domingo, 3 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11047: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (25): 26.º episódio: Memórias avulsas (7): 13 de Junho de 1966, inventámos o Santo António

Militares em progressão nas matas da Guiné
Foto: © José Câmara. Todos os direitos reservados



1. O nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), em mensagem do dia 30 de Janeiro de 2013, enviou-nos mais esta história para publicar na sua série "Os melhores 40 meses da minha vida".


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

GUINÉ 65/67 - MEMÓRIAS AVULSAS (7)

13 DE JUNHO DE 1966, INVENTÁMOS O SANTO ANTÓNIO

Adivinhava-se que esta madrugada iria ser em grande e com muito fogo de artifício. A 1.ª marcha a desfilar seria a d'um Grupo de Comandos do QG, dado que na altura ainda os não havia, formados na Metrópole.

A minha Secção de Morteiros havia sido convidada especial a participar (o que muito nos alegrou) e tendo como principal tarefa, encerrar os festejos, fazendo a segurança de retaguarda após o desenrolar do golpe de mão. Nesse sentido, saíramos do K3 com 36 granadas, enroladas que foram 4 a cada um dos nove elementos, myself incluído, bem como com os três morteiros com a boca tapada com rolhas de cortiça, dada a copiosa chuva, e devidamente poisados no dorso, a tiracolo, tais como se vulgares carabinas fossem. Nada de pratos base, nem aparelhos para medir distâncias ou altitudes, que ali para nada serviam, usando-se antes capacetes como preventivos para qualquer recuo ou coice no chão e o alcance ficava dependente da forma como se empinava mais ou menos o tubozinho 60.

Obviamente que dos nove, só seis levavam G3 e os restantes (os apontadores, eu e mais os dois 1ºs Cabos, Nascimento e Ismael) em coldre próprio, levávamos ainda pistolas Walter 9mm.

Partíramos às duas da manhã e até ao objectivo (Biribão?) por estranho que pareça não fomos detectados. A madrugada ia-se entretanto fazendo dia cada vez mais claro e deu para reparar na bela floresta virgem, enquanto atravessávamos a bolanha em maré vazia e o bucolismo do lugar, bem como a macacada que nos ia acompanhando e os belos trinados das formosas aves que despertavam, nada... mas nada mesmo... fazia prever que por ali havia um refúgio nocturno de IN's.

Colocado o dispositivo no terreno, a rodear a tabanca surgida no meio do nada, mas onde se festejava já, pois que bem ouvi, no rádio a pilhas, a coladera "chapéu de palha" e que também, bem vi uns jovenzitos quase acabados de nascer a bambolear-se ao som daquela bonita melodia que hoje ainda oiço, comovidamente acrescento, deram-se início às comemorações, após a ordem vinda de quem mandava e foi manga de ronco.

Do interior das casotas e dando razão a quem afirmara que havia ali dorminhocos marchantes doutras músicas, estes começaram a sair devidamente armados, mas não de arquinho e balão, disparando com malévolas intenções tentando escalupir-se e uns poucos conseguiram, mas à maioria não foi permitida tal possibilidade. É então que começam a surgir as costumadas fogueiras tão típicas desta época, feitas de alecrim aos molhos só que neste caso, e decerto devido à ventania, a coisa pegou-se aos colmos que faziam de telhado e dentro em pouco todas as sete ou oito moranças ardiam e nem deu para lhes saltar por cima e nem os bombeiros apareciam.

Todas as mulheres e crianças que lá estavam contra vontade (digo eu) vieram connosco no regresso a casa, mas tal foi feito em passo rápido, já que estávamos a ser flagelados e cada vez os rebentamentos estavam mais perto, vindos "sabe-se lá d'onde" e nós trinta o que pretendíamos agora era um bom pequeno almoço... dois ou três Vat's 69... uma ou duas bajudas... um banho no Spa... uma massagem... e dormir.

E foi assim, copiando-nos, que nasceram os festejos da cidade de Lisboa.
(continua)
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 27 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11012: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (24): 25.º episódio: Memórias avulsas (6): Cabeça cá tem juízo

Guiné 63/74 - P11046: Álbum fotográfico do Jorge Canhão (ex-fur mil inf, 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74) (1): Gadamael, junho/julho de 1973 (Parte I)



O fur mil inf Jorge Canhão e o Xico, um macaco cão, mascote da companhia



O alf mil inf  Joaquim da Silva Rocha, junto a um dos edifícios de Gadamael, atingidos pelo fogo do PAIGC, na 1ª primeira quinzena de 1973.



O alf mil inf Joaquim da Silva Rocha, junto a um dos edifícios de Gadamael, atingidos pelo fogo do PAIGC.


O fur mil inf Jorge Canhão, junto a um dos edifícios de Gadamael, atingidos pelo fogo do PAIGC.


O fur mil inf  Jorge Canhão, no telhado de um dos edifícios da tabanca de Gadamael, atingidos pelo fogo do PAIGC.



O Pelotão do fur mil inf Jorge Canhão (, o terceiro da 2ª fila, de pé, a contar da esquerda para a direita).

Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612 (1972/74) > Aspetos diversos do quartel e tabanca de Gadamael, depois dos ataques da 1ª quinzena de 1973. A companhia do Jorge Canhão esteve em reforço do COP 5, em Gadamael, de 18 de junho a 13 de julho de 1973.

Fotos do nosso amigo e camarada Jorge Canhão, que vive em Oeiras (ex-Fur Mil At Inf da 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74),  que nos chegaram às mãos através de outro grã-tabanqueiro, o Agostinho  Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74), residente em Leiria.  Os nossos especiais agradecimentos aos dois.

Fotos: © Jorge Canhão (2011). Todos os direitos reservados




Fonte:  BCAÇ 4612 (Mansoa, 1972/74) - História da Unidade (Documento, em formato pdf, que nos foi gentilmente cedido pelo Agostinho Gaspar)

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11045: Os Nossos Enfermeiros (8): Diagnóstico salomónico (Adriano Moreira)

1. Estória do nosso camarada Adriano Moreira (ex-Fur Mil Enf da CART 2412, BigeneGuidaje e Barro, 1968/70), chegada até nós em mensagem do seu camarada (e nosso tertuliano) Jorge Teixeira com data de 30 de Janeiro de 2013:


Diagnóstico Salomónico

Quando cheguei a Guidage tinha dois meses de Guiné. Depois de já ter passado mês e meio no Posto de Socorros e Enfermaria de Bigene e de ter visto com pouco pormenor a Enfermaria de Binta naqueles três dias que lá passei, quando deparei com o que me disseram ser o Posto de Socorros de Guidage, quase caí pr´o lado. Era praticamente pegado à Cantina onde toda a gente ia comprar as bebidas. Tinha porta da frente, mas sem fechadura o que equivale a dizer que não precisava de chave. Portanto ficava aberto dia e noite, porque na parte de trás nem porta tinha.

Coloquei o Atrelado Sanitário (que me tinham impingido em Bissau) de forma estratégica para dificultar um pouco mais a entrada naqueles aposentos maravilhosos com um chão tão irregular como a estrada que lhe passava à porta e nos levava até à pista. As paredes não podiam sentir nenhum desprezo pelo chão, pois estavam esburacadas e estragadas o suficiente para não serem consideradas nenhuma Obra d´Arte. Assim, aqueles aposentos dignos das Mil e Uma Noites passaram a ser o meu local de trabalho.

Com estas maravilhosas instalações, a única coisa boa que eu recebi foi o meu ajudante "TUMBULO". Era esse o nome do rapaz a quem eu muito pomposamente designava "Pelo meu Tradutor Oficial de Línguas".

