domingo, 26 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7038: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (6): Tivemos bons mestres, dizem angolanos, guineenses e brasileiros, quando falam de corrupção

1. Texto de António Rosinha [, foto à direita]:


Somos mesmo assim tão corruptos?

É que na Guiné, no Brasil ou em Angola, quando se fala em corruptos, e estiver um português por perto,  dizem logo "tivemos bons mestres".... Se na nossa cara falam assim, imaginemos nas nossas costas o que dizem.

A história do engenheiro Alves dos Reis que venceu todas as burocracias necessárias para mandar fazer notas de 500 na Inglaterra, nos anos vinte do século passado, era do conhecimento de todos os adultos que sabiam ler, na cidade de Luanda, quando eu lá cheguei.

Eu, e a maioria que íamos daqui com carta de chamada e passagem do próprio bolso, nunca tinhamos ouvido falar nessa história. Como esse vigarista tinha vivido em Angola, havia gente que o tinha conhecido, ou sabia pelo menos da sua actividade. Talvez soubessem disso os que iam em comissão de serviço por quatro anos, como os governadores gerais e seus secretários, ou comandantes militares.

De facto, esse Alves dos Reis demonstra a capacidade de alguém para corromper tanta gente, desde conseguir assinaturas, carimbos, ser recebido por ministros, e depois distribuir e pôr esse dinheiro a circular em bancos e comércio...E esse génio da vigarice e corrupção era português, com fama internacional.

Agora andam por aí banqueiros que talvez já ultrapassem aquela antiga glória dos anos vinte do outro século.

Claro que se a vida não tivesse uma qualidade melhor em Angola do que cá, seria deprimente para mim e todos os que íamos daqui, ouvindo bocas como de atrasados, íamos só para viver à custa deles, mas esta de corruptos era aquela que talvez se estranhava mais, para quem nunca tinha ligado a tal coisa. Claro que eram conversas de café e o tal jeito da adaptação, dificil de explicar, resolvia tudo, em Angola, no Brasil ou na Guiné.

No Brasil era pior, onde o português era o alvo das anedotas do "menos inteligente". Hoje, os brasileiros emigrantes em Portugal também ficam marcados por outros motivos.

Na França, as marcas do português emigrante também se fariam sentir mas penso que não por corrupção. Mas por sua vez o emigrante que retornava, voltava a ser novamente marcado na sua terra.

Mas essa marca do "mestre da corrupção", penso que é invocado mais nas ex-colónias. Pessoalmente, em Bissau vi sinais de corrupção e vigarices bem (mal) disfarçadas por gente portuguesa em conluio com guineenses, em que a vítima era o Estado Português e o Guineense. Claro que não posso dizer nomes porque não sou polícia e não sou tetemunha. Mas casos descaradissimos não faltavam.

Eu próprio, não sei se me considere corrupto ou não. O que escrever um dia aqui, se tiver oportunidade, quem leia, julgará. Se era corrupto ou "ficava à porta". Mas não sei se já disse outras vezes, em Bissau não são precisos jornais. E o povo em Bissau tudo sabe, e até um dia Nino Vieira teve que fazer um comício para demonstrar que não era corrupto, no fim eu conto.

Eu acredito que na chamada África a sul do Sahara, antes de Diogo Cão ir visitar aquela gente, não havia corrupção tal qual como a praticamos hoje, europeus e africanos.

Sempre se falou e fala muitas vezes nas riquezas "fabulosas" dos países africanos, principalmente em Angola, e Congo que eu conheci um pouco, mas tambem na Guiné e é sabido que os dirigentes dos movimentos independentistas e muita gente pensava isso, que as riquezas das colónias portuguesas não eram divulgadas, para evitar a cobiça das potências estrangeiras.

Essas ideias também provocavam e provocam corrupção e tudo o que de negativo venha atrás, como no caso extremo em certos países africanos com os afamados "diamantes de sangue". No caso de Angola, parece que os diamantes continuam a ser moeda de troca. Não me admira que,  igualmente ao tempo colonial, haja muita dinheiro a ser investido em quartzo e vidro triturado.

Mas na Guiné, como não há grandes riquezas naturais à vista, talvez não haja grandes escândalos, mas é constante falar-se em corrupção e se um tuga estiver por perto pode ouvir a insinuação de mestre da dita mania da corrupção.

Houve um Natal de 1980 em que a Tecnil por hábito fazia a distribuição pelos clientes de umas lembranças, e como habitualmente era obrigatório uma lembrança para o presidente da República e outra para o Ministro das Obras Públicas. Ora naquele ano, 'Nino' Vieira era presidente havia um mês e o ambiente estava muito tenso e até algo violento devido ao golpe recente, e da Tecnil ninguém se achava com à vontade para levar essa lembrança à residência do Presidente, porque não se sabia qual seria a reação. Mas alguém teve que ir, e esse alguém lá entregou umas caixas com garrafas e mais umas embalagens com um cartão aos seguranças, mas passados uns minutos estava tudo devolvido sem explicações.

Dentro de uma perspicácia especial dos guineenses, toda a gente é baptizada com uma alcunha, e sempre com muita originalidade. Quem não podia escapar era o Presidente 'Nino' Vieira. que embora já tivesse a alcunha habitual, adaptavam-lhe uma alcunha (não muito às claras, penso eu) de uma novela brasileira, Sinhôzinho Malta. Desde o poder absoluto, aos carrões, ao relógio de ouro que exibia no pulso, e toda a gente ter um respeito absoluto àquela figura, e até a corrupção que se imaginava, tudo se adaptava à alcunha.

E passados uns anos, 'Nino' Vieira teve que explicar que não era corrupto, como se andava a falar. Usou um comício, transmitido pelo rádio e televisão e entre outros assuntos falou do "boato que anda por aí a correr". E agora digo apenas do que me lembro de ouvir e o sentido que o Presidente queria transmitir, e o pessoal comentou durante uns dias:
- Dizem que sou corrupto, mas se por exemplo, este relógio de ouro que tenho no pulso (e levanta o pulso com um relógio vistoso) que me foi oferecido pela Soares da Costa (a maior empresa a trabalhar na Guiné), como uma lembrança, eu devia recusar? Se o fizesse até era má educação.
- Isso é ser corrupto? - perguntava 'Nino' à assistência.

Claro que o povo que assistia ao comício respondeu em côro: 
- Nããão!

E agora, podemos nós aqui perguntar se, apesar de dezenas de nacionalidades representadas com seus nacionais em Bissau, e ser exactamente uma empresa portuguesa, a  Soares da Costa,  a dar um relógio ao Presidente, isso faz-nos,  aos portugueses,  mais suspeitos de corrupção do que os outros?

Claro que alguns de nós diremos: 
- Siiiim!

Mas concerteza haverá lugar para outras definições desse acto desde nããão, talvez ou niiim.

Não estou a imaginar ver os Suecos que tanto ajudaram o PAIGC, a dar particularmente um relógio a 'Nino' Vieira e este a explicar publicamnte. Mas vi os Suecos darem a cada ministro um Volvo topo de gama e renová-lo periodicamente e grandes máquinas para madeireiros trabalharem.

Também não imaginamos Russos que tanto ajudaram o PAIGC, oferecer um relógio ao Presidente. Mas vimos oferecer carros de combate e aviões de guerra.

O acto dos russos e suecos são ajudas de um povo a outro povo , no caso português são apenas negócios com uma empresa portuguesa em que uma da mãos lava a outra.

É esta a imagem que fica das diferenças de uma cooperação e outra. O que a Soares da Costa fez, é aquilo que podemos imaginar que foi a aventura,  de séculos por esse mundo fora, da diáspora portuguesa. Podemos dizer que é o tal desenrascanço, e ficam sempre suspeitas (os guineenses chamam o soco por baixo da mesa, em crioulo).

