sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15304: Notas de leitura (771): “Tráfico no Rio Geba”, por Estevão Sousa, Edições Vieira da Silva, Dezembro de 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
O narcotráfico entrou no imaginário da literatura de aventuras. Um guineense, Manel da Costa, escreveu um livro bem curioso, a que aqui já se fez referência elogiosa. O próprio Gérard Villiers se sentiu entusiasmado pelo narcotráfico e Buba N'Tchuto, escreveu o escaldante Féroce Guinée, bem elaborado para o género literário em causa.
Este livro de Estevão Sousa tem escrita ágil mas não é convincente, lembra uma daquelas comédias de Gervásio Lobato ou Marcelino Mesquita em que tudo está bem quando tudo acaba bem, depois de muitas peripécias e jogos de enganos. E dá que pensar como a Guiné-Bissau continua a interessar pelas piores razões.

Um abraço do
Mário


Tráfico no Rio Geba, por Estevão Sousa

Beja Santos

O narcotráfico na Guiné-Bissau tem sido matéria de livros em vários idiomas. Surge agora “Tráfico no Rio Geba”, por Estevão Sousa, Edições Vieira da Silva, Dezembro de 2014. O autor avança com os seguintes dados curriculares: estudou em Tomar e aos 15 anos foi com os pais para Angola; fez um curso de Geologia e Mecânica dos Solos tendo ingressado na Junta Autónoma das Estradas de Angola; já em Portugal, fez um curso de Gestão e Administração de Empresas, exerceu funções de chefe de escritório, gerente comercial e diretor administrativo em duas empresas da cidade de Coimbra.

Trata-se de um romance de aventuras em que o narcotraficante encontra a redenção conjugando os esforços com uma população que vive perto de Bafatá para destruir o império de um poderoso barão da droga. Redigido numa prosa ágil, muitas vezes a descambar para a facilidade, em que os personagens nem sempre aparecem desenhados com plausibilidade, temos a história da família Mascarenhas que se pavoneia entre a Quinta da Marinha e Albufeira, casal e dois filhos; o menino é estroina e faz boas noitadas na roleta do Estoril; Dona Anunciação, a mulher, espatifa o tempo e o dinheiro em lojas de roupa e chás a meio da tarde; a menina Leopoldina queria casar rica, quanto aos estudos, tinha-se ficado pelo primeiro ano da faculdade numa universidade privada. A proveniência do dinheiro do clã era um grande mistério. E subitamente este ramerrão de um doce nada fazer na absoluta impunidade desmancha-se. O Mascarenhas comparece a uma reunião entre Albufeira e Olhos de Água e é intimidado a acompanhar dois sujeitos patibulares até ao aeroporto, metido num jato rumo à Guiné-Bissau.

Já nos trópicos, o Mascarenhas, atónito, percebe que vai à presença de Mohamed Jacob, o barão da droga. Num sketch intermédio, apercebemo-nos que a vida dos outros Mascarenhas está no plano inclinado, não há acesso a dinheiro, o menino Toninho está cada vez mais encalacrado com dívidas e a menina Leopoldina é multada sistematicamente por excesso de velocidade e já pensa em pôr os seus serviços como acompanhante. E estamos nos arredores de Bafatá, o barão da droga quer que o Mascarenhas lhe pague o que lhe deve, este revela total surpresa, toda a mercadoria fora vendida em Amesterdão a Godofredo Van Der Gaag, era a este que competia enviar-lhe o dinheiro. O barão entra em fúria, manda os seus capangas aplicarem um duro corretivo ao que ele julga ser um credor em falta. Era neste local que Mohamed Jacob armazenava a coca que recebia da Colômbia, do Peru e da Bolívia, alguma vinda através do Senegal, mas a maioria subia o rio Geba até Bafatá. Entrementes, o Mascarenhas safava-se da prisão e consegue escapulir-se para o mato, andou por ali a correr desenfreadamente entre os cajueiros, encontra uma moça jeitosa, Ignis, explica-lhe o sucedido, a rapariga leva-o até à tabanca onde os narcotraficantes são odiados, o Mascarenhas acompanhado por Ignis e o irmão vão até à ilha de Orango, nos Bijagós.

Na Quinta da Marinha, instalara-se o caos total, o Toninho, para ganhar uns cobres presta-se a ser transportador de droga, e como por pura casualidade vai até Bafatá, o negócio é cocaína. A menina Leopoldina começa o seu mister de acompanhante no hotel Ritz como acompanhante de Godofredo, entretanto chega Mohamed Jacob e vão todos até ao Bairro Alto. O barão da droga descobre que ela é filha do Mascarenhas e começa uma aventura de perseguição em que um táxi acaba por ser todo esburacado mas a Leopoldina chega a casa sã e salva. O casamento dos Mascarenhas já era uma causa perdida e portanto faz todo o sentido o Mascarenhas apaixonar-se pela Ignis que fazem amor permanentemente e vão até ao sétimo céu. Dona Anunciação não perde tempo e oferece o seu coração a um funcionário da Judiciária reformado e viúvo.