Como estávamos em cima do Senegal ou o Senegal em cima de nós, tínhamos uma considerável clientela do lado de lá, que nós tratávamos gratuitamente o melhor que sabíamos e podíamos, e eles também conforme podiam lá iam trazendo uns ovitos e outras vezes as bichezas que os punham, ou seja umas galinhitas.

Dentro deste panorama geral, certo dia aparece por lá um indivíduo a quem o Tumbulo no seu afã habitual de perguntar o que as pessoas tinham para me comunicar em seguida, diz-lhe com toda a rapidez e num tom de cortar à faca: "PENCÓ".

Eu naquela altura já sabia algumas palavras de mandinga e de fula e, entre elas, que pencó ou pingo significavam injecção, portanto fiquei logo elucidado ele queria levar uma injecção e "mais nada".

O Tumbulo vira-se para mim muito atrapalhado:
- "Furié ele só fala injecção!"

Digo-lhe:
- Eu já percebi, mas volta-lhe a perguntar o que é que lhe dói ou o que ele sente para eu lhe poder dar o remédio adequado.

Então o Tumbulo cheio de boa vontade lá recomeçou com a lengalenga toda outra vez, ao que o indivíduo impávido e sereno lhe atira com outro "PENCÓ", não negociável.

O Tumbulo ainda mais atrapalhado volta-me a dizer:
- "Furié ele só fala injecção".

Nessa altura eu já estava a dar voltas à cabeça a pensar no que havia de fazer para dar a volta àquele mânfio. Então viro-me para o Tumbulo com o ar mais dramático do mundo e com uma voz muitíssimo calma para quem estava prestes a explodir e digo-lhe assim:
- Olha diz ao homem que estão aqui as injecções todas que nós temos. Umas são muito boas, fazem muito bem, outras matam. Ele escolhe a que quiser, põe mesmo a mão dele na caixa e eu dou-lha, se ele estiver com sorte a injecção faz-lhe bem ou não lhe faz nada, se ele estiver com azar leva a injecção e morre. É tudo tão simples como isto.

Quando acabei de falar deu-me mesmo a sensação que ia ficar sem tradutor oficial de línguas pois ele devia de estar com pensamentos do género: "E andei eu a dar injecções destas às bajudas sem saber podia mandar alguma pró galheiro". Logo a seguir já refeito lá passou a minha mensagem ao homem que preferiu não arriscar e acabou por dizer o que sentia e eu acabei por lhe dar a injecção adequada às suas maleitas, que espero lhe tenha feito bem, para acabar com esta treta em beleza.

O meu muito obrigado para todos os que contribuíram para que este texto e as fotografias possam sair à luz um dia qualquer num post e no blogue de todos nós, principalmente aos camarigos Teixeira e Vinhal.

Manga d´abraços para todos.
Adriano Moreira

Adriano Moreira com miúdos 

Adriano Moreira com Mulher Grande
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 20 DE SETEMBRO DE 2009 > Guiné 63/74 - P4978: Os Nossos Enfermeiros (7): Excerto do Diário de um Enfermeiro (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P11044: Do Ninho D'Águia até África (49): Eram guerreiros (Tony Borié)

1. Quadragésimo nono episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 26 de Janeiro de 2013:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (49)




Já não eram militares, eram GUERREIROS. Tinham a pele do seu corpo queimada do sol quente e húmido do Equador, alguns tinham cicatrizes e outras marcas no corpo, manuseavam a G3, com uma habilidade tal que dificilmente erravam o alvo, já não choravam e gritavam uns com os outros para afugentar o medo, alguns diziam que já não tinham lágrimas. Tinham barba e cabelo crescido, grandes bigodes que os faziam mais velhos mas, por baixo, tinham cara de adolescentes, já sabiam matar quando, num momento de aflição, debaixo de uma emboscada, mantinham a calma e um certo sangue frio, cerravam os dentes, premiam o gatilho, ou tiravam a cavilha a uma granada com precisão. Ouvir tiros ou rebentamentos de granadas era um som já familiarizado, eram feras com faro apurado, conheciam o cheiro da aproximação do perigo, ver sangue quente, a sair do corpo de um companheiro, que tinha sido atingido, fazia parte do seu dia a dia, durante uma patrulha, os seus olhos estavam sempre numa direcção, um pouco acima do capim ou outra vegetação, e sabiam detectar qualquer movimento suspeito, eram profissionais de combate.

Esta era a análise que o Cifra fazia do grupo de combate do Furriel Miliciano que andava sempre com um cigarro, feito à mão, na boca e de onde entre outros, faziam parte o Curvas, alto e refilão, o Trinta e Seis, o Setúbal, o Marafado e o Mister Hóstia. O Cifra, chamava-lhes, Os guerreiros da tribo do furriel. Iam para as matas e bolanhas, com o seu camuflado, já coçado, alguns com as mangas cortadas, levavam sempre um “lenço tabaqueiro”, que compravam na loja do Libanês, pendurado no cinto, diziam que era para lhe dar sorte, onde também ia o máximo de carregadores possível assim como uma granada, às vezes duas, que lhes eram distribuídas antes de saírem, alguns também levavam uma faca bastante afiada, com uma protecção de cabedal, colocavam os restos das meias, que lhes saíam das botas, algumas rotas, por fora das pernas das calças, e às vezes amarravam um fio ou uma tira de pano, que normalmente era feito de uns restos de uma camisa, pois aproveitavam-se todos os trapos da farda, logo a seguir às botas, para que as calças assim ajustadas protegessem a pele das pernas, o cantil também à cinta, e sempre que passavam por uma bolanha ou rio, enchiam de novo, à superfície, com gentileza, para entrar água, com poucos insectos, ou germes, a sua amada G3, sempre apontada para o chão, com bala na câmara, pronta a disparar,  ia debaixo do braço, junto ao seu corpo.
De vez em quando apalpavam-na, para se certificarem que a levavam, alguns levavam por fora, amarrada, uma imagem da Nossa Senhora de Fátima, e por dentro, entre o forro do capacete, ia o maço de cigarros e o isqueiro, às vezes embrulhado num farrapo, nos bolsos do casaco e das calças ia normalmente, um canivete, algumas munições avulso, alguma comida, que podia ser um pouco de chouriço de conserva, ou qualquer outra porção de comida sólida, que tinham trazido do refeitório, da refeição anterior, embrulhado num bocado de folha de bananeira e depois num farrapo, o naco de pão que ia nos bolsos, se não fosse rijo, era comido quase à saída do aquartelamento, pois com o andar e com os movimentos do corpo, desfazia-se em migalhas, e a ração de combate, que eles veteranos, não gostavam muito, pois era feita à base de dieta americana, e o Arroz com Pão, também veterano, sempre lhes arranjava algo para irem entretendo o estômago, que não fosse ração de combate, que alguns diziam lhe dava a volta aos intestinos, e que na linguagem local era, “panga bariga”.


Normalmente, antes de saírem, entregavam alguns bens ao Cifra, como dinheiro e outros objectos, com algumas recomendações em caso de acidente, bens esses que o Cifra guardava no centro cripto. Eram GUERREIROS, já não eram militares, eram homens de combate, tinham os seus regulamentos internos, às vezes tinham pequenas zangas no dormitório, como por exemplo, quando chamavam o Trinta e Seis, que era baixo e forte na estatura, parecia de facto uma “bola”, passe o termo, diziam:
- Trinta e Seis, rola para aqui! Ou, o Trinta e Seis, não caminha, rola!.

Claro, ele não se calava, e respondia, com a mão nos seus orgãos genitais:
- Para aqui, queres tu dizer!.