Enquanto outros cidadãos e empresas só agem com colaboração de embaixadas e consulados, em Portugal parace que se evitam mutuamente esses contactos.

Chegava-se a ver em Angola, no tempo colonial, comerciantes totalmente isolados durante anos, sem chefes de posto, nem missionários nem postos médicos que se instalassem a menos de um dia de viagem a pé (estradas nem vê-las). Claro que tinham que se desenrascar através de uma integração desde a aprendizagem das línguas, até aos remédios do povo e certamente compra de favores (corrupção?). 

Eu aprendi com colegas angolanos, logo nos meus primórdios, a deslocar-me em lugares distantes de povoações, acompanhado com um saco de sal. Era ouro com que comprava desde alimentação, informações e até protecção. Seria corrupção?

Claro que muitas vezes referem-se casos de imenso sucesso de portugueses na França, Brasil, Angola e até na China e América, mas os insucessos são varridos para baixo do tapete. Mas que a imagem que fica,  podia ser melhor se não nos auto-marginalizássemos, disso não tenho dúvida.

 Cumprimentos,

Antº Rosinha (*)
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Nota de L.G.:

(*) Último poste da série > 19 de Setembro de 2010  > Guiné 63/74 - P7006: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (5): Portugal nem explorava nem desenvolvia, colonizava pouco e mal

sábado, 25 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7037: Recortes de imprensa (30): A guerra do José Corceiro, CCAÇ 5, Canjadude, 1969/71 (Correio da Manhã)


1. O nosso Camarada José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos, Canjadude, 1969/71), enviou-nos a seguinte mensagem com data de 22 de Setembro de 2010:

Camaradas,

Aqui estou eu a enviar para o Blogue o depoimento que mandei para o Correio da Manhã, para a série a “Minha Guerra”, para ser publicado na revista ”Domingo” que acompanha o Jornal, nas edições dos Domingos.
É lógico que em função do extenso conteúdo que eu enviei para publicação na rubrica “A Minha Guerra”, e atendendo ao limitado espaço que a revista reserva para a edição do artigo, não me surpreendeu a súmula que saiu no jornal, são peças jornalísticas.
Eis pois o depoimento que eu enviei para o Correio da Manhã, em função das perguntas feitas pela Jornalista:
A MINHA GUERRA (DEPOIMENTO ENVIADO PARA O CORREIO DA MANHÃ)
1) - Fez parte de que Batalhão?
Em 24 de Maio 1969, por volta do meio-dia, deixo o Porto de Lisboa no N/M Niassa, rumo à Guiné, como rendição individual.
Foi emocionante e comovente, ver aquela moldura humana de familiares e amigos a despedirem-se.
No cais, eram uns com lenços nas mãos a acenar, outros com lenços nos olhos, no nariz, na boca, outros deitavam as mãos à cabeça, enquanto outros apertavam a barriga, cada familiar e amigo expressava queixume e desespero com o sentimento de gesto diferenciado.
Um quadro impressionante que me fez cogitar e questionei-me:

- Será, que é a atitude mais acertada, eu empenhar-me a defender a Pátria e as cores da Bandeira, neste caso?

- Será, que têm razão os que desertam, como fizeram alguns da minha terra?

Fiquei confuso, ao ver tanto rosto carregado de tristeza, fisionomias que transpiravam sofrimento e mágoa e deu para pensar muita coisa. Perplexo, olhava as pessoas que gostavam de mim.
Eu fui mobilizado para a Guiné, em rendição individual e já na Guiné, no Aquartelamento dos Adidos, no dia 3 de Junho de 1969, informaram-me que tinha sido colocado na CCAÇ.5, uma Companhia de Africanos, cognominados – Os Gatos Pretos – Metropolitanos éramos cerca de 40 militares e Nativos 220 a 230, sediados em Canjadude - Sector Leste - Nova Lamego.

Destacamento de Canjadude.

2) - Quando é que chegaram?

Dia 29 de Maio 1969, por volta das 21.00 horas, cheguei ao Porto de Pidjiguiti em Bissau, só desembarquei no dia 30.

Levaram-me para o DGA (Depósito Geral de Adidos), onde logo que cheguei, quis a minha fada madrinha, estrelinha da sorte, que encontrasse por mero acaso, um amigo, tínhamos estudado juntos.

3) - Soube logo para onde ia?

Só no dia 3 de Junho de 1969, fui informado que tinha sido colocado na CCAÇ. 5, em Canjadude, e nesse dia deixei Bissau, estrada rio Geba, rumo Bambadinca numa LDG, onde iam militares e civis acomodados como sardinha em lata.

Além da massa humana, havia muita mercadoria e os civis levavam de tudo, desde alfaias agrícolas, produtos alimentares, pilões, gaiolas com galinhas e pintos, todo o tipo de animais, que barafunda, até cabras iam!

O Sol era abrasador, sombra ou lugar para me sentar não havia, isto tornou-se fatigante, se ao menos houvesse um mínimo de conforto, para quem gosta de Natureza como eu, isto era um mimo, pois a paisagem nas margens do rio, que se avistava do barco, parecia-me deslumbrante, só que nestas condições desconfortantes, não havia serenidade e predisposição para apreciar e desfrutar o meio circundante.

O Geba era bastante largo e o barco deslocava-se na parte central.

As margens estavam praticamente ladeadas, em toda a sua extensão, por arvoredo compacto, pareciam ser matas virgens encantadoras, eram para mim, matas onde a pata do homem nunca tinha posto a mão, familiar para os meus olhos, só conheciam as palmeiras, de espaço a espaço viam-se habitações.

4) - O que sentiu quando chegou?

Foi desolador ver tanta pobreza e um modo de viver tão primitivo.

Surpreendi-me ao confrontar-me com os hábitos e condutas sociais dos habitantes de Bissau, que me pareceram conformados e felizes com o pouco ou nada que tinham.

O meu amigo e outro amigo dele, levaram-me a ver, e não só, umas lavadeiras numa bolanha, relativamente perto do DGA, não sei bem o local exacto, quando se ia de Bissau para o DGA, era do lado direito.

Sou por natureza bucólico, encanta-me o campo, a paisagem, a floresta, fiquei admirado, havia muito contraste entre o espaço que ladeava a estrada que ligava Bissau ao DGA, cujo terreno era árido e algo despovoado de arvoredo, destoando da Bolanha, onde me levaram, que tinha mata bem luxuriante.

Além disso, foi agradável ver lá as lavadeiras, algumas completamente nuas, uma mais atrevida e desinibida, vendo o nosso olhar maroto e malicioso, aveludado de concupiscência, dirigiu-se ao meu amigo nestes termos:

- Bu mamé é puta, sinon bu cá tinha nascido.

Não sei se será algum provérbio guineense, mas foi oportuno, nunca o esqueci.

Para o meu íntimo, estes momentos a que estava a viver, eram bem reveladores do fosso cultural existente entre nativos e metropolitanos, começava-me a aliciar a idiossincrasia e a genuidade do povo guinéu, despido de formalismos e preconceitos; para mim era pureza, esplendor natural, como que um ode à criação.

Ali continuou a estruturar-se o meu despertar e a avolumarem-se as minhas dúvidas, por um lado a intuição, por outro o raciocínio, comecei a ficar sobressaltado e a entender que era outra cultura, outra forma de ser e estar na vida, era a sua Pátria, os nativos estavam no seu habitat e adaptados aos costumes do seu Povo.

Só havia que aceitar e respeitar, eu estava desintegrado, era invasor!


Eu “Periquito” quando cheguei a Canjadude.

Eu na parada de Canjadude ainda “Periquito”.

5) - Como foram os primeiros tempos?

A adaptação foi dificílima. Sobretudo acomodar-me à alimentação e aclimatizar-me ao meio.

Eu sentia-me descompensado.

