1. Mensagem de Albino Silva* (ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70), com data de 16 de Março de 2011:
Caro Carlos Vinhal
Desta vez um pouco diferente do habitual, mando este meu trabalho que mais não lembra se não o meu início de vida em terras africanas, e da forma que eu aqui descrevo, pois é a realidade vivida há 50 anos, mas que em mim durará para todo o sempre.
Foi duro, e por vezes falta-me a coragem para falar de tantas mais coisas que lá vivi após esse malvado dia15 de Março, que sinceramente apesar dos maus bocados passados na Guiné, Camabatela nunca me saiu da memória.
Um Abraço,
Albino Silva
15 de Março de 1961 Norte de Angola
Foi há precisamente 50 Anos
Caros Camaradas da Nossa Tabanca Grande.
Normalmente escrevo aqui neste nosso refúgio que é a Tabanca Grande, referindo-me sempre à Guiné, pois foi lá fiz a minha Comissão de Serviço. Hoje, em especial, vou falar um pouco de Angola, concretamente de Camabatela bem lá no Norte que há 50 anos que deixei. Fui novo para lá, tinha somente 11 anos, pouco depois de ter acabado a Escola.
Em Camabatela trabalhei dentro de balcões para patrões que me fizeram encarar a vida do trabalho de frente, ao mesmo tempo me ensinavam a ser homem, e eu lá ia aprendendo, sentindo-me feliz, já que naquela Vila toda a gente era minha amiga e eu era um rapazito com vontade de aprender, respeitando todas as pessoas daquela linda Vila de Camabatela de quem eu já gostava imenso.
Em Dezembro de 1960 fui para uma fazenda de café chamada Roça Boa Sorte, e por lá andei até ao dia 18 de Março de 1961.
Na roça, que era muito grande, eu andava igualmente feliz. Havia empregados excelentes bem como seu Gerente e até dos nativos das sanzalas que lá havia também era amigo e com quem até brincava.
Tudo corria maravilhosamente embora andássemos um pouco desconfiados pelos acontecimentos de antes em Luanda e do assalto ao paquete Santa Maria.
15 de MARÇO. O terror, os massacres e as chacinas fizeram com que o medo se apoderasse de mim, tanto mais que naquela roça havia cerca de 300 negros a trabalhar na capinagem que depois na apanha do café, e tendo como ferramentas catanas, as afiavam todos os dias para darem melhor rendimento de trabalho. Já era normal ver isso no dia-a-dia sem imaginar outras coisas.
Manhã cedo na região do Quitexe foram assassinados nas suas fazendas os brancos incluindo senhoras e crianças, algumas delas que eu conhecia e cheguei a andar com elas ao colo, quando por essas fazendas passava. Lembro que conhecia bem o Uige, Negage, Sanza Pombo, Quitexe, e todas aquelas povoações até Maquela do Zombo.
Um amigo nosso que tinha ido ao Uige, no regresso, ao passar pelo Quitexe, deparou com os negros em correria, de paus afiados e de catanas nas mãos, já ensanguentadas, a gritarem: Upa! Upa! Upa! - e ao entrar numa loja de um amigo para beber uma Cuca, viu os negros pedirem bebidas. Quando o amigo chegou ao balcão para as entregar, logo os bandidos de catana em punho lhes cortaram o pescoço. Ao verem que estava lá outro branco, correram sobre ele mas como tinha a carrinha à porta, conseguiu em alta velocidade ir até Camabatela, avisando o Administrador e a população, e de seguida ir para a sua pequena fazenda para avisar seus empregados daquilo que tinha visto, para se acautelarem.
A sua fazenda era perto daquela em que eu estava, e ele para ganhar terreno passou pelo Roça Boa Sorte que lhe era mais perto, avisou-nos do sucedido ainda com o voz trémula e muito assustado.
Na roça trabalhavam, além do gerente, 5 homens brancos seus capatazes, o enfermeiro e o motorista que eram africanos e juntaram a nós com o medo dos bandidos da Upa. Logo se começou a montar um refúgio para nossa segurança, já que Camabatela ficava a 35Km e as estradas mais não eram senão picadas cheias de buracos com pequenos morros e perigosos que convidavam a andar devagar.
Na roça, estive escondido os dias todos durante mais uma semana. Então o motorista de nome Venâncio (soube há dias que faleceu há cerca de 6 meses) encheu-se de coragem, e de camião me trouxe para Camabatela juntamente com outras pessoas.
Em Camabatela toda a gente andava assustada, havia choros e lamentos, porque já tinha havido tentativas para invadirem a Vila, não fosse os homens de Camabatela se juntarem todos, e de armas nas mãos, ou seja caçadeiras, guardarem a Vila e protegerem as mulheres e as crianças, fazendo piquetes de vigilância quer de dia ou de noite. Durante mais de um mês, ao cair da tarde, as senhoras e as crianças iam dormir para a Igreja, e claro eu também.
A Igreja estava lotada com colchões pelo chão. Tinhamos como companhia o Padroeiro da Vila e a imagem da Senhora de Fátima a quem tanto pedíamos protecção, enquanto os homens valentes nos protegiam fora com patrulhamento em redor da Vila, até á Missão onde estavam os Capuchinhos.
Na Administração foram descobertos funcionários de raça negra que já tinham programado o dia de nos atacar. Numa lista elaborada por eles já sabiam as mulheres que cada um iam ter porque tudo estava programado. Preparavam-se para atacar quando foram descobertos. Alguns deles foram tantas vezes acarinhados pela boa gente da Vila porque faziam parte da equipa de futebol e davam glórias ao clube e a toda a Gente.
