1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:
MEMÓRIAS DA GUINÉ
Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia
11 - PASSAGEM DE ANO NA ASSOCIAÇÃO COMERCIAL
Nos dois anos que passei na Guiné (de Abril de 1970 a Junho de 1972) constatei que a população europeia, embora muito minoritária, tinha muito peso na sociedade guineense.
Na verdade, os militares foram deslocados de Portugal para Bissau e outras partes da Guiné em grande número e alguns deles conseguiram que se lhes juntasse a família.
Em Bissau era dificílimo conseguir-se o arrendamento de uma habitação. A cidade, no tempo em que lá permaneci, regurgitava de movimento nas ruas, onde era claramente notada a população branca.
Dado o clima de guerra existente, todos os dias recordado pelas evacuações de feridos e mortos vindos do interior do território e porque, algumas vezes, era perfeitamente audível em Bissau o bombardeamento das artilharias que, com o rebentamento das suas granadas, provocavam o retinir dos vidros das janelas, as pessoas viviam com um sentimento de insegurança. Sentimento que se tornou ainda maior quando houve uma tentativa por parte das forças do PAIGC de alvejar com mísseis os depósitos da Sacor, em Bissau.
Não acertaram no alvo, mas o sibilar dos mísseis foi por todos ouvido ao passarem pelos céus da cidade.
Pela insegurança e pelo isolamento em que se vivia, relativamente a familiares e amigos, os portugueses sentiam uma grande necessidade de convívio, de estabelecer laços humanos entre eles.
No meu caso pessoal frequentava com a minha família, nas noites de quarta-feira, o Batalhão de Engenharia onde se realizava, semanalmente, um jantar de convívio.
Aos sábados, geralmente, deslocávamo-nos até à piscina do Clube de Oficiais e em outros dias da semana, por vezes, havia festas de aniversário ou simples recepções em casas de famílias das nossas relações. Esses convívios eram praticamente com metropolitanos, embora algumas vezes estivessem presentes cabo-verdianos e até pretos da Guiné.
Uma das casas que frequentávamos muito era a do Engenheiro Lourenço Pinto, chefe dos Serviços de Obras Públicas, como já referi, casado com a Etelvina Moritz, ambos de Torre de Moncorvo, Trás-os-Montes, muito amigos da minha mulher.
Também visitávamos com frequência a casa do Tenente-Coronel Lopes da Conceição, na altura Comandante do Batalhão de Engenharia 447, do Major Leal de Almeida dos Comandos Africanos, casado com uma amiga da Lena
[esposa do autor] de nome Maria da Graça Areosa, do Alferes Santos, etc..
Em nossa casa organizamos algumas pequenas festas, sobretudo em ocasião de aniversários.
Em regra, por dificuldades várias, geralmente convidávamos para almoçar ou jantar no Grande Hotel de Bissau as pessoas com quem nos relacionávamos e cujas casas frequentávamos, retribuindo os seus convites.
Essas reuniões eram muito agradáveis e davam-nos a todos uma certa força interior, dado os elos que se criavam entre nós, para arrostar com o isolamento e a intranquilidade que vivíamos, naquele tempo, em Bissau.
A casa do Engenheiro Lourenço Pinto era frequentada praticamente por todas as pessoas com responsabilidades na vida administrativa da Guiné.
Lá encontrávamos o Secretário-Geral (segunda figura do governo do território) e diversos chefes de serviço (o mais alto posto da hierarquia do funcionalismo público).
Mas também lá encontrávamos pessoal do Serviço de Obras Públicas de várias categorias, incluindo a de capataz, bem como comerciantes e outros elementos da população civil.
Com a família do Engenheiro Lourenço Pinto também passávamos as festas do Natal e do Ano Novo.
O Salão de Festas da Associação Comercial de Bissau foi o palco da nossa passagem de ano de 1970 para 1971.
Fomos convidados para essa passagem de ano por um comerciante de Bissau que fazia parte da Direcção da referida Associação.
A festa, conforme o referido comerciante teve a amabilidade de me explicar, seria abrilhantada toda a noite por um conjunto cabo-verdiano conhecido, mas havia um problema: não existia serviço de "buffet".
Os participantes teriam de levar de suas próprias casas algumas bebidas e alimentos que depois se exporiam e de onde cada qual se serviria.
Aceitei o amável convite e, com a minha mulher, começamos a pensar na nossa contribuição para a ceia da passagem de ano.
Conversei sobre o assunto com o Alferes Santos que comigo colaborava nos Reordenamentos Populacionais.
Devido à sua formação em Agronomia, além dessa incumbência ele era também o responsável pela Agro-Pecuária do Batalhão de Engenharia.
Quando lhe falei do problema, despachado como era, disse-me logo:
- Não se preocupe, Capitão. Eu resolvo-lhe isso.
Nem eu nem minha mulher nos preocupamos mais com o assunto.
No dia 30 de Dezembro lembrei-lhe do que me tinha garantido.
Respondeu-me que não estava esquecido. Que às 8 horas da noite do dia seguinte mandaria entregar, da minha parte, na Associação Comercial dois patos assados com arroz.
Não falhou. De resto era próprio da sua maneira de ser respeitar escrupulosamente o que se combinava com ele.
Nós levamos algumas garrafas de vinho, uma garrafa de Whisky e sobremesas.
Os patos do Alferes Santos estavam com muito bom aspecto e óptimo paladar.
Comeu-se toda a noite, bebeu-se, dançou-se.
Eu sou um fraco dançarino, mas o Salão de Festas estava superlotado. Os pares mal se podiam mexer, o que me favoreceu muito.
O Engenheiro Lourenço Pinto, enlaçado à sua mulher, sempre que passava por mim incentivava-me.
Foi uma linda festa, embora não me recorde de, alguma vez, me ter acontecido uma passagem de ano em que tivesse de contribuir com produção alimentar própria.
Alguns dias depois agradeci ao Alferes Santos a sua colaboração e pretendi reembolsá-lo das despesas.
Explicou-me, nessa altura, que por erro da sua escrita na relação das existências na Agro-pecuária do Batalhão de Engenharia tinha dois patos a menos do que aqueles que na verdade existiam na capoeira.
Com a morte daqueles dois patos foi a maneira de acertar as minhas contas.
Era um bom amigo o Alferes Santos.
Sendo natural do Cartaxo, no Ribatejo, dançava muito bem o fandango...
(Continua)
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Nota do editor
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Guiné 63/74 - P12085: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (10): Actividades não oficiais