Estarei a ficar surdo?
É certo que já somos todos sessentões mas que diabo, um periquito é um periquito e, por mais airoso que seja, … tem de ser devidamente enquadrado. Este pensamento levou-me a recordar os meus tempos de Periquito na Guiné.
Eu, tenente piloto aviador dos jactos, embarquei para a minha comissão num DC-6, no Figo Maduro e na madrugada de 10 de Maio de 1972.
Algo que muitos teimam em não reconhecer mas que vem descrito nos compêndios da especialidade, uma guerra de guerrilha nunca se ganha nem se perde pela via militar, só termina com uma decisão política, (esperem um pouco, esta verdade vai mais uma vez ser confirmada no Afeganistão de 2013), estava absolutamente convencido que faria mais comissões, razão pela qual e podendo ter sido nomeado para Luanda me tinha oferecido para a Guiné, a ideia era começar pelo pior, depois logo se veria…
O voo foi sem história, até já conhecia a África das areias, só que, ao abrirem a porta do DC6..., cum caneco!, o calor e cheiro à África dos trópicos a entrarem-me pelas narinas.
Alguém me tinha ido esperar ao Terminal e logo me conduziu ao meu novo local de trabalho, o Grupo Operacional 12 e Esquadra 121 da Base, à chegada ouvi um ou outro PIU, nem sabia o que isso era.
Apresentações feitas às Entidades competentes e logo me deram um alojamento na Base, uns 9m2, uma cama de ferro, uns caixotes pintados de branco a fazerem de prateleiras tipo Móveis 3K e uma ventoinha que fazia um barulho semelhante a uma batedeira de bolos e que motivou a minha primeira decisão em terras africanas, comprar em Bissau e na “Casa Pintosinho” uma nova e silenciosa ventoinha que me deixasse dormir.
No dia seguinte à chegada lá vesti o meu fato de voo, emblema dos Falcões bem visível “à cause des mouches”, apresentei-me no Grupo 12, só aí é que percebi que aqueles PIUs insistentes que ia ouvindo me eram destinados !!!!
Piloto dos jactos, reacções rápidas, logo tentei cortar o mal pela raiz, apontei a um Furriel que acabara de “Piar”, o homem assustou-se quando viu um Tenente a vir na sua direcção, ao chegar ao pé dele perguntei-lhe algo que nada tinha a ver com a situação... Nunca mais houve PIUs e … fiz um amigo.
Mas sejamos claros e aqui que ninguém nos ouve, todo e qualquer militar que chegasse à Guiné, independentemente dos PIUs e correlativos e até ficar completamente à vontade naquelas terras (e ares), era um completo…Periquito.
A adaptação não era só em relação à guerra mas sim a tudo o que o rodeava, até mesmo o andar por Bissau era também algo de “misterioso e preocupante”, nos primeiros dias até fui armado com uma Walter PPK, sabia lá se havia algum turra à porta do Pelicano ou do Solar do Dez?
E, falando do Pelicano, dizia-me um piloto velho: “ Vamos comer uns Ninhos”?... Ninhos? Que raio de porcaria seria essa?
E uma ida às ostras? Eu até gostava do marisco, estava habituado a comer um prato delas (6) ali para os lados da Solmar ou da Portugália, abertas e com gelo, o susto que apanhei quando me puseram à frente um facalhão e uma travessa a fumegar cheia de pedras, tive que aprender como se comiam aqueles conglomerados.
Muitas outras coisas me foram sendo ensinadas pelos velhos, o uso do Lion Brand, não beber água da torneira, as pastilhas de sal e de quinino, as diferenças entre a bagaceira, o brandy e o whisky...
O ser periquito também tinha algumas vantagens, observava-se o ambiente sem ideias pre-concebidas ou segundas intenções, logo ao segundo dia constatei que o PAIGC podia terminar a guerra de um dia para o outro, bastava dar uma bazokada na carrinha dos pilotos que todos os dias seguia às 19:00 para Bissau e regressava às 21:00, de um só golpe acabavam com a acção da FAP.
Periquito mas não parvo, de imediato e apesar de não ter a respectiva carta de condução, comprei uma moto, uma Yamaha 200, linda de morrer, 16 notas da Metrópole, lá no meio do escuro da estrada Bissau-Bissalanca até podia ser comido por uma jibóia mas bazokada é que não me acertava.
