CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
38 - De 10 a 31 de Julho de 1974
Da História da Unidade do BCAÇ 4513:
(continuação)
JUL74/10 – (...). Continua a verificar-se o cessar-fogo tácito em todo o TO. Prossegue a mentalização das populações, militares e milícias africanos, como preparação para a Independência. Continua a notar-se a adesão ao PAIGC da população, especialmente dos mais jovens, notando-se por enquanto nos Homens Grandes uma certa reserva.
JUL74/11 – (...). Após a passagem por A. FORMOSA de um Furriel dos Comandos Africanos, começou a esboçar-se na CCAÇ 18 uma mudança de atitude quanto ao problema da entrega do armamento e passagem à disponibilidade. Embora ainda não tivessem sido recebidas directivas a este respeito, dentro da mentalização que se vem fazendo tem-se de facto notado ultimamente esta mudança de atitude.
JUL74/19 – (dos Factos e Feitos, pág. 31). A fim de assistir a uma reunião no Comando-Chefe, respeitante a contracção do dispositivo das NT e receber directivas, seguiu para BISSAU o Comandante.
Tendo sido recebidas as directivas para desactivação dos Pelotões de Milícias, foram reunidos no Comando do Batalhão, o Comandante do Batalhão, Comandante da Companhia de Milícias, assim como os respectivos Comandantes de Pelotão, a quem foi comunicado, em sequência da mentalização que se vinha fazendo do antecedente, a maneira como iria ser feito o seu desarmamento e as condições em que os referidos milícias continuariam a usufruir das suas regalias.
Após várias trocas de impressões ficou assente que se iniciava o respectivo desarmamento no dia seguinte. Quanto às populações que tinham armamento distribuído para colaborarem nas autodefesas, e para se proceder ao seu desarmamento, foram reunidos neste Comando todos os “Homens Grandes”, entre os quais se encontravam o Régulo IAIA e o CHERNO SECUNA.
JUL74/20 – Iniciou-se sem quaisquer espécies de problemas o desarmamento dos Pelotões de Milícia do Sector S-2.
JUL74/21 – Comandante regressou de BISSAU.
Das minhas memórias:
21 de Julho de 1974 (domingo). Guerrilheiros do PAIGC em Nhala (novamente).
[Salto as notas deste dia. Quero realçar a seguir, algumas fotografias que ajudam à compreensão da época que se vivia. (Julgava que já tinha sido claro a esse respeito). Estas fotografias são importantes, na medida em que mostram o contexto em que se faziam certos “disparates” (como vestir uma camisola com a cara do Amílcar Cabral, fazer-se fotografar ao lado do inimigo, etc.) que tanto chocam hoje os veteranos que não viram o fim da guerra. É devido a esse contexto que eu desvalorizo esses disparates e, se os compararmos, por exemplo, com o hastear da bandeira do PAIGC nos quartéis ou nas tabancas, quando Portugal continuava a manter ali a soberania, o que se dirá então? Chocante? Estou convencido que isto estava a acontecer um pouco por todo o lado na Guiné e, o que ontem era chocante, hoje banalizou-se, perdeu importância e não tem retorno].
Nesta data, 21-07-74, chegaram mais uma vez os guerrilheiros. Pediram autorização para dormirem na escola. Aí, hastearam a bandeira do PAIGC e, quando chegou a hora, procederam à cerimónia de arrear a bandeira. O único incidente passou-se comigo. O alferes do PAIGC no fim da cerimónia abordou-me (eu estava a fotografar), para dizer que quando estavam a entrar Nhala e nós procedíamos ao arrear da nossa bandeira, todo o bigrupo parou em sentido, mesmo os que ainda estavam fora do aquartelamento. Agora ali, eu não mandara pôr em sentido os soldados – e eram muitos – que assistiam ao arrear da bandeira deles... Achou que não houve retribuição nas honras à bandeira. Como se as honras devidas à bandeira de um país soberano, fossem as mesmas a prestar à bandeira de um partido que, oficialmente, ainda não passava disso.
[Era este contexto concreto o que se vivia e não outro, como ainda há dois ou três meses atrás. E que adiantava agora lembrarmo-nos que foram eles que feriram e mataram os nossos amigos e companheiros de armas? Tão despropositado como admitir-lhes que entrassem pelo aquartelamento adentro, à procura de quem lhes matou o familiar ou o camarada. Todos sabíamos que o nosso convívio com eles estava por dias apenas e, com maior ou menor frieza e distanciamento, tínhamos de lidar com eles sem conflitos desnecessários, sendo certo que era com eles que seriam tratadas as formalidades da entrega do território.
Receio que tudo o que ficou dito possa parecer uma grande necessidade de justificação da minha parte. Deixo já claro: não o faria e não voltarei a abordar o assunto. Mas gostava, sinceramente, que quem não viveu aquele período inédito do fim da guerra, pudesse partilhar a minha informação, histórias e fotografias (mais as dos outros que “fecharam” a guerra), sem as tentar compreender à luz de um tempo passado. Mas, até a nós, o tempo novo, de tão novo e tão inédito, todos os dias nos surpreendia: nada estava previsto, pouco se conseguia planear e a maioria das situações eram resolvidas à medida que surgiam. Apenas as directivas superiores, quando chegavam, eram aplicadas sem empenhos imaginativos.
Nota: As fotografias a cor, derivadas de slides, são minhas. As outras foram-me cedidas pelo meu amigo ex-Furriel Mil Trms José Roque, a quem agradeço].
Foto 1 – Nhala, 21-07-1974. Guerrilheiros do PAIGC na tabanca. Sempre muito disciplinados e contidos.
