1. Mensagem de Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 15 de Setembro de 2011:
Caros Luís e Vinhal:
Recebam um grande abraço de estima e consideração, extensivo ao meu querido amigo Magalhães Ribeiro.
Aqui vai mais um extracto das minhas memórias (escritas).
Passem bem.
Rui Silva
Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”
Quando do PCA (Posto Comando Aéreo) veio a ordem para avançarem os dois Grupos de Combate da 816 para atacar a base de Morés.
- … viajei num Dornier com o inimigo, na véspera, o “manjaco”.
- … na emaranhada mata de Morés, vegetação “inexpugnável”, andar de gatas, lianas no pescoço, quico que se perde, catanas à esquerda e à direita a abrir caminho.
- … já dentro da mata, o inimigo surpreende-nos com morteiradas esporádicas, mas sem saber onde estávamos ao certo. Ouvia-se a percussão das granadas.
- Assisti ao diálogo, via rádio, entre o Comandante da força de assalto e o PCA que chegou a querer que avançássemos (2 pelotões!), … que estávamos perto.
Chegados a Bissau, de férias na metrópole, eu, o Baião, o Piedade e o Coutinho logo soubemos o que já também prevíamos, que a Companhia já estava instalada no Olossato e portanto era para lá que nos devíamos dirigir. A Companhia tinha deixado Bissorã depois de 5 meses ali aquartelados e a bater a zona, claro.
Uma vez em Mansoa (trampolim para o Olossato) foram primeiro o Baião, o Piedade e o Coutinho, em Dornier. Um dos quatro, por não ter lugar, teria de ficar para o próximo transporte e então foi eu o escolhido.
Em Mansoa aguardei que houvesse coluna ou lugar numa avioneta que fosse para lá, isto é para Olossato.
Passados três dias eis então que me surge a ordem para tomar lugar num “Dornier” que ia para o Olossato. Ao entrar no pequeno aparelho logo me apercebi de que grande operação estava na forja. A suspeita passou à certeza quando o Capitão de Operações dos “Águias Negras” - Batalhão a que estávamos adstritos - dirigindo-se a mim, diz:
- Você vai mesmo numa boa altura....- Disse-o com um sorriso significativo.
O Dornier ia superlotado. À frente, ao lado do piloto, o dito Capitão de Operações da BArt 645 e, atrás, metido entre cunhetes de munições, granadas e mais granadas e outro material de guerra, ia eu e, virado para mim, cara-a-cara, a agradável companhia de um “turra” que ia de mãos atadas com uma corda.
Deste modo viajei num Dornier com o inimigo, na véspera, o “manjaco”.
Raciocinei então que aquele tipo fora apanhado (logo no Olossato soube que tinha sido feito prisioneiro algures na mata de Morés) e agora nos iria servir de guia em alguma operação e que não ia ser pequena pela certa, a avaliar pelo abastecimento de grande quantidade de munições.
O Capitão chegou a oferecer-me a sua pistola temendo alguma reacção do “turra” cá atrás na avioneta. Não sei até que ponto ele admitia isto. Mais tarde, em reflexão, não me custou a admitir qualquer reboliço por parte do “turra”, ainda que isso lhe pudesse custar a vida, (e a dos outros) para provocar o despenhamento da avioneta, pois lembrei-me muito bem da resistência dos presos para interrogatórios em Bissorã, onde eles preferiam arriscar até a vida a contar algo que comprometesse os seus companheiros de luta.
Era esse o meu estado mental. Ali na avioneta poderia muito bem estar ali um desses heróis. Que se passou ao lado de uma possibilidade dessas, parece-me bem que sim.
Nunca uma avioneta demorou tanto a aterrar; era esse o meu estado de espírito.
Ao fim da tarde, já no Olossato, tomei conhecimento com os meus colegas de patente, da operação em causa. Tratava-se nem mais nem menos que ir a Morés, melhor dizendo, à base de Morés, ou melhor ainda, à base central de Morés e já naquela noite.
