quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Guiné 63/74 – P10563: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (40): O avô da Matilde, um vizinho especial

1. Mensagem do nosso camarada José Eduardo Oliveira (JERO), ex- Fur Mil da CCAÇ 675, (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 24 de Setembro de 2012: 

Boa noite meu caro amigo Carlos
Com votos que estejas em forma e preparado mais uma "mudança de hora" cumprimento-te com particular estima.
Mando-te uma longa história de Verão já em tempo de Outono. No calendário e na vida. Resultou de uma brincadeira de duas miúdas que na praia das crianças (São Martinho do Porto) fizeram aproximar dois avós. Com cabelos brancos e com memórias dos seus tempos da Guiné.

Segue em anexo o resultado final... de dois "rapazes" maiores de 70.

Um grande abraço de Alcobaça,
JERO


HISTÓRIAS DO JERO (40)

O avô da Matilde, um vizinho especial

Uma das vantagens de ser avô é poder conhecer através dos nossos netos pessoas que, em circunstâncias normais, nos passariam “ao lado”. Nas férias do mês de Agosto deste ano, em São Martinho do Porto, a minha neta Mariana começou a brincar com a Matilde e daí até conhecer o seu avô foi um instante.

Nas primeiras palavras que troquei com o Avô da Matilde adivinhei que estava na presença de um ex-combatente, o que se confirmou no momento seguinte quando trocámos nomes, idades e interesses…

Ambos tínhamos 72 anos e, no nosso passado, a Guiné dizia-nos muita coisa.

O Carlos Ferreira quando me disse que tinha 2 comissões na Guiné e tinha sido sargento-chefe paraquedista deixou-me …altamente interessado em cimentar a nossa relação. Ficou logo combinada uma conversa para mais tarde. E, no momento, em que passo ao papel estas linhas já tivemos duas ou três conversas, o que já permite fazer o seu B.I., com os seus dados militares.

Carlos Herculano da Silva Ferreira nasceu em Braga em 16 de Dezembro de 1940. Em 4 Maio de 1961, com quase 20 anos e meio, assentou praça na Escola do BA 3- Tancos. Frequentou o 14.º Curso de paraquedistas e foi “brevetado” em Julho desse ano.

Nos meses seguintes está envolvido em diversas ”diligências”, sendo colocado em Monsanto “para fazer guarda às antenas”, que tinham um papel importante nas comunicações com as nossas províncias ultramarinas. A guerra já tinha então começado em Angola (Fevereiro de 1961).

Regressa a Tancos em 1962 e em 1963 é mobilizado para a Guiné.

Viaja de Tancos para Bissau num “Skymaster”, integrado de um contingente de cerca de 50 paraquedistas.
Chega à Guiné em Junho de 1963 e em meados de Janeiro de 1964 integra as primeiras tropas da “Operação Tridente”, que invadem a Ilha do COMO.

Permanece no Como até ao final operação, que termina em 22 de Março. E continua na Guiné até Agosto de 1964.
Era então soldado-paraquedista e chefe de equipa.

Regressa à Metrópole e casa em Janeiro de 1965.
Frequenta em Tancos o curso de Sargentos.

Em Setembro de 1967, já então como Furriel, segue para Angola, onde cumpre mais uma comissão, até Novembro de 1969 (1.ª Companhia 121).

Mais um regresso a Tancos onde vai permanecer até inícios do ano de 1972.
Durante esse período colabora na instrução de 14 “cursos de combate”. Passam-lhe “pelas mãos” centenas de paraquedistas.

Em Fevereiro de 1972 segue de novo para a Guiné em rendição individual. Foi substituir o Furriel Pires, de Setúbal, morto em combate. Cumpre uma comissão muita dura, que vai prolongar-se até 28 de Março de 1974. Integra muitas operações, passando por Guidage, integrado no 2.º Pelotão da Companhia 121, onde tiveram 4 mortos. Regressa à Metrópole a tempo de “apanhar” a Revolução de Abril.

Estava colocado em Tancos quando, em 25 de Abril, é chamado para integrar um grupo de paraquedistas que, entre várias operações, têm “responsabilidades” junto da sede da PIDE e na prisão de Caxias.

Encontra então nessa prisão um alto funcionário da Pide que tinha conhecido em Bissau durante a sua última comissão na Guiné. Segue depois para a segurança do Aeroporto de Lisboa, onde está em serviço durante algumas semanas.

Mais um regresso a Tancos e, passado algum tempo, é chamado para próximo do General António Spínola.

Presta serviço na Presidência da República de 1974 a 1977. Em 1979 faz o Curso de Sargento-Chefe e é colocado em Monsanto. Passa à reforma em Fevereiro de 1988.

E, à distância no tempo, o que mais o marcou nas suas 2 comissões na Guiné!?

Em relação à primeira comissão ainda hoje recorda as más condições da sua estadia inicial em Bissau.

Foram 29 dias a dormir no chão debaixo de um alpendre com telhado de zinco. Foi um período em que quase deu em doido e que lhe valeram 10 dias de prisão… «Um cabo de serviço embirrou comigo, saltou-me a “tampa” e ofendi-lhe a mãe».
A “porrada” foi despenalizada mas não deixou de a apanhar.

«Depois a vida dá muitas voltas e um dia, durante uma operação no mato, tive que o carregar às costas.»

Depois, em Janeiro de 1964, fez parte do pelotão de paraquedistas que integrou os mais de 1000 homens que fizeram parte do contingente da Operação Tridente, para a recuperação da soberania da Ilha do Como, ocupada pelo PAIGC desde 1963.

Foram dias muito duros. À distância no tempo recorda um momento para o qual ainda hoje - tantos anos passados - ainda não encontra uma “boa explicação”. Já estava no Como há 2 ou 3 dias quando integrou uma “coluna” para entrar no “mato”.
Com a floresta à vista - deslocavam-se “em bicha de pirilau em cima do “separador” da bolanha - e as uns 30 metros da mata ouviu um barulho suspeito. «Era o 4.º da fila e vi um “vigia” deles saltar de uma árvore. Logo a seguir aparece um tipo, fardado de caqui, que nos faz um sinal de “alto”.» Logo após o salto do “vigia” ficámos no chão e pedimos pela rádio apoio de fogo de morteiro. O inimigo desapareceu e as nossas tropas recuaram.

Que quis dizer aquele gesto de “alto” !?
Não quiseram fazer fogo, não queriam guerra? Tinham a “surpresa” do lado deles e não a aproveitaram. Ainda hoje, 48 anos passados, a cena não se apagou da “sua cabeça” e o enigma mantém-se.

Em relação à “Operação Tridente” não se pronuncia pois a sua crónica está contada e ao tempo - não teve tempo nem espaço, nem informação - que valha a pena acrescentar mais alguma coisa ao que está escrito e …já passou à história.

Quanto à segunda comissão, que como já foi referido cumpriu em rendição individual, prolongou-se de Fevereiro de 1972 até 28 de Março de 1974.

Das muitas operações em que esteve envolvido recorda especialmente a invasão do Cantanhez. «A minha Companhia estava em Teixeira Pinto e veio para Bissau para preparar a operação. Na data prevista fomos hélio-transportados até à orla da Mata do Cantanhez. Fui o primeiro militar do primeiro “heli” a saltar. Era então 2.º Sargento e o meu chefe directo era o Alferes Silva, que é hoje Coronel. A nossa missão consistia em limpar a área para se montar um aquartelamento. Estivemos vários dias na zona e fomos atacados durante uma noite. Ao fim de 3 dias o “Caco Baldé” aparece lá e vai falar com o Comandante de Companhia, o Capitão Augusto Martins, que chegou a General.»

Mandaram-me chamar ao Comando porque o General Spínola queria conhecer a mata. «Foi comigo e fomos sempre a falar. No final da visita deu-me os seus parabéns e disse-me que tinha gostado de me conhecer.»
«Foi para mim um dia e uma ocasião muito especial. Que não mais esqueci.»

Ficámos um mês no Cantanhez. Tempos depois, numa operação na zona de Bambadinca, fomos sobrevoados por um helicóptero.
Para meu espanto o “héli” baixou e veio aterrar perto dos meus homens.