Ao terceiro dia de comissão estreei-me a dormir no mato, em Pirada, algo que a maior parte dos velhos nunca tinham feito, claro que não disse aos FTs locais que era um PIRA acabado de chegar….nem eles me perguntaram, estavam preocupados com a situação do momento já que o comerciante local (Mário Soares de seu nome, nada a ver com o outro) se tinha ausentado, quando ele se ausentava era sinal divino e misterioso que podiam “embrulhar”, felizmente nessa noite nada aconteceu.
Depois foi o aprender a voar DO-27, “só podes levar 350 kg de carga”, logo a pergunta confusa mas pertinente do PIRA: “Há balanças no mato? Como é que peso a carga?”
“Não pesas, como regra e por cada passageiro contabilizas 70kg, podes levar 5, ou então 4 e umas malas, ou...vais fazendo as contas, se forem fusos e como na Marinha comem bem melhor que nos restantes quartéis, fazes 90 kg por cabeça".
"Antes de descolar e já que algum pessoal julga que um avião é parecido com uma Berliet, tens sempre de voltar a contar as cabeças não vá aparecer-te um passageiro clandestino”.
A minha primeira missão operacional de DO-27 foi levar 4 belos Coronéis de Bissau a Tite e Fulacunda, os seus temores ao constatarem que estavam na presença de um PIRA Aviador, apenas descolados de Tite e não fosse o PIRA perder-se, já todos apontavam com o dedo a direcção de Fulacunda, melhor sistema de navegação não podia existir.
A minha aprendizagem durou algum tempo, queixavam-se os do Exército que iam mal preparados para o Ultramar, a primeira vez que larguei uma bomba real foi… na Guiné, até essa data apenas tinha largado bombas de treino (e esta, heim?).
As primeiras impressões de voo na Guiné também foram estranhas, não se enxergava um palmo diante do nariz pelo que me parecia estar a voar num grande território, era o final da época seca, logo vieram as chuvas e fiquei com a ideia que o território tinha encolhido. E depois havia alguns temas que me faziam sentir um autêntico PIRA, em termos de reconhecimento do terreno não conseguia ver nada do que os pilotos mais batidos viam, eles bem se esforçavam por me mostrar o que estava por baixo da floresta mas os meus olhos não conseguiam focar para além da copa das árvores, era tudo verde, o resto ficava difuso.
Só quando passados alguns meses e na área do Morés finalmente consegui enxergar umas palhotas dissimuladas no meio da floresta, então sim, dei o treino por terminado, tinha deixado de ser PIRA e entrado directamente para a categoria de Velho.
Para o final da comissão todo o pessoal mais antigo acabava por ter uma nova tarefa, acolher os novos PIRAS, tentar tirar-lhes as dúvidas e receios, transmitindo-lhes um pouco da experiência acumulada, o circulo a completar-se.
E, como tudo na vida, se a maior parte dos PIRAS lá ia assimilando os conselhos dos mais velhos, também havia aqueles que, por razões desconhecidas, chegavam dizendo já saberem tudo de tudo… nunca seriam PIRAs!
Foram esses que identificaram bases de morteiro onde só havia… eiras de arroz!
Também foram esses que, em grande alvoroço, identificaram marcas de blindados anfíbios a saírem do rio Cacheu.
A observação posterior de um velho concluiu que, a ser um blindado tinha de ser do tipo bicicleta, já que havia apenas um “rodado”.
Mais tarde e depois de grande azáfama concluiu-se que o “rodado” pertencia às marcas que um crocodilo tinha deixado ao sair do rio em direcção à margem.
Passou a ser conhecido como “O Crocodilo”.
Há muitos anos que a guerra terminou…
O tempo foi passando…
Já não há ninguém que me ensine…
Tenho saudades de ser PIRA
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Nota do editor:
Último poste da série > 14 de junho de 2013 >
Guiné 63/74 - P11703: FAP (71): O AL III faz 50 anos de operação e eu gostaria de saber como se fazia a Instrução da sua pilotagem na época (Fernando Leitão, ten cor pilav, Área de Ensino Específico da Força Aérea, Instituto de Estudos Superiores Militares)