Era um calor tórrido e mortiço, atmosfera carregada e tensa, humidade misturada com as partículas em suspensão ameaçam explodir a qualquer momento, transpira-se preocupação e insegurança, paira incerteza e receio no ambiente, aproxima-se temporal, será chuva, trovoada ou vendaval, o desconforto e a palpitação são gerais, o suor é melaço e teima em não se deixar limpar, está tudo agitado, a brisa está calma, mas as folhas das árvores estão a baloiçar, os mosquitos põem à prova toda a astúcia e rebeldia, para fintar o indígena e conseguir a sua sugadela, as lagartixas, no quintal, andam num frenesim desenfreado e estonteante, como se hoje fosse o último dia das suas vidas, no quartel de Nova Lamego respira-se desconfiança, há muita movimentação militar, já vieram dois Pelotões de outro Destacamento, saíram três Pelotões para o mato na eventualidade de ataque estarem a postos, está tudo de prevenção, eu estou de Cabo de Dia ao Comando, é dia 9 de Junho 1969.


Eu junto da tabuleta que estava no local de entrada, vindo de Nova Lamego, onde anteriormente estava o arame farpado, antes do Aquartelamento ser alargado.

Cheguei a Canjadude, dia 13 de Junho de 1969, na parte de tarde.

Após a refeição do jantar, comunicaram-me que no dia seguinte, às 07.00h, devia estar pronto para alinhar na operação a nível de Companhia, ao Cheche.

De transmissões iam o Silva, o Carvalho (que era o mais velho de transmissões), e eu, o mais novo, que para me familiarizar acompanharia sempre o Carvalho.

Era norma, o “periquito” chegado, pagar umas cervejas aos camaradas da secção e eu não fugi à regra. Mas não chegava.

Eles estavam concertados e queriam amigavelmente infernizaram-me a vida, mais parecia que me queriam praxar.

Eu era uma novidade, um “periquito” e estava muito verde… era um novato.

Eles diziam: “Nós já somos velhinhos!”.

O que queriam era “folia” e atormentar-me. Às tantas, um deles, causticamente, sai-se com esta:

- Tu chegaste hoje, dia 13 sexta-feira, e amanhã vais logo para o Cheche, onde há quatro meses perderam a vida perto de meia centena de militares (47), isto não é, convém que se diga, uma colónia de férias, para vires com discos e gira-discos na bagagem.

Isto aqui é a guerra, amigo, e não vais ter propriamente vida facilitada, até porque os nossos graduados não são flor que se cheire, as surpresas não vão ser glico-doces para o teu lado.

Eu a ouvir música em cima do abrigo, no gira-discos que levou da metrópole.

6) - Quando voltou?

Regressei à Metrópole, o dia 2 de Julho de 1971, no navio Angra do Heroísmo.

7) - Qual foi o dia mais marcante? E porquê?

No teatro operacional foi o dia 3 de Agosto de 1970, porque perderam a vida dois camaradas, um dos quais o enfermeiro Dinis que éramos amigos. E depois toda a polémica gerada em torno do caso…

8) - O que lhe lembra a guerra?

Só deseja a guerra, o homem que não tem paz interior e vive em conflito permanente com ele próprio.

Portugal não teve, infelizmente, um estadista à altura, para em tempo oportuno, ter encontrado uma saída politica honrosa para as duas partes, de forma a solucionar todo o problema Ultramarino, sem que houvesse necessidade de recorrer à via da guerra, que é sempre um desastre, sobre tudo para inocentes indefesos.

A guerra é uma atitude que embrutece os homens e os torna mais fracos…

Messe de Oficiais e Sargentos > Da direita para a esquerda: Capitão Costeira, Alferes Sousa, Alferes Luís Alberto Gil Duarte, Furriéis Ramos, Saúde e Gonçalves.

Jogo futebol na CCAÇ. 5 > Solteiros contra casados > Da direita para a esquerda: Sarg. Farinha, Fur. Laminhas, Sarg. Rodrigues, Sarg. Cipriano, Furs. Adelino, Gil e Saúde, Cap. Oliveira, Alf. Sousa, Furs. Gonçalves, Vieira da Silva, Rito, José Martins (um pouco adiantado do perfilado), Fur. Borges.

Troca de galhardetes no jogo de futebol > O Alf. Sousa oferece à equipa dos casados, um “Corno” e o Cap. Oliveira oferece à equipa dos solteiros, um “Vergalhinho dum cabritinho” > As personagens nesta foto são as mesmas que na foto anterior.

9) - Fazem-se irmãos?

Estive 40 anos sem ter contacto nenhum com Gatos Pretos, que tenham coexistido comigo em Canjadude.

Quando em Janeiro passado começo tibiamente e com certa timidez a estabelecer alguns contactos telefónicos, para os endereços que já existiam numa lista de alguns Gatos Pretos que me foi fornecida, constato que há um desejo desmedido para que se realize um encontro convívio, dos Gatos Pretos.

Exigia-se determinação e aplicação e, à medida que vou descobrindo mais uma morada, ou um telefone, dava-me um gozo de “êxtase,” porque era mais um Gato Preto que apanhava “c´o mão” (era clamor de guerra em Canjadude gritar-se: “Gato Preto apanha c´o mão”).

Assim, com a conivência de todos, se tem vindo a estruturar uma listagem, com dados de cada um, que já tem uma ninhada de mais de 150 Gatos Pretos.

Fui ouvindo desabafos e desalentos, de uns e outros, que me diziam frases tais como:

- Todos os Batalhões e Companhias, tem anualmente o seu dia de festa e convívio, não compreendo como é que nós da CCAÇ 5, não conseguimos ter essa alegria;

- Era o maior sonho da minha vida e, podê-lo complementar com uma ida a Canjadude, sentir-me-ia realizado;

- Estou a ver que vou morrer sem ver concretizada a realização dum convívio dos Gatos Pretos, se o quiserem fazer em Canjadude desde já podes contar comigo…

10) - Esteve debaixo de fogo?

Eram 22.48h, do dia 11 de Julho de 1969, quando se precipitou inusitado ribombar, em que eu, o primeiro estrondo que ouvi, quis-me convencer que fosse um trovão, mas em milésimos de segundo, acordei o espírito e consciencializei-me que era o meu baptismo de fogo que estava em urdidura, estava a perder a virgindade de fogo no flagelo ao Aquartelamento de Canjadude.

Saltei da cama para o chão, da parte superior do beliche, quis encontrar uma G3, pois eu não tinha arma distribuída.

A lei da necessidade primária, sobrevivência, impôs que eu agisse e procurasse instrumento para me defender. Nestas décimas de segundo o gerador de energia eléctrica foi-se abaixo e ficou tudo às escuras, eu corro de mãos vazias para a saída do abrigo, saio e meto-me numa das valas, que me poderá conduzir ao abrigo do Posto de Transmissões.

Cá fora, os rebentamentos eram constantes e afiguravam-se ser mesmo por cima de mim, ouvindo-se um ruído sibilo a cruzar o espaço em todas as direcções.

Eu fiquei boquiaberto e pensei:

- Que festival de fogachal tão bem orquestrado é fogo de guerra mesmo para matar, parece que os deuses estão contra mim?!

O bramir das detonações, era incessante e havia ecos de explosões de proveniência indeterminada, vinham de todos os lados!

Eu cogitava: que razões assistem a estes seres para despoletar tamanha barbárie?

Fiquei cismado, atrapalhado, embora não estivesse nervoso, mas estava um pouco amedrontado! Sempre me imaginei a reagir, numa situação destas, com conduta bem pior do que esta que estava a revelar, ao defrontar-me perante uma bagunçada com esta factual perigosidade, para a minha integridade física.

Foi uma grande surpresa, para mim, esta minha atitude comportamental, diante de ameaça tão iminente, concreta e real.