E vinha logo o Curvas, alto e refilão em sua defesa, os ânimos exaltavam-se, e havia uma barafunda, com alguns a acalmarem outros, mas quando saíam para o interior das matas, em patrulha ou para desactivarem alguma base de guerrilheiros, eram amigos e solidários, protegiam-se davam a vida uns pelos outros, eram irmãos de sangue.

Havia uns mais valentes do que outros, neste grupo, o Furriel Miliciano e o Curvas, alto e refilão sobressaíam dos demais, e até contavam uma história, que o Cifra nunca soube se era verdade, ou se alguém tinha visto em algum filme do John Wayne, que foi passada numa ocasião em que se encontravam numa normal patrulha, e verificando que vinha um grupo de guerrilheiros em fila indiana, o Furriel Miliciano e o Curvas, alto e refilão, já experientes, com a calma própria de um guerreiro experimentado, apontam a G3, disparam e depois dizem um ao outro:
- O meu chegou ao chão mais depressa!

E o outro responde:
- O meu, era mais alto!

Coisas de combatentes que já não eram militares, mas sim GUERREIROS, homens de combate, com cara de adolescentes, que já sabiam matar, por baixo de grandes bigodes, cabelo e barba também grandes que os tornavam mais velhos.

Como o Cifra dizia antes, tinham os seus regulamentos, e como o comando a que o Cifra pertencia, às vezes os mantinha “encurralados”, passe o termo, no aquartelamento, como eram GUERREIROS, sentiam a falta de combate, do som dos tiros, e o comando tirava vantagem dessa situação, “soltando-os”, também passe o termo, para irem em patrulha para as zonas mais remotas e perigosas, mas eles já veteranos, se lhe davam ordens para irem encostados à zona norte, eles iam encostados à zona sul, portando evitavam o contacto, e assim possíveis confrontos com guerrilheiros, protegiam-se, a sobrevivência já era muito importante para eles, eram veteranos na guerra, e alguns diziam ao Cifra:
- Da próxima vez que sair em patrulha, quero levar o teu comandante, e o resto desses majores das operações especiais comigo, para eles verem as zonas para onde nos mandaram. Filhos da p..., eu tenho família em Portugal, e quero vê-la de novo!
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 29 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11022: Do Ninho D'Águia até África (48): Guiné... Minho e... Algarve (Tony Borié)

Guinmé 63/74 - P11043: O Spínola que eu conheci (27): Depoimentos de António Rosinha / António J. Pereira da Costa / José Martins / Augusto Silva Santos / José Manuel Dinis



Guiné > Algures > Maio de 1973 > Costa Gomes, Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, dá início, a 25 de maio de 1973,  a uma visita ao Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG), para se inteirar do agravamento da situação militar e analisar medidas a tomar com vista a garantir o espaço de manobra do poder politico em Lisboa.   Na foto, vê-se o Gen Costa Gomes à direita de Spínola, falando com milícias guineenses. Foto do francês Pierre Fargeas (técnico que fazia a manutenção dos helis AL III, na BA 12, Bissalanca), gentilmente enviada pelo nosso camara Jorge Félix (ex-Alf Mil Pil Heli, BA12, Bissalanca, 1968/70).

Foto: © Pierre Fargeas / Jorge Félix (2009). Direitos reservados.

1. Comentários de António Rosinha ao poste P11031 (*)_


(i) Sempre houve muita inibição em falar do desempenho extraordinário de Spínola, na guerra colonial. Os oficiais superiores, até por causa do desaire da morte dos 3 majores no chão manjaco, se retraíam em o fazer.


Mas, como foi durante muitos anos politicamente incorrecto, e ainda é hoje, defender a política portuguesa para África, diferente da inglesa e francesa (e soviética / americana), talvez por isso se evite fazer um retrato real da figura de Spínola.

Mesmo aqui neste blogue quanto mais na imprensa e nos historiadores, parece que há vergonha de falar no que na realidade fez sobressair este homem de qualquer outro português da sua época.

Como militar um dia se fará o verdadeiro retrato. Mas, como Governador Geral, vai ser difícil, porque os guineenses da sua época, régulos, e homens e mulheres grandes da sua época, não sabem escrever e não "podem falar" em público.

O grande sucesso de Spínola na Guiné, foi político e social, mais do que militar. Muitos não concordarão com A J P Costa, mas vê-se que já outros o acompanham.

(ii) A diferença que este homem teve para qualquer outro português da sua geração, nunca se pode medir por mais tiro menos tiro, mais erro menos erro, (mesmo a tragédia do chão manjaco). 

O exemplo dele foi copiado em Angola por governadores de distrito, como Soares Carneiro e outros, como capitão Branco Ló, que tiveram sucessos políticos e sociais em coordenação com GE's, com resultados estrondosos ao ponto de, quando se deu o 25 de Abril, nem sinal da presença dos movimentos se sentia em regiões do tamanho de 2 Guinés.

Mas vai ser difícil um dia escrever o que foi esta guerra, até porque para calar o barulho ensurdecedor de certas claques, vai demorar muitos anos. E essas claques não permitem que se escreva a história porque eles não entram nela. 


2. Comentários de António J. Pereira da Costa ao poste P11031

Não privei com o General. Ele visitou a CArt 1692 (Cacine), em maio/junho de 68, e eu não fiquei com nenhuma foto do evento. Já contei noutro poste que foi a partir daí que o dispositivo daquele sector se começou a alterar e a história, até 1973/74, está bem documentada cá no blogue.

Foi apenas uma vez a Mansabá pelo Natal de 72, para uma curta conversa, sem consequências. Entre 68 e 73 observei-o "de longe" e conclui que "sobrevivia" bem no(s) ambiente(s), jogando com uma visão mais clara, exacta e atenta das coisas da "guerra", (por isso sabia ouvir) uma certa dose de demagogia, prática da intimidação a alguns (os famosos "pares de patins" talvez tenham sido injustos em alguns casos e necessários, mas não aplicados noutros),  promoção (às vezes discutível) de outros, à mistura com certos "ódios de estimação (artilharia, estado-maior, etc.) e ideias preconcebidas.

Quero enfatizar as suas decisões de atacar o In no estrangeiro, que não sei até quanto poderiam contar com a "cobertura e aceitação" da sua hierarquia e a tentativa de contactos com o PAIGC através do presidente do Senegal. Sabemos bem quão sacanas e hipócritas eram os políticos do seu tempo.

Os rapazes do PAIGC apareceram, agora, nos programas do [Joaquim] Furtado [, A Guerra, série da RTP,] e denegrir esta tentativa. Foi um jogo de tudo ou nada em que quiseram prosseguir. Imaginem só o que seria a obtenção de um cessar-fogo na Guiné, à revelia do governo de Lisboa. É, no mínimo, discutível a opção do PAIGC de só negociar com o governo central e não com o opositor directo. O que poderia ter sido poupado em vidas e esforço! A comunidade internacional não deixaria cair o assunto e...

Bem, isto já são hipóteses. De qualquer modo volto a repetir que o General, como todos nós, era um bombeiro que chegava atrasado ao fogo florestal com todas as condições para continuar a arder.
Posso testemunhar as grandes melhorias a nível da logística que se operaram, desburocratizando uma série procedimentos e lançando no canal de reabastecimentos tantos artigos necessários. Saliento também a aproximação (absurdamente tardia e sem nunca reverter grandes contingentes para o controlo das autoridades) às populações. Era imperiosa, mas creio que num fenómeno sociológico como aquele que vivemos era tarde para resultados mais positivos. Tinham passado mais de 500 anos entre a descoberta e o início da "guerra" e a Guiné ainda era aquilo que vimos ao chegar e deixámos para trás.