Enquanto tudo acontecia, eu continuava refugiado dentro da Igreja, a qual ainda hoje guardo na memória pelo acolhimento que me deu, e garanto que se ela falasse teria por certo muita coisa a dizer.
Pelos acontecimentos vividos e pelo perigo constante, o medo estava instalado entre nós, até que tivemos uma noticia vinda de Luanda a dizer que ia chegar tropa a Camabatela para nos dar segurança. Ficámos mais descontraídos até à chegada dessa tropa, que nos viria a surpreender, pois quando na pista aterrou um avião Dakota, dele apenas saíram sete soldados com espingarda Mauser, com mais medo do que nós, pois Camabatela não era Luanda, e apenas haviam lá os cipaios e nem esses eram seguros.
Se havia medo até ali, o mesmo continuou depois, porque apenas dependíamos dos corajosos homens de Camabatela.
Em meados de Maio deixei Camabatela porque o perigo ia alastrando por todo o Norte e era aconselhável que senhoras e crianças deixassem a vila, sendo obrigatório para os homens lá continuar para a guardar. Apenas faltava alguém que nos levasse até Luanda, mas não havia ninguém que se fizesse à estrada porque havia o receio de emboscadas no trajecto, uma vez que o capim estava bastante alto e não havia visão alguma naquelas estradas acidentadas cheias de buracos, do tempo das chuvas, com o capim bem debruçado sobre elas.
Num dia de calor bem intenso, vindo do Negage apareceu um camionista habituado à estrada já que transportava café para Luanda na época dele. Em conversa num restaurante de Camabatela “Hotel Bandeira", ofereceu-se corajosamente para nos levar até Vila Salazar que era para onde se dirigia com o seu velho camião Mercedes.
Por conselho do Administrador, em frente da Igreja de Camabatela entrámos nesse camião 42 pessoas, entre senhoras, crianças e dois velhotes, acamados uns por cima dos outros, para fazer a viagem até Vila Salazar.
Eram duas horas da tarde desse dia quando deitei os olhos pela última vez naquela linda Igreja da minha Vila e chorei quando lhe agradeci me ter guardado, também por saber que nunca mais lá voltaria.
Arrancámos com choros pelos familiares que iriam continuar naquele perigo (meu pai), todos deitados para ninguém nos ver. Lá seguimos estrada fora com muito medo, mas com muita confiança naquele camionista que nos prometeu não parar na viagem, pois podíamos ser atacados. Pelas 9 horas da noite chegámos a Lucala, e depois de uma curta paragem para descanso, seguimos viagem até Vila Salazar, onde entrámos eram 11,30 da noite, e logo fomos encaminhados para umas casas que estavam desabitadas, onde fiquei mais um mês até que o Administrador, com medo que se alastrasse o terrorismo, nos meteu no comboio para Luanda.
Em Luanda, concentrados num velho Hotel de Luanda que era perto do edifício da Cuca, comíamos e dormiamos mas também inseguros, porque dias depois infiltrou-se lá um negro para ajudar nos serviços de cozinha, com a intenção de colocar veneno na comida. Foi apanhado antes de o fazer e logo a Policia se encarregou dele.
Todos os dias em Luanda eu fazia correrias para a Cruz Vermelha Portuguesa e Caritas, para me mandarem embora, fosse de barco ou de avião, e lá via constantemente a chegar pessoas que andavam aos quinze dias pelas matas cheios de sangue e alguns feridos com catanadas, provenientes dos ataques de bandidos que matavam tudo e todos, até os de sua cor, só porque eram criados de brancos, como alguns de Camabatela que assim morreram e que eu bem conhecia porque ainda tive tempo de brincar com eles.
Ao fim de dois meses lá consegui sair daquele horror e daquele medo de morte.
Meu pai nada sabia e só passado dois meses de eu estar cá é que soube que eu tinha chegado bem junto da família que cá viveu dias tristes e com o mesmo medo.
Lembro-me de que deixei Luanda num dia às 4,00 horas da tarde, num velho Avião da TAIP, “ Transportes Aéreos Índia Portuguesa", um quadrimotor, estava a caír uma chuva miudinha que se juntou às minhas lágrimas porque sabia que jamais voltaria a Angola, e 24,30 horas depois chegava eu a Lisboa, e por incrível que pareça, Lisboa também chorava.
Tudo isto se passou comigo já lá vão 50 anos, e continuo a recordar tudo como se fosse hoje.
Fiquei deveras traumatizado e hoje vivo ainda aqueles dias de terror que por lá passei.
Cá, com medo de voltar para lá, fugi de assalto para França quando estava a chegar a altura de ir à inspecção militar, mas durante um ano em França não me sentia bem em pensar que outros teriam de ir na minha vez e que nada conheciam. Devia ser eu a me vingar daquele passado, e comecei a ter remorsos.
Voltei para fazer a tropa, e quando julguei que ia para Angola, fui para a Guiné. Lá cumpri minha Missão.
Cinquenta anos depois ainda vivo tudo isto, mas com saudades de Camabatela e daquela linda Igreja que vi construir e que deixei ainda por acabar mas que me agasalhou. É esta que envio e que me dá alegria em a olhar assim tão linda.
OBS:
Dos diversos Blogues sobre Camabatela, tenho o mais recente em:
camabatelaemagia.blogspot.com/
Lá esta adicionado a nossa Tabanca Grande.
O meu actual E-mail é,
bynisil@hotmail.com
Um especial abraço para toda a nossa Tabanca.
Revisão e fixação do texto:
Carlos Vinhal
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 15 de Março de 2011 >
Guiné 63/74 - P7945: (Ex)citações (133): Editor, precisa-se! (Albino Silva, ex-Sold Maq, CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70,... com saudades da linda vila de Camabeta, Angola)