[Imagem à esquerda: Guernica, de Picasso, 1937. Óleo sobre tela, 349 cm × 776 cm. Museu Rainha Sofia, Madrid, Espanha...
Imagem do domínio público: Cortesia da Wikipedia.]
S.T.T.L... Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria, ao menos, te seja leve!
por Luís Graça
1. Um dia até as pombas da paz do Picasso
repousarão no museu da guerra.
Em relicários,
de aço.
Mais as moscas,
regressadas dos campos de batalha,
que ficarão lá espetadas em alfinetes
nos respetivos mo(n)struários.
As moscas.
Exangues.
Cobertas de terra.
E a merda das moscas,
liofilizada,
como os grelos que comias na noite de Natal,
a merda agora elevada à categoria
de artefacto cultural.
Um dia ouviste um coronel,
veterano,
dizer, sem rancor nem fel
(mas nunca viste isso escrito na Ordem de Serviço):
– Chiça!, sempre mais vale uma mosca na sopa
do que um míssil na cozinha.
A tua guerra foi tacanha.
Foi uma guerrinha,
de baixa intensidade,
assegura-te o escriba, submisso,
agora garboso historiador oficial.
Não viste mísseis a cruzar o Geba ou o Corubal,
mas milhões de insetos caíam-te na sopa.
Salgada,
da água da bolanha.
Fria.
Desconsolada.
A responder-lhe,
ao veterano,
seria com a célebre frase de um general prussiano
(um general das guerras napoleónicas,
ainda por cima prussiano,
sempre é mais ovoestrelado
do que um coronel do exército colonial):
– A guerra não é mais do que
a continuação da política de Estado
por outros meios.
Fim de citação.
Ponto final.
Siga a Marinha.
Até ao Terreiro do Paço.
2. De megafone em punho,
o guia-mor do museu,
antigo combatente
maneta,
o olhar baço,
o peito ainda ardente,
fala-te da arte e da ciência da guerra.
E da importância que é devida
aos detalhes
de barba.
Lá estava o aviso exposto na tua camarata:
– Mais vale perder um minuto na vida,
do que a vida num minuto.
Confessa, camarada,
que nunca chegaste a perceber
por que é que o soldado tem que ser tosquiado.
E ir ao encontro da deusa da morte... devidamente ataviado.
3. Faltou-te sempre a visão do todo,
que, para um estratega,
bem escanhoado,
como o teu major de operações,
só podia ser maior do que a soma dos detalhes.
A única filosofia de vida,
de vida sem liberdade,que tu ouviste,
foi na tropa,
ao teu tenente de instrução da especialidade
de atirador de armas pesadas de infantaria.
Começava em porcaria,
e rimava com morte.
Era cínica e dissolvente,
como qualquer vulgar detergente
de cozinha:
- A merda é o adubo... da vida;
é fazendo merda, que tu aprendes;
e sobretudo nunca te esqueças
que é com a merda dos grandes,
que os pequenos se afogam.
À quinta feira,
recordas-te ainda tão bem,
depois da feira do gado vacum,
em Tavira,
fazia-nos, à malta do nosso pelotão,
rastejar na bosta,
enquanto ele gania como um cão
debaixo da janela da sua amada.
É por isso que ainda hoje
nem tu nem eu gostamos... de xarém.
4. Na tropa-do-um-dois-três-e-troca-o-passo
nunca soubeste
onde ficava o norte,
meu desgraçado!
Nem nunca soubeste pôr ao pescoço o baraço.
Nem fazer o nó à gravata.
Nem onde pôr a mão esquerda.
Nem o ombro arma,
a arma no ombro
ou o ombro na arma.
Nem fazer o pino.
Nem adivinhar a hora da sorte.
Nem sequer fazer um manguito de bravata.
Nem por isso te chumbaram,
coitado.
Depois um dia, no meio da guerra,
quiseram mandar-te para a psiquiatria,
o que era estranho,
porque o RDM,
em todo o seu articulado,
não previa a figura do inimputável
nem a do cacimbado
(muito menos a do psicopata... do major).
– Deem-lhe um valium dez,
metem-no numa camisa de forças. –
gritou o comandante das tropas em parada
ao médico, amável,
ao enfermeiro, calado que nem um rato,
ao maqueiro, rapaz cortês:
– Sempre é mais cómodo e barato
do que embrulhá-lo em papel selado!
5. Prometeram-te depois um mundo melhor,
porém chato, chatíssimo,
com escudo de proteção
e seguro contra todos os riscos;
não te disseram onde,
nem quando,
nem a que preço.
Descobriste que era tarde
e longe do planeta
e caríssimo.
6. Ter a consciência limpa,
ó meu... sacana ?!
Para ti, é ter a memória com as baterias em baixo.
– Por favor avisa-me, camarada,
quando elas estiverem a cinco por cento.
Quero fazer 'reset' das minhas memórias da Guiné.
Procuras, além disso, uma mão ?
– Direita,
com cinco dedos,
disposta a ajudar
o meu pobre braço.
Esquerdo.
Decepado.
Dou alvíssaras,
estou disposto a pagar
com o American Express Card.
Golden, claro!
