quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8632: (In)citações (32): Como nasce, vive e morre o homem africano (Artur Augusto Silva, Bissau, 1963)

 1. Excerto reproduzido, com a devida vénia do livro Pequena viagem através de África, de Artur Augusto da Silva (1912-1983), pp. 18-21 (Originalmente, uma "conferência pronunciaad em 1963  no Salão Nobre da Associação Comercial da Guiné, no 46º aniversário da sua fundação", publicado em Bissau, 2009; ed lit, Henrique Schwarz, João Schwarz e Carlos Schawarz).
 
(…) Para que se possa fazer uma ideia aproximada de como vivem os africanos, em sistema tribal, tomaremos por exemplo um homem e segui-lo-emos desde o nascimento até a morte. Como variantes mais ou menos acentuadas, conforme a tribo, é a seguinte a sua história.

Nascimento

Nasceu a criança: torna-se necessário afastar do seu caminho os espíritos maus e evitar que eles a venham buscar, agarrando-a pelos cabelos. A primeira cerimónia que se realiza é a do corte dos cabelos. Os maometanos costumam rapar quase toda a cabeça, deixando uma mecha pequena pela qual Alá possa agarrar o recém-nascido e levá-lo para o céu, na hipótese de uma doença fatal.

Amamentação

Até aos dois anos e meio, três anos, as crianças são amamentadas pelas mães, pois a dificuldade de encontrar alimentação adequada obriga a prolongar o período de lactação. Até esse período a criança vive quase todo o tempo escarranchada nas costas maternas segura por um pano amarrado na frente. Aí dorme e aí é amamentada, pois as mães, repuxando os seios, passam-nos por baixo das axilas, de forma a atingir a boca da criança. Só à noite, quando a mãe vai dormir, é que a tira da posição em que estava, para a deitar a seu lado.

Outros alimentos

Com a criança escarranchada, a mãe cozinha, lava a roupa, tece, lavra os campos, colhe os frutos, dança, caminha longas jornadas, come e conversa.

Cerca dos dois anos, já a crianças começa comendo do que os adultos comem: arroz ou milho, inhame, batata-doce, frutos silvestres, amendoim torrado ou pilado, folhas de certas árvores, peixe verde ou seco, carne e leite azedo, acompanhado de óleo de palma ou outro qualquer molho.

Mezinhas

A comida é mal preparada e demasiadamente indigesta para estômagos fracos: a criança adoece e, então, experimentam-se as mezinhas dadas pelo curandeiro ou as que a prática aconselha. Se piora, intervém o feiticeiro com os seus sortilégios.

A mortalidade infantil é enorme, mas a nossa criança escapou. Passou o primeiro grau de selecção e já oferece certas garantias de vitalidade. Cedo a criança começa a embrenhar-se no mato com os seus companheiros, a subir às árvores e a ajudar os pais na lavoura ou na guarda do gado.
Fanado, ritual de passagem

Até à circuncisão [, fanado,] é considerado "menino"; não conversa com os homens nem pode casar-se ou ter relações sexuais. Depois dessa cerimónia já se integra no grupo das pessoas sérias. Se é balanta, por exemplo, deixa de furtar.

Debaixo do poilão

À tarde, nas horas de maior calor, costumam reunir as pessoas de respeito à sombra de uma grande árvore, a maior árvore da povoação ou suas imediações [, em geral, um poilão]; aí conversam sobre todos os assuntos: colheitas, chuvas, gados, casamentos, notícias palpitantes, contribuições, serviços nas estradas, etc., etc…

Casamento

Só depois do nosso homem ter ido à circuncisão pode tomar parte nessas conversas. Está na idade de procuar ganhar dinheiro suficiente para se casar. Ou a família o ajuda, se tem posses e o pai vê que pode dispensar aquele trabalhador, ou ele terá de ir ganhar a vida em qualquer ofício.