Chegou a hora do ajuste de contas, Mascarenhas vai até Amesterdão enfia um balázio no joelho de Godofredo e regressa a Bafatá para a grande operação de destruir o poderoso bunker do barão da droga. O Toninho continua a trabalhar como pombo-correio e acerta com um boliviano o transporte de uma carga colossal de cocaína para Bafatá. Godofredo, com a perna engessada e com duas canadianas, resolve ir a Cascais falar com o Castilho, o patrão do Toninho, andam surpreendidos com o silêncio da barão da droga, decidem voar até Bafatá. À hora aprazada, dá-se o assalto à fortaleza e armazém de droga, não fica pedra sobre pedra, dentro de uma caixa forte descobre-se toneladas de dinheiro. A polícia guineense vem diligentemente prender os narcotraficantes.

Como manda a moralidade destes romances de aventuras, há gente maldosa que se vai redimir e há energúmenos que vão ser severamente punidos. O Mascarenhas e o Toninho vão viver os seus idílios nos Bijagós e até fazerem investimentos em Bubaque. Dona Anunciação informa o senhor Cintra que o Mascarenhas lhe dera o divórcio, e pulam os dois de contentes. A menina Leopoldina foi a Milão com o namorado, que é industrial de calçado, está a fazer-se uma rapariga séria. Parece um romance de Gervásio Lobato. O Mascarenhas até pode dizer ao antigo inspetor da Judiciária que se regenerou: “Meu caro senhor Cintra, com certeza que ouviu cobras e lagartos a meu respeito, mas posso-lhe garantir que a maior parte das coisas que lhe contarão não correspondem à verdade e a prova do que lhe estou a dizer é o facto de ter contribuído, em larga escala, para desmantelar a rede de narcotráfico do rio Geba, na Guiné-Bissau”. O Cintra replica: “Meu amigo, a partir de agora subiu muitos degraus no meu conceito. Sim, senhor. E quem é que nunca errou? O que é preciso é emendar os erros, como o senhor fez. Parabéns”. Todos cumpriram: a polícia guineense meteu aquela escumalha no chilindró; o Mascarenhas e o Toninho arrependeram-se e mudaram de vida, D. Anunciação anda a curtir o seu amor, a menina Leopoldina descobriu a segurança com um industrial do calçado. E nunca mais se falará nesse hediondo tráfico de cocaína pelo rio Geba acima.

Como um vinho frisante, o livro de Estevão Sousa lê-se em toda a sua leveza e digere-se bem. A capa do livro é muito impressiva, sugestiva.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15292: Notas de leitura (770): “As Naus", por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15303: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIX Parte): Chegou a 3.ª Companhia de Comandos e Pesadelo

1. Parte XIX de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 21 de Outubro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XIX

1 - Chegou a 3.ª Companhia de Comandos 

Jeeps e Mercedes, tudo pintado de camuflado, G3 novas, e o que é que isto nos reserva, escrito nas caras deles, novas também, boinas a estrear na cabeça, de tecido camuflado para ser tudo a condizer, olhares dentro dos óculos escuros. Tudo, tudo novo a estrear, tudo camuflado. Apresentaram-se uns aos outros no cais, os tarecos nas mãos com destino a Brá, para as instalações deixadas pelos velhos.
Bem-vindos à Guiné, que tudo vos corra bem, felicidades.


A vida em Mansoa continuava animada, o IN e a selecção de futebol na primeira linha dos pensamentos. Emboscadas, patrulhamentos, um ou outro tiro, só de longe.

O grupo a caminho da Bissau, para mais uma saída, marcada para o dia seguinte. Uma Mercedes à frente, outra a fechar, o jeep no meio. Já tinham passado Nhacra há muito, estavam próximos de Bissalanca, o jeep a andar mais devagar, calor a vir do motor, cheiro a queimado, olhou para o Alegre, a boina na cabeça, as fitas verde e vermelha a baterem-lhe na nuca, o jeep a andar ainda mais devagar, então vais parar, o Alegre com a cara a ficar vermelha, meu alferes, o jeep não responde, não me digas Alegre, meteste óleo, meti ontem, meu alferes. Capot no ar, as mãos a sacudir a fumarada, e agora, caraças?
Qualquer dia dá-lhe o badagaio, pensara há tempos, tanto pisar no acelerador e tanto pensamento nisso, era inevitável, o ME-14-04 pifou, gripou mesmo. Envolto numa grande fumarada, rebocaram-no até Bissau. E em Brá, quando lhe virou costas, parou e voltou a olhar para ele. Fiel companheiro há cerca de um ano, não o podia abandonar assim, sem o tocar mais uma vez. Quando se chegou a ele, com o motor ainda a fumegar, viu esfumarem-se também recordações que ambos tinham vivido.
Em Bissau, entregaram-lhe outro, isto também gasta óleo, é bom não se esquecer, a linguagem polida do major do serviço de material do QG.

Em Brá, os novos continuavam os treinos. Na mata em frente, ouviam-se disparos e os gritos dos instrutores. Aulas de aplicação militar a tiro, para habituarem os ouvidos às chicotadas. Na parada encontrou-se com o Capitão Alves Cardoso.
Então, quando é que saem? Precisam de alguma coisa?
Preciso mesmo, leve-me alguns na próxima saída do seu grupo, ok?

Adulai Jamanca, o 1.º à esquerda e Lifna Cumba, o "Joaquim" ao centro, em Brá, antes da saída

Ajustar pormenores da acção 

Base aérea de Bissalanca. Com a devida vénia ao blogue especialistas da BA12. 