7. Morrer é
quando tu chegas um beco sem saída
e não tens um kit de salvação.
Morrer em Nhabijões,
em Madina do Boé,
em Gandembel,
em Mampatá,
na Ponta do Inglês,
em Gadamael
ou em Missirá
... ou no Pilão, numa cena canalha,
tanto faz.
A morte não tem SPM.
E quem morre, morre de vez,
quer mortalha,
e sobretudo quer que o deixem em paz!
e não tens um kit de salvação.
Morrer em Nhabijões,
em Madina do Boé,
em Gandembel,
em Mampatá,
na Ponta do Inglês,
em Gadamael
ou em Missirá
... ou no Pilão, numa cena canalha,
tanto faz.
A morte não tem SPM.
E quem morre, morre de vez,
quer mortalha,
e sobretudo quer que o deixem em paz!
8. A vida com a morte se (a)paga.
Há sempre moscas à espera
do teu cadáver,
mesmo seco e magro.
E jagudis.
E formigas bagabaga.
E um dia aziago.
E um primeiro sorja da CCS que te põe os pontos nos ii.
E um capelão que te fecha os olhos,
com extrema unção e compaixão.
E um coveiro que te prega as tábuas do caixão.
– Não me perturbem o sono eterno! –,
podia ser o teu epitáfio,
ó tuga dum carago!
9. A prática, dizem-te, leva à perfeição,
exceto no jogo da roleta russa
que jogavas nas picadas da Guiné,
a G3 contra a Kalash,
a pica contra o fornilho,
o coiro, encardido, contra o Erre-Pê-Gê.
Por isso tu vivias cada dia,
como se aquele fosse
o único que te restasse
no calendário de parede,
no teu abrigo,
grafado com gajas nuas.
E muitos traços, em conjuntos de sete,
marcando a eternidade de uma semana,
ou de um mês:
Cada dia era o primeiro,
o único,
o original,
o irrepetivel,
no jogo da vida e da morte!
E todos as manhãs fazias o teste do dedo grande do pé esquerdo,
o do joanete,
o dos calos,
o das bolhas,
o da unha encravada,
o das pisadelas,
o mais azarento,
o rebenta-minas!
10. Não sei se o pintor de Guernica
(ou Gernika, que o topónimo é basco),
gostaria de ter conhecido
Adão e Eva
no Paraíso.
Ou a Terra Prometida quando era rica,
e nela corria então o leite e o mel,
mais o ouro, o incenso e a mirra.
Deve ter achado que esteticamente o Inferno
dava muito mais... pica.
PS - Aqui vai, para a comissão de ética,
a tua declaração de conflito de interesses:
Há sempre moscas à espera
do teu cadáver,
mesmo seco e magro.
E jagudis.
E formigas bagabaga.
E um dia aziago.
E um primeiro sorja da CCS que te põe os pontos nos ii.
E um capelão que te fecha os olhos,
com extrema unção e compaixão.
E um coveiro que te prega as tábuas do caixão.
– Não me perturbem o sono eterno! –,
podia ser o teu epitáfio,
ó tuga dum carago!
9. A prática, dizem-te, leva à perfeição,
exceto no jogo da roleta russa
que jogavas nas picadas da Guiné,
a G3 contra a Kalash,
a pica contra o fornilho,
o coiro, encardido, contra o Erre-Pê-Gê.
Por isso tu vivias cada dia,
como se aquele fosse
o único que te restasse
no calendário de parede,
no teu abrigo,
grafado com gajas nuas.
E muitos traços, em conjuntos de sete,
marcando a eternidade de uma semana,
ou de um mês:
Cada dia era o primeiro,
o único,
o original,
o irrepetivel,
no jogo da vida e da morte!
E todos as manhãs fazias o teste do dedo grande do pé esquerdo,
o do joanete,
o dos calos,
o das bolhas,
o da unha encravada,
o das pisadelas,
o mais azarento,
o rebenta-minas!
10. Não sei se o pintor de Guernica
(ou Gernika, que o topónimo é basco),
gostaria de ter conhecido
Adão e Eva
no Paraíso.
Ou a Terra Prometida quando era rica,
e nela corria então o leite e o mel,
mais o ouro, o incenso e a mirra.
Deve ter achado que esteticamente o Inferno
dava muito mais... pica.
PS - Aqui vai, para a comissão de ética,
a tua declaração de conflito de interesses:
– Não conheço nenhum museu da paz,
apenas este, o da guerra.
Nada sei de estética.
Não sou columbófilo.
E muito menos fã do Picasso.
Já agora escreve,
no teu testamento vital,
a tua última vontade,
o teu desejo final:
– Quando eu morrer, camaradas,
que a terra da minha Pátria,
ao menos, me seja leve!
apenas este, o da guerra.
Nada sei de estética.
Não sou columbófilo.
E muito menos fã do Picasso.
Já agora escreve,
no teu testamento vital,
a tua última vontade,
o teu desejo final:
– Quando eu morrer, camaradas,
que a terra da minha Pátria,
ao menos, me seja leve!
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Nota do editor:
Último poste da série > 2 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10466: Blogpoesia (305): O helicóptero (Jorge Cabral, Missirá, 1970)