Foi uma valentia sua aceitar um último esforço para tentar fazer algo de positivo. Já tenho dúvidas na aceitação de uma "missão votada ao fracasso", e isso ele não fez. Mas isso, já são contas de outro rosário...

Concordo, em absoluto, com o José Júlio Nascimento ["Se o General Spínola fosse norte-americano e tivesse estado no Vietname, talvez já fosse êxito de bilheteira numa qualquer saga heróica, mas como é Português"...](*).  Era uma boa oportunidade para se criar um branqueamento em que os "maricanos" são especialistas. Fabricam heróis quando têm necessidade deles e querem actuar sobre a mentalidade do seu povo e do estrangeiro. Eles hoje até estão convencidos que ganharam no Viet-Nam... Para mim, os homens têm qualidades e defeitos e o branqueamentos das suas personalidades e acções só os diminui à medida que a poeira da História assenta. É a verdade da vida dos homens bem divulgada que faz deles grandes.

Um Ab.
António J. P. Costa


3. Comentário do José Marcelino Martins [, ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70, foto à esquerda] ao poste P11028:

Com Spínola só falei duas vezes:
Como General, na visita que fez às tropas empenhadas na Operação Lacoste, no Burmeleu, a sul de Canjadude e muito próximo do rio Corubal. Teve de "arrancar" rapidamente devido à "saída de um morteiro In".

Como Marechal, falei com ele no Hospital da Ajuda, quando estava em tratamento e eu visitava o meu genro que estava internado.  Nessa altura falamos longa e amigavelmente, facto que foi notado por muitas das pessoas presentes.

Falamos da Operação Lacoste e falamos do meu genro e a razão por que estava internado. Já falava muito devagar e parava, porque a saúde já não ajudava. Não deixou de manifestar apreço por o ter abordado e deixou votos para as rápidas melhores "do rapaz".

Pouco tempo depois, foi ao encontro das "suas tropas celestes".

 4. Comentário de Augusto Silva Santos [, foto atual à direita,] ao poste P11028:

Curiosamente, fui eu quem lhe fez a última guarda de honra no Depósito de Adidos em Brá, antes de ele, General Spínola, sair da Guiné e ser substituído pelo General Bettencourt Rodrigues. Fui destacado para o efeito por castigo (facto que consta da minha apresentação ao blogue e que me escuso agora de repetir), mas confesso que na altura foi para mim uma honra por ser um militar e pessoa da minha admiração e respeito. Anos mais tarde viria a encontrá-lo a almoçar na Casa do Alentejo em Lisboa, e não pude deixar de me dirigir a ele e de o cumprimentar, relembrando-lhe esse facto, algo que muito o sensibilizou. Na oportunidade falei-lhe também sobre a minha passagem por Jolmete, algo que sempre mexeu muito com o Gen. Spínola, pela morte dos 4 oficiais no Chão Manjaco, perto daquele aquartelamento. Cumprimentou-me e deu-me um abraço desejando-me felicidades. Não sei se seriam muitos os oficiais generais deste país a ter tal comportamento.


5. Comentário de José Manuel Dinis  [, foto atual à esquerda, ]ao poste P11028:


Já aqui me referi ao nosso General por algumas vezes. Foi uma figura controversa, muito controversa.
Ambicioso, fazia o culto da imagem e do poder, e para o efeito utilizava como ninguém os meios de comunicação social, que davam eco às suas iniciativas. Estudioso da situação portuguesa, publicou, e as suas obras foram sempre pedradas no charco, agitando a quietude da água. Como soldado, era ousado, e preocupava-se em saber sobre as circunstâncias da tropa, tanto em acção, como na rotina aquartelada.

Onde é que terá falhado? Arrisco algumas impressões:

(i) Como estratega, parecia impulsivo, recuou e avançou com posições no terreno, que causavam alguma estupefacção à tropa (abandono e reocupação de áreas, a invasão de Pirada), além de ter tido iniciativas contraditórias e/ou que não controlou (ao nível do estabelecimento de negociações, e sobre Conakry);

(ii) Como gestor de uma organização, faltou-lhe o controle sobre os meios, o que seria relativamente fácil de implementar se tivesse criado um quadro de auditoria e controle, o que manteria melhores níveis no moral das tropas, além da poupança que incidiria no erário público;

(iii) Como discipinador, teve atitudes de punição e promoção, suscetiveis de critica severa, principalmente no que respeita às punições públicas; alternava com atitudes de tolerância, designadamente no que ao atavio dos militares e das unidades podia respeitar;

(iv) Relativamente à sua ambição política, no âmbito do confronto de posições (mais do que ideológico) com o governo, lembro-me do discurso de despedida, em que referiu: Fala-vos um soldado velho... e adiantou, os traidores estão na retaguarda. Ainda acrescentou com ar paternalista, que estaria sempre ao nosso dispor.

Foi uma figura fascinante. E ao passar revista à tropa, fez um desvio à trajectória, colocou-se à minha frente, observou-me o cabelo, o patilhame, a mosca, o ar malandro, e quando eu já imaginava que iria mandar-me para fora da formatura, virou costas e prosseguiu.
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Guiné 63/74 - P11042: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (4): Macacos, turistas e envelhecimento activo...

1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, da nossa grã-tabanqueira Anabela Pires, nascida em Moçambique, técnica superior de serviço social no Ministério da Agricultura, reformada, amiga dos nossos grã-tabanqueiros Jero e Alice Carneiro...

Em 2012, esteve na Guiné-Bissau cerca de três meses (, de meados de janeiro a meados de abril). Devido ao golpe de Estado de 12 de abril , acabou por sair da Guiné.-Bissau, por razões de segurança. Passou um mês no Senegal. Regressou a Portugal. Vive neste momento na Índia, em Auroville. Em Iemberém, Parque Nacional do Cantanhez, região de Tombali, esteve a trabalhar como voluntária no projeto do Ecoturismo, da AD - Acção para o Desenvolvimento. 

 Chegou em Iemberém no dia 17/1/2012. E ficou hospedada nas instalações locais da AD, a ONGD que é dirigida pelo nosso amigo Pepito (*)


2. Diário de Iemberém, por Anabela Pires [, que escreve de acordo com a antiga ortografia] > Parte IV


31 de Janeiro de 2012

Há dias que não escrevo. Gosto de aqui me sentar de manhã bem cedo mas só o faço quando me levanto antes das 7 da manhã. Ontem iniciámos limpezas de fundo aos bungalows e à Casa do Ambiente. O conceito de limpeza das senhoras passa sobretudo pela limpeza do chão. Não admira. As suas casas, as moranças (uma morança pode ser um conjunto de casas tradicionais onde vive uma família alargada ou uma única habitação caso se trate de uma família nuclear; em Moçambique são as palhotas), não têm azulejos, nem vidros, nem outras coisas semelhantes.

Diga-se, em abono da verdade, que, pelo menos nesta época seca, é muito difícil manter uma casa limpa. A semana passada, na 4ª feira, fizemos uma grande “barrela” à minha casa. Só ainda não foram limpas as paredes. Pois hoje, 7 dias depois, os vidros da minha cozinha já estão castanhos da poeira! A mulher do meu vizinho padeiro, todos os dias a esta hora, faz o favor, por sua iniciativa, de varrer as traseiras da minha casa. O redor da casa é todos os dias varrido das muitas folhas (a que chamam palha) que caem, mas a poeira levantada vem para dentro de casa. 

