quarta-feira, 2 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13355: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): IV (e última) Parte: A Máfrica como "total institution", no sentido sociológico forte do termo...


Capa da brochura, s/d, usada no COM - Curso de Oficiais Milicianos, ministrado na EPI - Escola Prática de Infantaria, Mafra (ou a Máfrica, como lhe chama o Vasco Pires, nosso camarada da diáspora lusitana no Brasil), 


Planta do EPI, Mafra





EPI - Salas de aula
































Reprodução da quarta (e última) parte do guia do instruendo do COM (Curso de Oficiais Milicianos), usado na EPI - Escola Prática de Infantaria, em Mafra (*):  Informações úteis para o instruendo (Correio, telefone, sslas recreativas, cantinas, barbearias, farmácias, parques de estacionamento, retificação de documentos, datas de casamentos, talhes de barba e cabelo...).

Imagens: © Mário Vasconcelos (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]


1. O documento original, sem data, chegou-nos, devidamente digitalizado, por mão do nosso camarada Mário Vasconcelos [ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72. Mansoa, e Cumeré, 1973/74; foto atual à esquerda].

Recorde-se que já publicámos o guia do instruendo do CSM - Curso de Sargentos Milicianos, documento que nos chegou por mão da parelha Fernando Hipólito / César Dias, e que é claramente mais "ideológico" do que o guia que estamos agora a publicar. Comparando os dois guias, há claramente um tratamento mais "classista", de maior deferência, em relação ao instruendo do COM, futuro "oficial e cavalheiro".

Não encontro este documento na Biblioteca do Exército.

Estas "indicações" ( e não "instruções") dadas aos instruendos dos COM remetem, por sua vez, para o Regulamento Geral de Instrução do Exército (RGIE).

2. De qualquer, a grande escola de cadetes e fábrica de oficiais  que depois seguiam para os teatros de operações do ultramar, a grande 'MÁFRICA' (, a expressão é do nosso grã-tabanqueiro Vasco Pires), que terá formado dezenas e dezenas de milhares de oficiais subalternos e comandantes operacionais, era, como em qualquer parte do mundo, uma verdadeira "instituição totalitária" ("total institution") no sentido forte, sociológico, do termo.

Se não,  vejamos alguns traços comuns às instituições e organizações a que poderíamos aplicar a tipologia desenvolvida, e,m 1961, pelo sociólogo americano Erving Goffman (Asyluns: essays on the social situation of mental patients and otther inmates. New York: Anchor, 1961).

(i) Este tipo de institituições  são organizações "muralhadas",  fechadas, com "barreiras" delimitando claramente as trocas ou transações com o exterior, tanto ao nível das entradas no sistema  (inputs) como das saídas (outputs);

 (ii)  como em qualquer estabelecimento militar (mas também prisional, conventual, hospitalar psiquiátrico...), essas barreiras tanto são físicas (sob a forma de muros altos, arame farpado, áreas minadas, portões, janelas gradeadas, portarias, guichés ou balcões de atendimento, pessoal e sistemas mais ou menos sofisticados de vigilância e protecção, áreas de acesso interditas ao público, etc.; como a própria arquitectura dos edifícios, marcada por uma grande volumetria ou monumentalidade, mais evidente ainda em Mafra, já que o  EPI está instalado num antigo convento);   como são  barreiras imateriais, culturais ou simbólicas (logótipos, regulamentos, valores, práticas, ritos, vestuário, normas de acesso, códigos linguísticos, sistemas de sinalização, etc.).;

(iii) tais barreiras servem fundamentalmente para demarcar as fronteiras do sistema de acção interno e definir a identidade organizacional (por ex., o soldado fardado e armado junto a uma barreira de arame farpado, as formaturas, as divisas e galões, os toques de clarim);

(iv) os instruendos (neste caso...)  estão colocados sob uma única e mesma autoridade (o comandante da EPI);

 (v) comem, dormem e trabalham sob o mesmo teto;

(vi) cada fase da atividade quotidiana desenrola-se, para cada instruendo, , numa relação de grande promiscuidade com um elevado número de outros instruendos, submetidos às mesmas regras, procedimentos, deveres e obrigações;

(vii)  todos os períodos de atividade são regulados segundo um programa estrito, isto é, todas as tarefas estão "encadeadas", obedecem a um plano imposto "de cima" por um sistema explícito de normas e regulamentos cuja aplicação é assegurada pelo pessoal militar (de instrução e de apoio), fortemente hierarquizado (oficiais, sargentos e praças); e, por último,

(viii)  as diferentes atividades assim impostas são por fim reagrupadas segundo um plano único e racional,concebido expressamente para responder ao fim ou missão oficial da instituição (, formação militar, humana, técnica e operacional de oficias subalternos em tempo de guerra).

O traço essencial destas instituições, como a MÁFRICA, é a aplicação ao indivíduo dum tratamento coletivo (e, nalguns casos, coercivo) de acordo com um sistema burocrático que cuida de todas as suas necessidades. Daí decorrem alguns consequências importantes, segundo a sociologia da "total institution":

(ix) A tarefa principal dos profissionais (pessoal dirigente e de enquadramento) não é tanto a de dirigir, controlar, ou supervisionar o trabalho, como numa empresa, como sobretudo a de vigiar e punir toda a infracção às regras, todo o comportamento desviante (, isto é mais evidente nas instituições ligadas á justiça, à reinserção social, e  até `á saúde mental - caso dos manicómios, no séc. XX e primeira metade do séc. XX);

(x) Há um fosso intransponível entre o número restrito de dirigentes e de pessoal de enquadramento (instrtutores, neste caso) e a massa de indivíduos dirigidos lou em formação (instruendos);

(xi) Os instruendos são forçados a viver no interior do estabelecimento, por períodos variáveis  (entre 3 a 6 meses),  mantendo com o mundo exterior contactos limitados, enquanto os profissionais continuam , entretanto, oficialmente integrados nesse mundo exterior (têm as suas famílias e as suas casas,  as suas relações sociais, os seus hobbies, etc., no exterior, na comunidade, "lá fora");

(xii) Cada grupo tende a ter  uma imagem estereotipada (e muitas vezes negativa e até hostil) um do outro: para o instrutor, o instruendo  é, incialmente,  visto como um simples mancebo, um ser virado sobre si mesmo, egocêntrico, infantil, reivindicativo, efeminado, mole, cobarde, muitas vezes agressivo, mentiroso, desleal e ingrato; para o instruendo, o instrutor  começa por ser visto  um ser poderoso e muitas vezes prepopente e até tirânico; em todo o caso, quase sempre distante, frio, mesquinho e desumano;

(xiii) Os contactos entre os dois grupos são restritos: a própria instituição impõe a distância espacial e temporal entre eles; mesmo quando certas relações são inevitáveis (a interação na instrução); há barreiras selectivas (as regras da hierarquia militar,  baseadas da unidade comando controlo); há segregaçºão socioespacial (messe de oficiais, messe de sargentos, refeitório de praças);

(xiv) Os instruendos são mantidos sistematicamente na ignorância das decisões que lhe dizem respeito, quer os motivos alegados sejam de ordem militar, legal, administrativa, disciplinar, penal; por outro lado,. nem têm qualquer poder reivindicativo, dada a sua situação de total subordinação e a sua sujeição ao regulamento de disciplina militar;

(xv) A instituição no sentido lato do termo (edifícios, instalações, equipamentos, recursos técnicos, humanos e financeiros, razão social, história, políticas, nome, logotipo, etc.), é vista, tanto por uns como por outros, como ‘propriedade’ dos dirigentes (comandante, instrutores, pessoal de apoio), sendo o pobre do instruendo visto, condescendentemente, quando muito um ‘hóspede’; não há visitas e as saídas (tal como as entradas) são estritamente regulamentadas e controladas em função da lógica do processo de instrução militar, não das necessidades, expectativas ou preferências do instruendo (ou da sua família); como "hóspede" que é, a ele aplica-se o provérbioi popular: "O peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem", isto é, cheira mal:

(xvi) A relação de trabalho (nas "total institutions") tende a estar  mais próxima da relação senhor/servo do que da relação de trabalho livre (embora subordinado), que é uma das estruturas-base das sociedades modernas: o conteúdo, a organização e as demais condições de trabalho, os horários, os planos de actividades, as regras de funcionamento, o regimento, etc., são impostos e sancionados pela instituição,


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1964 > Curso de Sargentos Milicianos (CSM) > "Mafra, 26 de Janeiro de 1964 > O 1.º pelotão, da 1.ª Companhia,  ao 2.º dia de tropa"... Foto (e legenda) do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67).


