1. Mensagem do
Cherno Baldé, com data de 31 de Julho de 2009:
Amigo Luís e toda a equipa de editores da Tabanca Grande,
Como poderão notar no conteúdo das últimas estórias, embora tenha mantido a linha cronológica, estou a encurtar e a correr mais rápido do que previa, porque notei pelas reacções que o período pós-independência suscita maior curiosidade/interesse aos visitantes do blogue.
Acontece que falar desse período não é só doloroso como problemático [vd. ponto 2], pois é uma faca de dois gumes em relação ao qual, quer queiramos quer não, na minha opinião, a MAIOR responsabilidade cabe a Portugal e aos portugueses mesmo se não o quiserem assumir. Já estão a ver onde quero chegar?
Os acontecimentos que se seguiram ao 25 de Abril, não podem desculpar o abandono dos aliados nas mãos dos antigos inimigos. Houve acordos que foram assinados e que não acautelaram nem os interesses nem as vidas daqueles que foram utilizados como carne para canhão, e mais, constatamos mais tarde que os nossos pais, tios e irmãos, à semelhança dos nossos avós no passado (Sec XIX / XX) que defenderam a bandeira portuguesa sem condições e sem contrapartidas, na condição de aliados e milícias de autodefesa, não pertenciam ao corpo do exército português e como tal nem merecem constar na lista daqueles que morreram na guerra.
Quando foi publicada aquela lista dos que tombaram no Jornal Expresso, em 1994, estava eu em Lisboa na altura e tinha constatado, não sem uma grande mágoa e decepção, que os nossos familiares, como o Capitão de milícias Guela Baldé e o Alferes Abdulai Balde, para so citar estes, heroicamente mortos em combate na secção de Cambaju, nem constavam da lista.
Na medida do possível, tentarei dar minha contribuição, sempre no mesmo estilo mais ou menos neutral e equidistante, sem pretender ser o dono da verdade absoluta. Não penso que tenha havido uma conspiração, na minha opinião, foi tudo muito claro desde o princípio. O objectivo principal era neutralizar as possibilidades de qualquer revolta ou tentativa de organizar uma resistência entre os fulas, ingénuos aliados das forças da ocupação. E nisso foram eficientes.
Os portugueses, muito mesquinhos (a expressão não é minha mas do historiador René Pélissier), sempre a poupar e a poupar-se, enfrentavam as situações de guerra na lógica da razoabilidade, da racionalidade e de algum humanismo, tentanto conquistar as pessoas para a sua causa (eu assisti a uma cena com um prisioneiro cubano, negro e uns 2 metros de altura, que se dizia ter-se entregue, a comer na messe/mesa dos oficiais em Fajonquito).
Para atingir esse mesmo objectivo político de dominação e de sujeição, o PAIGC utilizou as armas que melhor sabia utilizar: As prisões na calada da noite, os fuzilamentos públicos e o terror colectivo. Dito isso, põe-se a questão de saber: Seria diferente se os vencedores fossem os fulas e os seus aliados ?...
De notar, todavia, que essas represálias não atingiram as crianças e os mais jovens entre os fulas que foram mobilizados e encorporados no ensino público gratuito. Essas boas intenções, que duraram muito pouco tempo como todas as boas intenções do mundo, foi o maior, se não o único feito digno de menção do PAIGC e do período pós-independência.
Graças a essa euforia política colectiva e mobilização de jovens, hoje o pais possui mais de um milhar de jovens quadros de diferentes grupos étnicos, mesmo se a sua utilização e enquadramento não foram equacionados devidamente e os resultados não são tão visíveis no desempenho económico e político do país. Por isso, na minha opinião, não se pode afirmar que houve uma conspiração contra os fulas.
O balanco é + negativo ou + positivo? O PAIGC devia e podia fazer melhor?... Sem dúvida que sim. E os portugueses dentro de tudo isso?... A históoria se encarregará de responder, um dia. Eu não quero incriminar ninguém mas darei o meu testemunho, sem partidos.
As palmas que já bati no passado para os soldados portugueses nas suas paradas de ronco e para o PAIGC durante os seus infindáveis discursos e meetings já chegam, agora quero pensar com a minha cabeça. Tenho mais ou menos 50 anos e nessa idade devo ter medo de quem?...