O nome Morés infundia terror. Morés era só… a principal base de toda a região do Oio, a mais forte do norte, e seguramente das mais fortes da Guiné.
Muito bem armada - as melhores armas estavam lá -, com trincheiras e outros abrigos subterrâneos, até em cimento (dizia-se), com arrecadações que abasteciam as várias bases do Oio, hospital, e com grande efectivo. Bom “pincel”, dizíamos nós.
Por outro lado estávamos orgulhosos de sermos os escolhidos para actuarmos no principal papel numa operação: o grupo de assalto! Fazer o assalto à tão importante base terrorista da Guiné.
Morés, tão pouco ou tão muito, onde jamais a tropa tivera qualquer êxito na verdadeira acepção da palavra. Mas, ir a Morés e… porque não?
Foi o que me estava reservado logo que regressei ao seio da Companhia, após férias. Era curioso: férias com desbunda natural, a própria da idade, e logo ao “outro dia” no mato da Guiné à “procura” da morte.
Operação: Águia Negra
Objectivo: Golpe de mão à casa-de-mato (base central) de Morés
Efectivo militar:
- 2 Grupos de Combate da 816 reforçados com milícias e carregadores indígenas e outros voluntários (a troco de alguns pesos) do Olossato, à frente da coluna e como grupo de assalto (cerca de 90 homens)
- A Companhia de Caçadores n.º 1418, sediada em Bissorã, logo de seguida na coluna e em apoio à retaguarda do grupo da 816.
- Do lado de Mansabá, isto é do lado oposto, avançava uma outra Companhia servindo de “isco” e eventualmente como reforço, se necessário, ao grupo de assalto.
Data: 3 de Novembro de 1965
MEIA-NOITE! A Companhia 1418, com os dois Grupos de Combate da 816 à frente, deixa então Olossato rumo à base de Morés. À frente ia então o “turra”, meu companheiro de viagem aérea de Mansoa para Olossato. Ia devidamente aprisionado e escoltado, não fosse dar o salto. A seguir ao “turra”, nosso guia na circunstância, o 3.º Grupo de Combate, ou seja o meu, depois o 2.º e por fim a fechar a coluna os “periquitos” de Bissorã.
Mergulhados no mato e na mais completa escuridão, (des) confiados na colaboração do guia, e entregues à sorte de Deus - e do diabo também, sempre por ali perto - cerca de 200 homens, armados até aos dentes, seguiam ao encontro do inimigo, algures acoitado e bem seguro, melhor defendido e muito bem armado, dentro daquela vasta zona da complexa mata de Morés de seu nome.
Mas tudo se desmorona como um castelo de cartas. O guia ludibria-nos intencionalmente, fazendo-nos andar às voltas e mais voltas até que nos vimos em plena mata virgem - se não o era assim o parecia. Vimo-nos assim na emaranhada mata de Morés, vegetação “inexpugnável”, andar de gatas, lianas no pescoço, quico que se perde, catanas à esquerda e à direita a abrir caminho.
Aqui, com as consequentes dificuldades de progressão e orientação. Tínhamos entretanto, e como era inevitável, sido detectados, ou para isso não contribuísse o “turra” com as suas deambulações pelo mato, o que não raras vezes acontecia. Mas os “turras” da base, embora já conscientes da nossa presença nas imediações, não sabiam qual o local exacto em que nos encontrávamos, como adiante se verá.
O alvorecer, altura ideal e a combinada para o assalto, já ia bem longe. Eram agora quase 11 horas da manhã e então paramos. Aí, sentados ou de cócoras – a vegetação não dava para mais -, o Alferes Costa, da 816, que chefiava a coluna, e portanto a Operação, dada a ausência do Capitão Riquito, então de férias na metrópole, estabelece contacto com o PCA e pôs este ao corrente da situação. A resposta veio então de forma bem peremptória:
“Continuem que estão perto”.