Seis horas, na Base Aérea de Bissalanca, o grupo com 4 equipas.
Helis no ar, sobrevoaram Mansoa, o Oio, o pequeno Olossato lá em baixo, sempre em rota para Noroeste, em direcção à fronteira com o Senegal.


A formação a desviar-se para a esquerda, Ganturé dum lado, Binta à direita, começaram a baixar, a bolanha, saltar, corrida para a mata. 

Estávamos na zona de Bigene. Notícias recentes insistiam em referir aumento da actividade IN no corredor Sano-Sinchã-Fangor-Canja. O objectivo do grupo era nomadizar na zona durante cerca de 48 horas, procurar indícios de actividade IN. Deram com alguns trilhos e um, com marcas de movimento, pareceu-lhes adequado para ali passarem a noite, emboscados. 
Duas ou três da madrugada, um restolho. Uma cobra mordeu uma das pernas do Lifna Cumba, mais conhecido entre eles por Joaquim. Com a ajuda de uma lanterna, localizada a mordedura, o enfermeiro deu-lhe o soro anti-ofídico depois de ter lavado e desinfectado a ferida. 
A partir daquela altura, se alguém estava com sono, acordou mesmo. Ninguém dormiu, a atenção redobrou. Após a chegada do sol calcorrearam as margens daquele trilho que acabou por os levar a uma picada. Atravessaram-na e continuaram a andar para norte em direcção à fronteira. Por volta do meio-dia, de um Dornier que os sobrevoava, receberam a ordem para voltarem para trás em direcção à estrada Ingoré-Barro, que antes tinham atravessado, e que aguardassem a recolha. Horas mais tarde o grupo foi recolhido, por uma força do BCav 790.

Na estrada Barro-Ingoré, a aguardar coluna de regresso, com o alferes Rogério Coutinho (frente direita) e mais dois elementos da 3.ª Companhia de Comandos (atrás à direita)

Locais diferentes, quase sempre o mesmo, apenas para marcar presença num dos santuários do IN. Macacos, casas de mato abandonadas, gado, trilhos pisados. 

Depois foi o regresso a Mansoa, pele gasta de tanta porcaria e tanto banho. Joaquim Lifna Cumba, em último plano, sorridente. O susto já tinha passado.
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Nota
1 - Comandante da 3.ª Companhia de Comandos

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2 - Pesadelo 


Uma povoação junto ao mar, o dia nevoento, o vento a soprar forte, a ronca do farol, a sirene dos Socorros a Náufragos, as mulheres dos pescadores, todas de preto, mantos negros das cabeças até às costas, a correrem descalças para a praia, aos gritos, um velho louco chamado Pilau a gritar para os céus, uma pistola de madeira, uma camisa verde, a bicicleta com o nome dele pintado no quadro, a brincar sozinho no quintal, o pai a deixá-lo na casa dos avós, a desaparecer ao longe na Lutz2, o nascimento do irmão, a azáfama do parto no quarto dos pais, a madrinha, o tio e a avó, o espelho interior do guarda-vestidos a partir-se, os ditos delas da má sorte que os espelhos partidos trazem, a entrada na escola, a vontade de fazer chichi, a vergonha de pedir para sair da sala, o tinteiro da carteira na mão, a transbordar de chichi roxo, o professor Martins zangado, aos berros, os outros a rirem-se, os calções a molharem-se-lhe cada vez mais, a mãe a dar-lhe palmadas no rabo enquanto lhe dava banho, seu porco, o padrinho a dar-lhe uma moeda de 2$50, uma mulher a lavar as escadas de pedra com um sabão amarelo, não passes agora que escorregas, ele sempre a teimar, a mãe a fazer-lhe pontaria com não sei quê, a acertar-lhe na cabeça, a corrida para a farmácia, a gritaria, o senhor Monteiro a limpar-lhe a ferida com álcool. 
Vontade de fazer chichi, barulhos de vozes, muito longe dali, um mal-estar sem descrição, água a escorrer pelo corpo, dentes a bater, um frio de arrepiar, o lençol todo molhado para trás, calor, a tiritar de frio outra vez, lençóis até ao queixo. 

A ida para o Gerês, naqueles tempos nem luz tinha, uma casa antiga e grande. O medo do escuro, o irmão doente, o ambiente mais escuro, uma noite quente, as janelas, todas as que estavam viradas para a serra, a abrirem-se com um sopro de vento. 
Depois a mudança para uma casa linda e cheia de sol. A escola, a paixão pela professora mal a viu, o primeiro livro de leitura, os rabiscos, as letras a desenharem-se, a primeira carta de amor para a Marília no meio do livro, a mãe a folheá-lo à noite, o encontro da carta com as mãos da mãe. O que é isto? 
Para a cama já, imediatamente! O pai a chegar mal disposto, a entrar no quarto com a carta na mão, então é isto que andas a aprender, seu malandro, o cu das calças do pijama cortado às fatias pelo cavalo-marinho. 
A noite aos ais, dentro dos cobertores, pela manhã arrastado até à escola pela mão, a conversa do pai com a professora, vermelha a ler aquelas indecências, mas é a letra do menino, quem lhe ditou esta pouca vergonha, o pai a sair todo sorrisos para ela, cara feia para ele, estás tramado, a professora com uma cara tão zangada a dizer para a classe que eram tantas as poucas-vergonhas escritas que nem as podia ler e a palmatória a cair numa mão e na outra, vezes que nem contou. 
O pior estava para vir, não acabara ainda o castigo. Vá ao quadro de honra, risque os pontos que tem neste período, já! Era uma vez o 2.º episódio do Ladrão de Bagdad, a desaparecer à medida que os pontos iam ficando debaixo dos riscos. As brincadeiras com os Dantas e com o “Merda-Seca”, as bolas de todos os tamanhos, as pistolas de pau e de barro, as corridas, o baloiço alto, parecia o trapézio do circo que vira uma vez, o baloiço a ganhar balanço, a corda a partir-se, ele e o baloiço a caírem em cima do arame farpado espalhado pelo chão, o sangue a escorrer dos buraquinhos, todo, outra vez a mãe a lavá-lo com água, sabão e palmadas. 