Foto: © Veríssimo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



(xvii) A "nstituição totalitária", enquanto comunidade residencial e organização fortemente centralizada, regulamentada e fechada, é, de resto, incompatível com uma outra estrutura básica no processo de socialização: a família; a sua eficácia depende, aliás, em grande parte do grau de rutura que ela provoca com o universo familiar dos seus membros e com os papéis sociais que desempenhavam antes (pai, esposo, educador, etc.). 

Em suma, e segundo o sociólogo norte-americano Erving Goffman, as ‘instituições totalitárias’ (prisões, hospícios, asilos, lazaretos, hospitais psiquiátricos ou manicómios dos séculos passados, mas também estabelecimentos militares e militarizados,  unidades da marinha de guerra e mercante, frota da pesca do bacalhau, colégios internos, reformatórios, centros de reclusão/reinserção social, mosteiros, conventos, seminários, etc.); seriam, nas sociedades humanas, lugares de coerção destinados a modificar a personalidade, as atitudes ou o comportamento do indivíduo, e a que o indivíduo responde através de dois tipos de "adaptações":

(a) primária ou manifesta (por ex., aceitação das regras, interiorização das normas e valores, submissão à disciplina, compliance ou adesão ao tratamento prescrito, ressocialização);  e

(b) secundária ou latente (como meio de escapar ao papel e ao personagem ou ao label que a instituição lhe impõe — instruendo, educando, interno, noviço, aprendiz, louco, doente, recluso, recruta,  etc.. — e que o leva a assumir uma vida clandestina no seio da instituição. (LG)

PS - Claro que este "modelo sociológico" também se aplicava, com as necessárias adaptações e cautelas, tanto à 'MÀFRICA' como  ao CISMI, Tavira, por onde muitos de nós passámos (e fomos "passados")... antes de ir parar, alegremente,  às bolanhas da Guiné.
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Nota do editor:

(*) Postes anteriores:

18 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13003: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte I: Finalidade, Funcionamento, Provas de aptidão, classificação e Faltas

25 de abril de 2014 > Guiné 63774 - P13041: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte II: Averbamentos; Serviço interno; (...); Salas de estudo; Comportamento; Saídas do quartel; Passaporte de dispensas ou licenças; Cartas de recomendação, pedidos feitos por interpostas pessoas, etc.. etc., [vulgo, "cunhas"].

28 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13055: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte III :vi - Serviço interno; vii -Dispensas, pretensões; viii- Fardamento; ix - Uniformes, equipamento e armamento; x- Revista de saúde e curativos

terça-feira, 1 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13354: Agenda cultural (330): Atenção, Viriatos, ao lançamento, no dia 9, às 17h30, no Salão Nobre da CM Lisboa, do livro inédito, "As Viríadas", a epopeia portuguesa setecentista escrita pelo médico Isaac Samuda (Lisboa,1681 - Londres, 1729)









1. Por mail de Manuel Curado, professor de filosofia da Universidade do Minho,  Braga,  chegou-nos este convite da Câmara Municipal de Lisboa, da Rede de Judiarias de Portugal e da Imprensa da Universidade de Coiimbra, para o lançamento do livro "As Viríadas do Doutor Samuda", edição crítica,  a cargo do prof dr Manuel Curado,  da epopeia setecentista,  inédita,  dos médicos judeo-portugueses Isaac Samuda  (Lisboa, 1681- Londres, 1729) e Jacob de Castro Sarmento (Bragança, 1691-Londres, 1762),

A sessão realizar-se-á  no Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa, dia 9 (3ª feira), às 17h30.

2. Sobre a obra (que vem enriquecer a língua e a cultura portuguesas), ver  a seguir uma sinopse, transcrita, com a devida vénia, da página da Imprensa da Universidade de Coimbra [, negritos nossos]:



As Viríadas do Doutor Samuda
Autor: Manuel Curado
Língua: Portuguesa
ISBN: 978-989-26-0659-0
Editora: Imprensa da Universidade de Coimbra
Edição: 1.ª
Data: Maio 2014
Preço: 25 euros
Dimensões: 240 mm x 170 mm
N.º Páginas: 688

Uma epopeia portuguesa setecentista inédita, mas não ignorada, em décimas bem ritmadas, cujo autor, Isaac Samuda, é um dos judeus de talento que o fantasma da Inquisição chegou a aprisionar por um tempo e ameaçava persegui-lo de novo, pelo que teve de emigrar, é o livro que temos o gosto de aqui apresentar.

A obra era inédita, conforme dissemos, mas não se desconhecia a sua existência, porquanto várias publicações, entre as quais o Dicionário de Inocêncio, haviam falado dela. Tão-pouco o era a figura do seu herói, tantas vezes enaltecida ao longo dos séculos, nomeadamente na célebre epopeia de Brás Garcia Mascarenhas, Viriato Trágico, que é anterior a esta.

Do autor das Viríadas, Isaac Samuda, também se conheciam dados significativos, para além dos já mencionados: bacharel em Artes, estuda Medicina na Universidade de Coimbra, e, devido à sua origem judaica, é forçado a exilar-se; chega a Londres nos primeiros anos do século XVIII; aí efectua a mudança de nome, como era de rigor, e começa a exercer a sua profissão junto da colónia portuguesa. Dentro de poucos anos é admitido em duas instituições britânicas de grande prestígio: O Real Colégio de Médicos e a Real Sociedade de Londres (na qual foi o primeiro judeu a ser recebido).

Estes e muitos outros dados, incluindo a multiplicidade dos interesses científicos de Samuda, são cuidadosamente analisados pelo autor desta edição, Manuel Curado, professor de Filosofia da Universidade do Minho - Braga. Assim, não deixa de pôr em relevo a presença dos ecos das epopeias clássicas, como a intervenção dos deuses, a paixão de Viriato por Ormia, que Tântalo, um dos guerreiros lusitanos, também pretende.

Mas não esqueçamos que o poema está cheio da descrição de combates, da alegria dos banquetes, das exortações de Viriato aos seus companheiros de armas. Ao lado destes temas, surge a descrição de paisagens e monumentos (designadamente os de Évora), que põe em destaque a sensibilidade artística do poeta. 

Não menos evidente é o seu interesse pela Botânica, ao descrever com minúcia e saber as plantas e os seus frutos. São igualmente significativos os seus conhecimentos na área da Física. Para o provar basta ler a estrofe 40 do canto VI, onde se descrevem as alterações do rosto de Ormia, ao ouvir a declaração de amor de Tântalo. Manuel Curado observa: "Ao descrever a alteração da cor do rosto de Ormia" ele a comparava "a um prisma newtoniano que decompõe a luz". E, em nota, acrescenta ainda que Samuda fez mais duas alusões "ao prisma de Newton que decompõem a luz branca". Do saber filosófico que premeia toda a obra nem se torna necessário fazer menção.

Samuda não viveu o suficiente para completar a sua longa epopeia. Na estância 58 do canto XIII, Viriato acaba de celebrar mais uma vitória e de se coroar com ramos de azinheira. As estrofes seguintes (58-108) são já da autoria do seu grande amigo Jacob de Castro Sarmento, porquanto o tema se transformou na apologia de um Deus único e Verdadeiro. É um velho sírio que dá essa longa explicação, que Viriato agradece na estância com que finda o poema.

O destino do texto das Viríadas passou por muitos acidentes até se recuperarem duas cópias - as únicas que se conhecem até à data - que surpreendentemente estão guardadas em bibliotecas da América do Norte: uma na Thomas Fisher Library, na Universidade de Toronto, outra no Jewish Theological Seminary, em Nova Iorque.