Aqui o Capitão da 1418 insurge-se com tal determinação do PCA e ameaça não avançar mais com os seus homens em face das circunstâncias, a que não era alheio uma muito reduzida possibilidade de êxito contra a hipótese mais que viável de pagarmos tudo muito bem caro. O inimigo estava perfeitamente conhecedor das nossas intenções e… à nossa espera.
Uma vez e já dentro da mata, o inimigo surpreende-nos com morteiradas esporádicas, mas sem saber onde estávamos ao certo. Ouvia-se a percussão das granadas.
Julgo que eles batiam os trilhos, só que, nesta Operação, a ideia foi de os evitar e ir muito a corta-mato. Aqui o “manjaco” foi um bom trunfo e colaborou, até…
Entretanto as percussões de granadas de morteiro da base terrorista ouviam-se com nitidez o que queria dizer que estávamos bem perto deles. Estas eram lançadas ao redor da base, aqui e acolá, com o intuito de nos detectarem ao certo, mas isso só eles conseguiam se nós respondêssemos com qualquer tipo de fogo, o que não acontecia obviamente. Assim entre uma percussão e o rebentamento duma granada, passavam-se escassos segundos de extrema expectativa e angústia para nós. Receávamos que acabasse por cair alguma em cima de nós.
Ao fim de aturada discussão entre o Alferes Costa e o PCA, através do rádio, o PCA, em face das circunstâncias, manda então que a 1418 se instale ali fazendo a segurança à retaguarda e que PROSSEGUÍSSEMOS NÓS para o objectivo!!
Assisti ao diálogo, via rádio, entre o Comandante da força de assalto e o PCA que chegou a querer que avançássemos (2 pelotões!),… que estávamos perto.
- O quê? Só os dois Grupos de combate para a frente? Eles estão doidos!
Foi uma exclamação quase geral e em cadeia.
- Não pode ser meu Alferes! Somos muito poucos para eles.
- Eles estão mesmo à nossa espera e ainda por cima entrincheirados, e nós a peito descoberto?
Dizia este e aquele e ao fim e ao cabo o que ia no pensamento de todos. O ambiente era de evidente pessimismo e não era para menos. O Alferes Costa, em tão ingrata situação, não disfarçava o seu nervosismo. Ele tinha de cumprir a ordem e esta era de avançar para o inimigo. Incrível!!!
- Vamos lá ficar todos.
- Não temos qualquer hipótese.
- É uma operação suicida.
- O PCA fala assim porque anda lá em cima.
- Diga isso lá para cima, meu Alferes.
Estas e outras frases ouviam-se em tão caótica situação.
O Alferes Costa insiste com o PCA em reconsiderar tal estado de coisas, e este, finalmente, mas claramente contrariado, permite que regressemos ao Olossato abandonando assim a ideia de entramos suicidamente em confronto com o inimigo, instalado e avisado e super-armado. Sim, cerca de 90 homens (alguns apenas carregadores, isto é, sem armas) assaltarem uma base bem armada e melhor defendida, onde não faltavam os potentes morteiros de calibre 82 e as entrincheiradas metralhadoras pesadas, base já mais que prevenida das nossas intenções, era uma loucura, que resultaria, por certo, numa operação repleta de aspectos muito trágicos.
Assim:
Respiramos fundo uma vez libertos daquele pesadelo e a marcha de regresso começou logo a processar-se.
De Morés ficamos a conhecer o que era a mata para aqueles lados e, por pressentimento, quão forte era aquele refúgio inimigo.
Por insolação e/ou esgotamento foram evacuados vários militares.
Mas havíamos de lá voltar…
Descreve, no seu Site
Leões Negros - CCaç 13, o camarada Carlos Fortunato o que era Morés ao tempo (1970) e, que coincidindo com a minha percepção e leitura, na altura, sobre aquele tão importante refúgio de Morés em 1966, transcrevo com a devida autorização do Carlos Fortunato, assim como as fotografias que se inserem.
