"A Glorinha no seu esplendor" - eis a última foto, com legenda, que o Mário Beja Santos nos mandou há dias...
Foto: © Beja Santos (2010). Direitos reservados
1. Carta do além para o meu querido pai que hoje faz anos:
Paizinho: Pois é, vai fazer um ano que eu vos deixei, a ti, à mãe, à Joana, a todos os meus amigos. A vida pregou-nos uma partida... A vida está sempre a pregar-nos partidas. Tu mesmo podias ter ficado para sempre lá naquela terra distante que hoje tanto amas... Mas a tua boa estrelinha protegeu-te. Eu não tive a mesma sorte... Sei da tua dor imensa, da tua saudade desmedida. E como voltaste ao trabalho com toda a gana e paixão com que sempre viveste e trabalhaste...
Hoje é o teu dia, pai. Não estarei cá, fisicamente, para te cantar os "Parabéns a Você" pelos teus 65 anos!... Mas, graças ao blogue dos teus camaradas da Guiné, quis-te fazer um pequena surpresa, que, julgo, vais adorar. Lembras-te do último trabalho que eu andava a fazer, no âmbito do Curso sobre Comunicação Social e Cultural, na Católica? Foste tu que sugeriste que entrevistasse o Luís Graça... Fiz um trabalho, para a cadeira de História Contemporânea, sobre "A Guerra Colonial Vista pelos Ex-Combatentes Portugueses"... Andava tão entusiasmada!... Era o meu 3º ano, tinha tanta gente, amiga, fantástica, que me ajudou, a começar por ti, que eras (e és) o meu melhor amigo.
Pois é, o editor do blogue tinha o trabalho guardado para ser publicado numa boa ocasião.... E que melhor ocasião, meu pai, do que este dia!... Sei que vais deitar uma lágrima, doce, terna, pela tua Glorinha. Ficarei por perto, a zelar por ti, pela saúde desse grande coração... Mais: fiquei a gostar dos teus velhos camaradas da Guiné. Diz-lhes que eu fico, lá no alto do poilão da Tabanca Grande, a velar por eles, a rezar por eles, a divertir-me com eles, a chorar por eles, a puxar por eles, a ler e a emocionar-me com as suas aventuras e desventuras... Por eles e por ti. Espero que me aceitem como um irão bom, ou como uma fada madrinha. Amo-te muito, pai. Tua, Locas.
2. "A Guerra Colonial vista pelos Ex-Combatentes Portugueses” [Recebida pelos editores do blogue Luís Graça & Camaradas da Guíné, em 23/4/2009.
Autor: Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos (1976-2009) (*)
Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Ciências Humanas
Curso de Comunicação Social e Cultural
História Contemporânea
3º Ano, Turma 2
2.1. ENTREVISTA A LUÍS GRAÇA
1. Quando é que lhe surgiu a ideia de formar um blogue ?
L.G: O blogue surgiu em 2003, em Outubro de 2003. Era um blogue pessoal, para publicação das minhas “blogarias”… Chamava-se Blogue-Fora-Nada… Em 2004, publiquei algumas coisas relativas à guerra colonial da Guiné e aos ex-combatentes. Lembro que o primeiro texto, em 23 de Abril de 2004, foi sobre os aerogramas e o papel das madrinhas de guerra (que eu, de resto, nunca tive). Mas foi a partir de Abril de 2005 que o blogue começou a receber contributos de outros ex-combatentes, como eu.
No início, eu queria falar das minhas memórias, da minha Companhia, a CCAÇ 12; depois, gradualmente, abri-me ao exterior. Foi a partir daí, em meados de 2005, que comecei a receber comentários de outros ex-combatentes, e foi então que tive que tomar uma decisão, a de dedicar exclusivamente o blogue à guerra colonial na Guiné (1963/74).
Como disse, originalmente o blogue chamava-se Blogue Fora-Nada. Foi rebaptizado, passando a chamar-se Luís Graça & Camaradas da Guiné. Em Junho de 2006, demos início à II Série do blogue. Foi nessa altura que apareceu o seu pai [, Mário António Gonçalves Beja Santos].
