Foto:© A. Marques Lopes (2006). Direitos reservados.
Texto de um novo tertuliano, o Joaquim Luís Mendes Gomes, com quem falei ontem pelo telefone, e que a partir de agora vai começar a contar-nos as suas memórias de canário de caqui amarelo. O Mendes Gomes foi Alf Mil da CCAÇ 728 (Catió, 1964/66), companhia de intervenção com o nome de guerra Os Palmeirins. Em termos de antiguidade, reportada ao período à Guiné, passa a ser um dos nossos veteranos, a par do Mário Dias e de poucos mais. Fico a aguardr que ele me mande algumas imagens desse tempo, incluindo o emblema de Os Palmeirins. Independentemente disso, vamos recebê-lo de braços abertos na nossa caserna virtual... Sê bem-vindo, grande Palmeirim de Catió! (Ele hoje vive entre Lisboa e Aveiro, reformado de uma instituição bancária, a cujos serviços jurídicos pertencia, como advogado). (LG)
Caro Luís Graça,
Há uns meses descobri, por mero e feliz acaso, o teu Blogue. Muito rico. Em todas as várias facetas. As do homem e as do tertuliano. Fiquei preso. Pela qualidade e pelo interesse que despertam. Para além do mais, sobretudo a quem andou pelas bolanhas da Guiné, há umas dezenas de anos.
Fiquei à espera que aparecesse alguém pertencente às comissões anteriores às dos Periquitos, os que, entusiasmadamente, têm vindo a participar. Mas, dos Canários, os velhos de caqui amarelo, não vi ninguém. À parte as alusões, muito controversas, sobre a famosa guerra da Ilha do Como, das tropas que lá estiveram, antes, desde 63 a 68, os de caqui amarelo, eu nada vi. Talvez os mais desiludidos ou...já perderam o pio ? Bom tema para um sociólogo...
Coube-me permanecer, no Cachil, melhor dizendo, incubar no ventre da CCAÇ 728, uns nove meses, logo a seguir à famigerada companhia 555 (ou 556?) aquela que ali ficara, jazente, no rescaldo da tal batalha na ilha do Como (1)
Depois é que foi pior. Foi o parto da Companhia. Vieram uns 13 ou 14 meses, Companhia de intervenção, em Catió.
E tivemos a dita de, em todas as operações que fizemos, termos sido ajudados e aliviados por um pelotão de indígenas, comandados pelo valoroso e destemido capitão João Bacar Jaló. A minha Companhia, a CCAÇ 728, conheceu-o, de perto e muito bem. Daí que, o meu testemunho seja totalmente avesso, nem imagino que tenha sido possível, aquela pessoa tornar-se no que se disse dele aqui no Blogue. Por mim, rendo-lhe a mais viva e sincera admiração e homenagem.
Apesar de tudo, de 63 a 66, a guerra, para sorte nossa, convenhamos, ainda era uma criança...A superioridade bélica pendia para o nosso lado. Quando zarpámos para Lisboa, pareciam bem negros os tempos que estavam para vir...e assim foi.
Por isso, este é o modesto contributo de um combatente da Guiné, um canário de caqui amarelo, nos anos 64-66. É a minha perspectiva pessoal e muito restrita. Feita de memória, e por isso, sem pretensões de exactidão histórica.
A primeira parte sai dum texto romanesco, em que quero homenagear a memória do meu camarada alferes Mário Sasso.
A segunda é extraída duma rudimentar autobiografia, que eu já tinha escrevinhado para os meus netos.
Aqui to deixo com os meus parabéns, um abraço de amizade e admiração.
Mendes Gomes
Primeira Parte > 1.1. A origem do nome da Companhia de Caçadores 728: os Palmeirins
Os Palmeirins foi o nome de guerra que a Companhia de Caçadores 728 aprovou e aplaudiu, perfilada no sítio habitual do quartel da Ilha do Como, diante do comandante.
Cerca de 200 homens, na flor da juventude, a maioria, alentejanos, alguns beirões e uns minhotos, viviam, ali, dentro das 4 paliçadas, que formavam o quartel em quadrilátero, com uns duzentos metros por duzentos, em toros de palmeira, ao alto, carcomidos pelos 2 anos de exposição ao rigor tropical dos elementos, já quase reduzidos à carcaça exterior.
Serviam mais de confortável albergue às possantes ratazanas que giravam abundantes, à vista e céu aberto e de cortina, muito frágil, p´ra tapar as vistas, do que de desejado fortim protector para a metralha que, a qualquer hora, poderia chover, grossa e medonha, a partir das matas espessas, lá ao fundo.