O “Caco” vinha a bordo e, quando me aproximei, perguntou-me se estava tudo bem e se era preciso alguma coisa. Reagi de imediato e pedi-lhe: «Meu General vá-se embora, que me dá cabo da operação.»
- Se precisares de alguma coisa chama. Acenou-me com o bengali e o “héli”afastou-se.
 «Nunca mais esqueci o momento».

«Deixo para o fim a recordação de uma ocasião muito dolorosa e marcante.
Um dos meus homens – o 1.º Cabo Melo – ganhou o Prémio Governador da Guiné e teve direito a um período de férias no Continente. Podia ter vindo para Bissau para apanhar o avião para Lisboa mas fez questão de entrar numa operação comigo, porque sabia que fazia falta. Nessa operação foi morto em combate. Em Junho de 1973. 
Foi o maior desgosto da minha vida de militar. Andei 8 dias bêbado.»

À distância no tempo… o Avô da Matilde emociona-se e cala-se.
Mais tarde diz-me que lhe fez bem falar.


Daqui para a frente sempre que for a São Martinho do Porto vou tocar à campainha do apartamento do Sargento-Chefe Carlos Ferreira. Um vizinho especial.

JERO
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 – P9045: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (39): O 1º Cabo Cond Auto/ Rádio VELEZ

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10562: Efemérides (111): 3 de Outubro de 1968 - Já lá vão 44 anos desde que deixei Lisboa a caminho de Bissau (Carlos Pinheiro)

1. Mensagem de Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2012:


Já lá vão 44 anos! 

Como recordar é viver, há dias que nunca esqueceremos, e o dia 23 de Outubro de 1968 é um desses dias.

Era meio-dia em ponto quando o UÍGE silvou várias vezes a querer dizer que estava pronto para mais uma viagem.

O pessoal já tinha embarcado ao som de marchas militares. Os cumprimentos oficiais, da praxe, já tinham sido feitos. As escadas já tinham sido retiradas. O cordame também já tinha sido recolhido. E os dois rebocadores que o haviam de levar até ao meio do Tejo já estavam a postos.

No cais a multidão ainda era imensa. Os lenços acenavam das varandas da gare a corresponder aos lenços que das amuradas do barco também acenavam. Eram as despedidas.

Navio Uíge - Com a devida vénia a http://navios.no.sapo.pt/

A banda militar estava a acabar os seus acordes e o UÍGE lá se encaminhou para o melhor local do Tejo para iniciar mais uma viagem de 5 dias até às terras da Guiné. Depois foi o passar sobre a Ponte Salazar a caminho do Oceano e tudo isso pareceu muito rápido. Depois foram cinco dias de mar e céu, com mais ou menos acompanhamento dos chamados peixes voadores, a passagem relativamente perto das Canárias e a chegada ao largo de Bissau a 28 de Outubro.

A Ponte Salazar em 1966 - Com a devida vénia a http://www.skyscrapercity.com/

Foram só cinco dias, mas dias inesquecíveis. E como a maioria viajou nos porões, nessas grandes caves fechadas de onde só se via a luz do dia pela buraco por onde entrávamos, nem vale a pena dizer nada sobre essas “maravilhosas” acomodações.

Foi um bom princípio, sem dúvida, para o que nos estava guardado. Depois, bem depois, foram vinte e cinco meses e dez dias, passados todos naquela terra quente que, ao fim deste tempo todo, nunca mais consegue encontrar a paz a que tem direito e de que tanto precisa.

Carlos Pinheiro
23.10.2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10450: Efemérides (110): Leiria homenageou os seus combatentes no passado dia 23 de Setembro de 2012 (José Marcelino Martins)

Guiné 63/74 - P10561: O PIFAS de saudosa memória (16): Compactos de gravação, Parte II: excerto áudio de "Noite 7" (emissão especial aos sábados) (Garcez Costa, ex-fur mil, 1970/72, ex-radialista)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2011:

Queridos amigos,
“Alvorada em Abril” é um testemunho determinante para se entender o desencadeamento das operações que levaram ao derrube do antigo regime.
Otelo Saraiva de Carvalho rememora acontecimentos militares e descreve o que viu na Guiné, teatro de operações que teve um papel crucial na génese do Movimento dos Capitães.
A tal propósito, deixa-nos as suas impressões sobre os acontecimentos de 1970 a 1973, naturalmente controversos mas com uma importância soberana.

Um abraço do
Mário


Otelo Saraiva de Carvalho e a Guiné

Beja Santos

"Alvorada em Abril "é o título das memórias de uma figura lendária do 25 de Abril em torno da história portuguesa dos anos 50 aos anos 70, culminando com a concepção e execução do derrube do regime chefiado por Tomás e Caetano. Temos nestas memórias o que para ele foi determinante, no seu percurso pessoal e no seu modo de interpretar os acontecimentos contemporâneos, a génese e o triunfo do Movimento dos Capitães e como este desaguou no 25 de Abril ("Alvorada em Abril", Editorial Notícias, 4ª Edição, 1998). A sua terceira e última comissão foi na Guiné, pelo que tem todo o sentido fazer o registo das suas lembranças e observações.

Ele parte para a Guiné em Setembro de 1970 e logo recorda que se encontrava em Nova Lamego, em 22 de Novembro, quando soube da invasão da Guiné-Conacri. A notícia deixou-o estupefacto, ele que trabalhava em Bissau de nada sabia e acrescenta que posteriormente veio a saber que o assunto já era discutido pelas mulheres dos oficiais nos cabeleireiros da Baixa de Bissau antes de se ter realizado. Nessa noite, enquanto decorria a operação, houvera vigília em Bissau, Spínola aguardava ansioso das notícias da missão rodeado dos seus leais colaboradores, tenente-coronel Robin de Andrade, major Firmino Miguel e major Jorge Pereira da Costa. E adianta: "Ainda hoje desconheço quais seriam, exactamente, os objectivos da missão, mas parece não restarem dúvidas de que, entre eles, estariam os assassínios de Amílcar Cabral e de Sékou Touré, o silenciamento da Rádio Conacri, a destruição de sede do PAIGC, a destruição de aviões na base aérea local e a libertação de prisioneiros de guerra portugueses retidos nas prisões da cidade".

Dá-nos em água-forte um retrato de Spínola que culmina com uma apreciação corrosiva: "Medularmente vaidoso e autoritário, sempre o reconheci totalmente incapaz de se atribuir o mínimo erro ou de debitar a mais suave autocrítica. Sendo detentor da razão e da verdade absolutas, era com displicência e sem remorso que liquidava o bode expiatório escolhido para arcar com as responsabilidades de qualquer falhanço pessoal... demagogo em extremo nunca entendi com clareza se as qualidades que nele admirava era autênticas e humanas ou se cultivadas com esforço a fim de construir artificialmente uma personagem".

Descreve o seu trabalho no QG e alude mesmo o nome de oficiais milicianos, da extrema-direita, que mais tarde acompanharão Spínola na aventura do MDLP. Colocado na Subsecção de Operações Psicológicas, assistiu ao exibicionismo propagandístico é à construção de imagem que Spínola quis criar em Portugal e internacionalmente, o que ele procurava era sugerir um extraordinário surto de progresso na Guiné com a sua governação e minimizar os êxitos no combate do PAIGC. Narra peripécias com jornalistas internacionais, certames de propaganda, a realização de Congressos do Povo. Refere os efectivos militares, do lado português e os do PAIGC, as argumentações de aliciamento, de um lado e do outro. A narrativa não é cronológica, dá saltos, vai até ao futuro repentinamente, conta histórias passadas, de supetão. Está-se a falar da propaganda do PAIGC, seguem-se referência ao seu programa político, destaca-se a figura de Rafael Barbosa como agitador, que foi preso em Março de 1962, tendo permanecido encerrado num cubículo durante quase 8 anos, onde foi espancado e torturado. Em Agosto de 1969, Spínola ordenou que fosse libertado. Tempos mais tarde, Rafael Barbosa manifestará publicamente o seu arrependimento por ter aderido à luta armada. Em 1977, será julgado em Bissau pelo PAIGC pelo crime de traição ao partido e ao povo e ser-lhe-á comutada para 15 anos de prisão a pena de prisão perpétua a que fora inicialmente condenado.