A versão actual (Luís Graça e Camaradas da Guiné) é a de um blogue, colectivo, com uma participação muito activa, onde todos os dias se colocam textos, documentos, histórias, provenientes fundamentalmente de ex-combatentes. Mas também há familiares, amigos, especialistas, etc., gente de muitos quadrantes e origens, portugueses, guineenses, cabo-verdianos… Temos camaradas na diáspora, Brasil, Estados Unidos, Canadá, França, Holanda, Alemanha, Suécia, Austrália…
Em suma, não se tratou de um blogue criado intencionalmente a pensar na guerra colonial e na Guiné. Ele nasceu um pouco pelas circunstâncias. Depois, por arrasto, foram chegando as pessoas, cada vez mais pessoas. Formámos uma espécie de tertúlia, virtual, havia uma grande cumplicidade entre pessoas que não se conheciam e que até mesmo não se conhecem (é por isso que procuramos fazer encontros anuais, para nos conhecermos melhor uns aos outros).
Começaram a aparecer mapas, documentos, fotografias… Os mapas foram digitalizados, incorporou-se material. Achei interessante colocar online os mapas, para tornar as situações geográficas mais precisas, os lugares, como, por exemplo, a região de Bambadinca, onde eu estive, tal como o seu pai, os rios, as bolanhas, etc. Reavivava-se assim a memória dos ex-combatentes, foi esse o meu objectivo primordial. Os membros do blogue, neste caso, os ex-combatentes, esforçaram-se para fornecer os melhores elementos para o enriquecer, desde histórias de guerra até apontamentos sobre a fauna e a flora da Guiné, aspectos culturais, etnográficos, etc.
Há uma coluna estática, do lado esquerdo, quando se visita o blogue, onde todo esse material (mapas, fotos de lugares…) está disponível para pesquisa, ao alcance de um clique. Parte desse material (mapas e fotos dos lugares) está alojado na minha própria página pessoal: Luís Graça, sociólogo > Saúde e Trabalho, http://www.ensp.unl.pt/luis.graca.
O blogue tem assim uma lógica, sob o ponto de vista de construção, que permite essa investigação. Além disso há um constante apelo à participação de todos os camaradas que passaram pela Guiné (ou de todos os amigos da Guiné e dos guineenses).
2. Na sua opinião, a que é que se deve esta explosão de confissões e o dever da memória? Por que é que foi preciso esperar mais de quarenta anos para os veteranos da guerra falarem do seu sofrimento e da sua nostalgia ?
L.G: Nos anos oitenta participei activamente no semanário O Jornal, com escritos sobre a minha experiência da Guiné. Havia uma série chamada “Memórias da Guerra Colonial” [, criada pelo jornalista Afonso Praça, que tinha estado em Angola]. O meu objectivo era ‘exorcizar os fantasmas’ (sic) da Guerra Colonial. As pessoas começaram a tirar da gaveta escritos, fotografias, poemas, diários, recordações.
A série acabou, entretanto, ao fim de umas largas semanas… Terá havido pressões por parte de alguns sectores político-militares para apressar o fim desta primeira tentativa de divulgar publicamente as histórias e as memórias da guerra colonial, contadas na primeira pessoa do singular.
Nessa altura ainda não havia internet nem blogues nem nada. Embora embrionária, a ideia não ficou esquecida. O seu pai escreveu no JN - Jornal de Notícias um folhetim com vários episódios da guerra na Guiné… Mas houve, nos anos 80, também as obras de escritores como o Cristóvão de Aguiar e outros. O José Brás, por exemplo, escreveu um romance (Vindimas do Capim) que teve um prémio literário. São dois nomes, entre outros ilustres desconhecidos do público. Mas houve também outros nomes, pioneiros, que alimentaram a literatura da guerra colonial, e em especial a da Guiné: por exemplo, Armor Pires, Barão da Cunha, etc.
Ainda antes do 25 de Abril, mas sobretudo depois, nasce assim um movimento, literário, de homens que escreviam obras, de ficção ou não, motivadas alguns pelo dever de perpetuar memórias de cunho autobiográfico ou de cunho histórico, respeitantes à guerra colonial, em geral, e da Guiné, em especial.
3. Como é que os ex-combatentes começam a dar sinais de registo de memória no pós-25 de Abril?
L.G: Tem a ver com o ciclo de vida. No blogue há pessoas que já estão na reforma, ou seja, pertencem à chamada população inactiva. Têm tempo, têm mais tempo, têm curiosidades, sente a nostalgia dos seus verdes anos, a saudade da Guiné… Para o melhor ou para o pior, a Guiné ficou-lhes registada de uma forma muito intensa. Há o problema de tentar recuperar uma juventude perdida. Com o advento da blogosfera, chegou a hora para a actual democratização da Internet, digamos assim.