Foto 2 – Nhala, 21-07-1974. O Alferes Mil. Campos Pereira, actualmente Comandante da Companhia, circula pensativo por entre os guerrilheiros.
Foto 3 – Nhala, 21-07-1974. Alferes do PAIGC, Fur Mil Trms J. Roque e um guerrilheiro.
Foto 4 – Nhala, 21-07-1974. Alferes do PAIGC e alguns militares de Nhala trocando impressões.
Fotos 5 e 6 – Nhala, 21-07-1974. Bandeira do PAIGC hasteada junto à escola.
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Notas quase “telegráficas” dos meus últimos dias na Guiné.
20-07-1974 – Ainda não sei se terei de cancelar as férias. Os acontecimentos estão a evoluir rapidamente. (No dia seguinte anotaria que tinha sabido de Bissau que estava tudo pronto para viajar); temos já directrizes sobre a forma de entregarmos as instalações e os equipamentos ao PAIGC; recebemos ordens de desarmar as populações; o nosso armamento está ser limpo e encaixotado; o Comandante do Batalhão foi chamado a Bissau para receber instruções.
22-07-1974 – A Companhia de Mampatá já tem dois grupos em Buba que embarcam amanhã. Os outros dois em Mampatá, (...); continuam a sair companhias do teatro de operações (TO).
28-07-1974 – Sigo amanhã para Bissau. Em 1 de Agosto embarco de férias para a Metrópole; por aqui muita chuva; continuam a sair Unidades.
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Retomo a História da Unidade.
JUL74/22 – Pelas 10h00 quando o Comandante e o Oficial de Operações se deslocavam para MAMPATÁ contactaram com GR/PAIGC, estimado em 40 elementos armados e que se encontravam estacionados junto do Reordenamento/ÁFIA, e cujo Chefe se encontrava em MAMPATÁ.
Contactado o mesmo neste Destacamento, em conversa cordial disse chamar-se RAYMO CHAMBU e obedecendo a ordens superiores, tinha saído há dois dias de KANSEMBEL para efectuar um patrulhamento a esta região, mas que nesse dia regressaria.
- Procedeu-se em A. FORMOSA à inauguração da Sala do Soldado, que tomou o nome de Sala “25 de Abril”.
JUL74/23 – Completou-se o desarmamento dos Pelotões de Milícia de CUMBIJÃ, A. FORMOSA, COLIBUIA, ÀFIA e MAMPATÁ.
- CART 6250 deixou o Subsector de MAMPATÁ, seguindo para BISSAU, via BUBA, para aguardar embarque para a Metrópole.
- A pedido de duas comissões organizadas por militares da CCAÇ 18, e Milícias, foi pedido a BISSAU autorização para os mesmos se deslocarem ao Comando-Chefe para tratar de diversos assuntos relacionados com o desarmamento dos militares e algumas regalias pecuniárias dos milícias. [Sublinhado meu, tal como seguintes].
- Com o desarmamento dos Pel Mil de BUBA e NHALA, completou-se o desarmamento de todos os pelotões de Milícia do Sector S-2.
JUL74/24 – As comissões da CCAÇ 18 e Milícias seguiram para BISSAU via fluvial.
(...).
JUL74/28 – Escalou A. FORMOSA o NORD ATLAS. Neste avião regressou a comissão da CCAÇ 18, que em reunião havida neste Comando relatou as suas diligências em BISSAU.
JUL74/29 – Apesar das diversas reuniões havidas com elementos da CCAÇ 18, estas mostraram-se na disposição de não entregarem o armamento, mesmo aqueles que conforme comunicação da 1.ª Rep/CTIG, acabaram o tempo normal de serviço e têm de passar à disponibilidade.
Presume-se que esta sua atitude esteja relacionada, não só com a vinda do Furriel Comando Africano a A. FORMOSA, como também com atitudes tomadas pelo PAIGC em algumas regiões já sob o seu controle.
(...).
JUL74/31 – Esteve presente em A. FORMOSA uma delegação da 4.ª Rep/CTIG, chefiada pelos Exmos Majores PIRES AFONSO e COSTA PINTO, que veio tratar de assuntos relacionados com a desactivação de COLIBUIA e CUMBIJÃ em particular e duma maneira geral da desactivação do Sector S-2.
- Acompanhados do Comandante deslocaram-se a COLIBUIA e CUMBIJÃ e acompanhado do Oficial de OP/INF deslocaram-se a BUBA e NHALA.
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Eu já não iria assistir à desactivação de nada. A não ser à desactivação de mim próprio dali a um mês em Lisboa, bilhete na mão a sair de casa da tia no Restelo para o Aeroporto, telefone a tocar, não embarques, já regressaram todos, passou aqui um soldado de Coimbra em casa dos teus pais a avisar, que bom, podes voltar já para casa... [Uns segundos de silêncio, uma coisa a nascer-me no estômago, sem querer acreditar no que ouvia. A seguir, explodi]. Que bom, uma porra! Já pensaste que entregaram aquilo sem eu estar presente, vim sem me despedir de ninguém, vou lá deixar a roupa e o meu dólmen, os livros, os diários, o artesanato, o meu caixote de uísque, a minha pressão de ar 4,5, etc., etc. Que pulhice foi esta? Porque não me chamaram? E agora ainda tenho de pedir à tia que me deixe ficar para amanhã, a ver se descubro onde e quem me desactive de vez.
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Deixo algumas fotografias da viagem de Aldeia Formosa para Bissau, com paragem em Catió. Sem o saber, estava a fotografar aquelas terras pela última vez. Não precisam legendagem.
Fotos 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13.
(continua)
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Nota do editor
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