Mais ainda do que em qualquer parte da Europa, os trabalhos domésticos são, aqui, inglórios! Não me admira agora que elas ignorem a sujidade provocada pela terra vermelha. Depois são as crianças … rebolam-se pela terra (quando os vejo e me lembro dos meninos em Portugal …. Que grande liberdade diária têm estas crianças!) e vêm à minha varanda! Mãos e pés sujos de terra e a parede em menos de nada está toda cheia de dedinhos vermelhos. Mas alguns já vêm mais limpos e arranjados. 

O Mamadu, ou Du para a família, tem 4 anos. É filho da Jóia, irmão da Oina. Estamos a tornarmo-nos bons amigos. Ainda não percebe tudo o que eu digo mas quando lhe peço um beijo já mo dá. E o Alaje Turé, um pouco mais velho, deve ter 5 anos, é sobrinho da Satu. É tão inteligente. Percebe tudo o que digo e explica aos outros. E quando não consegue dizer-me alguma coisa por palavras usa a mímica. Dos pequenitos, estes são, para já, os meus melhores amigos. 

Ontem o Alberto fez anos. Enviei uma sms à Priscila mas penso que não a deve ter recebido. A Isabel já me tinha dito que as sms nem sempre chegam ao destino. Já enviei umas quantas mas creio que poucas terão chegado aos destinatários. E continuo sem Internet pelo que só tenho tido contacto com a minha irmã. O que mais me tem custado é esta falta de comunicação e as poucas horas em que consigo sintonizar o meu rádio. Consigo sintonizar a RDP África de manhã, quando estou em casa, e pouco mais. À tarde já nem tento ouvir rádio. Pensei que conseguiria apanhar outras emissoras mais próximas mas nem isso. E quando consigo os ruídos são tantos que acabo por desistir. Será por esta razão que sempre vi os pretos em Moçambique de rádio na mão, quase encostado ao ouvido?! Se voltar, terei de ver como resolver este problema. 

Outro problema é o acesso a Bissau. Todos os meses um dos técnicos locais da AD lá vai buscar os salários, mas como atualmente o jipe desta região está avariado o Adulai foi de “Toca-toca” (tipo autocarro local). Assim, das inúmeras coisas que pedi à Isabel para me enviar, poucas irei receber, para já. No “Toca-toca” vem tudo ao monte e não sei o que me trará o Adulai. Aqui em Iembérem nem papel higiénico há à venda. Mas tudo se vai resolvendo. A Satu desenrasca-me sempre! Tem sido uma belíssima companheira, que começou por me chamar professora, que se recusa a tratar-me pelo meu nome (considera que isso é uma falta de respeito porque tenho quase mais vinte anos do que ela) e que acabámos concordando que me chama por “formadora”. Gostaria de continuar mas são 8 horas e daqui a pouco tenho de estar a ensinar as senhoras a limpar o que nunca limparam. Para isso tenho de demonstrar como se faz e, assim, ontem, fiquei cansadíssima!

3 de Fevereiro de 2012

Esta semana tem sido dedicada às limpezas de fundo dos alojamentos turísticos mas como as senhoras da limpeza só trabalham meio-dia só ficarão limpos 2 dos 3 bungalows e os 4 quartos e 2 casas de banho da Casa do Ambiente (antes chamada Casa de Passagem e que ainda assim está no site). 

Continuaremos para a semana pois nos próximos 3 dias teremos cá um grupo de 17 pessoas – um realizador guineense com parte da sua equipa. No fim-de-semana passado apareceram de surpresa 2 casais. Um era holandês, a viver na Suiça, de onde vieram de jipe até aqui. O senhor com 73 anos e a senhora com 66. O jipe estava preparado para dormirem lá dentro e por isso só quiseram acampar, de forma muito rudimentar. 

Ela passou o tempo a fotografar e ele a ler. Vi algumas fotografias que ela tirou aos macacos e fiquei a roer-me de inveja! Com uma super máquina conseguia apanhar os pormenores a uma grande distância. Penso que ainda não falei dos macacos. Aqui dentro da zona onde estão os alojamentos e onde vivo, há, para além de mangueiras, outras enormes árvores. Sobretudo da parte da tarde, quando começo a ouvir muitas folhas a caírem ao mesmo tempo, vou ver e lá andam eles aos saltos e pulos! Uns são de pêlo avermelhado (não sei ainda o nome da espécie) e outros são os macacos fidalgos que são pretos mas têm uma enorme cauda branca. 

Outro dia vi um bando (não será este o nome de um conjunto de macacos!) de fidalgos a atravessarem o terreiro para subirem para as árvores que estão no centro. Mas não se aproximam de nós, andam sempre bem nas copas das altas árvores. Neste momento têm crias mas com muita pena ainda não consegui ver nenhum de perto (se voltar será boa ideia trazer binóculos), só o Neca. Este macaco não era daqui, terá vivido preso e foi devolvido à liberdade. Apesar de ser de uma espécie diferente (parece que portadora de Sida) das que habitam este Parque, adaptou-se bem. 

O Neca é o único que se aproxima dos humanos e ainda assim não se deixa tocar. Mas aceita mandioca, banana, laranja… Uma tarde os meninos pensaram em agarrá-lo para que eu lhe pudesse chegar ao pé. Pobre Neca! Apanhou um tal susto que agora não se tem aproximado. 

Até os gatos são arredios. Tenho a impressão de que as pessoas não lhes dão de comer, eles que se amanhem! Mas um deles já percebeu que eu estou disposta a dar-lhe os meus restos de peixe e já vem miar à minha porta. No entanto, se saio para lhe dar a comida foge logo! Tenho de deixar o peixe a alguma distância de casa para depois ele ir comer. Já vi uns 2 ou 3 cães, mal tratados também. Aqui a prioridade são mesmo as pessoas pois o que há chega mal para elas. São já 7 e 17 e ainda não vejo nada dentro de casa. Estou para aqui a tentar acertar nas teclas do computador pois ainda não arranjei forma de pendurar a bendita lanterna solar que a Catarina me deu. 
Voltando ao holandeses/suíços do último fim-de-semana. Só foram comer uma vez ao restaurante da Satu pois o senhor não gostava da comida guineense. Propusemo-nos então fazer uma salada de repolho e cenoura (receita da Tia Anica), arroz de peixe (sem coentros!) e Laranjas da Rosinda (sem licor de Whisky). Adoraram a refeição.

O outro casal que apareceu era francês. Uma senhora de Lyon, com a linda idade de 87 anos! Um espanto! Há três anos que vem com um amigo, bastante mais novo do que ela, passar 3 meses do ano a África. Viajam de avião até Burkina-Faso onde alugam um jipe e depois andam por aí. 

Depois da passagem desta senhora fiquei convencida de que ainda tenho muitos anos para por aqui andar! O mais engraçado foi o espanto das pessoas. Para elas eu sou velha, quanto mais uma senhora de 87 anos! Isto não significa que aqui não haja pessoas idosas. Há, mas são raras, e talvez até por isso muito veneradas. O Homem Grande que morreu em Madina de Cantanhez, logo após a minha chegada, deveria ter, pelos cálculos dos locais, bem mais de 100 anos!

(Continua)


[Fotos: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]
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Guiné 63/74 - P11041: Parabéns a você (530): Germano Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 (Guiné, 1970/73)

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 29 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11021: Parabéns a você (529): Luís Graça, fundador deste Blogue, ex-Fur Mil da CCAÇ 2590 /CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11040: A Cilinha em Gadamael, em fevereiro de 1974... Ia havendo levantamento militar, por causa do heli da senhora... (C. Martins, o último artilheiro de Gadamael, 1973/74)



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > Agosto de 1972 > Espetacular foto noturna do obus 14 em ação...

Foto: © Vasco Santos (2011). Todos os direitos reservados.