Em 1999, como eu já disse, criei uma página pessoal, mas muito centrada na minha actividade académica. O blogue só aparece, em 2003, na tentativa de divulgar escritos mais intimistas ou pessoais.
Naturalmente, há também o problema de uma certa iliteracia informática que impediu (e ainda impede) o desenvolvimento destas memórias. A minha geração não tem as mesmas perícias informáticas do que a geração seguinte, a dos seus filhos... É preciso, pelo menos, ter um endereço de e-mauil (e um computador) para comunicarmos uns com os outros...
4. Existe de facto uma solidariedade entre os ex-combatentes?
L.G: Nunca pensei que este blogue tivesse uma adesão tão forte com este impacto de participações e de interesse por parte dos ex-combatentes. Existe um elo solidário muito forte. O drama da Guerra assolou a minha geração. Aos 18 anos fui à inspecção militar, como todos os rapazes da minha geração, e aos 22 anos e seis meses estava na Guiné. Outros, em contrapartida, não compareceram ao embarque e foram para a França, a Suíça, a Suécia, e por aí fora. Em números absolutos, terão sido uma minoria (refiro-me aos desertores, não aos refractários).
A maior parte de nós não teve outro remédio, independentemente do estrato socioeconómico a que pertencia. Nos primeiros anos de guerra ainda havia poucos milicianos com passagem pela Universidade. A partir de 1968, começa a aparecer outra malta com mais formação académica, experiência de luta académica, etc.
No passado, havia a Seara Nova, o Diário de Lisboa, o Notícias da Amadora, o Comércio do Funchal, entre outras publicações, que nos chegavam à Guiné, por correio. Eu assinava, por exemplo, o Comércio do Funchal, que foi um lufada de ar fresco no panorama cinzentão e conservador da imprensa portuguesa de fim de regime.
5. Sente que esse factor democrático existe no blogue? Há, de facto, pessoas que tinham formação para falar à vontade em contextos socioeconómicos e históricos da época? Essas pessoas são as que melhores se exprimem no blogue?
L.G: A maior parte das pessoas, sim. Não se trata de um blogue de ideias mas sim um blogue de registo de memórias e afectos. Também se fazem comentários, e muitos. Mas, no essencial, procuramos contar histórias. Há com certeza pessoas mais informadas do que outras. Na Guiné, havia pessoas que liam, ouviam música clássica , enquanto outras gastava o seu tempo livre bebendo uns copos, jogando às cartas, etc. Muitos de nós bebiam muito. A actividade operacional era, muitas vezes, intensa, violenta, dramática, stressante.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Pôr do sol sobre o Rio Geba...
Foto: © Artlindo T. Roda (2010). Direitos reservados
6. Como é que os negros, digamos os nativos, encaravam o facto de vocês estarem ali a cumprir uma obrigação e como se estabelecia esse lado humano?
L.G: Repare, eu quando fui para a Guiné, no tempo do Spínola, já havia uma certa abertura. Estava em marcha a criação de uma força africana. Os jovens viviam em aldeamentos muito isolados, quase encurralados. O exército para eles era também um bom negócio porque tinham dinheiro ao fim do mês. Foram criadas companhias, com base em soldados do recrutamento local. Criaram-se os Comandos Africanos, em Fá Mandinga, etc.
Os Fulas tinham uma certa consciência nacionalista, no passado lutaram contra os portugueses, mas acabaram por ser "pacificados" e depois tornaram-se fiéis à causa portuguesa, ou melhor, nossos aliados. Se calhar, não tinham alternativa. Os meus soldados eram fulas. A guerra da Guiné, tal como eu a vivi era também uma guerra civil. Eram homens fortemente tribalizados, que estabeleciam alianças connosco por conveniência.