Vozes outra vez, uma luz difusa, noite talvez, o corpo todo picado de dor, costas e tudo, um calor de escorrer águas, lençol fora, dentes a bater.

Numa tarde quente, viu-se a subir sozinho para a Casa do Povo, ninguém lá dentro, uma sala abandonada, montes de papéis espalhados pelo chão, no meio uma fotografia grande de um homem com bigode, de cabelo escorrido, farda castanha, Adolfo Hitler escrito em baixo, quem será? 
Outra vez de cama, quente na cabeça e frio no corpo, o jornal com fotografias de muita gente junto de um caixão, oh mãe quem é este que diz aqui que morreu? 
O Chefe do Estado, o Marechal Carmona, não sabes ler? 
Dias quentes e abafados, os domingos passados em Quintã, na quinta dos Noronhas, os relatos dos jogos de hóquei em patins, Emídio Pinto, Raio, Edgar, Jesus Correia e Correia dos Santos, os golos na baliza dos espanhóis, Zabalia, Trias, Más, Rocca, Puigbó, os ruídos das interferências do rádio, é muito longe, pai? 

Gritos, pareceu-lhe ouvir, um rádio roufenho, golo de quê, Portugal não sei quantos, Inglaterra, uma voz que não era estranha, a esperança é a última coisa. 

O liceu, os dias passados entre as aulas e as viagens da camioneta do Gerês, as tardes a matrecos no Carvalhal, as aulas, os soquetes das meninas, os namoricos imaginários, os olhos presos na televisão do café, a única em toda a povoação e redondezas, que maravilha, como se pode ver ali tudo que se está a passar agora? Os jogos do Benfica com o Barcelona e o Real Madrid, as taças ganhas no meio dos vivas ao Benfica e ao Costa Pereira, ao Ângelo, Germano, Eusébio, aos Cavéns, ao capitão Coluna, o José Augusto numa ponta, Simões na outra, Bella Guttman de pé no banco, o Santamaria a chorar, o Di Stefano à beira do Gento, metro e meio de um gajo a correr como o carago, colado à linha da esquerda, manda-me esse galego para canto, um espectador com um Kentucky, enrolado numa mão, a fazer fumo, boina na cabeça que não deixava os outros verem. 
A Florbela Queiroz em biquíni na piscina, o Henrique Mendes de laço, a Simone e a Madalena Iglésias, a Paula Ribas, o Galarza a falar espanhol com um piano, o Robin Hood com um frade ao lado a assaltarem um coche, o Danger Man a chegar de descapotável ao cimo de um monte, lá em baixo as luzes de Hong-Kong a iluminarem a baía, um carro sozinho a andar com o Homem Invisível ao volante, o Santo do Roger Moore, o pai do Litlle John, do Adam, do Hoss gordo, dos Cartwrights todos, a música a incendiar a pradaria, o papel a arder, Bonanza a aparecer com eles a cavalo. 
E, num dia, outras coisas, um capitão chamado Galvão tomou o Santa Maria, o Pandita Nehru ocupou Goa, Damão e Diu, o Artur Agostinho a contar como se lá estivesse, a brava resistência das gloriosas tropas portuguesas, as chacinas das populações no Norte de Angola, tudo a seguir e ao mesmo tempo, nós todos a olhar, calados, o arrepio pela espinha, uma vontade de lá estar também, o Salazar a falar com os óculos na ponta do nariz, as tropas a desfilarem, o assalto ao quartel de Beja feito por um tal Varela Gomes. 
Lisboa, os cheiros da cidade, Mafra ao longe, o Convento, guerras com cartucho de bala simulada, com alfinetes nos caracóis, melão com verde branco, crosses em fato zuarte quase até à Ericeira, 10 dias de licença, guia de marcha para Angra do Heroísmo, alcatra com vinho de cheiro, formação da recruta, 3 ou 4 meses depois de muita maluqueira, a notícia, para a Guiné, uns dias de férias outra vez na terra, numa despedida um amor súbito a abrir-se. 
Vozes desconhecidas, os olhos pesados, caras enormes em cima dele a mexerem os lábios, devo estar a sonhar, tanta coisa junta, um de bata branca com uma seringa, o que se passa, a cabeça, o peito, as costas, o corpo todo a doer, a escorrer suor até nos pés. 
Há dois dias que está assim, ouviu longe. Fala alto, deve estar a delirar, ouviu um a dizer, vamos levá-lo para Bissau, para o hospital. 
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Nota
2 - Motorizada alemã

(Continua)

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Nota do editor

Poste anterior da série de 22 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15280: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVIII Parte): Extinção da Companhia de Comandos do CTIG; Mansoa e Valium

Guiné 63/74 - P15302: (Ex)citações (297): Quem disse que "100 pesos era manga de patacão" no nosso tempo? Em 1960, mil escudos (da metrópole) valiam hoje 428 euros; e em 1974, 161 euros, ou seja, uma desvalorização de c. 266 %... Recorde-se por outro lado que 100 pesos só valiam 90 escudos...