Já em 1973, o autor descreve a chegada dos mísseis terra-ar Strella e depois depõe sobre o controverso "I Congresso dos Combatentes do Ultramar". Para Otelo, os organizadores eram antigos oficiais milicianos com ideologia de extrema-direita que garantiam publicamente ao regime a entrega devotada dos oficiais das Forças Armadas à nobre missão de, através da continuidade da guerra colonial, assegurar a perenidade da Pátria. Os oficiais do quadro ter-se-ão apercebido da essência da manobra e reagiram. Almeida Bruno terá sido quem mais actividade desenvolveu, promovendo uma resposta concertada. Para os oficiais na Guiné já não subsistiam dúvidas que o Governo procurava tirar dividendos da "entusiástica adesão dos patrióticos combatentes do Ultramar". E escreve: "Enquanto em Lisboa Ramalho Eanes, Hugo dos Santos, Vasco Lourenço e outros encabeçavam um vasto movimento de protesto, eram recolhidas na Guiné 400 assinaturas de oficiais do QP com a mesma intenção, subscrito em primeiro lugar por oficiais possuidores das mais elevadas condecorações”. O autor inscreve estes acontecimentos num processo mais vasto de descontentamento das Forças Armadas que veio a ser ateado pelo Decreto-Lei nº 353/73, nova peça da bola de neve que irá conduzir à queda do regime.

Passando para outro campo de considerações, Otelo de Saraiva de Carvalho fala dos acontecimentos de Guileje, em Maio de 1973, quando o major Coutinho e Lima mandou evacuar o aquartelamento, para tal escrevendo: "Para o major Coutinho e Lima o motivo era suficientemente forte: incontável número de flagelações da artilharia inimiga tinha destruído quase por completo as instalações aquartelamento e o moral do pessoal. Apesar dos pedidos insistentes e aflitivos, o apoio aéreo não fora concedido, no receio de que a acção fosse um chamariz para o abate de mais alguns aviões. Ao ter notícia da evacuação, Spínola não viu outra alternativa senão ordenar a prisão de Coutinho e Lima e mandar instaurar-lhe um auto de corpo de delito por crime essencialmente militar de cobardia: abandono de praça militar ao inimigo". É neste contexto que surge Manuel Monge, graduado em major, foi sobre os seus ombros que caiu a responsabilidade de aguentar a tragédia de Gadamael.

Estamos praticamente no final na sua narrativa referente à Guiné. Marcelo Caetano decidira, em 1972, apoiar a nomeação de Américo Tomás para novo mandato. Spínola considerava que gozava de alguns apoios muito influentes do panorama político e financeiro português (Azeredo Perdigão, Jorge de Melo, Manuel Vinhas, António Champalimaud). Em Agosto de 1973, Spínola regressa a Portugal, é promovido a general de 4 estrelas e nomeado vice-chefe do EMGFA. Spínola mudara, observa o autor. Fizera um longo, longo percurso, fora administrador e colaborador do boletim da Legião Portuguesa, no início da carreira; baseado na sua experiência guineense, sentia-se agora apto a defender o federalismo para contornar uma guerra não susceptível de ter solução militar.

Em Setembro de 1973, Otelo Saraiva de Carvalho participa pela última vez numa reunião do Movimento de Capitães, em Bissau. E escreve: "Exactamente três meses depois da minha chegada a Bissau seguirei para a metrópole em fim comissão. Recebo a incumbência de, em Lisboa, de me integrar no Movimento e ser o porta-voz das preocupações que assaltam os camaradas no TO da Guiné". Preocupações que ele desenha num quadro de tintas carregadas: é previsível que o PAIGC irá proclamar a independência do território. Nas reuniões do Movimento dos Capitães em embrião já se debate o que irá mudar com essa independência reconhecida pela ONU. E escreve: ”O Governo Central não proporcionará às Forças Armadas no TO da Guiné qualquer apoio, provocando a sua derrota calculada para as transformar em bode expiatório da perda da colónia como acontecera antes com o Estado da Índia, e canalizar todo o esforço militar para a defesa de Angola.”

E tece o seu comentário sobre o que se estaria a passar na mente de Marcelo Caetano:” Em entrevista concedida por Marcelo Caetano no Brasil, em 1977, a um jornalista português, o antigo Presidente do Conselho confirma que tencionava na verdade provocar a queda da Guiné através de uma derrota militar para, salvando a face do regime, reforçar a todo o custo a defesa de Angola por tempo ilimitado. Não posso acreditar que Spínola não estivesse perfeitamente consciente de todo este drama. Considero, pelo contrário, que essa seria a razão fundamental que o teria levado a não regressar para concluir o sexto ano do seu mandato. Ele não poderia nunca, após mais de cinco anos de intensa actividade desenvolvida na Guiné e que era para si motivo de orgulho e honraria, transformar-se no comandante-chefe de umas Forças Armadas enxovalhadas e derrotadas em consequência da ineficácia do regime.”
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8209: Notas de leitura (235): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10560: In memoriam (131): Nelson Fontes Ribeiro, ex-Alf Mil do COT 1 (Guiné, 1970/71)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Picado (ex-Cap Mil na CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 23 de Outubro de 2012:

Amigo Carlos
Tomei agora conhecimento de que na quinta ou sexta-feira passada faleceu Nelson Fontes Ribeiro, ex-Alferes Mil que esteve na Guiné em 1970-71.

Não sei a que Unidade pertenceu, pois que na minha Agenda apenas conta um apontamento que recolhi em Bissau, não sei se nos finais de 1970 ou já em 1971 que assinala: "Alf Mil Fontes Ribeiro COT-1 Paúnca sul esq. Pirada SPM 5668".

Este apontamento resulta com toda a certeza de o ter encontrado algures em Bissau e de já o conhecer, pois ele casou com uma "moça" de Ílhavo onde viveu e presidiu à Comissão Administrativa que geriu a respectiva Câmara após o 25A74.
Vivia em Aveiro e não sei se teve conhecimento deste Blogue. No entanto, na perspectiva de que algum camarigo pertencesse à sua Unidade ou alguém que o tivesse conhecido, resolvi enviar esta notícia, já que é mais um dos nossos que partiu.

Abraço
JPicado


2. Comentário de CV:

Mais um camarada nos deixou. É lugar comum dizer que cada vez somos menos, mas é uma verdade indesmentível.

À família enlutada, os camaradas do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné apresentam os mais sentidos pêsames.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10516: In memoriam (130): Francisco Parreira (1948-2012), ex-1º cabo mec elect auto, Grupo de Artilharia nº 7, Bissau, 1970/72:o "pai Chico", um "herói anónimo" (Filomena Parreira)

Guiné 63/74 - P10559: Do Ninho D'Águia até África (20): Ida à capital da Província (Tony Borié)

1. Mais um episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (20)

Ida à capital da Província

O trajecto entre a capital da província e o aquartelamento, onde o Cifra está estacionado, são mais ou menos setenta quilómetros de estrada. Pelo menos até à data, não houve minas, ou qualquer ataque às forças militares, dizem que não interessa aos guerrilheiros, pois esta via, é um forte meio de circulação e abastecimento, durante a noite, para as suas bases no interior, pelo menos, é o boato que por aqui corre.

Esta estrada atravessa um grande rio, com uma ponte em cimento, mais seis pântanos, com duas pontes em madeira, e nos restantes, transita-se com alguma água, na época das chuvas, e quase seco na época quente. Todos estes lugares estratégicos, estão mais ou menos guardados por militares durante o dia. De noite, dizem que a circulação é livre.

O Cifra está no seu dia de folga. Levanta-se, vai tomar banho à parte sul do aquartelamento, onde se fizeram três furos de água, que vem quente, muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa parecida. Há uma fila de bidons, com água do dia anterior, que está morna. Toma banho, nú, veste roupa lavada, incluindo umas meias rotas na ponta, mas que dobrava e ficavam perfeitas, calça as botas de pano, já um pouco coçadas.

Vem ao refeitório, levanta a mão, em sinal de olá ao “Arroz com pão”, que é o cabo do rancho, que lhe estende uma caneca de café negro, sem açúcar, e lhe diz:
- Toma lá, para ver se a podes “curtir” mais depressa.