Por outro, tinham práticas culturais que estavam nos antípodas da nossa cultura. Eram poligâmicos, islamizados, tinham os seus ritos e rituais, distintos dos nossos e de outras etnias. Enfim, não eram totalmente islamizados. Tinham práticas animistas, usavam amuletos. De um modo geral, eram fiéis ou leais a Portugal. Alguns pagaram caro essa fidelidade. Estão hoje bem documentados os fuzilamentos de Comandos e outros quadros graduados por nós. Os Fulas foram as principais vítimas desse ajustamento de contas, no pós-independência.
7. Voltando ao blogue, sente que de alguma forma há um efeito catártico?
Sim, o que fazemos é também blogoterapia. Acreditamos num certo efeito terapêutico da palavra. As recordações, o avivar da memória, a descoberta dos mapas das regiões onde combatemos, o cruzamento de memórias, as fotos, tudo isso produz esse efeito catártico. Temos gente de todo o lado do país e de todas as épocas, do princípio, meio e fim da guerra colonial.
8. Este blogue pretende espelhar o sofrimento de quem lá esteve dando voz também a quem combateu ao lado do PAIGC?
L.G: Repare, isto é um blogue para ex-combatentes, idealmente de um lado e do outro. O blogue é para camaradas e amigos da Guiné, portugueses, mas também guineenses, quer tenham combatido ao nosso lado ou contra nós. Por outro lado, há amigos da Guiné espalhados pelo mundo, estão aparecer mulheres e familiares de militares... Infelizmente, do lado dos antigos guerrilheiros não há muita gente: há muitas barreiras, a começar pela língua, as tecnologias, as comunicações, etc.
Quanto ao resto, não posso prever para onde vai o nosso blogue, só sei que está a crescer, estamos neste momento a chegar a um milhão de vistas. Pensamos muitas vezes que o melhor que nos pode acontecer é conseguir juntar as duas faces da guerra, nós e os guerrilheiros de então. Porque também lutamos pelo esclarecimento, esperamos chegar à reconciliação, como homens que no passado se combateram, sob bandeiras diferentes, mas hoje unidos pela língua, a história, os afectos, o tempo, o lugar...
2.2. BREVE INTRODUÇÃO À PROBLEMÁTICA DA HISTÓRIA COLONIAL (FRENTE DA GUINÉ)
Quando, no final da década de 50, o Senegal e a Guiné-Conacri se tornaram independentes, sabia-se que haveria sérias repercussões na província da Guiné Portuguesa. A consciência da independência encontrou eco nos quadros urbanos de Bissau e foi assim que nasceram movimentos orientados, uns para a progressiva independência, com ou sem diálogo com Portugal, outros dispostos à luta armada, no caso de Portugal não querer conceder a independência à Guiné.
Em 1959, ocorreu no porto de Bissau um protesto de estivadores e outros trabalhadores que acabou num banho de sangue, foi um autêntico massacre. Esse episódio veio agravar as tensões e a partir daí passaram a destacar-se dois grandes movimentos, a FLING, apoiada pelo Senegal, e o PAIGC apoiado pela Guiné-Conacri.
Estes dois movimentos não chegaram a nenhum acordo de princípio para a luta comum, estavam irremediavelmente divididos num conceito nacionalista: a FLING queria uma Guiné só para os Guineenses, o PAIGC queria uma União de duas pátrias, a Guiné e Cabo Verde. A FLING foi a responsável por algumas escaramuças no norte da Guiné, a partir de 1961, era um movimento que se baseava em muita improvisação - não houve preparação dos quadros militares, nem muito menos se preparou uma estratégia para aliciar as populações civis.
Com o PAIGC foi muito diferente. Teve um líder organizador genial, Amílcar Cabral, recebeu apoios sobretudo da China e da União Soviética, preparou quadros militares e foi apetrechada com equipamento e outro armamento que tornou logo, em 1963, a vida duríssima às tropas portuguesas. Desenvolveu um trabalho ideológico eficaz, a tal ponto que em finais de 1963 os campos estavam claramente demarcados, muitas povoações foram abandonadas, numa proporção que ainda hoje se estima de 1 para 5 ou de 1 para 6, o PAIGC acantonou-se em pontos estratégicos de muito difícil acessibilidade, sobretudo na região Sul.
O PAIGC soube igualmente explorar a natureza da geografia da Guiné a seu favor. Sendo um facto que o clima da Guiné é muito difícil, praticamente todo o território está atravessado por rias e outros cursos de água que dificultam a circulação humana. O PAIGC destruiu inúmeras estruturas e começou a combater numa verdadeira atmosfera de guerra de guerrilhas. Face a esses sucessos, os Estados Africanos reconheceram o PAIGC como o único interlocutor para a Guiné e a FLING desapareceu, nas suas expressões política e militar.