O fogo continuava violento e insistente, desconcertante, indistinguível, não conseguia percepcionar, nem ajuizar qual a proveniência dos disparos, era uma barafunda de silvos na atmosfera envolvente e por cima da minha cabeça, que me deixava baralhado.

Os roncos dos rebentamentos são no ar, eram na frente, por trás e dos lados, era aterrorizador.

Da nossa parte a reacção é quase nula, não se fazem sentir esboços de defesa!

Mas logo que as nossas morteiradas do 81 começaram a ser certeiras e a colidir com as posições do inimigo, tudo amainou…

Dia 12 de Setembro de 1969 houve coluna a Nova Lamego.

Depois de termos feito picagem da estrada até Uelingará, subimos para as viaturas. Ainda não eram 8.30h, começamos a avançar.

Eu estava a estabelecer contacto via rádio, com Canjadude.

A viatura da frente arrancou, eu ia na segunda viatura, a última da coluna ainda não estava em movimento de progressão.

Neste intervalo de tempo ouviu-se um violento rebentamento, tudo à minha frente voou pelos ares, envolto em cortina de fumo e terra, devido ao rebentamento de mina anti-carro accionada pela primeira viatura.

Não sei como saltei do transporte onde eu ia, foi tudo tão rápido que só me lembro que estou no chão de pé e com uma G3 na mão, que não era minha, pois não tinha arma distribuída.

Olho em frente e vejo a escassos metros uma viatura atravessada na picada, com a parte frontal toda destruída e, o chão assolado com corpos humanos, pensei o pior, aproximei-me ajudei alguns a levantarem-se, mas deparei-me logo com um ferido que me inspirou muito cuidado e preocupação, caso que nunca esqueci e me marcou.

Estava caído no chão, inerte, desconsolado, a gemer desfalecido com muito padecimento, não havia mobilidade e a visão daquela fácies hipocrática com a sua fisionomia de músculos contraídos, atestavam bem o sofrimento e dor porque estava a passar aquele ser humano, imagem que já mais apaguei da minha mente.

Verifiquei que não tinha contracções musculares nem sensibilidade nos membros inferiores, ajudei-o a apoiar a cabeça e pedi para que não o movimentassem, continuava a gemer desesperadamente e acabou por desmaiar.

Nunca mais tive notícias deste militar nativo, presumo que tenha sido mais uma vítima da guerra que ficou paraplégica.

Fui para a viatura de Transmissões para enviar mensagem a Canjadude, a pedir evacuações urgentes e apoio de enfermagem, pois havia muitos feridos, alguns com gravidade e deitados no solo em sofrimento, sequencialmente, pediu-se a Nova Lamego que enviasse um grupo de protecção e um pronto-socorro para levar a viatura acidentada (do local do acidente a Nova Lamego eram aproximadamente 15km).

Placar no refeitório de Canjadude, onde o Corceiro colocou um recorte de revista, que cortou da revista Salut les Copains, com a imagem da Francoise Hardy.

11) - A guerra marca para sempre?

Em Canjadude, passei 25 meses, com poucas ausências.

Foi muito tempo fora da civilização que eu conhecia, logo, desejava, confinado a um espaço tão limitado em condições tão carenciadas, privado das necessidades mais elementares, sem as quais o ser humano consegue harmonia emocional e física; tentava, conforme podia e deixavam, compensar o não gozo em pleno das três necessidades primárias dos seres vivos, e como podia tentava desequilibrar os pólos das baterias.

A Cády, uma bonitinha bajuda (rapariga) de Canjadude, de etnia mandinga.

Foi muito difícil a falta de presenças, de carinhos, de mimos, de pequenos nadas, os afectos… era a saudade… a tensão e a pressão que era preciso conter para não haver explosão.

Cada um refugiava-se e representava o que lhe ia na alma, o que lhe parecia mais plausível: álcool, bajudas, petiscos, escrita, leitura, simulações guerreiras e teatrais, afeição a animais, apegados às coisas mais inverosímeis, tentava-se suprimir as deficiências e lacunas do meio a que estávamos expostos, recorrendo aos mais variados hobbies para nos compensarmos, eram necessidades primárias desvirtuadas a actuar!

Talvez tivesse facilitado a minha integração e minimizado o meu desconforto, se o meu código genético tivesse no respectivo cromossoma um gene com aptidão mais guerreira que dominasse o alelo correspondente, ficaria por ventura mais acomodado no teatro de guerra, mas deixava de ser EU, eu batia-me interiormente com as minhas limitações, por valores que queria preservar e dignificar, queria, sem ser lírico ou utópico, (com toda a estima e consideração por eles) continuar a ser amante de diálogos, respeito, consensos e paz, não tinha preparação para este tipo de guerra, estava a ficar com a percepção que neste meio (teatro de guerra) obrigavam-me a renunciar à minha personalidade e a valores que eu queria acautelar, vivia num conflito ambíguo, meio externo (ambiente) guerra, meio interno (raciocínio) paz, esta ambivalência era morrinha para o meu EU!

Os meus hobbies, entre outros, foram a fotografia e o diapositivo (slide), tirei muito… milhares.

Eu em Canjadude, a digerir e organizar pensamentos, sentado na Bolanha que se recusava a secar mas onde a água se estava a acabar.

Nota Biográfica:

O meu nome é: José Manuel Silva Corceiro, natural de Vale de Espinho, concelho de Sabugal, data de nascimento 1947. Vivo em Lisboa, na Rua Pascoal de Melo.

O serviço militar, no meu caso, teve graves e nefastas implicações na orientação da minha vida profissional. Interferiu e muito, no que poderia ter sido o meu percurso de vida, entrei na Faculdade de Medicina de Lisboa, mas por razões diversas, que não interessam para o momento, não terminei o curso de medicina.

Profissionalmente estive ligado ao ramo das telecomunicações, presentemente sou pré-reformado.

Sou casado, pai de três filhos, os dois mais velhos, um licenciado pelo IST em Engenharia (tecnologia e computação), outro licenciado em Química e o terceiro está no 12º ano.

Tenho dois netos descendentes do filho mais velho, o Tomás e a Laura.

Um abraço e boa saúde para todos,

José Corceiro

1º Cabo TRMS da CCaç 5

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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

23 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7024: Recortes de imprensa (29): A guerra do António Branco, CCAÇ 16, Bachile, 1972/74 (Correio da Manhã, 24 de Agosto de 2008)

Guiné 63/74 - P7036: Álbum fotográfico de Jacinto Cristina, o padeiro da Ponte Caium, 3º Gr Comb da CCAÇ 3546, 1972/74 (2): Os tempos livres de um caiumense...



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium > O que é um homem pode fazer, durante o dia para passar o tempo, as horas, os dias, as semanas , os meses, num sítio, isolado, sem população, esperando um ataque do inimigo ou a passagem da próxima  coluna motorizada vinda de Piche ou de Buruntuma ? Caçava-se ou melhor montava-se armadilhas nos trilhos de passagem dos animais, de acesso ao rio... De vez em quando, lá se apanhava o porco do mato,como este da foto... Mas esta prática também o seu preço trágico: dopis militares do destacamento foram vítimas da exploisão de uma dessas armadilhas: um morreu logo e outro ficou gravemente ferido... Em 19 de Fevereiro de 1973.


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium > O Rio Caium fazia, no tempo seco, as delícias dos marinheiros e dos pescadores... A sobrevivência exige imaginação...  Como se pdoe ver pela imagem, a ponte tinha quatro pilares, dois dentro do rio...



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium > Padeireo, municiador (e apontador) do morteiro 81, cozinheiro, pau para toda a obra, o Jacinto tinha jeito para conduzir a jangada (a qual, tal como a Nau Catrineta, teria muito que contar, se falasse)...




Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium &gt > Aprendendo a pescar, à paulada, à moda dos fulas (que são um povo de pastores)... A tabanca mais próxima era a alguns quilómetros dali... Não havia convívio diário com a população local... O Jacinto, por exemplo, nunca foi a essa tabanca.