O Cifra, nem lhe responde, mas o “Arroz com pão” devia se referir a algum excesso de álcool, mas adiante, não vamos perder mais tempo com pormenores, pois se os aprofundarmos, de certeza que vão envergonhar um pouco o Cifra, bebe a caneca do café e coloca um cigarro “três vintes” na boca. Era uma sexta-feira, levanta a cabeça, olha em frente, vê o carro dos doentes, abre mais um pouco os olhos, em sinal de alguma alegria, e logo pensa:
- Que bom passeio à capital.

Se melhor pensou, melhor o fez. Dirige-se ao cabo enfermeiro, e pergunta:
- Ouve lá, oh “Pastilhas”, há lugar no carro dos doentes?

“Pastilhas”, era o nome com que baptizaram o cabo enfermeiro, pois muitas vezes fazia de doutor, e só receitava pastilhas. Qualquer militar que fosse à enfermaria, com dores numa perna, num braço, na barriga, na cabeça, nos dentes, ou qualquer outra enxaqueca, o curativo era o mesmo, e dizia:
- Toma estas pastilhas, de quatro em quatro horas, com água, e deixa de beber álcool, por uns dias, se não morres.

Bem, mas em resposta ao Cifra, ele, conhecedor da tramóia, responde-lhe:
- Eu não sei nada, até nem sou de cá.

O Cifra, salta para a viatura, onde já se encontrava o Setúbal, na mesma situação. Ruma à capital.

O carro dos doentes fica no hospital que está situado quase à entrada da cidade, para quem vem do interior da província, e regressa às cinco da tarde.

No hospital, o Cifra e o Setúbal, arranjam boleia em qualquer viatura militar que os leva até à avenida principal, onde ao fundo havia o palácio do governador, (foto ao lado), e que era o ponto de referência e de encontro, quando alguém se perdia, ou por qualquer circunstância se separava do grupo, era ali que se encontravam de novo, para regressarem às suas unidades militares. A polícia militar, que estava estacionada no forte da “Amura”, andava sempre por ali, mas quando via militares de farda amarela, grandes bigodes, com alguns embrulhos nas mãos ou debaixo dos braços, sabiam que eram militares que estavam de passagem e tinham vindo do interior da província, e faziam “vista grossa”.

Na cidade, dão uma volta pelo mercado. Cheira a tabaco seco, carne fresca e coca. Há mangos e papaia, fruta de caju, amendoim verde, a que chamam mancarra, bananas, batata doce, peixe seco, mandioca, balaios de arroz, aguardente de palma vendida ao púcaro, macacos, periquitos e outras aves exóticas, pano de diferentes cores vendido à peça, colares e bujigangas, figuras em madeira representando animais, há alguns gatos empoleirados no muro do mercado, assim com alguns cães que circulam por ali, com o rabo entre as pernas, e outros deitados próximo das bancas onde se vende carne fresca, que de vez em quando dão ao rabo sacudindo as moscas e outros insectos, moscas e insectos esses, que saltam dos cães para cima da carne fresca, e mais um amalganhado de coisas sem fim. Saem do mercado meio tontos.


Descem a avenida e passeiam à beira do rio, é altura da maré baixa, é só lama, mesmo assim alguns barcos em madeira, pintados com cores garridas, baloiçam numa parte do rio, onde há alguma água, dizem que é o cais de embarque Pigiguiti, ou coisa parecida, e é daí, que partem barcos para as ilhas de Bolama, também vêm a fortaleza de S. José da Amura, (foto acima) que próximo, tem uma estátua de alguém que se notabilizou, por atravessar mares nunca antes navegados, frase esta que o Cifra aprendeu na escola primária da vila, onde pertencia a sua aldeia do Ninho d’Águia, lá ao fundo vêm o ilhéu do Rei, assim como o cais de embarque, onde alguns navios pequenos conseguem atracar na maré cheia. Há alguma azáfama de pessoas indo e vindo de um barco, que neste momento está atracado, mas pela água que existe em redor do cais, concerteza que o seu casco está em contacto com a lama. Uma garotita africana, quase nua, só com um trapito a cobrir-lhe parte do corpo, com a cara suja, o dedo na boca, movendo os lábios, dando a impressão que estava a comer baba e ranho, que lhe vinha do nariz, aproxima-se com a mão estendida e diz mais ou menos isto:
- Patacão pra comprá bianda.

Levou algumas moedas, e começou a correr em direcção, a quem possívelmente era a mãe, que estava um pouco distante, em frente a um balaio de mancarra torrada, que vendia ao púcaro. Mas voltando à beira do rio, alguns africanos procuram qualquer coisa na lama, que logo apanham e põem numa saca, que trazem à cinta. Não sabem o que é, mas também não interessa.

A brisa é boa, e o lugar até se torna agradável.

Passam duas raparigas africanas, com um vestido às flores, que lhe cobre quase o corpo todo, não parece um vestido, parece mais uma peça de pano inteira em que vão enroladas, mas muito justa ao corpo, com outra tira de pano cor de rosa, amarrado à cinta, na cabeça também levam um pano amarrado, da mesma cor da cinta, duas argolas de um metal com algum brilho caiem das suas orelhas, os braços vão descobertos, tendo algumas pulseiras feitas de missangas com diversas cores, ao pescoço também levam uns colares de missanga que lhe fazem sobressair o rosto, que tem uma cor preta com a tonalidade do chocolate, mas muito brilhante, onde sobressaiem uns olhos que denunciam qualquer coisa como um mistério, e nos pés levam umas sandálias rasas, de plástico, brancas. Caminham, bamboleando o corpo, talvez sabendo que são observadas, que ao passarem pelo Cifra e o Setubal, olham de lado, com um olhar algo comprometedor.

O Cifra assobia, um assobio um pouco provocativo. Elas voltam-se e sorriem, provocativas, também. O Setúbal, segura por um braço o Cifra, que tentava avançar para as raparigas e diz-lhe, como se fosse uma ordem:
- Tem juízo homem, não te chegou o problema com as guerrilheiras, lembra-te que andas na guerra!

Sobem a rua que vem do rio, entram numa transversal e páram em frente a um estabelecimento, que era a casa Gouveia, que tinha na montra vários objectos, entre os quais uma máquina fotográfica que ficou nos olhos do Cifra. Entram, perguntam o preço, o Cifra não tinha dinheiro suficiente, mas o Setúbal, vendo a cara do Cifra, diz-lhe:
- O nosso dinheiro junto, tirando este para comer, ainda sobra para a tua máquina, portanto compra.

O Cifra comprou, parecendo um miúdo a quem dão o seu primeiro brinquedo. Continuam caminhando e entram numa pequena rua também transversal, que vai dar à taverna do Transmontano, pois é assim que lhe chamam.

É uma casa de um só piso, metade é casa e a outra metade é um grande cabanal, com mesas e cadeiras ao comprido. É aí que os militares, quando vêm à capital, normalmente comem. A cozinha, ao lado do cabanal, coberta com folhas de zinco, formando duas abas, tem três fogões, feitos em adobe, cada um tem um grande buraco em cima, de onde sai forte labareda. Três africanas, bastante fortes na estatura, mexem-se rápido em frente aos fogões. Uma enorme rima de lenha, ao fundo do cabanal, completa o cenário.

O transmontano e a esposa, também bastante forte na estatura, estão ao balcão a dirigir o serviço. Não tiram os olhos das duas filhas, jeitosas e morenas, que andam numa azáfama, a servir nas mesas. Um pequeno pormenor, que não passa despercebido, têm duas espingardas caçadeiras penduradas atrás do balcão. A comida é boa, com sabor português/africano e muito gindungo, a bebida normal é a cerveja, que se bebe à temperatura ambiente.

Lá para o fim da tarde passaram pela “Tasca dos Trovadores”, (a que o Curvas, alto e refilão, na sua reles linguagem, dizia que era a tasca dos paneleiros), pois era assim que chamavam a uma taverna, que ficava para os lados do quartel da Marinha, que vendia a melhor cerveja gelada da capital, onde o “Zé Manel”, um fuzileiro ali estacionado, ajudava no balcão e sabia tirar um “fino” como ninguém. Era quase uma passagem obrigatória de todos os militares que visitavam a capital da província, vindos do interior, onde os militares e não só, que se julgavam cantores, tinham oportunidade de o mostrar, pois havia um palco com microfone ligado e tudo.