No entanto, ao meu tempo, ainda não se falava na presença de cubanos, nem de canhões, e tenho consciência também, que Morés foi melhorando, com o tempo, aquela fortaleza, cada vez com armas mais sofisticadas e abrigos mais consistentes, ou Morés não fosse o “santuário” do PAIGC no centro da Guiné:
Uma escola na Tabanca de Morés
A mata do Morés era um dos nomes míticos da guerra na Guiné, tratava-se de uma mata muito densa, no meio da Guiné, na qual se encontrava situado o quartel general da zona norte do PAIGC.
A mata do Morés era um dos “santuários” da guerrilha, apenas superado pelas zonas junto à fronteira sul, pois aí com forte apoio do exterior, e com boas linhas de abastecimento vindas do território da Guiné-Conakry, o seu poder de fogo era inesgotável, transformando num inferno os aquartelamentos junto à fronteira. Na fronteira norte o problema na altura ainda não era tão grave, pois o apoio do Senegal, ainda não era um apoio declarado.
Nesta mata, segundo as informações existentes na altura, a guerrilha possuía uma força estimada em 900 homens bem equipados, onde se incluíam forças especializadas, cubanos, armas pesadas, anti-aéreas, abrigos subterrâneos contra bombardeamentos, hospital subterrâneo, etc.
Abrigo subterrâneo na base de Morés
Apesar de ser uma certeza de que possuía forças consideráveis na zona, era sempre difícil avaliar a dimensão das forças que iríamos enfrentar, pois a guerrilha facilmente as dispersava pelos vários acampamentos existentes, ou as concentrava se existisse um alvo que quisesse destruir.
No centro desta mata existia a tabanca do Morés, mas sem grande importância, e sem grande possibilidade de defesa, pois encontra-se em terreno aberto.
As bases do PAIGC estavam espalhadas pela mata, bem camufladas e era frequente a sua mudança, para evitar a sua localização.
O sucesso de uma operação nesta mata, dependia muito das informações conseguidas por dissidentes do PAIGC, nomeadamente quando se conhecia a localização de depósitos de material, não era este o caso da nossa “visita”, pois creio que se queria apenas afirmar ao PAIGC, que não existia nenhum local onde não pudéssemos ir.
Pelo que nos foi dado observar na nossa rápida “visita”, a mata possuía caminhos muito estreitos e alguns deles minados, ladeados por um mato tão cerrado que era impossível passar, ou lançar uma granada, nos lados desses caminhos trincheiras, para ninhos de metralhadoras, nas copas de algumas árvores uma placa de madeira e uma caixa, indicavam locais de vigia e talvez a existência de um sistema de comunicações, os abrigos anti-aéreos eram muito rudimentares, e consistiam num enorme buraco cavado no chão, sem qualquer estrutura que o suportasse.
Uma cozinha em Morés
Combater no meio da mata do Morés colocava grandes dificuldades, a primeira era que ficávamos privados de apoio aéreo (a vegetação é de tal modo cerrada que não se consegue sinalizar a nossa posição, para a aviação nos dar apoio, são escassas as clareiras e normalmente estão sob a mira dos morteiros), as progressões são difíceis ( tem que se caminhar agachado ou a rastejar, para conseguir passar entre as árvores), a alternativa de seguir pelos trilhos existentes tinha os problemas referidos anteriormente, pois existia um sistema defensivo implementado, que mesmo sendo rudimentar, dava-lhes vantagem, uma grande vantagem, num confronto com as nossas tropas.
Apesar de a actividade da guerrilha se caracterizar por acções de flagelação e fuga, a verdade é que nalguns casos excepcionais esta começava a defender terreno, como o caso do Morés.
Uma ocupação deste tipo de terreno, implicava muitas baixas, e a guerrilha acabaria sempre por fugir e regressar mais tarde.
O PAIGC considerava-se invencível nesta mata.”
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Agosto de 2011 >
Guiné 63/74 – P8684: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (13): Como se apanha uma alcunha logo no primeiro dia de Guiné