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium > O Jacinto, quando veio para a Guiné, já era casado, e tinha uma filha... Veio de férias para estar com elas... Mas todos os dias o pensamento ia para elas... Ei-lo aqui a escrever uma carta... As saudades eram ainad maiores nos dias de festa, como o Natal e o Ano Novo... Na Ponte Caium não se distinguiam os dias da semana...


 
Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium > Pensando na esposa e na filha que ficaram a cinco mil quilómetros de distância, rezando por ele...


Fotos: © Jacinto Cristina (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Continuação da publicação de 1. Continuação da publicação de uma selecção de fotos do álbum de Jacinto Cristina, alentejano, industrial de panificação, com padaria e residência em Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo. Hoje vou jantar com ele, a esposa, a filha, a neta e o genro... E vamos, em conjunto, melhorar as legendas...

Sobre as fotos já publicas (no poste P7033) (*), comentou o nosso camarada Luís Borrega o seguinte:

"Camarigos Que emoção ver fotos da "minha Ponte Caium", até fizeram um forno novo, o que deixámos estava situado na estrada para Buruntuma , fora do tabuleiro da ponte. Caro Luís,  na tua visita ao Alentejo dá lá um abraço ao Jacinto Cristina da parte dum "Caiumense". Diz-lhe que a Companhia dele rendeu a minha CCav 2749/BCav.2922 em Piche. Dou-lhe os parabéns por ter aguentado 13 meses na Ponte. Estive lá à volta de 3 meses e picos. Na 2ª vez que o meu Gr Comb estáva escalado para ir para lá, vim de férias e "baldei-me" ao ataque onde sofremos um ferido ligeiro, mas o PAIGC teve algumas baixas pelos rastos de sangue. Abraço Camarigo. Luís Borrega".

Luís, adorei a palavra "caiumense"... E vou levar o teu abraço até ao Jacinto, o teu,  o do Eduardo, do Hélder, da Maria Teresa Parreira e do resto da malta da Tabanca Grande.  O Jacinto está contactável por telemóvel (sempre de manhã, durante a semana, que à tarde ele dorme e à noite trabalho; sábado todo o dia, que é o seu dia de folga): 964 346 202.

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Guiné 63/74 – P7035: FAP (51): A noite mais perigosa da minha guerra (António Martins de Matos)

1. O nosso Camarada António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74, hoje Ten Gen PilAv Res), no seu regresso enviou-nos, em 24 de Setembro último, um interessante e bem disposto texto:

Camaradas,

Férias terminadas, junto vos envio um texto para animar a malta.
E para que não fique alguma dúvida na cabeça das pessoas.

Qualquer semelhança com alguém, facto ou lugar, não é ficção, é mesmo semelhança.



Base Aérea 12 > Bissau

Com a devida vénia à página dos Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74, do nosso camarada Victor Barata, Especialista da FAP.
"A noite mais perigosa da minha guerra”
Recordando a minha estadia de aviador por terras da Guiné, as missões preferidas eram as de DO-27, em especial as destinadas a apoiar os vários Batalhões, CAOPs, COPs e correlativos, permitiam-me ver e conviver com o pessoal das “terras do fim do mundo”, ou como disse um escritor com laivos de rambo e de memória baralhada, dos “cus de judas”.


Uma Dornier, DO 27, na pista, de terra batida, do aquartelamento > Foto do saudoso Cap Ref José Neto (1927-2006)

Fazer embarcar os eventuais passageiros e carga, verificar se o peso a transportar estava dentro dos limites, verificar se os sacos do correio estavam na aeronave (a diferença entre ser bem ou mal recebido), descolagem logo pela fresquinha enquanto o calor não apertava, aterragem na sede do Batalhão, apresentação ao “Big Boss”:

“... Bom dia Sr. Major, apresenta-se o Tenente Piloto Aviador M.“.

E continuava:

“... Conforme definido superiormente, o meu Major tem esta aeronave à sua disposição durante as próximas 4 horas ou 7 aterragens, o que se esgotar primeiro, para a utilizar na área do seu Batalhão da maneira que muito bem entender, a 8ª aterragem já será em Bissau, disponha como lhe aprouver...”.


Dependendo da vontade, coragem ou preguiça do Major, umas vezes acabava por ficar as 4 horas sem nada fazer, ler um livrito à sombra de alguma árvore mais frondosa, outras vezes passadas que ainda não eram duas horas já tinha ido e vindo e tornado a ir, e a vir... esgotado as aterragens e “ tenham um bom dia... ”, rumo a Bissau.

O limite das 7 aterragens tinha a ver com o acumular da fadiga do piloto versus a segurança de voo, já que havia pistas que nem ao mais pintado lembraria, alguns metros de largura, uns 200 de comprimento, algumas em curva, por vezes com vacas à mistura, o seu final com uma barreira de arame farpado ou mesmo a porta do quartel em cimento armado, “se não conseguir travar paciência, entro-lhes pela casa adentro, não me perguntem é pelo correio, que afino...”.

E foi assim que conheci Bula, Binar, Biambe, Burutuma, Bigene, Bambadinca, Buba, Bedanda, Bissorã, Bissum, Binta… isto para só falar dos Bês.


Se a maior parte das vezes tudo corria pelo melhor, de vez em quando a coisa complicava-se, umas vezes por julgarem que o DO-27 era algo semelhante a uma Berliet, outras vezes por alguns Majores mais atrevidos não saberem contar de 1 a 7 (ou fingiam?) e em vez de reservarem a 7ª aterragem para o regresso à sua sede do Batalhão resolviam ainda ir aqui ou ali ou acolá; depois puxavam dos galões para que lhes fosse concedida uma aterragem extra:

“ Ó nosso Tenente olhe lá, estou-lhe a dizer, vá-me levar de volta que aqui quem manda sou eu!!!”.

E quando davam por ela já estavam no meio da placa da Base de Bissalanca, a deitar fumo pelas orelhas e a servirem de gozo aos Cabos da Força Aérea (FAP).

A partir Abril de 1973 e devido ao aumento da intensidade do conflito, deixei o DO-27 e passei a voar apenas o Fiat-G91.

Fiat G-91 da FAP > Foto de Soares da Silva, com a devida vénia

E se durante o resto da comissão e por inúmeras vezes lá fui passando por situações mais ou menos arriscadas, a noite de 23 de Junho foi certamente aquela em que o perigo me rondou mais de perto.
Recordemos, há já quase 3 meses que havia mísseis Strela nos céus da Guiné, até já tinha visto alguns a passarem bem perto, o pessoal do Guileje já tinha rompido aquele famoso cerco e executado a tal “retirada estratégica”, os de Guidage lá se tinham aguentado, o Exército já me tinha embrulhado num processo de averiguações por causa de umas Berliets estragadas lá para os lados de Binta, e o pessoal de Gadamael já se tinha espalhado e reagrupado, a calma a reaparecer aos poucos.

Nós, os da Força Aérea, é que andávamos um pouco baralhados da cabeça porque das duas uma, ou a matemática tinha deixado de ser uma ciência exacta, ou então algo não batia certo.

Tudo isto porque apesar de no “Solar do Dez”, “Pelicano”, “Bento” e restantes cafés da má-língua, constar que estávamos apavorados de medo e já não voávamos, no dia-a-dia continuávamos a executar missões atrás de missões, a um ritmo bem mais acelerado que anteriormente.
Uma coisa era certa, estávamos fartos de circular nas vizinhanças de alguns quartéis a abrir clareiras na mata, a partir madeira e fazer barulho, fartos dos que diziam que já não os apoiávamos, (certamente deviam de ser surdos, com tanto rebentamento ali mesmo nas suas barbas) e fartos dos que, sem nos saberem dar informações precisas, exigiam que bombardeássemos todas as matas à volta dos seus quartéis.