No regresso, dizia o Cifra para o Setúbal:
- Parece que não andamos na guerra.

O Setubal, ri-se, levanta os olhos e diz:
- Fuma o cigarro e cala-te, pois daqui a umas horas estás de novo no aquartelamento, circundado de arame farpado.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10549: Do Ninho D'Águia até África (19): Furriel Roger, o Herói (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10558: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (4): 5.º episódio: Partida para o CTIG em Agosto de 1965

Lisboa > Cais da Rocha Conde de Óbidos > Partida para a Guiné, em 18 de Agosto de 1965
Foto: © Veríssimo Ferreira (2012). Todos os direitos reservados


1. Em mensagem do dia 18 de Outubro de 2012, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), mandou-nos o 5.º episódio da sua odisseia militar, correspondente aos melhores 40 meses da sua vida; diz ele e nós acreditamos.


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

5.º episódio - Partida para o CTIG, em 18 de agosto de 1965

Em Abrantes, estava mais perto de casa, o que me agradou. Lá se foi passando o tempo e coube-me ajudar o Oficial instrutor, ensinando novos militares. Porque alguns de nós, os recentes cabos milicianos, estávamos já a ser mobilizados, fui-me preparando. Contudo, tal mobilização só veio a acontecer, quando já houvera prestado 20 meses de tropa.

Entretanto em Abril de 1965 e "por equivalência a seis meses consecutivos em Unidade Operacional, condição a que satisfaz para promoção ao posto imediato" (sic) , fui promovido a Furriel Miliciano. Estava então em Tomar a preparar outros jovens, que afinal acabaram por ser os que,  fazendo parte da Companhia de Caçadores 1422, embarcaram comigo para a Guiné, em 18 de Agosto.

Quando digo "embarcaram comigo", em vez de "embarquei com eles", deixem que explique: Quer o Comandante, quer os restantes Oficiais e Sargentos, haviam partido uma semana antes, de avião, ficando apenas connosco, um senhor Sargento-ajudante, pessoa com alguma idade e peso e que era chefe de secretaria. A ele pertenceria comandar-nos antes do embarque, no desfile perante as autoridades... perante os nossos familiares presentes.

No último momento, nomeia-me para o fazer. Tamanha responsabilidade, fez-me tremelicar... mas ordens não se discutem.

COMANDEI!... Correu lindamente, marchámos com garbo e eu nunca mais esqueci essa, que considero a mais subida honra que o exército me proporcionou.

Lá chegámos a Bissau e novas emoções apreendemos... novos cheiros... aquela paisagem... o bulício, mas certos dos perigos a enfrentar. Na Amura ficámos e sem local ainda definido para o futuro, foram-nos treinando, "permitindo-nos" acompanhar algumas operações em curso no mato e em situações de combate.

Assim, passei por Bissorã, Mansabá, Cutia e Mansoa, mais ou menos uma semana em cada. Até que e em data que não consigo precisar, mas que julgo ter sido em meados de Outubro, mandam-me e apenas com a minha secção (nove homens) para o Pelundo. Zona calma e a cerca de doze quilómetros de Teixeira Pinto e vinte e tantos de Bula. Tinha um jeep e nele me deslocava, ora para tomar café aqui, ora além. Tais actos, poderiam ter sido "a morte do artista".

Não tive problemas, sabe-se lá porquê, mas a partir de Janeiro de 1966, a coisa tornou-se deveras perigosa. Porque será que não me comeram vivo? Seria porque estávamos protegidos pelo "homem grande" em casa de quem aquartelávamos, na tabanca? Seria que a nossa missão de lhe guardar o cofre e o recheio deste movimentou influências? Ou seria que tinham mesmo medo de nós? Intrigante e de tal forma, que ainda hoje passados 47 anos, não encontro respostas.

************

Um dia antes de abandonar aquele local, chegou um pelotão que me substituiria, e fui informado para onde iria, juntar-me à CCAÇ a que pertencia, mas fui convidado para que nessa noite desse um salto a Jolmete, em visita de cortesia.

Chegados que fomos e estando a jantar opiparamente... eis senão quando... lá vem disto:
- Pela primeira vez o quartel é atacado e estragaram-me o repasto.

BOLAS... BOLAS... BOLAS.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10543: Os melhores 40 meses da minha vida Veríssimo Ferreira) (3): 4.º episódio: Passagens por Amadora, Lamego, Tancos e Lisboa

Guiné 63/74 - P10557: Agenda cultural (224): Lançamento do livro póstumo “Golden Gate - Um quase diário de guerra”, de José Niza (1938-2011), ex-alf mil médico em Angola (BCAÇ 2877, 1969/71) (Carlos Pinheiro)




1. Mensagem, de 18 do corrente, do nosso camarada ribatejano Carlos Pinheiro, sempre atento, mandando-nos mais um "recorte de jornal":

Assunto: "Golden Gate - Um quase diário de guerra" é "um livro de memórias da guerra colonial, da autoria do médico e compositor José Niza

O Mirante, semanário regional > 18 de outubro de 2012 > "Golden-Gate", de José Niza, apresentado em Santarém 

[,Reprodução aqui, com a devida vénia]

O livro de José Niza  [, lisboa, 1938- Santarém, 2011,] (*)  é apresentado no dia 25 de Outubro, em Santarém, na livraria Leya-Caminho. A iniciativa está marcada para as 18h30 e o cantor Manuel Freire foi convidado para falar sobre esta obra póstuma do compositor, poeta, músico, médico e político, falecido no dia 23 de Setembro de 2011.

"Golden Gate - Um quase diário de guerra"  [Lisboa, D. Quizote, 2012] é "um livro de memórias" de uma guerra colonial que "aconteceu durante 13 anos", escreveu o autor no prefácio. Os textos ali reunidos resultam da correspondência diária que manteve com a mulher durante o período em que esteve "naquele mato de Angola, húmido e quente", no aquartelamento de Zau Évua, entre 1969 e 1971. 

Das cartas enviadas à mulher, foram retirados extractos que são apresentados nesta obra como páginas de um suposto diário. José Niza fora destacado para o contexto da guerra no Norte de Angola como médico. "Uma guerra onde o médico e o capelão eram os terapeutas do espírito mais ou menos primário e sempre psicologicamente descompensado, daqueles mancebos que, por exclusivas razões de idade, foram incumbidos de defender a Pátria contra o fluir da História". Segundo afirma, "na consulta havia sempre mais gente que na missa", a única excepção era a missa de Natal.

Apesar da dureza das condições que enfrentou, José Niza nunca perdeu o sentido de humor. Numa carta com data de 10 de Dezembro de 1970, dá conta dos presentes de Natal que os militares receberam, enviados pelo Movimento Nacional Feminino (MNF): "Um pacote de amêndoas, o que dará uma por cada soldado; meia dúzia de lâminas de barbear; o que dará uma lâmina por cada caserna; e ainda meia dúzia de pastas de dentes, o que só dará para os desdentados". "Apeteceu-me escrever à Cilinha [Cecília Supico Pinto, líder do MNF] a agradecer a amêndoa que me coube. E, como deixei crescer a barba, vou oferecer a minha parte da lâmina a quem necessitar".

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Notas do editor:

Último poste da série > 15 de outubro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10533: Agenda cultural (223): Lançamento do livro "Palavras de um Defunto... Antes de o Ser", de Mário Tito, dia 27 de Outubro de 2012, pelas 16h00, na Livraria - Bar Les Enfants Terribles, em Lisboa



José Niza
(*) José Niza (1938-2011) - Breve nota biográfica


(i) Nasceu em Lisboa e morreu em Santarém;

(ii) Foi médico, poeta, letrista, músico, compositor e deputado (**);

(iii) Estudou em Coimbra, onde se matriculou em medficina em 1956; em 1961 fundou a Orquestra Ligeira do Orfeon Académico de Coimbra, conjuntamente com José Cid, Proença de Carvalho, Joaquim Caixeiro e Rui Ressureição; em Coimbra conheceu também músicos como José Afonso e Adriano Correia de Oliveira (de quem será mais tarde produtor);


(iv) Licenciado em Medicina em 1966 pela Universidade de Coimbra, especializou-se em  psiquiatria, especialidade que exerceu em Coimbra;

(iv) Foi alferes miliciano médico no norte de Angola (1969/71), integrando o BCAÇ 2877;
(vi) Em 1971 passa a ser responsável pela produção da editora Arnaldo Trindade, Lda. (Discos Orfeu); nessa qualidade produziu diversos trabalhos de cantores portugueses, como Fausto, Carlos Mendes, Paulo de Carvalho, Vitorino, José Afonso e Adriano Correia de Oliveira;

(vii) Foi co-vencedor de quatro Festivais RTP da Canção (1972, 1974, 1976 e 1987); é o autor da letra da canção E Depois do Adeus (que Paulo de Carvalho levou ao Festival da Canção e foi a "senha" na rádio para o 25 de Abril de 1974);

(viii) Foi militante e deputado do Partido Socialista, no pós-25 de abril;


(ix) Os direitos de autor do  livro de memórias "Golden Gate", publicado a título póstumo  (Lisboa, D. Quixote, 2012), foram oferecidas pela família à ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas.