Em 1964, o regime de Salazar envia para a Guiné um novo governador, Arnaldo Schultz, com a missão de travar o avanço do PAIGC, desarmá-lo psicologicamente e reforçar o apoio das populações, sujeitas a pressões dos dois lados. Quatro anos depois, esta missão não tinha tido o êxito que se esperava, o PAIGC sentia a sua influência crescer, se bem que o conflito começasse a ter dimensões aproximadas a uma guerra civil (o entrevistado Luís Graça refere-se a esse aspecto). O desmantelamento das sociedades agrícolas, umas que ficaram reordenadas à volta dos quartéis e outras sob controlo do PAIGC levou ao jogo duplo das populações, que é um dos grandes dramas deste tipo de guerra.
O período de 1964 e 1968 levou à formação de contingentes africanos dentro da Guiné, e o sucessor do General Arnaldo Shultz, Brigadeiro António de Spínola, reactivou o aparelho militar guineense. Mesmo com a incorporação de africanos, as tropas portuguesas continuaram uma politica de abandono de quartéis nas zonas fronteiriças.
Em 1968, chega à Guiné o Brigadeiro Spínola que procura inverter a situação: os seus objectivos foram sobretudo os seguintes: intensificar a dinâmica militar, desmotivando o PAIGC; reagrupar as populações civis oferecendo-lhes como projecto uma elevada participação no seu destino, através da fórmula “por uma Guiné melhor”; criar, dentro das limitações existentes, uma política de fomento económico que desse aos guineenses confiança num novo rumo.
O Brigadeiro Spínola cedo foi confrontado com a combatividade do PAIGC que não desarmou e obrigou as tropas portuguesas a abandonar mais quartéis. A política de “uma Guiné melhor” deu os seus frutos na medida em que conquistou a adesão das populações envolvidas. Depois, Spínola tentou a negociação com algumas etnias para deixarem a guerra, tudo terminou tragicamente com a morte dos negociadores do lado português, em Abril de 1970. Spínola procurou, com o beneplácito de Marcelo Caetano, uma operação de invasão da Guiné-Conacri que teve fracos resultados e que custou a reprovação internacional.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Pel Caç Nat 52 (1968/70) > O Alf Mil Beja Santos, já no final da sua comissão, em meados de 1970, frente às instalações para oficiais do quartel de Bambadinca (que foi sede do comando e CCS do BCAÇ 2852 - 1968/70 - e do BART 2917 - 1970/72). Foi no tempo do BCAÇ 2852, que ele ganhou o seu nome de guerra, "Tigre de Missirá".
Foto: © Beja Santos (2010). Direitos reservados
O ano de 1973 é um ano de viragem. Amílcar Cabral morre assassinado e os acontecimentos subsequentes dão conta que o PAIGC já não está totalmente dependente do seu líder histórico, tinha já identidade nacional. O PAIGC apareceu apetrechado de mísseis terra-ar e o lado português não teve contrapartida para estas armas. A comunidade internacional foi continuando a censurar a política colonialista portuguesa e em Agosto desse ano o PAIGC declarou unilateralmente a independência da Guiné -Bissau, logo reconhecida por 80 países. O General Spínola, vendo que não lhe davam equipamentos militares compatíveis e tendo sido convidado a abandonar mais povoações fronteiriças, cada vez mais flageladas para as armas temíveis do PAIGC, demitiu-se, tendo sido substituído pelo General Bettencourt pôde evitar a escalada da guerra.
Nesse ano de 1973, verificou-se igualmente que o PAIGC ganhara uma grande capacidade para progredir para uma guerra quase convencional, entrando no território português com rampas de foguetões. Acresce que uma ofensiva no Sul leva a que um importante quartel teve que ser abandonado devido ao potencial de fogo do atacante e ao esgotamento das nossas tropas. Em 1974, Marcelo Caetano autoriza conversações secretas com o PAIGC que não passaram da fase exploratória, pois logo a seguir ocorreu o 25 de Abril.