É nesses dois exemplares, portanto, que se baseia a presente edição crítica. A riqueza e profundidade do trabalho executado por Manuel Curado, além de acrescentar mais uma epopeia à nossa Literatura, é um estudo profundo e seguro das Viríadas. Nele se evidencia o rigor e experiência que caracterizam os estudos deste investigador e professor.
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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de junho de 2014 > ao Nober da CM LisboGuiné 63/74 - P13342: Agenda cultural (329): Lançamento do livro "Capitão de Abril", de Fernando Salgueiro Maia, apresentado pelo Cor Vasco Lourenço, dia 1 de Julho de 2014, pelas 18h30, na Associação 25 de Abril, Lisboa

Guiné 63/74 - P13353: Blogoterapia (253): Não é pessimismo, muito menos um lamento, quando muito um recado... (Ernesto Duarte, ex-fur mil, CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67, poeta, algarvio)

1. Mensagem de ontem, às 23h03, do Ernesto Pacheco Duarte [ex-fur mil. CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67], que me tocou muito... São escritas por um dos nossos poetas da Tabanca Grande, algarvio, a quem só posso desejar muita saúde e longa vida porque ele merece tudo. (LG)


Um recado


Caro Luís

Duas linhas simples para te dizer 

aquilo  que tu sabes melhor do que eu, 
que os anos não perdoam !
Não tem nada a ver com o blogue, 
perdes dois segundos e ficas a saber 
que eu, embora mais perdido, 
mais longe de tudo, 
ainda cá ando !
Os sinais de o fulano A ter mais anos do que o fulano B, 
maneira muito simpática de dizer 
que não sou velho, 
mas sou usado, usado em demasia, 
começam a aparecer aos poucos 
e das mais diversas maneiras.
Comigo começaram com mais nitidez no esquecimento, 
tendo-me esquecido onde deixei parte da alegria, 
onde deixei a força de vontade.
Esquecendo-me de cumprir aquelas palavras tão velhinhas , 
ditas por um sábio, 
só podiam ter sido ditas por um sábio !
Soldados não vão para a guerra porque morrem !
Os soldados responderam morreremos sempre ! 

Resta-nos lutar, 
lutar para que esse dia vá para muito longe, 
e que, quando o encontro se der, 
seja com o máximo de dignidade !
Mas eu optei mais por cumprir com aquele dito popular, 

mas ao contrário !
Não faças hoje o que podes fazer amanhã !
E assim fui deixando desaparecer,
desfazer-se estes últimos tempos, 
principalmente parte de Maio e Junho !
Presto muita assistência aos meus netos, 
devido aos horários que os pais começaram a ter, 
mas é pouco para mim !
Por ser algarvio 
e amar o Algarve, 
fiquei com a casa dos meus pais 
e, como os tempos eram outros,
ainda arranjei uma barraca junto a uma praia !
Quando eu tinha 60 anos 
vinha e ia a caminho de Lisboa, 
com facilidade, 
com prazer, 
com alegria, 
conhecia toda a gente.
Nos últimos anos é mais uma obrigação 
e levo muito tempo a prestar aquela assistência mínima 
às casas velhas e fechadas 
e foi perdido nisto 
que eu passei os meus últimos tempos,
fazendo visitas esporádicas ao correio, 
mas dando para saber que tenho muito correio,
a que tenho a obrigação, o dever e o gosto de responder.
E o mais engraçado é que, 

há uns anos atrás, 
eu condenava este comportamento 
e agora convivo com ele 
com uma certa naturalidade, 
sem muita energia para protestar muito comigo próprio.
Eu não apago os emails,
transfiro-os para um disco 
e depois um dia com todo o tempo do mundo 
vou os ler todos, e responder !
Claro que no meio de isto 

também começou a aparecer a solidão, 
melhor, a solidão não existe !
Sim, a solidão não existe ! 
Existe é a saudade de ontem, 
uma saudade muito grande de uma vida passada !
Não nos isolamos, 

gostamos é de estar sós, 
porque não nos apetece falar, 
apetece-nos é recordar, 
não gostamos de ir aqui, ou ali, 
gostamos de ir é a sítios que têm significado para nós, 
onde fomos felizes, 
mas sabemos que esses dias passados não voltam mais 
e arranjar substitutos,
quando as forças começam a faltar,
os movimentos limitados porque os ossos começam a doer...
É certo que também houve aqui uma ajuda 
dos donos de Portugal.
Pois é a partir de uma certa altura, 
de uma certa idade,
a vida perde muita da cor natural 
e é preciso muita ginástica para arranjar alguma cor artificial !
Não é pessimismo, 

muito menos um lamento, 
quando muito um recado, 
de quem, mesmo com menos energia, 
ainda tem a mania de tentar perceber 
o mundo que o cerca, 
que o condiciona.

Um grande abraço

Ernesto Pacheco Duarte

[Fixação de texto: LG]

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Guiné 63/74 - P13352: Notas de leitura (607): Livro de memórias de guerra, de António Ramalho de Almeida, médico pneumologista, do Porto, ex-alf mil, GG, Bissau, 1964/66



Guiné > Bissau > Finais de 1965 > Numa esplanada da capital (Hotel Portugal?), da esquerda para a direita, Júlio Abreu (1º cabo), Virgínio Briote (alf mil) e Tony Ramalho (alf mil, mais tarde médico no Porto).

Fotos (e legendas): © Júlio Abreu (2008). Todos os direitos reservados [Edição: L.G.]


Guiné > Bissau > Hotel Portugal > Novembro de 1965 > Da esquerda para a direita,  Vilaça, Valente S, um 3º elemento não identificado, Gião, Virgínio Briote, Marques e Tony Ramalho (hoje, médico pneumologista, no Porto, e escritor: de seu nome completo, António Herculano Ramalho Nunes de Almeida).

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2014). Todos os direitos reservados [Edição: L.G.]


1. Em 2 de junho último, o Virgínio Briote deu-me notícia da existência do seu (e nosso) camarada António Ramalho de Almeida a quem fica, desde já, o convite para integrar a nossa Tabanca Grande:

Viva Luís,

Há muitos anos que não o vejo [, ao Tony Ramalho]. Tenho o livro que ele escreveu sobre a comissão dele na Guiné e comprei-o na Barata há já alguns meses.

Sei que ele é pneumologista e trabalhou no Hospital Rodrigues Semide (Gaia). De funções oficiais está certamente reformado.

Anexo uma foto em que estamos à mesa do hotel Portugal onde tínhamos mesa reserva para jantar. É uma foto de Novembro de 1965, talvez.

Abraço, V Briote


Título: "Guiné Mal Amada - O inferno da guerra"
Autor: António Ramalho de Almeida
Editor: Fronteira do Caos Editores
Local: e data: Porto, 2013
Distribuição:  Gradiva Publicações Lda
Rua Almeida e Sousa, n° 21, R/C – Esq.
1399-041 Lisboa
Nº de pp.: 224
ISBN: 989-864-70-47
Preço de capa: 14,76€

2. Sinopse (excerto da capa):

Promissor estudante de medicina, António Ramalho de Almeida vê-se subitamente mobilizado para o serviço militar obrigatório na sequência da contestação estudantil ao regime ocorrida no Dia do Estudante no ano de 1963, em Lisboa. 

Após a recruta em Mafra,  foi colocado na Escola Prática de Cavalaria em Santarém, onde tirou a especialidade na Arma de Cavalaria. É mobilizado para a Guiné, como oficial miliciano, e recebe como missão dar instrução aos locais, entretanto organizados em companhias de milícias. Mas a sua presença na Guiné não se esgota na instrução das milícias. Em Guiné Mal Amada, o inferno da guerra o autor descreve-nos o território, as populações, a presença portuguesa, e a guerra. A guerra na Guiné em toda a sua complexidade: as patrulhas, as colunas logísticas, as emboscadas, o perigo das minas, a contra-informação, os boatos, as traições. Tudo isto e muito mais, escrito por quem esteve presente, e viveu os acontecimentos na primeira pessoa. São estes os ingredientes que fazem deste livro um testemunho original, apaixonante, e intenso. (Fonte: Fronteira do Caos Editores).


3. O livro do nosso camarada, ex-alf mil  do QG, Bissau  1964/66, António Ramalho de Almeida (*) foi apresentado no Porto e depois em Lisboa, na sede da Fundação Portuguesa do Pulmão, em 5 de Julho de 2013. A explicação é simples: o autor de “Guiné Mal Amada, o Inferno de Guerra” é hoje médico pneumologista, reformado..