Crédito fotográfico: página Arnaldo Trindade

(**) Escreveu ele em texto autobiográfico :(...) "À excepção da minha mulher e da opção pela Medicina, tudo o resto veio ter comigo, paulatinamente enriqueceu e comandando a minha vida. Nunca me passou pela cabeça ser deputado, ou director de programas da RTP, ou escrever cerca de 300 canções, ou estar dois anos numa guerra. Por tudo isto agradeço à vida o que me deu. Não tenho livro de reclamações a não ser para lutar pelos direitos dos pobres, dos humildes e para que haja mais justiça e solidariedade em Portugal.
Ler mais: http://visao.sapo.pt/jose-niza-1938-2011-sete-vidas=f623989#ixzz2A75AZORW

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10556: Tabanca Grande (366): Eduardo Moutinho Santos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2366 e ex-Cap Mil Grad, CMDT da CCAÇ 2381 - "Os Maiorais" (Guiné, 1968/70)

1. Missiva, chegada à caixa de correio do editor de serviço, do nosso camarada e novo tertuliano Eduardo Moutinho Santos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2366 (Jolmete e Quinhámel) e ex-Cap Mil Grad, CMDT da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada), com data de 16 de Outubro de 2012:

Prezado Carlos Vinhal

Antes de mais o mea culpa a todos os grã-tabanqueiros do blogue por só agora pedir para transpor a porta da Tabanca que há já 3 anos visito, mas ficando na ombreira da entrada...

Assim aceitando os 10 mandamentos da Política Editorial do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné e aderindo aos 4 PS's que a completam, fico a aguardar a confirmação da minha entrada e atribuição do número de inscrito.

Seguem as duas fotos da jóia que agradeço digitalizes, pois, não tenho à disposição máquina que satisfaça uma cópia decente.

O texto de contributo (quota), acompanhado por três ou quatro fotos, uma com o Dandi Djassi primeiro Guia e depois Comandante do Pelotão da Milícia n.º 128 (Jolmete) - Companhia de Milícia n.º 8 (Pelundo) - e as restantes da visita que fiz a Jolmete em Abril de 2011, segue por mail desta data, que inserirás no Blogue de acordo com a tua disponibilidade e espaço.

Espero dispor de "pachorra" suficiente para deixar as minhas "estórias" e a história dos 23 meses de passagem pela Guiné entre 1968 e 1970.

Com um abraço e saudações
Eduardo Moutinho Santos



Monte Real, Palace Hotel, 21 de Abril de 2012 > VII Encontro da Tabanca Grande > Ao centro da foto o nosso novo tertuliano Eduardo Moutinho Santos, ex-Cap Mil Graduado que comandou a CCAÇ 2381 - "Os Maiorais". Moutinho Santos é advogado e preside à Mesa da Assembleia Geral da "Tabanca Pequena ONG", de cujos Estatutos é autor. Está ladeado, à sua direita por António Graça de Abreu e à sua esquerda por José Manuel Lopes.



2. Comentário de CV:

Caro camarada Eduardo Moutinho Santos.

Só faltava mesmo a tua apresentação formal à Tabanca porque és por demais conhecido entre a tertúlia, não só por seres uma presença regular nos nossos Encontros anuais, mas também pelo teu desempenho na Tabanca Pequena ONGD, que acarinhas desde o seu embrião.
Foste tu que, mercê dos teus conhecimentos técnicos, elaboraste os seus Estatutos, além de continuares um membro muito activo, divulgando as suas actividades e sensibilizando as pessoas a aderirem àquela ONGD que tem por missão principal ajudar a população da Guiné-Bissau, colmatando as suas necessidades mais básicas, pelo nosso prisma, mas essenciais face às suas reais carências.

Esperamos aqui a tua colaboração enquanto ex-combatente da Guiné, dentro da tua disponibilidade e pachorra. Para começar podes enviar o que prometeste na tua carta, assim como mais alguns elementos que te vou pedir por mensagem.

Acabo, deixando-te um abraço em nome da tertúlia e dos editores.
Crê-me ao teu dispor para qualquer esclarecimento.

O teu camarada e amigo, desde há já algum tempo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10542: Tabanca Grande (365): Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74)

Guiné 63/74 - P10555: O nosso livro de visitas (150): À procura de camaradas da 3ª C / BART 6520/73 que estiveram no inferno de Jemberém, em maio/junho de 1974 (Norberto G. Pereira, ex-fur mil)

1. O nosso editor Luís Graça recebeu, em 21 do corrente, na sua caixa de correio profissional, a seguinte mensagem do nosso leitor (e camarada) Norberto Pereira:

De: Norberto Pereira [norbertogpereira52@gmail.com]

Enviado: domingo, 21 de Outubro de 2012 21:09

Assunto: Combatentes da Guiné

Estive em Jemberém, Guiné,  de princípios de Maio a 3/4 de junho de 1974, ao serviço do exército, na 3ª C/ BART 6520/73. 

Tinha o posto de furriel. Abandonámos o destacamento à revelia dos comandos de Bissau,  sendo apoiados na retirada pela Marinha Portuguesa, em  LDG [, Lancha de Desembarque Grande]. 

Atracámos em Cacine. O abandono foi provocado por uma ameaça de ataque ao arame por uma força de 150/200 militares do PAIGC. Depois de nos ter sido negado qualquer apoio na defesa de Jemberém, tivemos que fazer a retirada abruptamente,  com o apoio da Marinha Portuguesa. Antes disso, rebentámos com alguns abrigos subterrâneos e construções ali existentes...

Como vinha dizendo, a  retirada foi considerada um ato de insubordinação, perante os comandos de Bissau, da qual resultou na transferência do todos militares, as praças que foram transferidas por pelotões, e os sargentos e oficiais que  foram transferidos individualmente. 

Assim, gostava de rever militares que foram camaradas nesse destacamento, como contactá-los, enfim, trocar opiniões, dissertar sobre a nossa permanência na Guiné. 

 Aguardo contacto com novidades. Um abraço.

Norberto G. Pereira

2. Comentário de L.G.:

Norberto, muito obrigado pela visita. Temos muito gosto em acolher-te nesta fabulosa família de antigos combatentes e demais amigos da Guiné, a Tabanca Grande, que se reunem aqui à sombra de um simbólico mas mágico poilão. Para tal, tens que aceitar as regras que nos regem (constantes da coluna do lado esquerdo) e pagar o ingresso no blogue, que são 2 fotos (uma atual e outra do teu tempo de tropa) + 1 história passada na Guiné...

Quanto aos camaradas que procuras, deixa-te dizer-te que este é o local ideal para o fazeres. Pertenceste à 3ª C/ BART 6520/73... Para já, tens aqui dois camaradas do teu batalhão (e um da tua companhia), inscritos na nossa Tabanca Grande, que passaram por Jemberém, a seguir ao 25 de abril de 1974, e que têm ainda muito para contar, tal como tu:

(i)  Manuel Luís Nogueira de Sousa, ex-Fur Mil At Art da 1ª CART do BART 6520/73 (Bolama, Cadique e Jemberém - 1974);

(ii) Joaquim Sabido, ex-Alf Mil Art, 3.ª CART/BART 6520/73 e CCAÇ 4641/73, Jemberém, Mansoa e Bissau, 1974).


