, afectando negativamente o sistema sócio-ecológico das ilhas;
(vi) Conscientes deste perigo, diversas instituições nacionais e internacionais uniram esforços com vista à salvaguarda do património natural e cultural dos Bijagós;
(vii) Estas acções passaram pela realização de importantes trabalhos científicos, nomeadamente a elaboração de uma cartografia completa do Arquipélago e a criação de uma Reserva de Biosfera, no âmbito de um programa da UNESCO;
(viii) Foram criados em 2000 dois grandes Parques Nacionais para uma maior protecção da biodiversidade (hipopótamos, tartarugas, manatins, etc.)
(ix) Dois conceituados fotógrafos profissionais, Jean François Hellio e Nicolas Van Ingen, passaram dois meses com os Bijagós em dois períodos do ano (estação seca e estação das chuvas);
(x) No Museu Nacional de História Natural, em Lisboa, está patente ao público a selecção dos trabalhos desses fotógrafos, assim como de objectos representativos do modo de vida dos bijagós.
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