1. Trinta e cinco anos depois.
No 25 de Abril de 2004 presto a minha homenagem às mulheres portuguesas,
Que se vestiam de luto enquanto os maridos ou noivos andavam no ultramar;
Às que rastejavam no chão de Fátima, implorando à Virgem o regresso dos seus filhos, sãos e salvos;
Às que continuavam, silenciosas e inquietas, ao lado dos homens nos campos, nas fábricas e nos escritórios;
Às que ficavam em casa, rezando o terço à noite;
Às que aguardavam com angústia a hora matinal do correio;
Às que, poucas, subscreviam abaixo-assinados contra o regime e contra a guerra;
Às que, poucas, liam e divulgavam folhetos clandestinos ou sintonizavam altas horas da madrugada as vozes que vinham de longe e que falavam de resistência em tempo de solidão;
Às que, muitas, carinhosamente tiravam do fumeiro (e da barriga) as chouriças e os salpicões que iriam levar até junto dos seus filhos, no outro lado do mundo, um pouco do amor de mãe, das saudades da terra, dos sabores da comida e da alegria da festa;
E sobretudo às, muitas, e em geral adolescentes e jovens solteiras, que se correspondiam com os soldados mobilizados para a guerra colonial, na qualidade de madrinhas de guerra.
A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão de soldados terá escrito mais de 500 milhões de cartas e aerogramas. E recebido outros tantos. Como este que aqui se reproduz.
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Guiné, 24 de Dezembro de 1969
Exma menina e saudosa madrinha:
Em primeiro de tudo, a sua saúde que eu por cá de momento fico bem, graças a Deus.
Estava um dia em que meditava e lamentava a triste sorte que Deus me deu até que toquei na necessidade de arranjar uma menina que fosse competente e digna de desempenhar tão honroso e delicado cargo de madrinha de guerra. Peço-lhe desculpa pelo atrevimento que tive em lhe dedicar estas simples letras. Mas valeu a pena e é com muita alegria que recebo o seu aero (1).
Vejo que também está triste por mor (2) da mobilização do seu mano mais novo para o Ultramar. Não sei como consolá-la, mas olhe: não desanime, tenha coragem e fé em Deus. Eu sei que custa muito, mas é o destino e, se é que ele existe, a ele ninguém foge. Nós, homens, temos esta difícil e nobre missão a cumprir.
Nós, militares, que suportamos o flagelo desta estadia aqui no Ultramar, não temos outro auxílio, quer material quer espiritual, que não seja o que nos dão os nossos amigos e entes queridos. E sobretudo as nossas saudosas madrinhas de guerra.
Sendo assim para nós o correio é a coisa mais sagrada que há no mundo. Porque nos traz notícias da nossa querida terra e nos faz esquecer, ainda que por pouco tempo, a situação de guerra em que vivemos e os dias que custam tanto a passar.
As notícias aqui são sempre tristes, nestas terras de Cristo, habitadas por povos conhecidos e desconhecidos. Não lhe posso adiantar pormenores, mas como deve imaginar uma pessoa anda triste e desanimanada sempre que há uma baixa de um camarada.
Lá na metrópole há gente que pensa que isto é bonito. Que a África é bonita. Eu digo-lhe que isto é bonito mas é para os bichos. São matas e bolanhas (3) que metem medo, cobertas de capim alto, e onde se escondem esses turras (4) que nos querem acabar com a vida. E mais triste ainda quando se aproxima o dia e a hora em que era pressuposto estarmos todos em família, juntos à mesa na noite da Consoada. Vai ser a primeira noite de Natal que aqui passo. Com a canhota (5) numa mão e uma garrafa de Vat 69 (6) na outra.
São duas horas da noite e vou botar este aero na caixa do correio. Daqui a um pouco saio em missão mais os meus camaradas. Reze por nós todos. Espero voltar são e salvo para poder ler, com alegria, as próximas notícias suas. Queira receber, Exma. Menina e saudosa madrinha, os meus mais respeitosos cumprimentos. Desejo-lhe um Santo e Feliz Natal.
O soldado-atirador da Companhia de Caçadores (...)
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Notas de LG:
(1) Aerograma. Também conhecido por corta-capim (o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang). Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal"). Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981).
(2) Por mor de = por causa de (expressão usada no norte).
(3) Terras alagadiças da Guiné onde tradicionalmente se cultivava o arroz (... e se pescava). Durante a guerra colonial, foram praticamente abandonadas como terras de cultivo, devido à deslocação de muitas das populações ribeirinhas e à escalada das operações militares. A Guiné, que chegou a exportar arroz, passou a importá-lo.
(4) Corruptela de terroristas. Termo depreciativo que era usado para referir os combatentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Os soldados portugueses eram, por sua vez, conhecidos como
tugas (diminuitivo de Portugal, português ou portuga).
(5) Espingarda automática G-3, de calibre 7.62, de origem alemã, que passou a equipar as forças armadas portuguesas no Ultramar. Em 1961 o exército português ainda estava equipado com a velha Mauser (!).
(6) Marca de uísque escocês, muito popular na época entre os militares (Havia uma generosa distribuição de bebidas alcoólicas nas frentes de guerra, com destaque para o uísque, "from Scotland for the exclusive use of the Portuguese Armed Forces"). Na época o salário de um soldado-atirador (cerca de 1500 a 1800 escudos, parte dos quais depositado na metrópole) dava para comprar mais de uma garrafa de uísque (novo) no serviço de aprivisionamento militar (cerca de 40 pesos ou escudos por unidade). No entanto, a bebida mais popular entre os soldados era cerveja. Uma garrafa de cerveja de 0,6 litros chamava-se bazuca.