Guiné > Nota de 50 escudos (pesos), frente e verso. Banco emissor: BNU - Banco Nacional Ultramarino. No câmbio e no comércio, em relação ao escudo da metrópole, emitido pelo Banco de Portugal, havia uma quebra de 10%... Ou seja: 100 pesos (escudos do BNU) só valiam 90 escudos (do Banco de Portugal)... Recorde-se que o BNU foi criado em 1864 como Banco Emissor para as ex-colónias portuguesas (, tendo também exercido funções de banco de fomento e comercial no país e no estrangeiro; vd,. aqui a sua história).

Foto: © Sousa de Castro (2005). Todos os direitos reservados.



1. E se fosse hoje, em euros ? Quanto ganhávamos ? Quanto gastávamos ?  (*) Fui encontrar um conversor de escudos para euros, que nos permite fazer conversões desde o ano de 1960... Está disponível na página Pordata - Base Dados Portugal Contemporâneo:

"A funcionalidade permite converter um determinado montante (em euros ou em escudos) de um ano em preços de 2014, utilizando o deflator do Índice de Preços no Consumidor (IPC) 'base 2012'. Trata-se de transformar os valores a preços correntes (ou nominais, com inflação) de um determinado ano em valores a preços constantes (reais, sem inflação) de 2014."

Em matéria de comes & bebes, por exemplo, podemos ver quanto custaria hoje, em euros, os alguns dos artigos que consumíamos na Guiné por volta de 1969/70 (**):

(i) um quilo de camarões tigres ou lagostins, do rio Geba Estreito, comidos na tasca do  Zé Maria, em Bambadinca  custava 50 pesos ou escudos da Guiné, o quilo, cozidinhos)= 14,79 € (em 1969);

(ii) uma arrafa de whisky novo (J. Walker Juanito Camiñante de 5 anos, rótulo vermelho, JB): 48,50 pesos = 14,35 € (em 1969);

(iii) uísques mais caros: 12 anos, J. Walker rótulo preto, Dimple, Antiquary: 98,50 [=29,14 €]:  15 anos, Monkhs, Old Parr: 103,50 [=30,52 €] (estou a confiar na memória do Humberto Reis, acho que eram mais caros, os uísques velhos] (, em 1969);

(iv) um bife com batatas fritas e ovo a cavalo na Transmontana, em Bafatá, custava 25 pesos, vinho ou cerveja aparte = 7,40 € (em 1969);

(v) uma vaca raquítica, em Sonaco, comprava-se (quando fui gerente de messe, em 1970) 950 pesos = 269,36 €;

(vi) nas tabancas, fulas, por onde passávamos e onde ficávamos uma semana ou mais, de cada vez, em reforço do sistema de autodefesa, era costume comprar, mesmo a custo, galinhas e frangos, a sete pesos e meio por bico [= 2,22 €]:

(vii) um parto de ostras em Bissau, numa esplanada á beira rio,  em meados de 1970, custava 20 pesos [= 5,67 €];

(viii) um relógio da prestigiada marca suiça Longines, na loja libanesa Taufik Saad, Lda, em Bissau, custou ao Valdenar Queiroz, em 16/12/1970, 2950 pesos [=836,45 €].

(ix) coisas miúdas do dia a dia: um maço de SG Filtro 2,5 pesos [=0,74 €];  um uísque, no bar da messe, eram 2,50 pesos sem água de sifão [= 0,74 €]  e com água eram 3,00 pesos [= 0,89]; era mais barato que a cervejola...

(x) quanto à lerpa, ou ramim, uma noite boa, ou má, poderia dar (valor médio) 200 a 300 pesos para a lerpa e 50 a 100 para o ramim (, garantia um jogador como o Humberto Reis);

(xi) uma queca, dependia: 50, 100, 150 pesos... "Quando em Bissau, no Pilão, frequentei várias vezes a Fátima, que não era caboverdiana mas sim fula, e dava-lhe 50 pesos de cada vez" (, confessa o nosso camarada A.Marques Lopes, que é de 1967/68)...

2. O Sousa de Castro, por seu turno, diz-nos que "no meu tempo (1972/74) não era muito diferente: os preços que se praticavam eram mais ou menos os mesmos"... 

Quanto ao que o exército nos pagava... "Puxando um pouco pela memória, eu como 1º cabo radiotelegrafista ganhava 1.500$00, sendo 1.200$00 por ser 1º cabo e mais 300$00, de prémio de especialidade." [, tudo somado, 1500§00 em 1973  =305,10 €].

Segundo a mesma fonte, o Sousa de Castro, "a dita queca, se a memória não me trai, creio que era assim: para os soldados cinquenta pesos; para os cabos sessenta pesos; a partir daqui não me lembro quanto pagavam os mais graduados... Quanto às cabo-verdianas, a coisa era de facto mais cara, em final de comissão paguei cento e cinquenta ou duzentos pesos, isto em Fevereiro de 1974" [mais ou menos 24 ou 32 euros]...