Segundo contou o autor à jornalista Cláudia Pinti que o entrevistou, a ideia da obra partiu de uma pergunta inocente de uma das netas do autor. Da ideia à sua execução foi um salto. O livro foi redigido e concluido em poucos meses. Dessa entrevista, disponível na página da Fundação Portuguesa do Pulmão, extraímos alguns excertos, com a devida vénia:

(...) Como surgiu a ideia de escrever este livro?

Uma das minhas netas perguntou-me um dia o que tinha sido a guerra de África e se a mesma estava relacionada com o 25 de Abril. Fiquei surpreendido com aquela pergunta de uma menina de 12 anos e já com alguma escolaridade e disse-lhe que iria escrever duas ou três páginas para que ficasse a saber o que foi a Guerra do Ultramar. Comecei a escrever em manuscrito mas entusiasmei-me e fui desenvolvendo. Entreguei o que tinha escrito às minhas netas mas achei que ter aquele material apenas manuscrito não era suficiente e falei com o meu editor. Com a sua insistência e interesse, acabei por desenvolver a escrita do livro e foi um processo muito rápido. Em três, quatro meses concluí o livro.

A escrita é uma paixão. Podemos afirmar que se ganhou um médico pneumologista e perdeu-se um escritor?

Este é o 10º livro que publico mas não me considero escritor. Sou muito amigo de um verdadeiro escritor, o Mário Cláudio, que me diz que um escritor sente uma necessidade compulsiva de escrever. Sou médico, gosto muito da minha profissão mas praticamente todos os meus livros estão relacionados com situações que se vão passando na minha profissão. Enquanto pneumologista, tenho-me dedicado muito ao estudo da tuberculose e já publiquei vários livros relacionados com a doença cuja leitura está ao alcance de todas as pessoas.

A quem aconselha a leitura deste livro?

Aconselho este livro a todas as pessoas que tiveram no Ultramar porque irão rever muitas das situações pelas quais passaram e aos jovens porque não imaginam o que foi a guerra. Por aquilo que a minha neta me deu a entender, os jovens têm uma noção muito “leve” daquilo que foi a guerra que na verdade foi um conflito que matou cerca de 4000 portugueses. Muita gente ficou sem pai e muitas mulheres ficaram sem marido. Foi uma batalha dura sobretudo quando os militares viam que aquele conflito só tinha uma saída política. O fim daquela guerra não seria militar mas sim politico.

Foi difícil escolher o título do livro?

Escolhi o título “Guerra mal amada, inferno de guerra” porque para além do cenário de guerra, havia paralelamente uma beleza fantástica que só a África sabe dar. Passávamos por aquelas matas e víamos coisas fantásticas. Descrevo no livro uma noite em que fiz uma emboscada e em que havia um silêncio total no mato, quase um silêncio incomodativo. Era de uma beleza enorme a que uma pessoa não consegue ficar indiferente. Este foi o palco de uma guerra em que morreram muitas pessoas mas inserido num cenário da beleza africana.

(...) A sua neta deve sentir-se muito orgulhosa deste seu projecto e do facto de a ideia ter partido de si…

Para uma jovem de 12 anos, é um orgulho muito grande assistir ao lançamento de um livro cuja ideia partiu dela. Nunca imaginou que o desfecho da sua questão sobre a guerra fosse o lançamento deste livro e obviamente ofereci-lhe um exemplar com uma dedicatória muito especial que julgo que irá guardar toda a sua vida.

Já está a idealizar um novo livro?

Sim, estou a preparar o meu primeiro romance mas também relacionado com a tuberculose que conta a vida de um grupo de pessoas que está internado num sanatório privado. Há um conjunto enorme de situações que se vão desenvolvendo ao longo de sete anos muito marcantes do ano de 1958. Escolhi este ano porque foi nesta época que se começou a definir o tipo de tratamento para a tuberculose com medicamentos, foi o ano de eleições do Humberto Delgado e dentro das pessoas que estavam no sanatório, uma das pessoas era um político activista. É uma espécie de um diário com histórias muito engraçadas.

A escrita ajuda-o a gerir o stress do dia a dia?

Sou um médico muito activo porque trabalho com o estrangeiro, tenho um Congresso a que me dedico muito para a Medicina Geral e Familiar, faço investigação, tenho o meu consultório e os meus dois grandes hobbies são a escrita e a tocar música. Ambos colocam-me apto para realizar o meu trabalho no dia seguinte com todo o entusiasmo.

Texto: Cláudia Pinto
Jornalista
[Reproduzido com a devida vénia]
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Nota do editor:

Último poste da série de 30 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13347: Notas de leitura (606): "Camaradas, Independência", fotografias de Tadahiro Ogawa nos campos do PAIGC (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13351: Parabéns a você (757): Silvério Lobo, ex-Soldado Mec Auto do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13346: Parabéns a você (756): Manuel Maia, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610/72 (Guiné, 1972/74)

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13350: IX Encontro Nacional da Tabanca Grande (43): A festa do blogue (Juvenal Amado)


IX Encontro Nacional da Tabanca Grande > Palace Hotel Monte Real > 14 de junho de 2014 > Foto de família.

Fotos: © Manuel Resende  (2014). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro Juvenal Amado, com data de 27 de junho último, e "um abraço e muito obrigado a todos os que endereçaram os parabéns pelo o meu aniversário"

A FESTA DO BLOGUE
por Juvenal Amado

Fomos corajosos, não medimos as consequências, acreditamos numa Pátria onde a ilusão substituía a razão, enfim éramos jovens, fomos combater como outros combateram ao longo dos Séculos das nações quando a ambição, os interesses e os jogos de bastidores acabaram por nos enviar para o campo de batalha.

Nunca os jovens foram responsáveis pelas guerras. As guerras foram sempre começadas por líderes políticos ou religiosos, reis ou presidentes.

Grandes generais traçaram o destino de milhões de jovens, ceifados aos milhares nos campos de batalha. Foram sempre a ponta da lança, que verteu fez verter rios de sangue, sobre o qual dizem avançou a civilização.

Uns homens tornaram-se vencedores e outros escravos, criaram-se nações e impérios.

De um lado e de outro houve homens bons, com família, muitas vezes acreditaram no mesmo Deus, donde se depreende que as razões que os levaram a tornarem-se animais sanguinários no calor da refrega é que eram más.

Há quem defenda que sem guerras não haveria progresso, não haveriam nações, avanço industrial, tecnologia e a sua utilização para o bem e para a destruição.

Talvez se deva perguntar se vale a pena a destruição que transportamos e leva à destruição do próprio Planeta.

Chegados que fomos a esta idade, continuamos a ser portadores de anseios e mensagens.

Sobre a forma de contos, estórias e poemas tentamos de uma forma ingénua reconstruir um passado.

Estórias, relatos e poesias para nada serviriam se não fosse a emoção com as escrevemos. Facilmente ficariam esquecidas numa gaveta quando não diretamente para a reciclagem. Mas não poderíamos permitir o passar dos anos e deixar que a memória não fosse transmitida a outros.

Encontramo-nos todos os anos na festa do blogue os que vieram e os que não puderam vir, porque esse dia nunca é esquecido por ninguém que habita este espaço. Fala-se dos nomes que não vieram desta vez, pergunta-se pela saúde deles, respiramos de alívio quando não há problemas e que só não estão presentes porque não puderam ou não quiseram.

Para o ano há mais, voltaremos a trocar abraços, lembranças, ouviremos falar de sítios que conhecemos e de outros que nem sabemos para onde ficam. Sítios insignificantes onde se passou sede, onde morreu este ou aquele camarada num ataque, numa mina, ou numa emboscada. Tão importante para quem lá passou, que traz gravado a fogo cada minuto, cada hora, que lá passou há mais de 40 anos.

É deste fermento que se fazem os encontros dos batalhões, das companhias e da nossa Tabanca Grande.

Até para o ano camaradas.
Juvenal Amado
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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de junho de  2014 >  Guiné 63/74 - P13338: IX Encontro Nacional da Tabanca Grande (42): Todos bons camigos e melhores camaradas, muitas caras conhecidas de outros encontros, alguns totalistas ou quase totalistas

Guiné 63/74 - P13349: Inquérito online sobre a ocorrência de eventuais execuções sumárias de elementos IN ou pop, por parte das NT, no CTIG



Guine´> Região do Cacheu > Jolmete > Outubro de 1972 >  CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73) > Vista parcial da nova tabanca. Foto do álbum de Augusto Silva Santos  (ex-fur mil, da CCAÇ 3306).