1. Do nosso leitor (e camarada) C. Martins, ex-comandante do último Pel Art de Gadamael (1973/74), comentário ao poste P10993


A Sra. Supico Pinto por acaso até foi a Gadamael,  em fevereiro de 1974

Era para pernoitar no aquartelamento, mas não pernoitou... É que começou a correr o boato que no dia seguinte viria um heli para levar a Sra, o que quase levou a um levantamento militar.

Regressou no mesmo dia a Cacine e julgo que a Bissau.

No final da tarde fomos flagelados mas Sra.já estaria provavelmente no remanso de Bissau.

Porquê do quase levantamento militar ? Explicação simples: as evacuações eram feitas em sintex ou zebro para Cacine e daí em heli, para Bissau...Se não vinha heli a Gadamael para evacuações, era o que faltava vir um para levar a Sra.! (*)

Confesso que fui um dos autores morais... da coisa.

Quanto a conjuntos musicais e outras "variedades", nunca tivemos direito a nada disso... Ora,  era suficiente o arraial que tínhamos quase diariamente.

C. Martins
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Nota do editor:


(*) Em 1969, o custo do heli AL III era de quinze contos (!) por hora... mais do que o vencimento mensal de dois alferes milicianos juntos..."O heli é uma arma cara (15 contos por hora). Mas é indispensável neste tipo de guerra" (...Relatório da Op Lança Afiada, 8-19 de março de 1969).

Guiné 63/74 - P11039: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (35): O perfeito, senhor Correia

1. Em mensagem do dia 22 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (35)

Manuel Correia

O prefeito, Sr. Correia, era uma figura algo carismática, trágico-cómica, incontornável, meio caricata etc. etc. que passou vários anos no COA. Chegou lá na primeira metade da década de cinquenta do século passado, muito provavelmente no princípio de 1954; vindo de Santo Tirso, donde era natural; era um adepto indefectível do Clube Futebol da sua terra; veio ocupar o lugar deixado vago por um tal Sr. Fernandes que – não sei o motivo – deixou o COA naquela época.

Uns tempos depois, devido ao aumento do número de alunos, teve como ajudante, um rapaz – cujo nome “já se me varreu” - que seria filho dum GNR e creio que era ex-seminarista; não aqueceu o lugar; sentiu que a “barra” era pesada, pôs o chapéu… e foi-se.

O segundo auxiliar e aprendiz de prefeito foi um tal Areal; era alto e jovem, com ares de cinéfilo também oriundo de Santo Tirso. Embora ali permanecesse algum tempo mais que o anterior, a sua passagem pelo COA foi também efémera. Digno de registo, recordo apenas uma briga – troca de murros – entre ele e o Castanheira II (o Francisco?), no “beco” que conduzia ao internato.

Eis que de seguida surge o sr. Pinheiro, talvez da mesma idade do Sr. Correia, mas mais alto e menos corpulento. Aguentou-se ali pouco tempo, também.

Dele recordo que, durante um “estudo” da manhã, o Sr. Correia não estava presente no salão; o Sr. Pinheiro foi, automaticamente, promovido a chefe, assumindo o comando das operações; ele “passeava” calado por entre duas filas de carteiras duma ponta à outra do salão. Lentamente, o sussurro foi aumentando, chegando à barulheira; antes que se tornasse infernal, o Sr. Pinheiro tomou lugar sobre o estrado e, daquele “púlpito” emitiu, sem preliminares, o seu elevado pensamento matinal:
- Dizem os filósofos que o estudo da manhã é o melhor; e um estudo mais “profique”!

Talvez o “profique” fosse fruto da imaginação dos alunos; este dito foi parafraseado pelo Abrantes no nosso sarau.
Houve gargalhada geral! O homem perdeu o pio!

Os alunos estavam habituados aos berros (autênticos urros) e às agressões verbais – e também muitas vezes corporais – do Sr. Correia e não acataram aquele paleio meio pilhérico logo ao amanhecer. Em breve pôs-se na alheta.

O Sr. Correia aguentou-se no colégio durante vários anos, porque era um “democrata” e usava métodos bem ... convincentes. Passei pelo COA, várias vezes, em 1962 e ele ainda andava por lá. Era uma figura castiça, autoritário q.b. (mais do que isso); era cumpridor, em absoluto, das ordens emanadas da Direção. Para não deixar transparecer que apenas cumpria ordens, frequentemente, afirmava, categórico:
- Não é assim, porque, nós, a direção, decidimos que…

Adorava que os alunos reconhecessem a sua autoridade e agissem de acordo com a sua vontade. Que os alunos, sempre que lhe pediam o que quer que fosse, agissem com reverência ou mesmo com subserviência, mesmo quando pretendiam infringir as regras; ele bem conversado (engraxado) até colaborava, colocando em risco o seu lugar.

Sempre que eu pretendia dar uma volta pela vila, ouvir no exterior (na pastelaria do outro lado da Avenida), o relato de um jogo internacional de hóquei patinado, ou mais tarde, em 1961, ver na TV, o jogo do Benfica, na extraordinária final de Berna, eu solicitava “reverentemente” ao Sr. Correia que me autorizasse a sair e ele logo me facultava a chave do portão secundário, o do pequeno jardim que separava o internato da avenida, recomendando apenas: cuidado! Que o Senhor Almeida não te apanhe! Eu respondia eu sei onde ele se encontra (na leitaria); se houver azar... eu saltei o muro. Todas as minhas saídas foram sempre bem sucedidas, porque eram bem planeadas

Provavelmente, era eu quem lhe preparava mais judiarias, mas ele sempre nutriu muita consideração por mim.

Se um aluno lhe solicitava algo que ele não autorizava e o aluno apresentava argumentos, ele punha termo à conversa, sempre do mesmo modo:
- Faz o que te mando e conta ao diabo o que sabes!

Usava, segundo a situação, outras frases igualmente “convincentes”:
- Levas uma bofetada que até engoles os dentes da frente”!; “Levas uma sova que te mijas todo!”; “falta pouco para que faças o pino sem apoiar as mãos no chão!”

O homem sofria de hemorróidas! Dizem tratar-se duma complicação altamente dolorosa! “Altamente” encaixa bem no texto! É advérbio que usava a todas as horas.

Muitas vezes, antes de se deitar ouvíamo-lo gemer com dores na casa de banho; enchia o bidé com água fria e assentava lá o traseiro (era o vulgar banho de assento) e ali ficava durante meia hora ou mais, pelo menos até que o frio lhe atenuasse as complicadas dores

Quando se sentia aliviado daquelas dores impertinentes, dirigia-se à camarata. Sentava-se na cama e, por vezes, esta desarticulava-se… por obra e graça de determinado aluno que a “armadilhava”; outras vezes não conseguia estender as pernas, porque um dos lençóis estava cuidadosamente dobrado – Cama à francesa. Ele proferia, logo ali, umas tantas baboseiras e, com a ajuda dum qualquer aluno ainda acordado, rearmava a cama ou estendia o lençol para… dormir o sono dos anjos.

No salão de estudo, sempre que a “crise” (então não havia Troika) apertava, ele estendia o tronco sobre a secretária, mantendo os pés no chão; levantava a cabeça, esbugalhava os olhos grandes, salientes e escuros para ver o que se passava na sala e, com gritos de dor e raiva, mantinha a rapaziada em silêncio; ali permanecia naquela posição caricata durante quase duas horas ameaçando a terra, o mar e o mundo, usando (e abusando) algumas das frase já citadas. À sorrelfa, alguém sussurrava, cautelosamente:
- Foi assim que a Alemanha perdeu a guerr”!

Se, durante uma hora de estudo, um aluno, com uma requisição na mão, lhe pedia para ir à secretaria, ele replicava: -“fora no intervalo”! – Posso pedir um lápis? – “ Pedira no intervalo!”

O Alcides S. Costa e o Leonel C. Nunes, dois cómicos irreverentes (mais cómico o primeiro e mais irreverente o segundo) criaram a seguinte frase, alegando que o Sr. Correia era o autor: - “iria no intervalo, porque agora já não vara!” ele não foi certamente o pai de tal dito: foi invenção daqueles alunos, mas...

Nos primeiros tempos em que esteve no COA, ao domingo à tarde, ele acompanhava os alunos mais novos na visita a uma aldeia próxima; entrava numa tasca e bebia dois copos… os outros já não eram contados - estava embriagado.

O Tirsense estava colocado quase no topo a tabela classificativa da 2ª divisão (correspondia à Divisão de Honra dos dias de hoje); se ganhasse, no estádio Carlos Osório, o terreno da U.D.O, subiria à 1ª divisão. Perdeu! O Sr. Correia encontrou conterrâneos e bebeu uns copos... para afogar as mágoas; chegou enxaropado, cambaleante, ao COA; falava pelos cotovelos:
- A Oliveirense jogou alta e poderosamente; só assim conseguiria vencer a temida e possante equipa de Santo Tirso!

Quando tinha nas veias tanto álcool como sangue (o que a princípio era vulgar) ele cantarolava a seguinte quadra:

Se aquilo que a gente sente
Cá dentro tivesse voz...
Muita gente… toda a gente
Teria pena de nós!

Era um poeta… qual E.A. Poe! Sem Ofensa ao americano... nem ao Sr. Correia

Num dos últimos anos da década de cinquenta entrou para a primária (ou para o 1º ano?) um aluno de cujo nome já não me lembro; sei que era natural de Arrancada do Vouga (região de Águeda); bom conversador (para a idade), simpático, extrovertido e bom argumentador. Tinha uma pecha: todas as noites urinava na cama!

O Sr. Correia tinha o supremo cuidado de o acordar de madrugada mas quase sempre... já era tarde! Ele zurzia-o desalmadamente (creio que chegou a usar cinto dobrado) e obrigava-o, àquela hora, a tomar banho de água fria – autêntica barbaridade! Outra vítima era um miúdo escuro, creio que venezuelano; o Sr. Correia batizou-o de Matateu. Sofreu a bom sofrer mas, pela calada, dava resposta adquada.

Penteava o cabelo para trás com uma risca sensivelmente ao meio. Se durante o dia, o pêlo desalinhava, ele cuspia abundante e “higienicamente”, nas mãos e esfregava-as na cabeça ; de seguida usava o pente para alinhar o cabelo. Era o seu fixador... eficiente e barato!

Podemos dizer, certamente: Paz à sua alma! Que a terra lhe seja leve! E que perdoe as minhas macaquices!

Janeiro de 2013
BT
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 29 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11023: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (34): Exame do 5.º ano, problema de matemática

Guiné 63/74 - P11038: Em busca de... (213): Camaradas de Buba, 1972/74 (Aníbal Silva, através da sua filha Nilza Gonçalves)



Guiné > Região de Quínara > Buba e Rio Grande de Buba (Pormenor da Carta da Província da Guiné, 1955).

1. Mensagem de Nilza Silva, com data de 29d e janeiro último:

 
Boa noite,

Senhor Luís, sou professora,.  Nilza Gonçalves, filha de um ex-combatente.

Aníbal Gonçalves da Silva (Anibal Silva) esteve em Buba, na Guiné, entre 1972-1974, era o número [mecanográfico] 1014733, pertencia aos rangers, à 1.ª companhia,  1.º pelotão. O seu furriel era o senhor Peixoto e o seu alferes era o senhor Gaudêncio Nunes, natural de Lisboa... 

O meu pai não se lembra do número da companhia dele, só tem na sua memória o que já descrevi. No entanto, o meu pai gostava de encontrar os seus colegas combatentes... Já procurei em sites, mas é difícil.
Será que o senhor Luís pode-me ajudar a fazer esta "surpresa" ao meu pai ?


Obrigada, pela vossa atenção e saúde!
Nilza Gonçalves


2. Elementos apurados pelo nosso colaborador permanente José Martins, e já comunicados por email à Nilza Silva, à qual mandamos um xicoração e ao seu pai e nosso camarada um alfa barvo (ABraço).Caro Luis

Analisando o Dispositivo Grafitado (7º Volume), temos, em Buba, as seguintes unidades:

(i) Companhia de Caçadores [, CCAÇ] 3398 do BCaç 10/Chaves, que esteve em Buba,  entre Julho de 71 e Agosto de 73, pelo que não deve ser esta; [Infelizmente não temos ninguém, no nosso blogue, a representar a CCAÇ 3398]; 

(ii) Temos a 1ª Companhia do Batalhão Caçadores, [BCAÇ,] 4513/72 - mobilizado em Tomar - que esteve em Buba de Março até Junho de 71, em reforço operacional do BCaç 3852; esteve em Mampatá, em reforço, desde Maio de 73 e a partit de Agosto assumiu a responsabilidade;[ Temos aqui no nosso blogue, pelo menos dois camaradas deste BCAÇ 4513/72]; 

Se a unidade não é esta, então poder-se-á tratar não de Buba mas sim de Bula (?):

(iii) Em Bula  esteve o Batalhão de Cavalaria [, BCAV] 8320/72 - mobilizado em Estremoz - que esteve na zona do seu batalhão que esteve no sector de Bula.

Tem história da unidade no Arquivo Histórico Militar (instalações do Museu Militar a Santa Apolónia).

Se houver mais novidades, avisa.
Abraço

Zé Martins


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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P11037: Notas de leitura (454): "A Pátria ou a Vida" por Gertrudes da Silva (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Novembro de 2012: 

Queridos amigos,

“A Pátria ou a Vida”, de Gertrudes da Silva, não tem paralelo em tudo quanto me foi dado ler sobre a nossa guerra. é bem provável que o autor tenha sido o comandante da CCAÇ 2781, que passou uma boa parte da sua comissão em Bissum-Naga.

Não há ali farronca, exaltação dos feitos, encómios sobre a obra feita. Entrega-se, de alma e coração, a esculpir caracteres, é um autor, ele próprio à procura de compreender e justificar quem observa, praças, sargentos e oficiais. Retrata um oficial do quadro que escapa ao protótipo idealizado para os seus pares. Aliás, não tece elogios aos seus superiores, mostra-os mesmo incapazes de perceber a natureza daquela guerra.

Um abraço do
Mário


A Pátria ou a Vida (2)

Beja Santos

“A Pátria ou a Vida”, por Gertrudes da Silva (Palimage Editores, 2004), é uma obra singular em toda a literatura da guerra colonial, garanto-vos. Trata-se de uma companhia acantonada em Bissum-Naga, os relatos bélicos estão absolutamente condicionados aos comportamentos e às vivências dos militares. A narrativa começa por destacar os diferentes grupos intervenientes, o João Benvinda, o furriel Antunes, o primeiro-sargento Cebola, o aspirante Costa. O capitão parece não ter nome, talvez para camuflar o autor da prosa, há sérios indícios de que é ele o responsável pelo que aqui se lê. Sabe-se que ele leva demasiado a rigor a vida da companhia, e mais:

“Não nos larga todo o dia e mesmo no fim da tarde nunca dispensa a reunião diária para avaliação do trabalho desenvolvido e preparação do que há a fazer do dia seguinte. Às vezes, vê-se mesmo que perde a noção do tempo e quase que saímos dali – os comandantes de pelotão – diretamente para a formatura da instrução noturna, sem comer nada de jeito”.

Afinal, o capitão tem um nome completo, forjado, Júlio dos Santos Parente, cursou a Academia Militar, tem raízes marcadamente rurais, era o Juca entre familiares. Sabe-se que fez uma comissão em Angola, andou depois por Mafra.

Após a apresentação por retratos, sabe-se que a partida para a guerra está para breve, o João Benvinda foi recebido pela família a chorar, o furriel Antunes também deu consigo a chorar quando se despediu dos seus, enfim, do capitão às praças todos deixam o mundo para trás contritos, entes queridos tolhidos por tanta dor. Chegados a Bissau, escrevem às suas famílias. O João Benvinda dá a saber à sua Amélia que há problemas na companhia por causa dos corrécios de Penamacor que transformaram a viagem numa polvorosa, com cenas de porrada, cabeças partidas e até facadas, numa mistura com vigarices, copos a mais e jogos da vermelhinha. Segue-se o IAO, marcham para Bissorã, aqui se ouve falar em Queré, Choquemone e Tiligi. A primeira operação torna-se no batismo de fogo. E parte-se para Bissum-Naga, temos a crua descrição do local:

“À volta de um grande terreiro que nem é quadrado nem é circular, aparecem regularmente plantadas quatro edificações, a definir, em ângulo obtuso, os quatro cantos do aquartelamento, ficando assim, para já, com este nome. São as quatro casernas-abrigos, uma para cada grupo de combate. Da mesma traça arquitetónica (e esta?!...) destes, e logo à direita de quem entra, está o abrigo do Comando, ali no desempenho das suas mais nobres funções. Na ala da direita, que mais correto será dizer que é do Poente, a configuração do recinto vai-se aprimorando com mais um alongado abrigo onde funcionam o posto de socorros e a messe de oficiais e sargentos. E agora, se ao entrar, que é pelo Norte, nos virarmos para o lado esquerdo, temos logo ali, em tosca simetria com o abrigo do Comando, o depósito de géneros, o posto de rádio, e aqui que ninguém nos ouve, o centro cripto. E o desenho do terreiro, serve de muita coisa, e também de campo de futebol e de parada, completa-se nos intervalos com construções mais ligeiras e desenterradas, dispostas como todas as outras ao longo e do lado de dentro da dupla fiada de arame farpado: é o conjunto do forno do pão e das cozinhas, do gerador e da ferrugem. Fora deste esquema estão o paiol, do lado de fora do alinhamento, mas dentro da rede de arame farpado que ali se alargou um pouco mais e, onde deu mais jeito, os sanitários e cantina. E entre o arame e o topo sul da tabanca, ali mesmo ao pé da porta de armas, o único edifício que, se calhar merece tal nome – a escola. E, para já, é tudo. É tudo, não. Porque deixávamos passar o que no conjunto até é o mais saliente – as quatro torres de vigia, de secção quadrangular, com seus telhados de zinco a quatro águas, sobressaindo, mais ou menos a meio das quatro casernas – abrigos”.

Ali estão, fazem furtivas incursões, as operações de ronco são encargo das forças especiais. Trata-se de uma escrita sem prosápia, um documento que preza, acima de tudo, as revelações do comportamento não embotadas pela dureza da guerra.

Segue-se uma descrição do dia-a-dia, com afazeres, incumbências e estados de espírito, desbobinam-se as pequenas chatices, as idas à água e os reabastecimentos de mês a mês. Depois, a guerra é reveladora do melhor e pior da condição humana, o Moura do 1º Grupo de Combate, um dos tais que viera diretamente de Penamacor, que talvez arrombasse carros ou andasse a furtar recheios, agora deu-lhe para o sentimento, trouxe uma gatinha do Cumeré, fez-lhe uma casota que prantou entre o abrigo e o arame farpado, afaga o bicho com as duas mãos, é nisto que chamam o pelotão que está de serviço interno para ir à pista, do avião saem dois senhores, o comandante de batalhão e o oficial de operações, o assunto que os traz é Tiligi, Queré, Inquida e Choquemone, afinal vão mesmo ao Insumeté, uma península, não rodeada de água por todos os lados menos por um mas que vai dar ao mesmo, se em vez de água pusermos bolanha. Vão com o pelotão de milícias, tudo vai correr nos conformes até à emboscada, infelizmente que não chegou na hora certa o apoio aéreo, andaram por ali a penar. O regresso foi penoso, no fundo uma operação sem história.

Aqueles combatentes são seres humanos, escrevem às namoradas com juras de amor, fala-se mesmo em casamento na situação em que a rapariga ficou grávida. O quartel aprimora-se, a escola funciona, os autóctones não prescindem dos seus festejos, os trabalhos de reordenamento vão de vento em popa. Segue-se uma incursão a Inquida, novo susto. O Moura perdeu a cabeça e quis abater o nosso capitão, tudo se resolveu a bem. O autor disserta sobre os santuários e estas incursões sem proveito nem glória. Dá-se um tremendo acidente, vem de Bissau o comandante-chefe e apostrofa nosso capitão em público. Descobre-se um negócio sórdido em que o pessoal turra do Tiligi, segundo constava, punham minas, que as milícias levantavam, auferindo os prémios. A verdade é que “Os tipos do Tiligi iam levantar os engenhos aos grandes campos de minas de Bula e logo que as tinham com eles, lá arranjavam maneira de fazer chegar tão preciosa informação aos seus conhecidos e provavelmente amigos do lado de cá. Estes, no retorno levavam-lhes metade dos respetivos prémios. Assim seria o trato. Entendeu-se que não havia nada a fazer a não ser acabar com esta mina das minas”.

É uma obra que deliberadamente não anda em permanência à procura dos urros, das fúrias, das emboscadas, das enormes flagelações, de tonitruantes atos heroicos. Não é um livro de guerra condimentado de feitos ou exaltação épica, versa homens na sua condição de combatentes que têm vida própria, estão providos de memória e vivem conjuntamente o mesmo penar, a retaguarda dos combatentes assoma à primeira linha, recorrente, é um caso inédito na especificidade desta literatura. Até porque o capitão sofre com a pesada humilhação pespegada pelo comandante-chefe, sai da companhia, o resto é rememoração, o capitão foi para Bula, aqui o capitão narrador descreve a localidade e é um pouco cruel ao retratar os seus pares. E regressam, fazem o espólio e partem para as origens:

“O Paredes já ali vai. Deixem-no ir também, que está mesmo aflitinho por pegar no pimpolhozinho que ainda avistou de raspão lá fora e por dar um apertado abraço à Amélia, que ainda não chegámos ao tempo de beijos de amor no meio da rua e à frente de toda a gente. Agora vai ali o furriel Antunes; sem pressas, como sempre. Assim que chegar a Mondim, e tal como as coisas por lá estão, com a mãe muito doente e o pai envelhecido e cansado da vida, vai provavelmente começar logo uma outra sobreposição e render o pai na condução da empresa. O alferes Costa também já lá vai. Mas já não é o mesmo. Agora passou e quase que nem nos falou. Seria do ferimento no Insumeté, das operações que teve de fazer – e dizem que estas coisas das anestesias deixam sempre as suas marcas numa pessoa, de coisas que se teriam passado por lá por Tite, quem sabe”.

Uma obra inqualificável, moldada pela ternura e os fios que a amizade tece na tal dureza da guerra.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 28 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11016: Notas de leitura (453): "A Mulher Portuguesa na Guerra", coordenação do Cor Alberto Reis Soares e "A Pátria ou a Vida" por Gertrudes da Silva (Mário Beja Santos)