Juntamente envio mais uma parte das minhas habituais crónicas.
Um forte abraço deste irmãozinho de Fajonquito, Cherno A. Baldé
2. Mensagem anterior, de 27/7/09, do editor L.G.:
Muito, muito obrigado... Já publiquei tudo... Com mais uns textos, poderíamos publicar um livro... E até, por que não, trazer-te a Lisboa...para o lançamento... Posso fazer-te uma sugestão ? Que nos fales dos tempos, difíceis, que foram, para os fulas, o 25 de Abril de 1974, a transferência de poder, as primeiras perseguições, os primeiros julgamentos revolucionários, as execuções públicas, em 1974/75...
Eu sei que isto é muito delicado e doloroso, é preciso ainda muito tacto político... Mas um dia os teus filhos e netos vão querer saber... Achas que os guineenses ainda são todos "vítimas e cúmplices" desta "conspiração de silêncio" ?
Pensa também na tua posição profissional e social... Não queremos de modo algum que isso te venha prejudicar, a ti ou à tua família... Mas depois da morte do 'Nino', ainda há tabus na sociedade guineense, relativamente à luta de libertação e à independência ? ...
Mas também podes falar da partida dos tugas, de Fajonquito (termo que nunca usas... porquê ?). Ou da tua ida para Bissau, estudar.. Ou da tua "escolinha" em Fajonquito dos teus livros e cadernos, dos teus professores: o lias, o que sabias de Lisboa, de Portugal, dos portugueses europeus... etc.
Recebe um abraço deste irmão, amigo e admirador, Luís Graça
3. Comentário do editor L.G. ao poste P4747 (*):
Como se percebe pelas crónicas do Cherno Baldé, a sociedade fula é(era) muitíssomo mais complexa e estratificada do que os militares portugueses tendiam a imaginar...
O Cherno abre-nos a janela para dois mundos, o dos nossos quartéis, o da máquina de guerra, visto pelos olhos de uma criança, o Chico; e o próprio grupo étnico-linguístico, a comunidade a que ele pertencia, pelo nascimento, a educação, a religião, a história...
Ele é fula e acima de tudo, é um, fula-forro, não é um fula-preto... Quem de nós, na época, se preocupava com estas subtilezas sócio-antropológicas e sobretudo procurava não se comportar como um "ocupante" e sobretudo um "eurocêntrico" ?
Vejo nas memórias do Cherno Baldé também um sinal de amizade, de tentativa, intelectualmente honesta e franca, de nos dizer, quarenta anos depois, que os fulas eram fulas, africanos, leais e dedicados aos portugueses q.b...
Mas... que nunca poderiam ser inteiramente "assimilidados" e integrados na cultura portuguesa, cristão, ocidental...
Temos uma dívida de gratidão para com os fulas, 'nossos aliados' (leia-se: das autoridades portuguesas da época, políticas e militares, que eram as de um governo cuja legitimidade democrática eu pessoalmente contestava...).
Temos inclusive uma dívida de sangue para com os nossos antigos camaradas fulas (Os militares da 'minha' CCAÇ 12 eram fulas; não sou capaz de os tratar como mercenários...).
Aliás, não me interessam os fulas, como um todo, mas as pessoas, os guineenses, que têm um rosto, uma identidade, uma história, independentemente do seu 'bilhete de identidade' (biológica, étnica, geográfica, social, etc.).
De qualquer modo, o Cherno Baldé ajuda-nos a ler, de uma maneira integrada, mais subtil e mais rica, a realidade do nosso quotidiano na guerra da Guiné, incluindo as relações com a população local e nomeadamente com a população feminina... Adorei essa das lavadeiras, as "lava-tudo"...
Ajuda-nos também a não cair na tentação dos estereótipos e das generalizações abusivas...
Por isso eu pergunto: Quem aceita, aqui no nosso blogue, o desafio de falar, com a mesma maneira 'desinibida e despudorada', da sua lavadeira ou 'lava-tudo' ?
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Nota de L.G.
(*) Vd. último poste da série > 27 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75