Foto (e legenda): © Augusto Silva Santos (2012). Todos os direitos reservados.


1. Mensasgem do nosso editor L.G., enviada hoje de manghã à Tabanca Grande através do correio interno:

Camaradas:

Sei que o tema é delicado...Mas a guerra acabou há 40 anos e na nossa Tabanca Grande não há (ou não deveria haver) tabus, isto é,  assuntos intocáveis... Falamos uns com os outros sobre tudo ou quase tudo... Falamos tanto da guerra como da paz, tanto de operações militares como do nosso quotidiano. Falamos sobre nós e sobre aqueles contra quem combatemos. E escrevemos sobre tudo ou quase tudo, incluindo "segredos" guardados estes anos todos... Foi, por exemplo, o que aconteceu com o António Medina, camarada de 1964/66 que vive hoje na América, e que veio partilhar aqui, no nosso blogue,  factos, alegadamente ocorridos em Jolmete, no "chão manjaco",  na sequência de uma emboscada em 24 de junho de 1964...  Esses facto, a serem verdade,  parecem configurar aquilo a que técnica e juridicamente se poderia chamar uma "execução sumária" de duas dezenas de homens da tabanca de Jolmete, incluindo o régulo e o seu neto Celestino. (*)

Até á data não há nenhuma outra versão desses alegados acontecimentos, em parte vividos pelo António Medina, e cuja boa fé não podemos pôr em causa até prova em contrário.

E a este propósito, está a decorrer um sondagem sobre eventuais "execuções sumárias" praticadas na Guiné, pelas NT (mas também pela PIDE/DGS, milícias, polícia administrativa), antes e depois de 1963, início oficial da guerra... Estamos a falar de "eventuais" casos, não estamos a falar de casos concretos que tenham ocorrido, se é que ocorreram.

A acreditar nas versões de alguns camaradas nossos, em conversas tidas "off record" ao longo destes anos, ou até mesmo durante a nossa comissão de serviço, terá havido "casos pontiuais" que, inclusive, chegaram à justiça militar, no tempo do gen Spínola. De qualquer modo, em caso algum vamos julgar nem muito condenar ninguém, já que esse é um dos "princípios sagrados" do nosso blogue...

Em eventuais postes sobre este delicadíssimo assunto, omitiremos sempre  nomes de pessoas, só nos interessam os factos, o que aconteceu, onde e quando.... Como sabem, em Portugal não havia, no nosso tempo, pena de morte...Nem nenhum de nós foi preparado, durante a instrução militar, para executar "penas capitais"... Éramos combatentes, não éramos carrascos.

Queremos conhecer a vossa opinião sincera e frontal sobre este tema que deve ser encarado com serenidade, autenticidade, seriedade, rigor, e honestidade, intelectual e moral. Isto quer dizer que não especulamos, não inventamos, nem muito menos fazemos acusações gratuitas.

Respondam à nossa sondagem, mandem textos e comentários... Não deixemos que sejam os outros a contar a nossa história por nós...

Até ao início desta manhã tinham respondido 32 camaradas. Ainda temos 3 dias para participar. Um alfabravo fraterno, Luís Graça

PS - Respondam "on line!", diretamente no blogue (votando na caixa respetiva, colocada no canto superior esquerdo). Há 7 hipóteses de resposta, mas só podem escolher uma...

2. SONDAGEM: "SOBRE EVENTUAIS EXECUÇÕES SUMÁRIAS DE ELEMENTOS
IN, POR PARTE DAS NT, NO CTIG"...


Resultados preliminares (n=32)

1. Nunca participei
6 (18%)

2. Nunca assisti
1 (3%)

3. Nunca ouvi falar
18 (56%)

4. Participei
0 (0%)

5. Assisti
1 (3%)

6. Ouvi falar
6 (18%)

7. Não sei ou não me lembro
0 (0%

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de;


26 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13333: (Ex)citações (234): Comentários ao poste do António Medina sobre os acontecimentos de 1964 em Jolmete: Vasco Pires, António Graça de Abreu, Manuel Carvalho, Joaquim Luís Fernandes, Júlio Abreu, Manuel Luís Lomba, António Rosinha e António Medina

24 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13326: De Lisboa a Bissau, passando por Lamego: CART 527 (1963/65) (António Medina) - Parte II: Foi há 50 anos, a 24 de junho de 1964, sofremos uma emboscada no regresso ao quartel, que teria depois trágicas consequências para a população de Jolmete: como represália, cerca de 20 homens, incluindo o régulo e o neto, serão condenados à morte e executados pelas NT, dois meses depois

Guiné 63774 - P13348: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XIII: (i) Está tudo bem com vocês ?, pergunta o gen Spínola; (ii) Indo de viatura a corta-mato, sem GPS, em socorro de camaradas que tinham tido contacto com o IN: e (iii) Uma saída com o pelotão de milícias (Armando Mota, alf mil at inf, 1º pelotão)






Guiné > Região do Oio > Canjambari > Fotos de pessoal da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71), gente com sentido de humor e que também gostava das jogatanas de futebol e de voleibol...



1. Histórias da CCAÇ 2533 > Parte XIII (alf mil Armando Mota, 1º pelotão):

Continuamos a publicar as "histórias da CCAÇ 2533", a partir do livro editado pelo ex-1º cabo quarteleiro, Joaquim Lessa, e impresso na Tipografia Lessa, na Maia (115 pp. + 30 pp, inumeradas, de fotografias).

Registe-se, como facto digno de nota, que esta publicação é uma obra coletiva, feita com a participação de diversos ex-militares da companhia (oficiais, sargentos e praças).

A brochura chegou-nos às mãos, em suporte digital, através do Luís Nascimento, que vive em Viseu, e que também nos facultou um exemplar em papel. Até ao momento, é o único representante da CCAÇ 2533, na nossa Tabanca Grande, apesar dos convites, públicos, que temos feito aos autores cujas histórias vamos publicando.

Temos autorização do editor e autores para dar a conhecer, a um público mais vasto de amigos e camaradas da Guiné, as aventuras e desventuras vividas pelo pessoal da CCAÇ 2533, companhia independente que esteve sediada em Canjambari e Farim, região do Oio, ao serviço do BCAÇ 2879, o batalhão dos Cobras (Farim, 1969/71).(*)

Desta vez vamos publicar mais histórias, contados pelo ex-alf mil Armando Mota, do 1º pelotão, (i) Está tudo bem com vocês, pergunta o gen Spínola )p. 58); (ii) Indo de viatura a corta-mato, sem GPS, em socorro de camaradas que tinham tido contacto com o IN (p. 60); e iii) Uma saída com o pelotão de milícias (p.61) .(LG)


Guiné 63/74 - P13347: Notas de leitura (606): "Camaradas, Independência", fotografias de Tadahiro Ogawa nos campos do PAIGC (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2013:

Queridos amigos,
Um dos apoios dados pelo Japan Anti-Apartheid Comitee aos movimentos de libertação foi o envio do fotógrafo Tadahiro Ogawa às bases do PAIGC e da FRELIMO, entre 1971 e 1974.
Folhear este impressionante álbum permite desfazer alguns equívocos, perceber como o PAIGC impressionava pela sua organização, pelo seu ardor, pelo seu acolhimento. Trata-se de um relíquia encontrada num dos meus alfobres da Feira da Ladra, até hoje nunca tinha encontrado qualquer referência a fotografias tão impressivas, a disparos tão talentosos.

Um abraço do
Mário


Fotografias de Tadahiro Ogawa nos campos do PAIGC (de 1971 a 1974)

Beja Santos

O impressionante documento fotográfico intitula-se “Camaradas, Independência!”, é da responsabilidade do Comité Japonês Anti-Apartheid, são fotografias de um dos seus membros que efetuou visitas junto do PAIGC entre 1971 a 1974, é trilingue, e manifestamente o PAIGC tem a fatia de leão, não só a maioria das imagens mas aquelas que dão conta dinamismo, da organização, da participação política e da vida sociocultural nos territórios onde o PAIGC impunha mais regularmente a sua presença.