Até que não podia ser, cada bomba de 750 libras fazia um buraco no chão onde podia caber à vontade um Unimog, a Guiné arriscava-se a ficar como um “queijo suíço”.

Por outro lado estávamos absolutamente convencidos que as bases de fogo para os ataques a Guidaje, Guileje e Gadamael estavam situadas para lá da fronteira, já no território dos países vizinhos.

A razão era simples, se cada granada de morteiro pesava à volta de uns 15 quilos, cada ataque com 200 granadas (parece que era a medida standard) equivalia a utilizarem 3 toneladas de munições, demasiado peso para andar a ser transportado às costas e ainda por cima por trilhos pelo meio da floresta.

Precisavam de algumas viaturas de carga e uma estrada por onde circular, que gasóleo já o tinham.

Por essas razões e apesar de não termos os passaportes em dia, o Caco Baldé até já nos tinha deixado ido cumprimentar os nossos amigos ao estrangeiro, a Kambera, Kumbamori e Kandiafara.

Os de Kambera não tinham sido muito calorosos a receber-nos, ficaram chateados por lá termos ido logo a seguir ao almoço, o pessoal devia de estar a dormir a sesta, tinham lá alguns cubanos a passar férias que nos devem ter gritado alguns piropos do tipo “gilipollas de mierda... no me toques el coño”...

E até aconteceram umas cenas engraçadas e com uma certa ligação bíblica, um amigo meu ao querer afundar a barcaça que fazia a cambança do rio (que teria uns 90 metros de largura) errou a pontaria e acertou... no rio.

Ainda assim não tinha havido nenhum problema, durante alguns segundos e tal como Moisés quando quis atravessar o Mar Vermelho, a água desapareceu por completo, o fundo lodoso bem à vista.

Depois, quando a água regressou tipo tsunami, foi a vez da barcaça desaparecer.

Em Kumbamori tínhamos participado numa excursão conjunta com o pessoal de terra, sabem como é aquele ditado, meias só para as pernas, uns a trabalhar e outros a ficarem com a fama e o proveito.

Já os de Kandiafara tinham-nos recebido muito bem, com “fogo-de-artifício” e tudo.

Ficaram surpreendidos já que não esperavam que viéssemos de tão longe só para os cumprimentar, grande alegria por nos verem, a foguetada parecia daquelas festas lá para o Minho, no fim até nos agradeceram, tínhamos lá deixado 36 buracos (ainda que um pouco grandes), num futuro próximo bastava-lhes juntar um “Drive Range” e um Bar e tinham ali de imediato dois belos campos de golf, até já estou a imaginar, o “KANDY COUNTRY CLUB (Members Only)”.

Voltando ao sábado 23 de Junho, era necessário fazer diminuir a tensão acumulada nos últimos tempos, o pessoal estava a ficar um pouco “cacimbado” (se fosse hoje dizíamos “com stress pós-traumático”) pelo que, muito em segredo foi planeada uma grande operação envolvendo todo o pessoal do Grupo Operacional, pilotos, mecânicos da linha da frente, pessoal da manutenção, bombeiros e enfermeiras pára-quedistas para o caso de uma eventual evacuação.

Como sabem, toda a operação que se preze tem que ter um nome de código que a identifique, ainda pensámos em “Granito” ou “Basalto”, logo nos disseram que operações com nomes de pedras nem pensar, estavam reservados para algum VIP, optámos por algo mais singelo:

“Guerra é guerra e que ninguém se balde”.

O sinal para o início da movimentação das tropas seria dado com a chegada, tão discreta quanto possível, de um avião NORD-ATLAS vindo de Lisboa.

E ele acabou por aterrar em Bissau ao alvorecer do dia 23 de Junho com a sua carga ultra-secreta, estacionando em local fora do habitual para não dar nas vistas, descarregando de imediato inúmeras caixas de madeira devidamente acondicionadas e tapadas para que ninguém visse com que tipo de munições iríamos atacar o inimigo.

Logo pensaram os mais politizados que devia ser alguma nova arma secreta, provavelmente proibida pela Convenção de Genebra, tinha de ser algo bem pior que o napalm, que, ao contrário do constava nos cafés, até nem era proibido (só o passou a ser a partir de 1983).

E que impropérios diria lá na sua rádio argelina aquele gajo de voz grossa e que agora quer ser vosso “Comandante” (que meu nunca será), quando soubesse da marosca?

Sem preocupações com todos estes pruridos, de imediato a máquina militar se pôs em movimento, ordens e contra-ordens à boa maneira portuguesa, os do QP a mandar, os Milicianos a vergar a mola.

Durante a tarde instalaram-se os assadores típicos da FAP (meio bidon a trabalhar a carvão e a combustível de avião JP4), descascaram-se as batatas, prepararam-se o tinto e as saladas...

Ao inicio da noite e após um very-light para sinalizar o local do objectivo, ouviu-se finalmente o sinal de chamamento para o ataque, “Horrendo, Fero, Ingente e Temeroso”.

Rapidamente manobrámos pelo fogo e pela manobra tal como tínhamos aprendido nos compêndios militares, as sardinhas saltavam das caixas de madeira para os assadores, daí para o pão ou prato conforme o treino do combatente, tiro e queda, limpar a arma e remuniciar de imediato, as “bazucas da Sagres” em disparos sucessivos, os invólucros a espalharem-se por todo o lado, as ordens a ecoarem:

“Ninguém manda alto ao fogo que o inimigo tá bravo”.

A noite correu pelo melhor, comeu-se, bebeu-se e conviveu-se como só se conseguia conviver nas noites africanas.

À volta dos assadores encontrámo-nos quase todos, o Coronel, os Majores (um deles do Exército, sortudo, fazia de oficial de ligação), Tenentes, Furriéis, Cabos e Soldados, que na Força Aérea sempre foi assim, “serviço é serviço e conhaque é conhaque”.

Ausências notadas foram a do nosso Comandante, Tenente-coronel Almeida Brito, o Maj. Mantovani Filipe (nosso oficial de ligação junto do QG), os Furriéis João Baltazar e António Ferreira e o Cabo Cóias, todos eles abatidos por mísseis Strela há menos de dois meses.

Já me esquecia, faltou também o meu amigo Miguel Pessoa, até tínhamos ficado um bocado chateados com o tipo, tinha deixado um avião todo partido lá no meio do mato e com medo de ser admoestado tinha passado uma noite escondido e fora de casa, quando afinal nós até lhe queríamos oferecer umas férias na Metrópole.
E mais, já com o bilhete no bolso e tendo conseguido algures uma garrafa de espumante, nem sequer a tinha bebido com os amigalhaços... avarento, semítico e mal agradecido!

Mas afinal não era de estranhar que volta e meia se notasse uma ou outra ausência a estes eventos, já que na Força Aérea íamos todos à guerra, todos os dias, do Coronel ao Alferes, do Sargento ao Cabo, quer fossemos do QP ou Milicianos, homens ou mulheres.

Já agora e a talhe de foice, porque ultimamente muito se tem falado de associações de antigos combatentes, o que fazem, não fazem mas deviam fazer, deixem-me também referir algo interessante e que demonstra um certo carinho que a Liga dos Combatentes (LC) tem demonstrado pelo pessoal da FAP.

Não obstante um certo número de militares da FAP terem perdido a vida por efeito do fogo inimigo (antiaéreas ou mísseis Strela), a base de dados da Liga ainda hoje não regista os seus nomes, (certamente para que as famílias não fiquem traumatizadas), ou então regista-os como se esses militares tivessem morrido em... “acidentes”.

Grande visão, na lógica e no pragmatismo do raciocínio, estavam no ar, foram alvejados e atingidos, caíram, logo foi um acidente... La Palice no seu melhor.

Se bem que ao pensar melhor, até talvez tenham razão, podemos considerar que houve um primeiro acidente, a colisão da bala ou do míssil com a aeronave e um segundo acidente, o choque com o solo...