Casado, constrói uma casa [, morança], sendo agora raro que vá viver para casa do pai. Realizado o casamento, temos o nosso homem armado em chefe de família, não completamente independente porque tem para com o pai obrigações que se prolongam até à morte deste.

Economia familiar

Cultiva o campo para sua subsistência e para vender os produtos. Compra gado, primeiro caprino e suíno, depois vacum. Cria galinhas ou patos para comer mas, mais frequentemente, para vender.

Homem grande


Vai envelhecendo e, com o avançar da idade, recebe maiores provas de respeito e consideração por parte de todos. Envelheceu, é um "homem grande", de autoridade e conselho, ouvido com respeito em todos os assuntos que se prendem com a tribo ou com a sua tabanca. Rodeado de filhos e mulheres. Tem agora muito gado e algum dinheiro metido numa lata ou garrafão, para evitar a destruição pelos bichos.

A morte e o morrer: o choro

Porém um dia adoece o nosso homem: são convocados os feiticeiros e os curandeiros (normalmente estas duas profissões liberais andam associadas) e estes decretam: está velho, vai morrer.

São chamados os parentes, os filhos que vivem longe e, rodeado por todos, morre como qualquer mortal. Inicia-se a cerimónia do choro que se prolonga por muitos dias, numa orgia infernal. Abatem-se dezenas e às vezes centenas de cabeças de gado das manadas do defunto.

Os não maometanos bebem quantidades enormes de vinho [de palma] ou aguardente [de cana]; o celeiro do defunto, onde está arrecadado o arroz ou o milho, é esvaziado para alimentar centenas de bocas. Dança-se e canta-se e ninguém descansa um minuto sequer enquanto o choro decorre.

O nosso homem baixou à terra; puseram-lhe pedras ou paus em cima. Cobriram-no de terra, enquanto o seu espírito se libertou do corpo, aquele espírito que eles vêm em sonhos e os aconselha ou repreende, os protege ou persegue.

Viveu!! (...)

Artur Augusto da Silva

[ Revisão / fixação de texto / título e subtítulos: L.G. ]

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de Maio de 2011
> Guiné 63/74 - P8283: (In)citações (33): Humberto, é hora de sofreres, uma vez mais, mas é hora também de olhares em frente e pensares que a tua Teresa há-de gostar, no além, se existe, que não esmoreças (Paulo Salgado)

3 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde,
Rápida demonstração de como funciona, do nascer até à morte.
Muito explicíta. Há alguns passos com os quais não concordo, mas está um belo relatório. Simples e preciso.
Filomena

Anónimo disse...

Bem pensado este excerto porque transporta-me ao tempo, assim como tenho relativa noção das referências e das suas descrições.

Sendo um curioso, tentei a apoximação e conviver com a população de Empada, onde habitavam várias étnias, na sua maioria Beafadas, apresentando no entanto também Mandingas, Fulas, Manjacos e Outras Étnias dispersas.

Tal aproximação ao longo do tempo deveu-se ao de ser fotografo, de ter a torneira do bidon de petróleo e não faltar gasolina no depósito do ciclomotor do Chefe do Posto.

Enfim, pela minha parte não lesei ninguém.

Lembrando o Bom Povo Guinéu.

Arménio Estorninho
Ex-1ºCabo Mec.Auto,
C.Caç.2381 - Guiné 68/70

Hélder Valério disse...

Caros camarigos

Certamente haverá quem possa dizer "o que é que isto tem a ver com o repositório das nossas memórias?".

Pois, de facto, não relata as operações, não contabiliza as balas gastas, as armas apreendidas, etc., mas dá-me a impressão que teria muito interesse se tivesse sido possível ter assim um conhecimento da terras, das suas gentes, dos seus costumes, enfim das suas diferenças, pois isso seria certamente de grande valia para a adaptação e melhor desempenho durante as nossas estadias.

Mas pronto, cá estou para 'compreender' esses 'estados de alma' que por vezes se revelam e reiterar a afirmação de interesse que o livro parece ter.

Abraço
Hélder S.