A versatilidade das imagens é impressionante: uma peça teatral desempenhada por crianças em torno do denominado “Massacre do Pindjiquiti”; cenas de preparação militar, aulas na escola de política militar; tropa do exército popular em formatura; imagem de um DO a sobrevoar uma base; a vida no acampamento, estradões abandonados após sistemática explosão de minas e emboscadas; carregamentos de munições e víveres no interior da floresta; imagens de Guileje após a retirada as tropas portuguesas, incluindo uma impressionante fotografia das ruínas da capela; cenas da faina agrícola; subidas às palmeiras; trabalho com o pilão; sementeira de arroz e plantação de mandioca; funcionamento dos armazéns do povo; danças; consulta médica, um combatente de 20 anos a aprender a ler; visita do Comité de Descolonização da ONU, em Abril de 1972, a territórios controlados pelo PAIGC. Aqui e acolá, citações de Cabral, ficam só duas que seguramente impressionaram Tadahiro Ogawa:
“A floresta grandiosa oculta a base dos nossos combatentes, e protege o nosso povo daquele bombardeio criminoso. Agora, a floresta é a força aliada do nosso combate. Anteriormente, as florestas não tinham força, porque não temíamos o espírito das florestas. Mas agora não. Nós conquistamos o espírito das florestas, recrutamo-lo, e convertemo-lo da fraqueza para a força. Convertemos a fraqueza em força. Converter a fraqueza em força: isto é que é o significado da luta”;
“Não se esqueçam que o povo não está lutando por ideologias ou por coisas que estão na cabeça de ninguém. Eles estão lutando para ganhar benefícios materiais, para viver melhor e em paz, para ver as suas vidas seguirem para a frente, para garantir o futuro das suas crianças…” e: “Pratiquem a democracia revolucionária… Tenham reuniões frequentemente… Não escondam nada da massa do nosso povo. Não mintam… Não visem vitórias fáceis”.

Na impossibilidade de aqui se publicar este acervo magistral de um talentoso fotógrafo, faz-se uma seleção ao sabor do gosto de quem descobriu esta pepita de ouro:

Após a chuva, os combatentes jogam vólei enquanto as suas roupas secam

Dentro da floresta cerrada há pequenos dormitórios dos combatentes, inúmeros caminhos interligam os dormitórios – assim é formada uma base.

As marcas de pés dos combatentes confundem-se com as dos agricultores

Fotografia tirada ao destacamento de Copá, na sequência da retirada das tropas portuguesas, antes da independência. Copá, entre Bajucunda e Piche, tinha um efetivo próximo de um pelotão, foi brutalmente flagelada, as tropas retiraram, simbolicamente a CCAÇ 11 voltou a Copá mas nunca mais aqui ficou um efetivo militar português.

Imagem retirada de um conjunto de fotografias em que um jovem combatente está a aprender aritmética com a professora ao lado
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Nota de leitura

Último poste da série de 27 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13335: Notas de leitura (605): "O Retorno dos “Gans”, de Fernando Perdigão (2): Uma viagem ao ocultismo ligado ao culto do morto na Guiné (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13346: Parabéns a você (756): Manuel Maia, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610/72 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13344: Parabéns a você (755): José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-Fur Mil do Pel Ind Mort 912 (Guiné, 1964/66)

domingo, 29 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13345: Palavras da Memória (Alberto Alves) (2): Momento de Guerra (Abel Santos)




1. Em mensagem do dia 19 de Junho de 2014, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), enviou-nos mais um texto do livro "Palavras da Memória", de autoria do seu amigo e camarada Alberto Alves, ex-Fur Mil:





PALAVRAS DA MEMÓRIA

2 - MOMENTO DE GUERRA

Sempre as operações militares se processavam de uma forma acostumada e repetitiva, pese embora o secretismo que as envolvia e o especial cuidado posto na sua preparação.
Daquela vez também tudo decorreu dentro das normas usuais, com os mais directamente responsáveis pela condução dos homens a serem chamados pela noite dentro para ouvirem o programa e os objectivos da acção e providenciarem os preparativos com os homens e bagagens-material de guerra.

Por que nunca se tratava de brincadeira, muito menos de utopia, as coisas eram levadas e entendidas com muita seriedade e responsabilidade. Por isso, não eram permitidas “baldas” e tudo era passado a pente fino, desde equipamento bélico, até às refeições, água e mesmo o próprio estado físico, mental e de saúde.

As caminhadas eram longas e duras e era precisa toda a operacionalidade mental e física para aguentar o calor tórrido do início e meio da tarde, as cacimbadas nocturnas, o chapinhar na bolanha e a enorme percentagem de humidade do ar…

Como já não era novato na matéria, as explicações preparativas eram escutadas com grande atenção e as questões e interrogações surgidas, esclarecidas e ponderadas ao mais ínfimo pormenor.
Nestas ocasiões - e porque o início era sempre antes do raiar da aurora - a noite era vencida em amena cavaqueira, entremeada por duas partidas de “king”, com dois copos e um leve petisco à mistura.
Depois, o despertar da malta que, em silêncio atento, tomava conhecimento da operação, aprontava o material, tomava o pequeno-almoço, recebia a ração de combate e esperava pacientemente o início da caminhada.

Um certo e natural nervosismo contrastava com um leve sorriso nos lábios e um olhar distante e frio. Todos sabiam dos cuidados e atenção a ter, da responsabilidade que a cada um cabia. Sentia-se em alguns lábios o murmurar de uma oração silenciosa, rápida fervorosamente sentida, que num ápice dava oportunidade a dois dedos de conversa insignificativa, apenas para preencher o tempo. Nunca faltavam um pouco de humor e os vaticínios de boa sorte.

Como a operação agendava quatro dias, e apesar do reabastecimento estar previsto para um aquartelamento situado algures em cruzamento do trajecto, rigorosa inspecção a armas, munições e refeições, antecipava o início da partida.

Siai, localizado entre Canjadude e Cheche

Não se vislumbrava ainda o raiar do dia no horizonte e já a enorme fila de homens tinha palmeado um bom par de quilómetros, um caminhar cuidadoso quanto silencioso, ouvindo-se apenas o quebrar do capim à passagem e o pisar da terra húmida da bolanha. Não tardaria o sol e o despertar para a vida de milhares de insectos que durante o dia eram grande incómodo para todos. A cada paragem, o cuidado do espaço a ocupar, a redobrada atenção do olhar, a serenidade (inquieta) de momentos difíceis e de grande tensão, misteriosos até pela incógnita que sempre representavam.

Com a Terra em fase de aquecimento pelo calor de um sol brilhante e ávido por penetrar na imensidão da floresta, a grande fila de homens não dava tréguas, e em cuidadosa e lenta marcha ia vencendo quilómetros a fio em terreno perigoso, porque desconhecido e” habitado” pela outra parte, que a convenção de guerra chama de “inimigo”.

Iam-se as horas e os quilómetros. Os corpos escorriam suor e denotavam os efeitos do sol abrasador e o cansaço próprio da caminhada difícil feita em constante pressão psicológica, ainda que o relógio marque pouco espaço para se atingir a uma da tarde.
O intervalo para ingerir parte da ração de combate veio por um pouco de acalmia nas hostes do grupo de combate.

Alguns piropos davam conta de que a refeição não satisfaz.
- Esta merda está cada vez pior. Devia ser comida pelos “trutas”.
- Se estivessem connosco também comiam.
- Não sei, não sei. Eles estão sempre nas velhas calmas e nós é que damos o corpo ao manifesto. Eles é que deviam fazer a guerra.
- Não digas isso, ainda vais dentro.
- Dava um tiro nos cornos a quem me quisesse deitar as unhas.
- Deixa-te de merdas! Não faltam por aí valentões que se borram de medo quando são chamados a capítulo.
- Estou farto disto. Se me vejo em casa, vou a Fátima a pé.

Tantos e tantos desabafos! Tantas ameaças! Tantas promessas! Tantos sonhos desfeitos em vento. Por vezes, lágrimas receosas afloravam perante o desespero da distância da casa paterna e do regaço familiar. A compensação numa amizade e sincera feita na caserna, no abrigo do aquartelamento, no desespero da emboscada e na caminhada pela mata em tantos momentos difíceis, tornava menos penosos os dias intermináveis que se iam, um após outro.