A frente da Guiné foi indiscutivelmente a mais difícil das três frentes da guerra em que Portugal travou em África entre 1961 e 1974. Porque o terreno físico era claramente hostil a poder empurrar o adversário para posições fixas; porque o adversário cedo obrigou as forças em presença a uma grande separação; porque o adversário estava altamente motivado e possuía um chefe dotado de uma inteligência incomum, etc.
Os militares da Guiné, quase sem excepção (e a excepção era a cidade de Bissau e arredores) tiveram de combater, e foram diariamente confrontados com os horrores da guerra. Tinham à volta de 20 anos, na altura destes acontecimentos, têm hoje entre 60 e 70 anos.
Os acontecimentos posteriores ao 25 de Abril foram orientados para a luta política em Portugal, esses jovens tiveram que fazer pela vida para arranjar trabalho e reconquistar a paz interior. Dedicaram-se à política, às empresas, regressaram à agricultura ou ao operariado. Educaram filhos, têm hoje netos. O mundo mudou, Portugal está na União Europeia, a Guiné-Bissau vive em estado calamitoso, esses ex-combatentes têm reuniões nostálgicas, quase todos os anos, sentem hoje uma maior disponibilidade, à beira da reforma ou já reformados, para recordar e contar o que viram e como viveram.
O computador alterou radicalmente as relações de comunicação, à frente de um ecrã, clicando, fazem o chamamento do passado, mostram as suas fotografias, discutem opiniões sobre os anos da guerra e o que hoje se diz sobre esses anos da guerra.
É nesse contexto que os ex-combatentes têm vindo a aderir à formação de novas assembleias onde conversam, dão opiniões, comovem-se e até escrevem livros. São os blogues.
2.3. ANÁLISE DE CONTEÚDOS DE UM BLOGUE DEDICADO AO DEVER DE MEMÓRIA POR PARTE DE EX-COMBATENTES DA GUINÉ
Não é este o lugar para falar da essência de um blogue. O que importa é saber como funciona um blogue de ex-combatentes da Guiné. No caso específico do blogue “Luís Graça e Camaradas da Guiné”, assiste-se à convergência de algumas centenas que aderiram ao projecto de um professor da Escola Nacional de Saúde Pública que decidiu convidar sem quaisquer barreiras todos os camaradas da Guiné interessados em desenvolver entre si o dever de memória e partilhar experiências.
Cedo o seu criador se apercebeu do atractivo criado, começaram a chover mapas, documentos históricos sobre operações, cada um trouxe as suas fotografias e a sua correspondência. Por vezes, um acontecimento suscita enormes discussões: foi o caso da retirada de Guileje, os ataques ferozes a Guidage ou a Gadamael. De vez em quando abrem polémicas, mostram a sua poesia, reúnem-se em assembleia para criticar um comentário, como ocorreu recentemente a propósito das declarações do General Almeida Bruno.
Um blogue com estas características, renovado continuamente sete dias em sete, apelando à solidariedade com os povos da Guiné-Bissau, falando da sua história e da sua cultura, mostrando imagens inéditas, registando depoimentos afectivos, feito artesanalmente por voluntários e sem quaisquer custos para os participantes, tem que ser visto como uma tribuna de valor excepcional. Recolhe material que um dia pode ser tratado por historiadores, tem por vezes o ar fresco de uma praça pública onde estes homens de 60 e 70 anos se cumprimentam e acamaradam discutindo por vezes acaloradamente.
Maria
[Revisão / fixação de texto / introdução: L.G:]
3. Comentário dos editores:
Mário, sabemos que esta doce lembrança da tua menina, da tua Glorinha, é a melhor prenda que a gente te podia dar. Todas as palavras que quisermos acrescentar, aqui e agora, sobre o amigo, o camarada, o homem, o cidadão, o escritor, o colaborador activo, empenhado, generoso e profícuo deste nosso projecto comum (com mais de 200 referências no nosso blogue), são supérfluas. Só te queremos desejar o melhor dia possível e dizer-te quanto te estimamos e prezamos. Muita saúde e longa vida, que a ti Deus tem de dar tudo! Um terno Alfa Bravo para ti. Um chicoração também a Joana e, naturalmente, para a Cristina Allen, mãe da Glória (e que é uma grande senhora, cuja presença, tutelar, nesta Tabanca Grande muito nos honra e nos fortalece).
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Nota de L.G.: