1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 5 de Janeiro de 2013:
Meus caros amigos e ex-camaradas de armas,
Para vossa leitura e apreciação, junto vos envio uma recensão da obra "As Consequências Jurídico-constitucionais do Conflito Político-militar da Guiné-Bissau" de Joãozinho Vieira Có que, entre outras coisas, foi Director das Alfândegas em Bissau e posteriormente embaixador em Lisboa.
O pequeno livro - mais um opúsculo que um livro - é prefaciado pelo conhecido catedrático Professor Marcelo Rebelo de Sousa, mas, a meu ver, fica muito aquém do que os leitores interessados estão à espera e do que seria expectável de um bissau-guineense bem conhecedor do terreno e com altas qualificações como jurista.
Não consegui encontrar na Internet uma fotografia, claramente identificável do autor.
Com cumprimentos cordiais e amigos do
Francisco Henriques da Silva
(ex- Alf- Mili. de Infantaria da CCaç 2402 e ex-embaixador em Bissau, 97-99)
Consequências Jurídico-Constitucionais do Conflito Político-Militar da Guiné-Bissau
Alguma coisa, não muita, se tem escrito sobre o conflito político-militar da Guiné-Bissau, um eufemismo comummente utilizado para a guerra civil dita de baixa intensidade, mas com efeitos desastrosos, infelizmente duradouros para aquele país, nos anos idos de 98-99. Na generalidade dos casos, os autores ficam-se por umas lambuzadelas sobre as causas, que são múltiplas, complexas e amiúde pouco claras e afloram, com alguma ligeireza, as consequências, em que, via de regra, relevam o que é óbvio, concorrem no que parece ser uma via de relativas concórdia e normalização da vida política e constitucional local (mais aparente do que real, diga-se de passagem) e repisam os habituais lugares comuns, com ampla citação de documentos de apoio. Depois, o tema é sempre abordado com calor, designadamente por parte dos intervenientes, dos que viveram a história vivida, passe o pleonasmo.
É este o caso de “As Consequências Jurídico-Constitucionais do Conflito Político-militar da Guiné-Bissau”, de Joãozinho Vieira Có, editado pela Associação “Rete Guinea-Bissau” onlus, Bissau, 2001. Trata-se de uma obra curta (90 páginas) com um conteúdo ainda mais sucinto, que mereceria, seguramente, um tratamento mais aprofundado e elucidativo. A obra, ou mais propriamente dito o relatório, como assim o classifica Professor Marcelo Rebelo de Sousa no prefácio que não só beneficia o escrito, mas que, inclusive, lhe confere uma dimensão inusitada, que, a nosso ver, peca, talvez, por excessiva, é marcada “pela emoção, pelo subjectivismo”, daí, como refere aquele catedrático, “sofrer nos clássicos cânones científicos e académicos...por conta ...do arrebatamento e da vontade de intervir civicamente no presente e no futuro” (na Guiné-Bissau, entenda-se). A serenidade e rigor, como o reconhece Marcelo Rebelo de Sousa, perdem-se de algum modo neste escrito. E remata “O Dr. Joãozinho Vieira Có fez questão em lançar em livro as apaixonadas reflexões de alguns anos atrás. Quem sou eu para lhe dizer que tolha esse empenho cívico?”
Por estas palavras, mesmo sem ter lido o “relatório”, o leitor já deve ter feito a respectiva radiografia e ter chegado a determinadas conclusões em termos de diagnóstico. Com efeito, dado o que precede, não é preciso ir muito longe.