A companhia já ia, quase, no final do primeiro ano da comissão. Era preciso arranjar-lhe um nome de guerra, como tinham as mais antigas. Deveria ser um nome que, por si, sugerisse ou tivesse alguma coisa a ver com a companhia, em concreto.
O capitão Silva lançara o repto, de um modo especial, aos 18 sargentos e 5 alferes, como era de esperar. Era pena. Mas, nos demais, ainda havia muitos analfabetos.
Ao fim de uns dias, o comandante do 2º pelotão, o alferes Mendes Gomes, por sinal e feitio, o alferes que já se tinha revelado mais virado para essas questões, - passava a maior parte do tempo livre, a mexer e remexer livros, de história, literatura ou de direito, tinha andado no seminário até muito perto do fim, dera aulas de português aos voluntários, da companhia - apresentou ao capitão o nome de Palmeirins...
O capitão riu…Nem sim, nem não… E ficou à espera da explicação. Nunca tinha ouvido falar na novela de cavalaria do Palmeirim de Inglaterra, famosa, pelo menos, para quem tenha estudado história da literatura portuguesa. Conta a história de uma figura da cavalaria inglesa na Idade Média, semelhante ao nosso lendário, herói e aguerrido cavaleiro, Nuno Álvares Pereira.
Esta relação histórica com o herói de Aljubarrota e a conotação natural da companhia com o mundo das palmeiras, omnipresentes, transformadas na matéria-prima por excelência para tudo que era essencial à segurança e ao conforto, conquistou, logo, a simpatia do comandante, dos alferes e dos sargentos.
- Vamos reunir a companhia, a ver o que eles pensam. Palmeirins é um nome que até soa bem ao ouvido, acrescentou.
Momentos depois de acabar o bem conhecido toque de corneta, os duzentos homens, tresmalhados pelo universo variado daquele mundo, pequeno mas completo, começaram a formar a companhia, em tronco nú e de chicatas de esponja, nos pés - o traje habitual que se imponha a toda a gente- , apreensivos com o motivo daquele toque inesperado.
Chegou o último soldado, - era sempre o mesmo, o castiço e pacholas soldado Maria, parecia um pouco atrasado da bola, mas não, era assim mesmo, um ensonso, com a sua regra muito pessoal e sem remédio, por mais que o comandante o repreendesse.
- Ó meu comandante, eu estava a dar de cadeiras quando ouvi o toque a corneta…e não podia…- atalhou ele com a habitual inocência.
Uma gargalhada geral. Agora toda a gente sabia o que era isso de dar de cadeiras…como se dizia no Alentejo…
E o Capitão começou a falar:
- Meus senhores. A nossa companhia já não é maçarica. Também não é velhadas…Ainda vai ter de aguentar mais uns anitos, por estas bandas…
Ouviu-se um urro geral, respeitoso, em uníssono, saído daqueles pulmões bem puxados e bravios…
- Anos?… Nunca. Só uns mesitos. Sim… - gritou um dos mais atrevidos, como os há sempre.
E o capitão continuou. Todas as companhias precisam de um nome de guerra, em vez do número que lhe deram.
- 728 é lá para os mangas da CCS (Os serviços administrativos)
- É verdade - acrescentou alguém, lá do meio.
Aqui, o nosso alferes Mendes Gomes pensou num nome que me parece bem. Vamos ver o que é que vós pensais dele. Ele vai explicar.
- Então qual é?… - gritou um dos tais que nunca conseguem conter-se.
O alferes Mendes Gomes avançou para a frente da companhia, postada, de olhos arregalados e orelhas arrebitadas…
- O nome que encontrei é OS PALMEIRINS.
Uma risada geral, entrecortada de um nervoso miudinho, logo interrompida, para ouvirem bem a explicação. O nome soava bem mas não lhes dizia nada. Ainda se fosse o nome de algum animal feroz, de meter medo ou respeito a toda a gente… Os Leões…Os Lacraus…Os Panteras…
- Palmeirins, que é isso?…Deve ter alguma coisa a ver com palmeiras, mas mais nada… - Foram as interrogações que o alferes começou a avançar como sendo as que lhes estava a ler na cara deles.
Começou então a contar os traços essenciais da época famosa da cavalaria, nos tempos recuados da Idade Média, em todos os países da Europa e, principalmente, na Inglaterra e Portugal .