Só que então não deve ser considerado acidente mas sim... “um duplo acidente”.

E o caso mais interessante até foi o que ocorreu lá para as bandas de Bigene, um piloto levava como passageiro um Major do Exército, o piloto ainda hoje não consta na lista das baixas do Ultramar enquanto que o Major foi desde logo considerado “morto em combate”.

Não sou dos que acredita num ALÉM DIVINO mas, a haver, estou certo que também os meus amigos Maj. Castelo, Cap. Ventura, Ten. Lourenço e Alf. Manso me estarão a sorrir...

Aguentem rapazes que isto ainda se vai resolver, nem que seja daqui a 100 ou 200 anos!

De qualquer modo e para abreviar o tema, esta malta também não tinha nada que andar no ar, ou não fossem todos eles uns “gandas malucos”.

E por outro lado lá está a matemática outra vez a encravar, se constava que já não voavam como é que tinham acidentes?

Dir-me-ão os mais intolerantes, “ Ó pá, em vez de estares aqui a mandar vir, porque não tentas solucionar o caso junto das autoridades competentes?”

Ou os mais conciliadores, como aquele do “Contra-Informação”, ”Anda, avança, estou contigo...”

Ou os outros, os que se fartam de falar... “Pois...”

Já tentei, e bem mais que uma vez!

“Que escuso de ficar descansado”... “é que se vai já tratar do assunto”...

Deixem-me dizer-vos que penso ser este o nosso grande problema, o nosso grande fado, “tratar dos assuntos sem que os assuntos fiquem tratados”, ou por outras palavras “encanar a perna à rã”.

E se não acreditam recordem-se do Sócrates, ou do Passos Coelho, ou do Queiroz, ou do Madaíl...

Mas com estes apartes vou-me afastando do tema...

Voltando ao combate da Bissalanca, uma verdade indiscutível é que depois de uma sardinhada é sempre necessário uma bebida forte, branca de preferência, sem a qual a digestão se torna lenta e difícil.

Lá para o fim do repasto o 1º Cabo Hélder, um dos meus mecânicos do Fiat G-91, chamou-me a um canto para que provasse a aguardente especial que a família lhe tinha mandado lá da terra.

Apenas saído desta prova e já o nosso amigo e futuro bloguista Victor Barata, não querendo ficar mal visto perante o pessoal das aeronaves de caça (sempre as rivalidades), me apresentou um medronho de primeira.

E depois foi o Miguel e o Mário, e o Correia, igualmente Cabos da Linha da Frente e a quem eu todos os dias confiava a vida ao entrar para um Fiat-G91 por eles devidamente abastecido, municiado e inspeccionado, cada um deles a tentar demonstrar que os bagaços das suas terras eram bem melhores que os restantes.

Por volta da meia-noite a batalha estava terminada, o inimigo completamente destroçado, era tempo de ir dormir, que no dia seguinte e apesar de ser domingo, a outra guerra continuava.

Só que depois de ter passado quase 1 ano a dormir no “Biafra” da Base, a minha cama estava agora a uns bons dez kilómetros de distancia, tinha passado a viver em Bissau, as razões que me levaram a fazer a troca foram duas, o ter constatado que nos últimos seis meses só tinha jantado “francesinhas” e, já que vivia na base, estar permanentemente de serviço, com alvorada às 05:30 (... já que moras na base ficas de alerta!!).

O regresso a casa não tinha qualquer problema, já que tinha como meio de transporte a minha moto, uma bela, potente e roxa Yamaha 200 a 2 tempos, comprada com 16 notas da Metrópole, ali para os lados do que chamávamos a Av. da Liberdade (a que ia do Palácio do Governador ao cais).

Cabe aqui um outro parêntesis para informar que a primeira vez que andei de moto foi no dia que a fui buscar ao stand.

Ao pretender saber como se metiam as mudanças o vendedor tão assustado ficou que não ma queria vender, só as D. Marias entregues ali mesmo e no momento o descansaram.

“Ó homem deixe-se de merdices, abra lá a porta do stand e saia-me da frente”, e assim entrei na confusão do trânsito de Bissau.

Voltando à história, ainda estive uma meia hora recostado naquelas grandes valas que existiam na Base para escoar a água das chuvas, a ver se conseguia contar as estrelas, que a maior parte delas não parava de oscilar.

A ideia era tentar alinhar os gyros e decidir se havia de me meter ao caminho ou não, o problema não era o balão, que nesse tempo não existia, nem as estrelas aos saltos mas sim o estranho caso da estrada estar a ficar ondulada, tipo jibóia (e não me venham cá dizer que não há jibóias na Guiné, que eu até as vi).

Após profunda meditação e analisando os prós e os contras, resolvi meter-me ao caminho.

Lembro-me apenas de sair à porta de armas e de algum tempo mais tarde ter passado junto a um ou dois quartéis que existiam à beira da estrada, poucas referências para o trajecto de cerca de dez quilómetros.

Enquanto circulava de gás à tábua o meu pensamento não parava de me alertar para que ao chegar ao destino tinha que travar, travar... travar.

E assim aconteceu, para além dos mosquitos, moscardos e correlativos a esborracharem-se com fragor no capacete, consegui fazer o percurso sem bater em nada nem em ninguém (ou não fosse eu um piloto de caça).

A terceira referência da viagem foi a porta do meu apartamento onde, a travar, a travar, acabei por vir a bater já muito devagarinho, mas ainda assim com algum estrondo.

E tão contente fiquei de ter chegado (e parado) que nem sequer me lembrei que, como passo seguinte, tinha de pôr os pés no chão, trambolhão da moto abaixo, a 0km/h.

Na manhã seguinte fui voar com um braço todo entrapado e umas pastilhas para as dores, tomadas numa auto-medicação bem à revelia do médico, que um dos ombros estava em mau estado.

Felizmente que foi um dia muito calmo, acabei por só fazer uma missão, 40 minutos de voo, 2 bombas de 750 libras algures na Guiné, mais 2 buracos dos grandes, os que sabiam que os continuávamos a apoiar devem-nas ter ouvido... os outros certamente que não.

Hoje, passados 37 anos o vício das motos ficou, trambolhões só dei mais um, também a 0 km/h.

E ficou a saudade dos bons momentos passados na Base da Bissalanca.

Um Abraço,
António Martins de Matos
Ten PilAv da BA12
____________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
22 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 – P6629: FAP (50): A Associação dos Deficientes das Forças Armadas homenageou Força Aérea Portuguesa (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P7034: Carta aberta a... (4): Camarada (de armas) António Lobo Antunes (António Graça de Abreu)



República Popular da China > Agosto de 2010 > O nosso camarada António Graça Abreu em locais facilmente reconhecíveis pelo leitor ocidental  (com  excepção talvez do segundo a contar de cima): (i) a Grande Muralha da China, (ii) o oásis de Dunhuang, no deserto de Gobi, província de Gansu, (iii) a Praça de Tiananmen, em Pequim.

Fotos: António Graça Abreu (2010). Direitos reservados



1.Carta aberta ao Camarada António Lobo Antunes

Areias, Estoril, 5 de Setembro de 2010

Herdei alguma coisa dele (o pai): A solidão feroz, a capacidade de ser horrivelmente desgradável para os outros, (…) a agressividade injusta.

António Lobo Antunes, revista Visão, 2 de Setembro de 2010

António Lobo Antunes: Quando o Benfica jogava, púnhamos os altifalantes virados para a mata, e assim não havia ataques.

Jornalista: Parava a guerra?

António Lobo Antunes: Parava a guerra. Até o MPLA era do Benfica…

(Entrevista à revista Visão, Maio de 2005)



Camarada António Lobo Antunes

Comecemos pois pela bola.