O sol agora é muito mais quente. São três horas da tarde. As camisas indicam a natural perda de sal através do suor. A interminável fila de homens caminha mais pachorrentamente em direcção a uma zona de ligeira depressão montanhosa. Está previsto que a noite será ali passada. Até lá, os homens tinham de caminhar pelo menos duas horas. Foi um espaço de tempo terrível, com os pés acusarem o efeito da água da bolanha, enquanto os olhos penetravam atentos na densa mata, agora mais densa pelo crescimento do capim.

Aos poucos, a distância vai sendo vencida. A aproximação de uma linha de água é indicativa de que o objectivo está mesmo ali na frente dos olhos. Um leve arrepio percorre os corpos suados e incute nos espíritos algum temor pela natureza do terreno que a partir dali terá que ser percorrido até ao cimo da pequena elevação. O descampado enorme que terá de ser atravessado impõe mil cuidados atenções. Por isso, foi necessário um estudo rápido sobre a estratégia a adoptar. São quase cinco da tarde e o cimo terá de ser alcançado antes que o sol desapareça – na Guiné a noite começa a cair entre as cinco e meia e as seis horas da tarde.

A estratégia encontrada para vencer aquela distância foi posta em prática e referenciava os parâmetros de qualquer manual de guerra subversiva: guardando distâncias entre si de cerca de dez / vinte metros, os homens iam avançando um a um, cobertos na base pelo grosso da coluna; ao chegarem ao destino distribuíam-se de forma a fazerem, também, a segurança dos que iam caminhando na clareira.

Penosa, cuidadosa e atenta, foi aquela caminhada.
- Isto faz arrepiar a espinha!
- É preciso tê-los no sítio!
- O que será que vamos encontrar quando chegarmos lá em cima?!
- Já veremos. Deixa chegar a nossa vez.
- Não tens medo?
- E que adianta? Temos de ir.
- O capitão é corajoso! Olha para ele!
- É miliciano; e os milicianos é que aguentam muito de tudo isto! São eles e nós!
- É isso mesmo. Se a malta se virasse…
- Olha! Está a nossa vez; desejo-te sorte. Abre bem os olhos para os lados.
- Vou indo. Até já.
- Lembra-te que vou nas tuas costas para te guardar! Figas!

Conversa rápida, com os nervos à flor da pele. Agora toda a atenção era pouca. E o ânimo e a coragem eram precisos. Aos poucos toda a gente se instalou do outro lado.
Bonita panorâmica se avistava do cimo, envolto em densa e impenetrável vegetação que foi preciso vencer em curta caminhada.

Como o sol não tardava a “ recolher”, rapidamente se fez um reconhecimento ao terreno para que os homens se instalassem com segurança para pernoitar. Foi escolhido o planalto.
Depressa se montou um esquema de defesa – dispositivo em forma de meia lua – e procedeu-se ao tempo disponível para a refeição da noite. O habitual esquema de segurança e vigilância não foi esquecido e começou logo de imediato a funcionar.

Estavam a chegar as seis horas da tarde. Notavam-se já as primeiras sombras da noite.
Mal houve tempo de “ajeitar” o chão para o relaxamento dos músculos…
Rá-tá-tá-pum! Rá-tá-tá-pum!

- Eles aí estão!

Foi o grito unânime e o levantar rápido, como que impulsionados por molas. Ao grito sentiu-se o contínuo rebentar de granadas de morteiro e lança-rockets e o trabalhar certeiro de metralhadoras pesadas e armas ligeiras. Reacção pronta dos homens instalados que, de armas aperradas, disparavam para a sua frente, por onde a escuridão da noite, convencidos de uma acção eficaz e capaz de terminar logo com aquela “brincadeira”. Ninguém sabia ao certo de onde vinha o fogo do “inimigo”. A única certeza era a de que as armas estavam aperradas e num cântico certeiro “cuspiam” projecteis como se ensaiassem uma nova melodia para a morte. Ao barulho das armas juntava-se um cheiro agridoce, que significava sangue e suor, e gritos de “apanha à mão, apanha á mão” que vinham do lado de lá. A tudo misturavam-se frases injuriosas e palavrões que, de um e outro lado eram proferidas com um misto de raiva e ansiedade pelo final de toda aquela trapalhada.

Parecia não ter fim aquela emboscada nocturna. Mas o espectáculo era digno de apreço: a enorme clareira que cuidadosamente tinha sido atravessada hora antes, fora transformada num enorme novelo de fogo por efeito das morteiradas que incendiaram o capim; as balas tracejantes voavam no espaço com rapidez, descrevendo trajectórias de rara beleza geométrica; o efeito das rocketadas nas copas das árvores lembrava o melhor e o mais belo fogo-de artifício!...

Foram duas horas que mais pareceram uma eternidade. Um cheiro acre a suor, misturado com sangue e pó e uma respiração ofegante, anunciava que nem tudo estava normal. A vozearia confusa dos homens não deixava perceber o resultado do tiroteio, mas era indicadora de maus presságios. Um certo nervosismo de passos apressados que iam e vinham, confirmavam que algo de anormal se estava a passar. De repente, uma ordem do capitão colocava serenidade nos ânimos e deixava antever que havia gente gravemente ferida, a precisar a precisar de socorros urgentes.

Era noite cerrada e a alvorada ainda estava a muitas horas de distância… Tornava-se imperioso manter a maior serenidade e calma para uma avaliação da situação e, sobretudo, analisar a gravidade dos feridos. Depressa se soube que um dos enfermeiros tinha que ser evacuado com urgência, juntamente com outros igualmente feridos com gravidade. Na maior escuridão, foram prestados os socorros possíveis, ficando ao sabor da vontade e generosidade de Deus e o piorar das coisas. Preocupados estavam todos e as dúvidas eram mais que muitas. Gemidos e murmúrios abafados foram o “pai-nosso” daquela noite longa e angustiosa para todos os homens. Não se percebia uma nota daqueles murmúrios, mas adivinhava-se a revolta, o medo, a dor e o sofrimento a ânsia de abandonar o local, apesar da coragem e do destemor de toda aquela malta que resistiu a uma ofensiva forte e traiçoeira – mas a guerra subversiva é, toda ela, feita de acções deste género.

Respirava-se a indignação. Sentia-se o corpo “empapado” pelo nervosismo de ocasião. Veio o amanhecer e com ele o suspiro de alívio. As pessoas agora podiam ver-se e sentir melhor a realidade. Em cada rosto a máscara de uma noite de insónia nervosa e expectante; um corpo moído e cansado pela caminhada do dia anterior e pela falta de descanso.

Pum! Pum! Pum!
Num momento as armas voltaram de novo à posição de “vomitarem” a canção da morte. Das gargantas um grito seco e estridente: “eles aí estão”! Mas… às três morteiradas segui-se logo silêncio. A malta manteve-se atenta e serena. A experiência nestas andanças aconselhava a manter o sangue frio, não reagindo àquela “música” pesada que logo pela manhã pretendia causar inquietação. Prosseguir a acção era o passo seguinte da operação. A grande preocupação eram os feridos, alguns dos quais a necessitarem de tratamento adequado em hospital.

O contacto via rádio tinha sido estabelecido com o aquartelamento mais próximo e aguardava-se a todo o momento a chegada de meios que a possibilitassem a evacuação dos feridos. Restava, por isso, esperar com paciência. Cuidadosamente, foi feito um reconhecimento ao local e iniciada a caminhada de regresso, segundo os planos estabelecidos. Uma caminhada mais lenta e cuidadosa, na medida em que era preciso transportar alguns feridos em macas improvisadas. Pelas dez da manhã, um novo contacto, agora com unidades da Força Aérea, permitia a chamada de helicópteros para evacuação dos feridos, operação que seria feita sem incidentes e em curto espaço de tempo. Agora sim, podia respirar-se com mais algum alívio. Para os restantes, a marcha continuou: lenta, cuidadosa, não fosse o diabo tece-las.

À medida que as horas iam passando e os quilómetros iam sendo vencidos, o ânimo e a melhor disposição voltavam aos rostos e corpos cansados dos homens que continuavam em longa fila à espera de um pacato canto para o relaxe e descanso. Mais de quatro horas – depois de longa paragem para a dose de ração de combate – foram precisas para vencer a distância até ao aquartelamento onde estava previsto o reabastecimento e algumas horas de repouso. Foram horas difíceis, marcadas pelo cansaço próprio de horas seguidas de caminhada lenta, agravadas pela noite terrível de insónia e nervos, com tinha sido a noite da emboscada.

Pachorrenta, a fila de homens arrastava-se com tranquilidade mais animadora, porque cheirava já a proximidade do quartel – meia dúzia de abrigos cavados no chão, com algumas casas dos nativos e arame farpado a cercar todo o espaço.
- Estamos a chegar, cheiro isso à distância.
- Ainda bem. Sinto-me num oito. Dói-me o corpo todo.
- Deixa lá. Os que foram embora estão em piores condições.
- É verdade. Como estarão eles?
- Tens água?
- Devo ter algumas gotas no cantil. Toma. Vê o que tem. Podes gastar à vontade.
- Ah! Tinha as goelas secas!
- Tiveste sorte. Poupei-a muito durante o trajecto.
- Não sentes um cheiro esquisito?
- Não. Sinto um cheiro doce e parece-me que corre humidade no ar. Estamos próximos de um rio.
- Deve ser o rio Corubal.
- É isso, é. Uma banhoca para tirar o pó vem mesmo a calhar.

Em surdina, a conversa ia animando a marcha e provocava nos homens uma sensação de alívio e confiança. Para trás ficavam alguns temores com tiros e sangue à mistura, que ainda seriam temas de grandes discussões e exemplos para cuidados e preocupações.
O ritmo cadenciado dos passos ia martelando os ouvidos atentos, enquanto os olhos se espraiavam pela vegetação menos e convidativa a uma marcha mais acelerada.
O pular de pequenos símios nos ramos das árvores emprestava ao ambiente um ar divertido e era prenúncio de que por ali não podia rondar qualquer perigo. Começava a avistar-se, lá longe, a população que trabalhava a cultura do arroz e do milho e recolhia o gado. Outros carregavam trouxas à cabeça. Era sinónimo de que a povoação estava ali mesmo na frente do nariz dos homens que continuavam ordenadamente em fila e deixavam correr pelo corpo o suor próprio de uma longa caminhada debaixo de um sol ardente.

Estava quase gasto o tempo de duração de dois dias. As pernas estavam mais ou menos bem, mas o resto do corpo continuava a sentir a noite de insónia e o estômago alegrava-se quando na mente passava um cheirinho a caldo quente e bem cozido. Não admirou, por isso, que a distância até ao aquartelamento que começava a divisar-se fosse percorrida com maior entusiasmo e rapidez.

Foi enorme a satisfação de alívio que a rapaziada encontrou quando se achou em bem mais seguro e que dava por finda a caminhada daqueles dois dias. Sabiam que outro tanto tempo faltava ainda para chegarem ao ponto de partida. Mas esta situação era menos importante e transmitia aos homens nova confiança e mais esperança.
Não estranhou que a grande maioria dos homens caísse na água tépida e límpida do rio e desse largas a um distender mais relaxado e confiante dos músculos.

Não foi uma refeição farta. Mas ajudou bastante no retemperar nas forças e moral dos homens que antes de adormecerem no chão duro da tabanca ou do abrigo, tiveram oportunidade para dois dedos de conversa diante da luz mortiça da garrafa com petróleo que servia de candeeiro e a acalmia de um cigarro bem apetecido e apreciado.

Não havia lua naquela noite. Talvez por isso as manchas escuras das árvores emergissem ainda mais majestosas naquela imensidão de floresta tantas vezes perigosamente enigmática.
- Anseio cada vez mais que isto acabe.
- Também eu.
- Não sentes mais medo agora do que no princípio?
- Acontece com todos. Hás-de ver que daqui para a frente é pior.
- Santo Deus! Onde a malta veio cair!
- Deixa lá. Isto está quase no fim. Muito mais de metade está passado.
- O rabo da cabra… não é?
- Dizes bem.
- Apesar de tudo, temos de dar graças a Deus.
- Porquê?
- Temos um Comandante de Companhia que é mais do que nosso pai. Não permite baldas. Percebe disto. Tem-nos safado bem. Gosta muito de todos.
- Tá bem. Mas não nos safa destas merdas.
- Ele também está metido nelas. Decerto se ele mandasse ninguém vinha para cá.
- Ou a merda da guerra já tinha acabado.
- Já pensaste bem nesta vida? O que temos feito? O que temos passado? Os tiros que temos dado? O que nos esperará ainda?
- Sei lá. Só sei dizer que isto não interessa a ninguém.
- E eu ainda tenho um irmão que pode vir cá cair.
- Ninguém se safa.
- É difícil de perceber. Dizem que estamos a defender a Pátria. O que quero é defender a pele.
- Há tempos ouvi o alferes F dizer que os “turras” têm razão. Que esta é a terra deles e que por isso têm todo o direito de lutar.
- Eu quero lá saber. Que fiquem com a terra, mas que me deixem ir embora. Eu não pedi para vir.
- É como o outro: mas agora que estou cá…
- Não me f …. A malta está farta. E se perguntares ao pessoal, está tudo farto de andar aos tiros sem saber a quem e para quê.
- Por falar nisso: viste os rastos enormes de sangue que ficaram da emboscada de ontem?
- Morreria alguém ou seria só na pele?
- Não sejas cínico.
- Pois não; e os nossos?
- Também tens razão.
- É sempre a mesma música; tiros, sangue, feridos graves e ligeiros, mortes.
- Já nem durmo só de pensar nisso.
- Não penses e dorme.
- É o que vou tentar fazer. É só acabar o cigarro.
- Não te esqueças de apagar a vela.
- E tu não te esqueças de colocar a G3 a jeito.
- Não esqueço, não.
- Então, até…

Sem grande alvoroço, a malta despertou ao chamamento. Mais preparativos, novas e cuidadas recomendações, pequeno-almoço e pés ao caminho.
Está fresca a manhã. O sol ainda vai demorar, pois são apenas cinco da matina.

Em silêncio, a longa fila de homens caminha pela mata, mas depressa tem de atravessar extensa bolanha com água que, em alguns sítios, dá acima do joelho.
- Que mal faria eu para me acontecer isto logo pela manhã?!
- Cala-te e vê o que vais a fazer.
- Quando sofreres dos ossos escreve-me a mandar-me calar…
- Não me esquecerei. Mas agora anda lá e toma cuidado. Olha onde pões os pés para não deixares cair a arma. E toma cuidado com as granadas que levas à cintura.
- Não sei para quê tantas recomendações, quando precisas de tomar as mesmas cautelas.
- É para ver se te calas e caminhas com mais cuidado que isto ainda vai durar.

Lentamente a caminhada prossegue, com cuidado, com o olhar atento e penetrante, agora que as formas escuras da vegetação tomam outras formas e outra luz, pois o dia começa a clarear. Sente-se desaparecer no ar a humidade do cacimbo, embora as gotas desse “orvalho” dêem conta de si quando nos bate no corpo a ramagem da espessa vegetação que nos rodeia.
De novo virá o sol quente, provocando uma aragem abrasadora e sufocante em virtude da grande percentagem de humidade que caracteriza o clima da Guiné; de novo virá a noite sempre enigmática e duplamente perigosa e o dormitar a espaços, porque toda a atenção será pouca; voltará novamente o despertar para o início da caminhada rumo ao aquartelamento onde nos espera um pouco de descanso e uma boa oportunidade para relaxar enquanto não se prepara nova acção.
Vão ser mais horas de terrível pressão psicológica, pela atenção e cuidados a ter; novamente o cansaço, o suor, a sede, os mosquitos e a incerteza que dali do interior da mata densa e misteriosa surja a surpresa da emboscada. Então, serão mais umas nuances para a “melodiosa” versão do “tango dos barbudos”, em mais uma canção para a morte.

P.S. - Texto escrito algures no nordeste da Guiné, no ano de 1969.

Do livro "Palavras da Memória" de Alberto Alves, ex-Fur Mil da CART 1742
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Nota do editor

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Guiné 63/74 - P13344: Parabéns a você (755): José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-Fur Mil do Pel Ind Mort 912 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

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