"Por lavar a roupa, como cabo pagava 60 pesos [, em 1973]", informa o Sousa de Castro.[=12,20 ]

Em 1969, recordo-me que os soldados da CCAÇ 12 (que eram praças de 2ª classe, oriundos do recrutamento local), recebiam de pré 600 pesos/mês [=177, 51 €], além de mais uma diária de 24$50  [=7,25€] por  serem desarranchados. 600 pesos deviam dar para comprar duas sacas de arroz de 100 kg cada...

3. E um capitão miliciano, comandante de companhia, quanto é que recebia ao fim do mês? (Sabemos que um parte dos nossos vencimentos era depositado na metrópole)...

Temos as memórias (e os papéis) do Jorge Picado:

 (...) "Apontamento que resistiu ao tempo, referente ao mês de junho [de 1970]: Total abonos:13900$00; total descontos; 8967$00; a receber 4932$00. Nos abonos estão incluidos 4000$00, relativos aos abonos de família (já tinha os 4 filhos), de março, abril, maio e junho. [de 1970]". (...)

(...) "Vencimentos a receber em agosto em virtude do aumento: março-julho [1970]: 10500$00;
 Fev 1326$00; total 11826$00; descontos Cx Geral Aposentações; 710$00; Imposto de selo -12$00; a receber (líquido): 11104$00 [=3148,45€]...

4. E a viagem de férias à metrópole, na nossa querida TAP ?  

O António Tavares pagou, em meados de 1971,  à Agência Correia, em Bissau, um total de 6 430$80 [ = 1643,21 €]  pela viagem "Bissau- Lisboa.- Porto -Lisboa -Bissau "... Diz que pagou em três prestações "a importância total, que não ganhava, como explico: 4.430$80 em 03-08-71; 500$00 em 22-09-71 e finalmente 1.500$00 em 21-10-1971"... Na cópia do bilhete (que ele juntou, no poste  P15216] consta uma taxa de 110$80.... O pagamento foi em pesos. "O Escudo era trocado com uma agiotagem de 10%."...

É difícil fazer comparações com os preços dos bens e serviços que se pagavam nessa época, na metrópole, para não falar dos salários médios nos diferentes ramos de atividade...  No blogue A Nossa Quinta de Candoz tenho um pequeno apontamento sobre a estrutura e a evolução dos salários, num ramo muito específicio, a "construção civil de ramadas", nas décadas de 1950 e 1960, no Douro Litoral...

Numa pequena empresa que podia empregar em média meia dúzia de homens, pagos ao dia, o patrão, o "ramadeiro", podia ganhar no máximo 50 escudos (=21,41 €), o oficial mais qualificado 30 escudos (=12,84 €) e os serventes 20 escudos (=8,56 €). Fizemos esta conversão para os valores nominais de 1960.. Uma década depois (em 1970), com a inflação, estes valores (a preços constantes de 2014) seriam 14,18 €, 8,51 € e 5,67 €, respetivamente...

Vinte escudos (!) era quanto um assalariado agrícola, jornaleiro, não qualificado, podia ganhar no norte do país, durante os anos 50/60... Claro que os salários na agricultura vão começar a subir com a rarefação da mão de obra rural, devido ao êxodo do interior (industrialização e urbanização, emigração, guerra colonial)...

Enfim, e para acabar por hoje, lembro-me que em 1972, cá na metrópole, um carrinho Fiat 127 custava 62 contos [= 14.256,05  €], o que era muita massa...(1972 foi antes da grande crise de 1973, em que os salários levaram uma machadada de 25%!)...

 Mais massa ainda eram 200 contos, que dava para comprar um apartamento no final da década de 1960 (, arredondando, cerca e 60 mil euros, hoje): alguém me contou que foi quanto pagou uma avozinha,  a um oficial general médico,  para livrar o querido netinho da obrigação de ir defender a Pátria, "lá longe onde o sol castiga(va) mais"... Éramos todos iguais, todos os portugueses (menos as portuguesas...), mas havia uns mais iguais do que outros!... (Sempre foi assim, e sempre será assim, dizem os mais cínicos ou os mais realistas...).

Mas podemos fazer um apelo à memória dos nossos leitores; quanto custava, na época da guerra colonial, cá na metrópole, uma bica ("cimbalino" no Porto), o jornal "A  Bola", um maço de cigarros SG, um bilhete de cinema, uma imperial ou um fino, um uísque marado numa "boite" da  Reboleira,   o aluguer de um quarto em Lisboa ou Coimbra, um quilo de bacalhau e por aí fora  ?... E quanto é que a malta ganhava, em média, nas fábricas e nos escritórios, antes de ir conhecer os "resorts" turísticos, as rias, os rios, as matas e as bolanhas da Guiné ?...  LG














Fonte: Cortesia de Pordata - Base Dados Portugal Contemporâneo... O conversor é interativo... Brinquem um bocadinho com ele,,, e façam as vossas comparações entre o hoje e o antigamente... 