# posted by Luís Graça @ 15:33
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2. Comentário de CV:
Assim começou, no já longínquo dia 23 de Abril de 2004, este Blogue a dedicar-se às memórias daqueles que por serem profissionais, ou por imposição, participaram na guerra colonial em território da Guiné.
Publicados que foram 825 postes, no dia 1 de Junho de 2006, Luís Graça dá por encerrada a I Série e inaugura a II que se mantém em actividade apesar de já ter em arquivo mais de 5800.
Com as sucessivas entradas de novos tertuianos, a disponibilidade de tempo do Editor e fundador do Blogue começou a não chegar para dar resposta ao trabalho de edição que exigia já muitas horas de dedicação por dia.
Em 2007, num almoço na Tabanca de Matosinhos, Luís Graça convida-me a assumir o papel de co-editor. Não fui capaz de dizer não, e desde então aqui me têm. Porque trabalho é coisa que não falta, passado pouco tempo pedimos ao camarada Virgínio Briote para colaborar também na edição e publicação dos imensos textos e fotografias que cada vez mais camaradas faziam chegar ao Blogue.
A última e proveitosa entrada para a equipa editorial foi a de Eduardo Magalhães Ribeiro. Em boa hora, porque o camarada Virgínio por motivos particulares praticamente deixou de colaborar. Estamos já a pensar em arranjar mais um camarada que possa dispôr de algum do seu tempo para nos dar uma ajuda.
Temos que dizer que há tertulianos que de uma forma quase anónima nos ajudam, de sobremaneira, pesquisando registos de acontecimentos, Histórias de Unidades, elaborando textos que encomendamos, localização de camaradas, etc.
Neste âmbito, justíssimo salientar o nosso
investigador-mor José Martins que tem sido inexcedível para connosco. Outros camaradas espontaneamente nos ajudam e/ou ajudam quem nos procura na busca de antigos companheiros de luta dos quais perderam referência há muito tempo.
A todos quantos de alguma forma trabalham connosco, o nosso muito obrigado.
Falar do Blogue e não falar dos Encontros da Tertúlia é uma falta imperdoável.
Não me lembro já quem lançou a ideia do primeiro Encontro ocorrido ma Ameira em 2006, o Luís por certo, onde aconteceu aquilo que eu chamo de magia, pois não tenho uma palavra para descrever o que todos sentimos quando cada um tentava ligar o seu interlocutor à foto existente no Blogue, atirando: - Tu és o "..." , eh pá dá cá um abraço...
Gerou-se uma empatia colectiva, fizeram-se amizades indestrutíveis e viveram-se momentos irrepetíveis.
Ameira > 2006 > Alguns dos camaradas participantes no I Encontro Nacional da Tertúlia
As nossas companheiras de uma vida, por vezes difícil pelos maus momentos psicológicos que todos nós, mais ou menos, atravessámos.
Cada ano, novo Encontro, novo renascer de amizades pois há sempre gente que aparece pela primeira vez, se deixa contagiar e não mais falta, salvo motivos pessoais imponderáveis, como é normal.
O nosso Blogue tem na blogosfera um lugar importante. Sendo um Blogue que se dedica a um assunto específico que quase só interessa a quem tem sessenta anos ou mais, que seja ex-combatente da guerra colonial, e da Guiné especificamente, tem um número de visitas que o destaca entre os demais. Sabemos hoje que serve de base de consulta a estudantes e professores de História, e tema de tese nas Universidades.
É natural que tenhamos muita vaidade no nosso trabalho, quando digo nosso, refiro-me ao dos editores e camaradas que enviam as suas memórias e fotos para publicar.
Exemplo de alguma vaidade, no bom sentido, foi a iniciativa do nosso camarada Jorge Félix, que resolveu abrir as
hostilidades e lançar aquilo que se pode considerar como a primeira iniciativa para começarmos desde já a comemorar o 6.º aniversário do nosso Blogue.
O Jorge Félix já nos habituou aos seus filmes com uma montagem exemplar, mas este excede todas as espectativas.
Parabéns, Jorge, pelo teu trabalho. Recebe o nosso abraço e um agradecimento por esta homenagem ao Luís Graça e à tertúlia.
3. Mensagem de Jorge Félix com data de 10 de Fevereiro de 2010:
Caro Carlos,
Já podes ver o video no endereço, http://www.youtube.com/watch?v=QpMTCApxl2s.
Se achares que vale a pena avisa o pessoal e que comecem os festejos. Estamos todos de parabéns.
Pessoalmente agradeço ao Luís pela ideia de pôr esta "malta" toda a recordar e a encontrar-se.
A ti, Carlos, pelo trabalho que diáriamente tens em editar os textos que vamos mais ou menos lendo. Ao resto do pessoal, todos, obrigado por virem aparecendo na Blogosfera, cada qual á sua maneira, mas sempre com o espirito dos tempos da Guiné.
Abraço
Jorge Félix
Vídeo 4' 18'': © Jorge Felix (2009). Direitos reservados>
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Nota do editor CV:
Peço desculpa aos meus camaradas editores por ter feito este poste sem lhes dar conhecimento. A ideia era fazer uma surpresa ao Luís e a toda a tertúlia, com a cumplicidade do Jorge Félix. A ele se deve esta iniciativa.
Últino poste da série > 7 de maio de 2016 >
Guiné 63/74 - P16060: Na festa dos 12 anos, "manga de tempo", do nosso blogue (9): De quantas tabancas é feita a Tabanca Grande ?... Relembrando o feliz acaso do reencontro, 40 anos depois, do Zé Manel Matos Dinis com "o senhor Rosales", na Quinta do Paul, Ortigosa, em 20 de junho de 2009, por ocasião do nosso IV Encontro Nacional, e que esteve na origem da criação da Magnífica Tabanca da Linha...