Citou o exemplo conhecido da maioria, apesar dos muitos analfabetos que havia, do nosso D. Nuno Álvares Pereira, o vencedor da Batalha de Aljubarrota. Via-se que as coisas já estavam a ganhar algum sentido.
Pois bem, quem estudou a História da Literatura Portuguesa, ouviu falar dum romance famoso que conta história de um guerreiro inglês, chamado O Palmeirim de Inglaterra. Foi um livro tão famoso e lido pelas pessoas daquele tempo, como agora se lê a história do Tio Patinhas (1)…
De novo, uma gargalhada rebentou. Bom sinal…
Esse Palmeirim era um guerreiro terrível para conquistar castelos. Nem um só lhe resistiu. O simples boato de que o Palmeirim e o seu pelotão de cavaleiros andavam, por perto, era o bastante para toda a gente fugir dos campos e aldeias e se fechar a sete chaves nas muralhas do castelo, até a onda de terror passar.
- Era um gajo fodido, meu alferes.
E avançou, inesperadamente, de forma interrogativa e a resumir, bem à sua moda, aquela lengalenga duma cavalaria, atrasada, movida a fardos de palha que já não dizia nada a ninguém - um dos habituais soldados, desavergonhados, mas com a malandrice toda deste mundo metida na cabeça.
O alferes, que ainda continuava a ser, um tanto, púdico, demais para a maioria, apenas esboçou um ligeiro sorriso, o bastante para se peceber o seu acordo, parcial e continuou a descrever as virtudes daquele energúmeno, inglês, na tentativa de conquistar não só a simpatia como a admiração e orgulho do novo patrono de guerra…
Diga-se que sentiu medo de o não vir a conseguir e, no seu íntimo, chegou a arrepender-se de o ter indicado. Mas quando se lembrou, sentiu tanta alegria e certeza que nunca imaginaria que não fosse aceite. Se o não fosse, seria porque não tinha sido capaz de o apresentar à rapaziada.
- O capitão gostou logo - lembrou-se, de si para si, num esforço íntimo de se mostrar mais convincente.
De repente, uma salva de palmas irrompeu inesperada e estrepitosa. Estava consagrado o acordo de toda a gente. Nem era preciso mais histórias.
Que alívio invadiu o alferes Mendes Gomes, já quase a esgotar as ligeiras recordações que ainda se encontravam na memória. Não tinha ali um só livro de literatura, onde pudesse ir beber qualquer coisinha.
Pronto. Agora, havia que desenhar o emblema para a bandeira dos Palmeirins.
Desenho, isso, já não era para a sua mão pesada e cegueta… Alguém haveria de arranjar um desenho. E arranjaram. A tempo de o nosso famoso Primeiro Sargento, de carreira, levar consigo, para mandar fazer na metrópole, quando fosse de férias…em Julho seguinte.
Um fundo preto. Duas palmeiras, feras, altas e esguias, ao centro de um quadrilátero em movimento . Uns traços sugestivos, a amarelo e vermelho e ali estava o futuro símbolo daqueles guerreiros, com muito sangue na guelra, mas que, - a verdade é para se dizer- ainda não tinham tido o seu baptismo de fogo !…
Mais uns tempos e já era corrente o uso fraternal de palmeirim, no trato
matinal e saudação de cada novo encontro dentro da companhia.
A ideia do alferes fora um sucesso.
__________
Notas de L.G.
(1) Sobre esta região e sobre a Batalha da Ilha do Como, vd. posts de:
17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964) (Carlos Fortunato / Mário Dias)
15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXX: Histórias do Como (Mário Dias)
15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)
17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)
15 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)
(2) Palmeirim de Inglaterra é uma narrariva ou uma novela, tardia, de cavalaria escrita em 1567 por Francisco de Morais, sob a inspiração do famoso Amadis de Gaula (Séc. XIV)... Era uma género popular na Baixa Idade Média mas que chegou inclusive aos inícios do Séc. XVII... Em 1604, foi publicada a Crónica de Palmeirim de Inglaterra, da autoria de Diogo Fernandes .
Vd. a publicação da Fundação Calouste Gulbenkian, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVI, HALP nº 26. Lisboa: FCG. 2003. (Disponível formato.pdf).
Vd. ainda artigo, disponível na Net, de Jorge A. Osório - Um 'género' menosprezado: a narrativa de cavalaria do Séc. XVI. Mathésis.10.2000.9-34.