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Notas do editor:



12 de setembro de  2011 > Guiné 63/74 - P8767: O que se comprava em Bissau com o patacão da guerra? Os produtos e as marcas que não havia em Lisboa... ou eram "proibitivos" (3) (Augusto Silva Santos / Hélder Sousa / Juvenal Amado / Luís Borrega / Luís Dias / Rui Santos)

15 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8780: O que se comprava em Bissau com o patacão da guerra ? Os produtos e as marcas que não havia em Lisboa ou eram "proibitivos" (4) (Joaquim Peixoto / Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15301: Parabéns a você (978): Mário Vasconcelos, ex-Alf Mil TRMS do BCAÇ 4612/72 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 de Outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15298: Parabéns a você (978): Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Guiné, 1970/72) e Luís Marcelino, ex-Cap Mil, CMDT da CART 6250 (Guiné, 1972/74)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15300: Os nossos seres, saberes e lazeres (121): Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Há bem 15 anos que não deambulava calmamente por esta soberba cidade. A gare ferroviária é um luxo, faz parte do tempo em que as nações industriais mais poderosas faziam destas raras espaços sumptuosos, com a ostentação do ferro e da pedra. Há a Antuérpia com a sua arquitetura ostensiva, a suar prosperidade, há a Antuérpia das ruelas de negócios, comércio de curiosidades e há a Antuérpia do próprio Escalda.
Passei, regra-geral, os dias embiocado numa espécie de conferência, tive que m escapar à sorrelfa para captar imagens com luz. Em Bruxelas apanhara bom tempo, aqui começou a chuviscar e o céu enegreceu, não havia condições para captar a beleza dos parques e destes monumentos tão sombrios, tão requintados. Fica aqui uma lembrança de alguns dos primores que esta cidade oferece.

Um abraço do
Mário


Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (4)

Beja Santos




Tinha muitas saudades de Antuérpia, e asseguro que não venho nem à procura de diamantes, nem comprar chocolates nem andar de batelão no rio Escalda, que alberga um dos maiores portos do mundo. Em 1991, e já me tinha passeado algumas vezes por aqui, no âmbito da Europalia portuguesa visitei no Museu de Belas Artes de Antuérpia, uma exposição portentosa “No tempo das feitorias”. Muitas vezes, precisamos do confronto das nossas obras de arte para perceber por onde passam as encruzilhadas de latitudes e longitudes em temos andado metidos. O Infante D. Pedro deve ter andado por Bruges a recrutar flamengos para a Madeira e Açores. No século XVI viemos aqui abastecer-nos, daqui saíram toneladas de mercadoria, incluindo cavalos, para o tráfico de escravos e para o comércio asiático. A cidade mantém a sua opulência, chega-se à gare central e é este espetáculo de grande palácio para quem anda de caminho-de-ferro. Seja bem-vindo à mais importante cidade da Flandres, esteja à vontade, e se quiser compre pedras preciosas!





A cidade está marcada pela sua esplendorosa arquitetura, pela majestosa catedral e pela vida à volta do rio Escalda. Cidade de grandes negócios, cada vez mais atrevida no mundo da moda, da inovação arquitetónica. Dois pintores de culto aqui pontificaram, van Dyke e Rubens. Mas são só dois dos nomes sonantes, por aqui cirandaram Dürer e Mozart, mas há mais gente célebre, caso de Jean Moretus, genro de Christophe Plantin, são os pais da tipografia, é por isso que o museu Plantin Moretus está inscrito no património mundial da UNESCO. Sai-se da Gare Central e é este festival de fachadas nobres, de estátuas solenes, o crisol da afirmação do poder e do espavento.



Alto lá, anunciam que neste edifício há um templo dedicado ao chocolate, à partida não é novidade nenhuma, os belgas têm fama mundial como chocolateiros, lá entrei placidamente, de certeza que isto foi casa de aristocrata ou burguês muito rico, conforme a gravura junta, e não resisti a fotografar este chocolate vendido como na farmácia, os preços é que não se equiparam aos dos medicamentos genéricos…




Já cheguei ao centro da cidade, hoje não tenho tempo para uma visita cuidada à magnífica catedral dedicada a Nossa Senhora, depois falaremos dela. Vejam a magnificência da Grand-Place, imagem do triunfalismo, e temos a estátua do mítico Brabo e a homenagem ao trabalhador, neste caso o escultor Constantin Meunier deixou-nos aqui uma das suas obras-primas, tenho encontrado este trabalhador em vários museus. E justifica-se, é impressionante. Para primeiras impressões, considero-me rendido.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15277: Os nossos seres, saberes e lazeres (120): Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15299: Selfies / autorretratos (4): quem vê caras, (nem sempre) vê corações (Torcato Mendonça, ex-alf mil art, CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69)



Foto nº 1 



Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4




Foto nº 5



Foto nº 6



Foto nº 7




Foto nº 8




Foto nº 9



Foto nº 10


Foto nº 11



Foto nº 12


Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) >  Fotos do álbum do Torcato Mendonça, coleção "Fotos Falantes II".

Fotos: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados Edição: LG]


1. Selfie é uma palavra que entrou há tempo no nosso vocabulário... Resulta da junção do substantivo self (em inglês "eu", "o próprio") e o sufixo ie. Designa  um tipo de fotografia de autorretrato, normalmente tirada com uma câmara digital de mão ou telemóvel com câmara. Foi considerada a palavra internacional do ano de 2013 pelo Oxford English Dictionary. Tornou-se "viral", como muitas outras modas... 