Guiné > Carta de Cacine (Escala 1/25000) > Posição relativa de Cadique, Jemberém e Cacine, em pleno Cantanhez
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Guiné 63/74 - P10554: Notas de leitura (421): "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu", de Manuel Luís Lomba (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 2012:

Queridos amigos,
Avanço desde já que o livro do Manuel Lomba fará estalar alguma controvérsia, não propriamente pelo relatos da vida operacional mas pela miríade de considerações de índole política sobre tudo quanto se passou antes, durante e após a luta armada.

É um escritor que possui um domínio da língua, faz soltar os sons e liberta os sentidos na hora própria.
Há para ali parágrafos de raro valor, o tempo dirá. Estudou, esteve atento, colheu informação e não esconde o seu olhar peculiar sobre as coisas da Guiné.

Nunca me passara pelas mãos uma obra de tanta errância à mistura pelo gosto de contar e reviver as suas lembranças que não se apagam.

Um abraço do
Mário


A Batalha de Cufar Nalu

Beja Santos

É a primeira vez que leio um livro de memórias sobre a Guiné, em termos de vivência na guerra colonial, repertoriando igualmente a história da Guiné e os eventos mais salientes da luta armada. A pretexto de nos descrever um encadeamento de operações que durou para cima de dois meses para recuperar Cufar e pôr a respeito bases inimigas, “A Batalha de Cufar Nalu”, por Manuel Luís Lomba (Terras de Faria, Lda. 4755-204 – Faria, 2012), temos aqui um olhar muito pessoal de um homem que se cultivou e graças à sua vida profissional voltou à Guiné-Bissau. 

O seu currículo vem expresso na badana do livro: em 1963 frequentou o curso de sargentos milicianos em Tavira, foi monitor de instrução n primeira escola de recrutas de 1964, no RI 13 (Vila Real) e a seguir foi mobilizado para a Guiné, pelo Regimento de Cavalaria 7, Lisboa, onde participou na formação e instrução operacional do BCAV 705, ficando incluído na CCAV 703; o batalhão desembarcou em Bissau e ficou aquartelado no forte da Amura como força de intervenção às ordens do comando-chefe; é graças a este estatuto que vai participar no conjunto de operações que ele designa por a batalha de Cufar Nalu, posteriormente foi colocada em Buruntuma, que ele igualmente releva nas suas memórias.

Descreve de forma vivacíssima os tratos de polé até chegar ao teatro de operações. Viajam no navio Benguela, cargueiro de 10 mil toneladas, concebido para o transporte de gado, com capacidade de alojamento da tripulação e de apenas 17 passageiros. Pois foi aqui que 19 jovens viajaram durante uma semana, estivados como gado. É espirituoso e a sua escrita ágil ajuda a perceber tudo: 

“O Benguela realizava connosco a vocação de navio negreiro; havia poucos anos que os mesmos porões carregavam levas de 2 a 3 mil angolanos e moçambicanos, agrilhoados, para o trabalho escravo, nas roças de cacau e nas obras públicas, em S. Tomé e Príncipe”

E dá-nos conta de como ali chegou: 

“De trabalhador da construção civil, a começar a talhar, por necessidade e iniciativa própria, o caminho de vida, fui reciclado, aceleradamente, em militar e combatente; durante quase dois anos, com o posto de furriel miliciano, na CCAV 703". 

Mal chegados, são postos no ativo, concentrados no quartel de Bula, dependendo operacionalmente do BCAÇ 504, comandado por Hélio Felgas. Lá foi à frente de uma patrulha de reabastecimento, no contexto da operação Confiança, a cumprir a missão de desimpedimento da estrada entre Mansabá, Farim e Bissorã, enquanto outras companhias do seu batalhão mais o grupo de comandos Os Fantasmas cirandavam no Oio. Narra as peripécias ali vividas, os “Águias Negras” vinham com amor ao trabalho e prontos ao risco. 

A primeira emboscada sofrida pela CCAV 703, comandada pelo capitão Fernando Lacerda, ocorreu na picada entre Manssabá e Bironque. Por ali andaram em estreita cooperação com a CCAÇ 675, comandada pelo capitão Tomé Pinto. Isto é o princípio de 5 meses na vida airada. O autor aqui suspende a deambulação para nos dar a sua versão de como se fundou a nacionalidade bissau-guineense, aproveitando a circunstância para nos dar o quadro evolutivo da luta armada. Posto o enquadramento histórico reconsiderou útil, o leitor é lançado nas batalhas de Cufar Nalu.

São despejados em 19 de Dezembro de 1964 em reforço do BCAÇ 619 (Catió) e da CCAÇ 6 (Bedanda) a missão é destruir a base da mata de Cufar Nalu. Lá vão em ondas, depois do bombardeamento dos T6, primeiro assalto, segundo e terceiro, as coisas não estavam a correr de feição, as duas primeiras vagas foram rechaçadas. Tem aqui lugar o episódio em que ele anda perdido com a sua secção e investe, dentro da mata, até uma tabanca onde os animais pareciam fazer frente aos assaltantes. 

Vão guiados por Albino que pertencia à CCAÇ 13 comandada por João Bacar Djaló. Penetram no tarrafe, o Albino procura esquivá-los aos lugares onde os guerrilheiros estão emboscados. Uma sentinela é apeada do ponto de vigia, com um corte das carótidas. Viajam dentro de um túnel vegetal, desembocam numa cratera aberta por bomba de avião. Temos aqui páginas que poderão constar em qualquer antologia da literatura de guerra: 

 “Penetrámos numa galeria formado por mucibis e por poilões de grande porte, árvores abantesmas, nunca dantes imaginadas, os caules a interpenetrar-se e os troncos com ferimentos recentes, de estilhaços de outras bombas tugas, talvez das granadas de artilharia dos obuses instalados nos aquartelamentos de Cufar ou Bedanda, que não as desfolharam nem obstaram de manter sobre as nossas cabeças um tecto de verde luxuriante, infiltrado dos raios dourados do sol. Desembocava num pequeno trilho, exclusivo, com indícios ténues de circulação humana, começamos a palmilha-lo e deixamos de ouvir qualquer bulício, denunciador de aves, bichos ou turras. Então, começamos a ouvir o zunir dos motores dos bombardeiros T6, em aproximação à nossa retaguarda; da nossa frente começaram a chegar-nos, esbatidos pela distância ou pela elevada densidade florestal, o cacarejar intermitente das galinhas e os uivos dos cães. Lancei outro passa-palavra e o calafrio repetiu-se, ao confirmar-se a quebra, em permanência, do elo da nossa ligação pessoal à Companhia; estuguei o passo ao Albino e pusemo-nos o ciciar o ponto da situação.

A densidade florestal da Guiné opunha-se à propagação das ondas hertzianas. Procurei uma posição mais aberta e insistia a ciciar à minha “banana” alô, alô, cavaleiro 1, daqui cavaleiro 4; diga se me ouve, escuto! Senti o sangue a gelar, ao certificar-me que as nossas ligações etéreas não estavam perdidas, estavam cortadas (…) Lancei o passa palavra para o abandono imediato do conforto da cratera e dos abrigos disponibilizados pelos tugas, seguindo os vestígios de um pequeno trilho (…) Continuamos a progredir por essa amostra de trilho, que os turras teriam criado para seu uso exclusivo, envolvido por árvores de grande porte, que nos obrigavam a reconhecimentos redobrados, por oferecerem excelente proteção aos disparos, ou excelente obstáculo a eles, consoante o ponto de vista (…) Na tentativa de obstar aos disparos do armamento pesado dos turras, agi em tempo real no exercício do dever de comando, dando sinal ao bazuqueiro, a paliçada voou logo pelos ares, por uma granada-foguete, e pela voz “ao assalto!”
. Um após outro desataram em correria, curvados e aos ziguezagues, pelos espaços franqueados daquela tabanca, a disparar sobre tudo o que mexia e a lançar granadas de mão ofensivas sobre tudo o que configurasse obstáculo. Gerou-se um turbilhão infernal nos espaços abertos entre moranças, misturas e alternância de explosões e tiros, a cadência dos nossos a superar largamente os dos defensores, um desvario de crianças e mulheres a gritar, num redemoinho de pó – gentes, cães, galinhas, porcos, cabras, a atropelar-se, numa roda viva. Um bode avantajado, em porte e chifres, saltou a terreiro, a cabrear, muito excitado e arremeteu à marrada contra o soldado à minha direita, seguindo-se um salto mortal, com uma bala metida na base dos ditos, a estatelar-se junto às vacas já tombadas, já alvos privilegiados dos impactos”.