O autor descreve de forma muito sucinta os principais acontecimentos políticos e as mudanças jurídico-constitucionais da Guiné-Bissau, desde a independência à eclosão da guerra civil de 98-99. Passa em seguida à análise das causas do conflito político-militar, começando por citar o processo de adesão da Guiné-Bissau à UMOA (União Monetária Oeste-africana) e a consequente adopção do franco CFA, o que terá constituído, sem sombra de dúvida, uma das causas – o processo foi atabalhoado, mal gerido e desprovido das necessárias medidas de acompanhamento, ajuste e reestruturação – mas não a principal. As reacções internas não foram, como refere Vieira Có, “pacíficas” (p. 23), o que é um facto, mas não levariam, seguramente a um levantamento popular ou a um golpe de Estado. Cita em seguida as alterações constitucionais tornadas indispensáveis por via do ingresso na UMOA, mas aquelas decorriam naturalmente da situação que a adesão ia criar, o que é uma questão incontroversa. Menciona em seguida um problema político interno que teve, bem entendido, um impacto certo na governação da Guiné-Bissau e, sobretudo, a nível do PAIGC , ou seja, a demissão do governo de Manuel Saturnino Costa e a sua substituição pelo Executivo de Carlos Correia, não se tendo respeitado neste processo alguns requisitos formais preceituados na Constituição, gerando-se, é certo, uma situação de inconstitucionalidade. Todavia, esta questão tem porventura maiores incidências na luta pelo Poder a nível de facções internas do partido e, em nosso entender, não está na razão directa do levantamento militar de 7 de Junho. Quanto às causas próximas deste, o autor menciona a Carta dos Combatentes de Liberdade da Pátria, muito embora pouco se detenha sobre as questões substantivas que o documento suscita e que estão na razão do descontentamento da sociedade castrense e dos antigos guerrilheiros (o tráfico de armas para Casamansa e o envolvimento de figuras do regime nesse comércio ilegal, a instabilidade e as clivagens nas Forças Armadas, etc), o sempre adiado e conturbado VI Congresso do PAIGC, meramente aflorado de passagem, preocupando-se o autor com uma questão relativamente menor, isto é com a circunstância de ter tido lugar numa base militar (!). Por outro lado, pouco nos diz sobre um problema crucial: i.e., o futuro processo eleitoral. O agravamento dos problemas financeiros, a degradação da situação sócio-económica, quase não são abordados, com excepção da má gestão e dos problemas inerentes à adopção do franco CFA, já aludidos. A problemática social de uma grande amplitude, quer no seio das FA’s, quer na sociedade em geral, merecem-lhe escassa atenção, para já não falar na questão étnica que, à semelhança, aliás, de outros autores, nem sequer lhe ocorre mencionar. Para além do que se refere, comete duas faltas imperdoáveis: ignora as causas externas do conflito, que são da maior relevância, e “last but not least” não menciona o diferendo pessoal Nino-Mané, o verdadeiro despoletador da crise.
Quanto às características da guerra, qualifica a intervenção militar do Senegal e da Guiné-Conakry de “um acto de invasão que deu lugar à ocupação desse país [a Guiné-Bissau] durante alguns meses, em flagrante violação da carta das Nações Unidas, da Constituição da República da Guiné-Bissau e, paradoxalmente, também das disposições legais internas dos próprios países invasores” (p. 33). Os exageros exaltados do autor embaraçam e obnubilam a respectiva argumentação. Ora bem, não se trata de “invasão”, na medida em que as tropas estrangeiras entraram no território guineense e foram chamadas a intervir a solicitação expressa do governo legítimo da Guiné-Bissau, ao abrigo de acordos existentes. Haveria que demonstrar-se (a) que se tratou, de facto, de uma “invasão”, o que é manifestamente falso; (b) o país não foi ocupado, uma vez que as tropas estrangeiras ficaram estacionadas em pequenas parcelas do território, designadamente no centro da cidade de Bissau; (c) se se tratou de uma “invasão” não autorizada pelas autoridades legítimas, então estamos perante uma violação da Carta da ONU, caso contrário o argumento não colhe; (d) o autor teria que demonstrar que o pedido de intervenção estrangeira constitui uma violação das normas constitucionais da Guiné-Bissau (no caso em apreço, afigura-se-nos que sim, mas Vieira Có não o evidencia, de forma inequívoca, com base no texto da Constituição); (e) não demonstra, igualmente, que essa “entrada violenta” foi feita à revelia da legislação interna dos “países invasores”, limitando-se, pois, a uma afirmação meramente gratuita. O autor não nos esclarece, como deveria, se nos termos do acordo bilateral subscrito entre a Guiné-Bissau e o Senegal, “Nino” Vieira podia requerer como requereu essa intervenção estrangeira. No caso em apreço, subsistem dificuldades de interpretação.
Quanto ao(s) acordo(s) com a Guiné-Conakry, o(s) texto(s) é(são) totalmente desconhecido(s) e o autor nem sequer o(s) referencia. Como a este respeito, afirma M. Lobo Antunes, “no plano estritamente jurídico era discutível se os acordos sancionavam a intervenção solicitada, e aceite, na ausência de agressão externa, como era o caso, para além de outras interrogações sobre a validade mesma, do ponto de vista constitucional, de tais acordos, que porventura não estariam em vigor por falta de ratificação parlamentar ou de o Presidente fazer apelo a tropas estrangeiras sem o consentimento da Assembleia” (v. M. Lobo Antunes in “Negócios Estrangeiros”, nº 1, Março de 2001). Por conseguinte, estes pontos, verdadeiramente nevrálgicos, necessitavam de um tratamento menos emotivo e muito mais rigoroso.