Em 2014 demos iníício a uma série chamada "selfies / autorretratos". Não teve muito sucesso. Publicámos até agora três. O Vasco Pires deu o pontapé de saída... No nosso tempo, na Guiné, não havia tempo nem pachorra para a gente de se ver ao espelho, quanto mais tirar uma "selfie"!... Um ou outro de nós tinha máquina fotográfica ou fotógrafo de serviço (que ganhava algum patacão tirando "chapas" ao pessoal), pelo que até há algumas belíssimas fotos e alguns bons álbuns fotográficos... 

É material, de grande interesse documental, não só para alimentar e desenvolver as nossas memórias como para enriquecer o acervo dos que hão de fazer, com rigor, honestidade, isenção e objetividade, a história daquele período de Portugal (bem como da Guiné-Bissau)... 

Enfim, a par das nossas memórias escritas, é um material  que andamos, há anos, desde pelo menos 2004,  a tentar salvar das garras do esquecimento, do  abandono, da destruição, dos alfarrabistas, da incineradora e do caixote do lixo...

Um desses álbuns, que veio enriquecer a fototeca da Tabanca Grande é o do Torcato Mendonça, ex-alf mil art, CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69), senador da nossa tertúçia, e uma dos mais ativos e produtivos colaboradores do nosso blogue (com cerca de 240 referências). É também, de há muito, um dos nossos conselheiros e colaboradores permanentes.

Nos últimos anos, porém, e até por razões de saúde, o Torcato Mendonça tem andado muito mais discreto, remetendo-se ao silêncio, ou intervindo uma vez por outra com um breve comentário. Sei que ele continua nosso fiel leitor. Respeito o seu silêncio, mas fico feliz sempre que o vejo vir à janela da sua morança...(Desculpem a metáfora: a Tabanca Grande não tem, propositadamente, portas e janelas).

Há muitos camaradas, mais novos, "periquitos" no blogue, que não puderam na devida altura acompanhar a sua vasta produção (postes, fotos, comentários), sempre de grande qualidade. São hoje uma referência incontornável...

Sabemos que não é "confortável" para os ex-combatentes falar, para os seus "pares", num blogue como o nosso, com a audiência que o nosso tem, sobre as "questões do foro íntimo", "ver-se ao espelho", e devolver, sob a forma de escrita, os seus "selfies", os seus "autorretratos... Ou partilhar fotos mais íntimas, retratos em grande plano, que mandávamos às esposas,  às namoradas, aos pais, à família, às madrinhas de guerra... DE um modo geral, preferimos as fotos de grupo... Estamos a falar dos nossos "verdes anos", à distância de meio século..

De qualquer modo, e de acordo com o subtítulo deste poste, quem vê caras, (nem sempre) vê corações... Daí a razão de ser  desta seleção de retratos do nosso querido amigo e camarada que vive no Fundão. São da da sua coleção "Fotos Falantes II"... A numeração, arbitrária, é nossa. Bem como a sau edição... E intencionalmente não lhe acrescentámos legendas... Fica o desafio para os nossos leitores... (LG)


O nosso "senador" no Fundão, em 2007. Foto de LG.
2. Excerto de um depoimento do Torcato Mendonça, publicado em 28/2/2015:

(...) "Sim, mudei muito"!  Digo-te porquê. Antes de ser militar, fui estudante e nalguns intervalos fiz 'diversos'. Caçado, sem esperar, pela tropa, aí talvez na especialidade comecei a sofrer uma metamorfose. Aos poucos, e já mais na Guiné, o rapaz alegre e 'bon vivant' foi-se ou, porque não, apagou-se mesmo. (...)

Quando vim, nada ou muito pouco restava do outro. Deram-me várias opções de escolha de vida.

Fui sentindo os anos passarem por mim, os meus filhos crescendo. A guerra estava guardada e, de quando em vez, saltitava para o presente e depois de amansada ia-se. Tratava-a com cuidado e sentia que nunca mais voltara de todo, em grande parte talvez. Nem isso. Fisicamente fui envelhecendo, como é natural. Apressado por “aquilo” e pelas cicatrizes físicas.

Optei, já o tinha feito em parte, e deixei a adaptação correr. O meu mentor, o meu companheiro- amigo, esse meu melhor amigo, esse homem que me deu o ser e muito saber, um dia morreu-me. Chorei nesse dia e compreendi que ainda sabia chorar. Mas tinha mudado muito.

Mais forte, a parte psicológica foi de certeza a de estabilização mais difícil. Nunca estabilizará. Por isso hoje, velho aos 70 anos, com a saúde (ou falta dela) a mostrar os rombos na carcaça nada tem a ver com a hipotética entrada normal na velhice. (...)

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Nota do editor:

Ùltimos postes da série:

30 de setembro de  2014 > Guiné 63/74 - P13669: Selfies / autorretratos (3): Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses (Juvenal Amado)

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav,

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P15298: Parabéns a você (978): Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Guiné, 1970/72) e Luís Marcelino, ex-Cap Mil, CMDT da CART 6250 (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 20 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15269: Parabéns a você (977): Fernando Súcio, ex-Soldado Condutor Auto do Pel Mort 4275 (Guiné, 1972/74) e Rogério Cardoso, ex-Fur Mil da CART 643 (Guiné, 1964/66)