Nós lá em Cufar, no sul da Guiné, 73/74, era mais para o verde, a Companhia de Caçadores 4740 até se denominava “Os Leões de Cufar.”

Quando o Sporting jogava, fazíamos quase o mesmo que vocês no leste de Angola, voltámos os nossos rádios (éramos pobrezinhos, não dispúnhamos de altifalantes!...) para a floresta e era certo, sabido e garantido que os guerrilheiros do PAIGC, todos sportinguistas, não nos atacavam. Vinham até ao arame farpado e por ali se quedavam, do outro lado, entusiasmados, embevecidos, felizes ouvindo os relatos do Nuno Brás e do Artur Agostinho, e os golos do Yazalde.

Mas escrevo-te não por causa do futebol. Questões mais momentosas e importantes têm trazido o teu nome para a ribalta sofrida dos ex-combatentes das guerras de África.

Tu não sabes, -- também como honestamente confessas, não vês televisão, não ouves rádio, não lês jornais, não tens net, enfim vives numa torre de ébano voltada para o lado opaco do quotidiano das gentes --, tu não sabes, dizia eu, mas no último fim de semana de Agosto reuniram-se em Monte Real, Leiria, um tantos ex-combatentes do Ultramar, com o objectivo de tentar entender e explicar as estranhas, as nebulosas afirmações do António Lobo Antunes sobre a sua guerra no leste de Angola, 1971/73.

Como deves recordar, o ano passado, em entrevista ao Céu e Silva, referiste as 150 baixas do teu batalhão e os pontos ganhos pelos teus soldados, conforme iam abatendo inimigos para, infatigáveis matadores, conseguirem ser mudados para regiões de Angola menos flageladas pela guerra.

Não foi fácil para os ex-combatentes chegarem a um consenso definitivo no que às tuas palavras diz respeito. Reunidos na clareira de uma mata junto ao o pinhal de Leiria, gentilmente cedida pelos herdeiros do Lúcio Tomé Féteira, os representantes dos ex-militares portugueses agrupados na ACNMNVAPC (Associação dos Combatentes Nem Mortos, nem Vivos, antes pelo Contrário) acabaram por concluir:

Primeiro:

150 baixas por batalhão não é uma boa média. Os nossos valentes e garbosos soldados gostavam de ter tido mais baixas. O problema é que quase não as havia. O leste de Angola como tu bem sabes, caro António, era o cu de Judas, terras do fim do mundo pouco povoadas, onde até os elefantes se esqueciam que possuíam uma prodigiosa memória de elefante.

As mulheres do leste de Angola não eram baixas, mas sim espigadotas, altas, secas de carne, peitos pequenos e encolhidos. Uma baixa constituía uma raridade. Estas baixas, sim, eram uma tentação para qualquer soldado, português, angolano, cidadão do mundo. De nádegas redondas e brilhantes, de peitos alteados e firmes, romãs suculentas cobertas de chocolate, estas baixas eram a perdição dos nossos excelentes mocetões. Fiéis aos ensinamentos do vetusto Salazar, tipo “muitas raças, uma só nação”, aquelas baixas portuguesas de Angola, pestanudas, roliças transformavam-se com facilidade, aos olhos da nossa tropa, na tão desejada namorada, a companheira, a vizinha, a menina branca que ficara lá longe, nostálgica, desamparada na aldeia lusitana de Vila Meã, Bensafrim, Antuã ou Cernache do Bonjardim.

O batalhão do alf. mil. médico António Lobo Antunes, lá por Angola, em Gago Coutinho, no Chiúme teve, segundo dados fornecidos por ti próprio, 150 baixas. Foi o que pôde ser, o que se pôde arranjar, e o que os deuses e os sobas do leste de Angola concederam aos nossos excelsos mancebos. Que hoje morrem de saudades – estamos todos mortos, falecidos, moribundos, semi-defuntos, etc., não é António? – por aquelas deliciosas baixas angolanas, de olhos de mel e frenéticos rabinhos empinados.

Segundo:

Quanto à procelosa questão do sistema de acumulação dos pontos obtidos com a mortandade feita sobre o IN, a fim de se obterem transferências para zonas de paz, os ex-militares das guerras de África na reunidos na tal ACNMNVAPC (Associação dos Combatentes Nem Mortos, nem Vivos, antes pelo Contrário, repito) tiveram grande dificuldade em entender tão radicais pressupostos apresentados por ti, camarada António Lobo Antunes.

Depois de muita deliberação, chegaram-se a conclusões.

Assim:

Os soldados, nos ócios da guerra, jogavam à sueca. Por jogo ganho, marcava-se uma bolinha preta na cruz de cada equipa. As cruzes iam-se enchendo de pontos negros que, por brincadeira de mau gosto, os nossos homens, associavam a cabeças de guerrilheiros. Como bem recordaste na entrevista ao jornal Expresso, a 28 de Agosto, “ninguém desce vivo da cruz”, nem sequer numa suecada à antiga. Podes pois imaginar a razia nas hostes inimigas que, jogando à sueca, provocávamos.

Mas há mais.

Os soldados jogavam à sueca, os sargentos e oficiais jogavam mais à batalha naval. Nesta última variante lúdica, como sabes, o objectivo era afundar contra-torpedeiros, submarinos, até porta-aviões. Também por brincadeira de mau gosto, os homens do teu batalhão diziam que os navios iam carregados de velhos, mulheres e crianças oriundas do Leste de Angola. Embarcavam em Luanda e depois, mar alto com eles… Cada barco ao fundo, era um morticínio atroz.

A tropa portuguesa jogava a dinheiro. Marcavam-se pontos e fizeram-se boas maquias, houve muito patacão arrecadado que os nossos militares, de férias, iam patrioticamente gastar em zonas onde a guerra estava ausente, no Luso e até em Luanda.

Está tudo explicado.

Saudações de camarada de armas,
António Graça de Abreu, alf mil infantaria, Comando de Agrupamento Operacional nº. 1, Guiné, 1972/1974.

[Fixação / revisão de texto / título: L.G.]


2. Comentário de L.G.:

O António acaba de regressar de mais  uma das suas viagens "sínicas" (leia-se: à China)... Julgo que desta vez foi também em trabalho. No regresso mostra estar em boa forma, a avaliar por esta carta aberta ao António Lobo Antunes que, antes de ser escritor famoso, foi nosso camarada de armas... em Angola.

A carta é uma peça, notável, de fino humor, deliciosa, inteligente, civilizada, irónica. Não sei se o destinatário é o ALA. Tenho dúvidas... De qualquer modo, sabemos, à partida, que o ALA não a vai ler, pela simples razão de que ele é um público e notório info-excluído (segundo a imprensa escrita, o ALA não tem computador, nem e-mail, nem página na Net, nem conta no Facebook, nem nenhum dessas tretas das chamadas TIC - Tecnologias de Informação e Conhecimento, que são obrigatórias para se ser membro deste blogue, por exemplo).

O António Graça de Abreu, além do mais, vem cheio de energia: no próximo dia  2 de Outubro a 18 de Dezembro, vai dar início, no Museu do Oriente / Fundação do Oriente, de um curso, de 12 sessões, sempre aos sábados, das 10h00 às 12h30, com o título Introdução à História da China. O preço de inscrição é de 100 euros. Esta iniciativa já foi divulgada internamente na nossa Tabanca Grande.

Desejamos-lhe que tudo corra bem e que, entre os inscritos, haja malta nossa, interessada em aprofundar os seus conhecimentos sobre a civilização e cultura chineses...

É explicitamente objectivo do curso ao longo de 12 sessões  "pontuar os períodos de crescimento, apogeu, estabilidade e decadência do velho Império do Meio. E caminhar, com todo o rigor possível, pela História, as mentalidades, a cultura, a construção dos quotidianos na China Clássica e Contemporânea. Macau e os Portugueses na China estarão naturalmente presentes, tal como o nosso Museu do Oriente".