Mais adiante ao revelar que “a sociedade civil guineense ficou de certa maneira surpreendida com o eclodir de uma nova guerra”, o que não é inteiramente verdadeiro pois o conflito há muito que germinava e ninguém desconhecia que o processo estava em marcha, conclui que “a esperança numa solução dos problemas do país através das urnas era evidente na população guineense” – o que carece de demonstração - “fez precipitar o estado crítico interno e impulsionar os mais descontentes e críticos a aglutinarem-se à volta da Junta Militar para combaterem com a força das armas o poder eleito democraticamente” (pág. 36). Trata-se, em suma, de conclusões meramente especulativas do autor e que não assentam em matéria de facto
Ao referir-se aos acordos de Abuja (1 de Novembro de 1998), Joãozinho Vieira Có considera-os desprovidos de valor jurídico e cuja violação, por qualquer das partes beligerantes, seria apenas objecto de uma admoestação. Mister é admitir que, com a guerra civil, a Guiné-Bissau entrou numa situação de extra-constitucionalidade. Antes do mais, há que reconhecer-se que Abuja é um acordo transitório que visa o retorno à normalidade constitucional, logo que possível - sublinho os termos. Muito embora admitindo o status quo, pretendia, a meu ver, de uma forma tosca e imperfeita, que a situação fosse revertida para os parâmetros da constitucionalidade factível, com o aval da Comunidade Internacional e ao mais alto nível, ou seja através da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental), da ONU e da OUA – entidades que subscreveram o acordo. Se, mesmo assim, Vieira Có considera que tal documento é desprovido de valor jurídico, porque não respeita em rigor as normas da constituição guineense e porque não prevê sanções em caso de inadimplência, parece-nos que está a ir longe de mais e a ser mais papista que o Papa.
O autor, em mais uma tirada emotiva, considera que “os desequilíbrios entre os políticos e os militares aliados aos aproveitamentos pessoais e/ou instrumentalizações de carácter tribal, manifestados em conflitos político-militares, provocam, particularmente, no continente africano, consequências dramáticas, análogas às dos terramotos de outras partes do globo, pois ambos são fenómenos de destruições rápidas, violentas e irremediáveis...” (pág. 50). Dispenso-me por despiciendos de comentários adicionais.
Na conclusão, Joãozinho Vieira Có refere-se entusiasticamente à realização das segundas “eleições legislativas e presidenciais e a entrada em funções de novos órgãos soberanos”, o que, a seu ver, “representam uma etapa importantíssima para a Guiné-Bissau: o termo do período transitório definido em Abuja, a extinção “ipso facto” da Junta Militar e o emergir de novos órgãos soberanos legitimados pelas urnas”. Para mais adiante, rematar: “assim , torna-se urgente sepultar definitivamente todas as lógicas de acesso ao poder politico por via dos mecanismos ou instrumentos finalizados a provocar rupturas constitucionais ou golpes de estado militares” (pág. 55). A história subsequente da Guiné-Bissau, com a sua ininterrupta sucessão de golpes de Estado, de levantamentos militares, de assassinatos selectivos, de prisões arbitrárias, de violações grosseiras dos direitos humanos e de desrespeito da Constituição e da lei, viria a desmentir liminar e enfaticamente as conclusões do autor.
A segunda parte deste trabalho, resume-se à transcrição de documentos, aliás bem conhecidos por todos os que se interessam pela história recente da Guiné-Bissau.
Pena é que o autor não se tenha concentrado mais e de forma mais objectiva e rigorosa sobre o título – e por conseguinte, o objecto da sua própria obra -, pois muito faltou por dizer.
Para concluir, faltam-nos alguns dados biográficos indispensáveis sobre Joãozinho Vieira Có. Este teve um percurso ziguezagueante, quando da abertura política ao multipartidarismo. Transitou da RGB-MB (Resistência da Guiné-Bissau – Movimento Ba-Fá-Tá) para o governamental PAIGC, tendo, por isso, sido compensado pelo próprio “Nino” Vieira com o cargo de Director-Geral das Alfândegas (de 1994 a 1997), lugar de grande confiança política. Foi nessa qualidade que, sem qualquer razão aparente, ao arrepio da Convenção de Viena e do direito consuetudinário diplomático, embargou durante largas semanas a mala diplomática portuguesa no aeroporto de Bissalanca. Tudo isto foi feito com grande projecção mediática local, utilizando a televisão, a rádio e os jornais, com o propósito de achincalhar Portugal, a despropósito, diga-se de passagem. Depois foi Director da Faculdade de Direito de Bissau, já com Kumba Ialá no Poder (2000) e por este nomeado embaixador em Lisboa, em 2002 – ou seja, mais um golpe de rins. Suponho que ninguém objectou, na altura, às travessuras dos anos 90 enquanto responsável pelas alfandegas (o Governo português não levantou então quaisquer ondas, nem iria depois suscitá-las quando do pedido de agrément). A diplomacia lusitana tem a memória curta, não reage quando deve reagir, tudo perdoa, é assim e não muda. Joãzinho Vieira Có advoga, hoje, em Bissau e conta, entre os seus clientes, com o ex-CEMA, José Bubo Na Tchuto, como se sabe, alegadamente envolvido no lucrativo negócio do narco-tráfico.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de
Guiné 63/74 - P11111: Notas de leitura (457): "Olhares Sobre Guiné e Cabo Verde", organização de Manuel Barão da Cunha e José Castanho (1) (Mário Beja Santos)