É esta a descrição que Manuel Lomba nos dá da sua primeira arremetida na área do Cantanhez.

(Continua)
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 19 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10546: Notas de leitura (420): "Guiné Portuguesa", por Avelino Teixeira da Mota (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10553: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (4): Os cheiros de Lisboa, Parte I: a feira popular (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)









Lisboa > Tejo: Rio e Ponte > 29 de maio de 2012 > Paisagens...
Fotos: © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


A. Continuação da nova série do nosso camarada e amigo J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil da CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), jurista da Caixa Geral de Depósitos, reformado [, foto atual à direita].


[ Esta nova série evoca a figura e narra a história alf mil Mário Sasso, da CCAÇ 728 - Os Palmeirins -, nascido na Beira, em Moçambique, de uma família de origem eslovena, os Sasso; o Mário Sasso foi morto em combate no Cantanhez, em 5 de dezembro de 1965].

B. Ficou um palmeirim nas bolanhas da Guiné > 4. Os Cheiros de Lisboa


4.1. A Feira Popular


Estava-se em fins de Setembro. Ainda se via sinais de Verão, por todo o lado. Ele vira, do Uíge, à beira rio, do lado de Lisboa, uma larga faixa alourada, com toldos coloridos, às listas de cima a baixo, esqueletos de pau, de barracas e corpos espalhados, ligeiramente, desnudados. Os fatos de banho davam até ao joelho e protegiam bem o peito e as costas …das constipações… todo o cuidado era pouco.

A praga da tuberculose não perdoava… Além disso, a nudez era coisa mais própria dos animais…pensava a gente, púdica, por formação e pregação…

Quando chegaram a casa, ali ao pé de Algés, ainda foram dar um mergulho nas águas, tão azuis, tão limpinhas e calmas, do rio Tejo, sem jacarés, mas com golfinhos, ali mesmo, depois de passarem a linha pachorrenta do comboio de Cascais.

Os vales suaves da ribeira viva de Algés, cheios de hortas e pomares, a encosta densa da mata extensa de Monsanto, bem penteada, de toucado verde, bem aparado e de fino corte, as colinas arredondadas e sensuais, ali pràs bandas de Linda-a-Velha e Alfragide, com os cumes altos da serra de Sintra, espreitando, lá ao longe.

Também era bonita a natureza, aqui em Lisboa. Menos carregada de folhedo, concerteza, sem onças ou pacaças, mas mais leve e suave, como a vida que se vivia, então.
– E se fôssemos à Feira Popular? … – uma voz de puto, atrevida, lançou a bisca para o ar, a ver se pegava…

A magia daquela feira, frondosa e colorida, instalada na cerca duma casa senhorial, do centro da Lisboa, ali p’ra São Sebastião da Pedreira, doutras eras…

Com tanta vida, brinquedos sem conta, barracas de farturas e tantas guloseimas, o poço da morte, a roda das cadeirinhas, os aviões, os carrinhos eléctricos, com volante a valer, o temeroso carrocel oito, o cherinho a sardinhas, a maçaroca de açucar branco que nunca mais acabava; a alegria dos pais e dos avós espelhada nos rostos vermelhuscos da sangria, com vinho bom, as laranjadas e os pirolitos, com rolha de vidro, os rebuçados embrulhados de papel, um a um, à mão, eu sei lá, era o ponto mais alto da magia, prós putos daquele tempo.
– Se passares nos exames…se te portares bem…se…se…,  havemos de ir à feira…– era a inocente e sadia chantagem que todos os pais, de todas as classes, usavam, para segurarem a trela curta da pequenada.
– Está bem. Está cá o Mário, Vamos lá… – exclamou, bonacheiro, o pai dos Sassos, de Lisboa.

Cá para nós, ele também, já tinha saudades da Feira Popular…

Ó que alegria!…O Mário nunca mais se esqueceu daquela recepção. Não podia ter sido melhor. Naquela noite, no largo quarto onde dormiu com primos, ninguém pregou olho, a reviver a feira popular…

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10500: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (3): No N/M Uíge, com Lisboa à vista (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)

domingo, 21 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10552: O nosso livro de visitas (149): Vanda Silva, madrinha de guerra, procura o paradeiro do ex- alf mil António Augusto Oliveira Marques, CCAÇ 1684 (Susana e Varela, 1967/69)


Guiné > Região do Cacheu > CCAÇ 1684 (Susana e Varela, 1967/69) > Destacamento de Cassolol  >  "Deixamos lá este pequeno monumento dedicado à nossa Companhia,  "Pantera 1684", com os nomes dos nossos mortos" (Domingos Santos).


uiné > Região do Cacheu > CCAÇ 1684 (Susana e Varela, 1967/69) > Susana > Na casa do casal José Valente e Helena > "Aqui estamos no seu terraço a comer um petisco. Ao fundo, penso ser a sua filha, que segundo sei será hoje a senhora que tem a residencial Chez Helène em Varela" (Domingos Santos).


Guiné > Região do Cacheu > CCAÇ 1684 (Susana e Varela, 1967/69) > Susana > 1968 >  O Domingos Santos, ao meio, entre lutadores felupes e mais dois militares da CCAÇ 1684, por ocasião da festa do fanado. O Domingos Santos era amigo do João Uloma, que será mais tarde alferes comando graduado da 1ª Companhia de Comandos Africanos.

Fotos: © Domingos Santos (2011). Todos os direitos reservados


1. Mensagem da nossa leitora Vanda Silva


De: Vanda Silva [ myspym@gmail.com]
Data: 16 de Outubro de 2012 09:28
Assunto: Pedido de informações


É de louvar a criação do blogue para que a memória desse tempo perdure para as gentes vindouras que ficaram livres "daquilo". 

Fui correspondente ou madrinha de guerra (eu prefiro chamar-me apenas "uma amiga") do Alferes Miliciano dos Comandos que esteve colocado em Suzana de 1967 a 1968 e pertencia, salvo erro,  aos "Os Panteras" CCAÇ 1684 [ / BCAÇ 1912, Susana e Varela, 1967/68]

Gostaria de saber mais coisas sobre ele e, se alguém o conheceu , ficaria muito grata se me pudesse elucidar. 

O meu email é myspym@gmail.com e o meu nome Vanda Silva. 


PS - Por lapso, não escrevi o nome do Alferes: António Augusto Oliveira Marques. As minhas desculpas. 

2. Comentário de L.G.:

Vanda, obrigado pela visita e pelas suas amáveis palavras.  Gostaríamos que nos falasse mais desse seu papel de madrinha de guerra ou de amiga de um combatente da Guiné, nosso camarada. Tem o nosso blogue à sua disposição. 

Quanto ao António Augusto Oliveira Marques, não temos nenhuma pista que nos leve ao seu paradeiro. Ou melhor, temos um representante da CCAÇ 1684 no blogue,  o Domingos Santos.

O Manuel Domingos Santos, ex-Furriel Miliciano, esteve em Susana e Varela, na CCAÇ 1684/BCAÇ 1912, entre maio de 1967 e maio de 1969. Seguramente que ele conheceu o seu antigo correspondente e deve encontrar-se com ele nos convívios anuais da companhia. Veja se reconhece o seu amigo nas fotos do álbum do Domingos. Ele pertence a esta grande família, que é a Tabanca Grande, desde 7 de maio de 2011. Aqui tem o e-mail: domingossantos44@gmail.com

Desejo-lhe boa sorte nas suas pesquisas.  Saudações bloguísticas dos editores.
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Nota do editor:
Último poste da série > 17 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10539: O nosso livro de visitas (148): Alfredo João Matias da Silva, ex-Fur Mil do Pel Rec Fox 3115 (Gadamael e Guileje, 1972/74) procura camaradas de armas

Guiné 63/74 - P10551: Parabéns a você (486): Manuel Moreira de Castro, ex-Soldado da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968/69)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10550: Parabéns a você (485): Rogério Cardoso, ex-Fur Mil da CART 643/BART 645 (Guiné, 1964/66)