1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2017:
Queridos amigos,
Não se devem poupar encómios a processos literários que ganharam por mérito próprio lugar ao sol, direito à intemporalidade da leitura e da consulta. São crónicas avulsas de um septuagenário, com lago e diversificado currículo, até com pergaminhos de escritor, que desvia as suas memórias de acontecimentos que experimentou em Angola. Usa habilmente a terceira pessoa do singular, o que provoca uma agradável aproximação, ele encarrega-se de animar tudo quanto viu e sentiu com uma prosa vivacíssima, sem enxúndia, ali se vão encruzilhar muitas dores, muito rocambolesco, muito tédio, até medo - estão ali os sentidos, as matas, os gritos medonhos de tudo quanto vivemos e jamais esqueceremos.
É um livro excecional, de leitura obrigatória.
Um abraço do
Mário
Arcanjos e bons demónios: histórias de cuidado, de fraternidade e horror (2)
Beja Santos
“Arcanjos e Bons Demónios, Crónicas da Guerra de África 1961-75”, por Daniel Gouveia, 4.ª edição, DG Edições, 2011, é um livro notável, seja qual o prisma com que encararmos estas crónicas em que um alferes descobre um continente, novas dimensões da solicitude, impensáveis usos e costumes, mas também o medo, a camaradagem e o amor ao próximo. Digamos que são memórias a partir da senectude de alguém que se temperou em múltiplos ofícios, desde velejador oceânico, passando por gestor comercial à tradução e edição de livros. Percebe-se que houve uma laboriosa congeminação para ter chegado a este documento ímpar. É timbre da melhor literatura de guerra pôr o homem perante os seus desafios, por caminhos em que se vê que ele está a crescer e que pela vida fora nada superará o que ali aconteceu, de armas na mão ou a ajudar os outros. Daniel Gouveia concebe as suas crónicas naquele saboroso estilo da narrativa das mil e uma noites, do tipo na sequência do capítulo anterior até chegarmos a um derradeiro episódio que nos deixa com vontade de saber mais.
O talento da escrita, em literatura da guerra, é pôr de forma compreensiva e impressiva os homens no meio, meio que significa populações amigas ou colaboradoras com inimigo, um inimigo à espreita, uma natureza tropical, o recurso a guias para explorar a imensidão das matas e procurar as bases de guerrilha… E embevecer-se com os prodígios dessa mesma natureza, estar de olhar atento às singularidades e vicissitudes do meio que podem ser os diamantes; apurar as insuficiências e até as pesporrências de oficiais mais graduados que teciam as suas guerras em gabinetes climatizados em frente a mapas onde se marcavam posicionamentos das nossas tropas e dos nossos inimigos. Naquele vastíssimo teatro de guerra angolano, algo se passava um tanto comum aos outros teatros, como Daniel Gouveia observa:
“Mandava-se combater sem a noção de como estava instalado e armado o inimigo. Essa era a origem da velha querela entre a infantaria de linha e os comandos ou os paraquedistas. Os infantes viviam abarracados em destacamentos infectos no meio do sertão, andavam em pelotões de 20 e poucos indivíduos. Os comandos e paraquedistas aquartelavam-se nas grandes cidades, no ar condicionado e a rancho melhorado, eram chamados por rádio, transportados de helicóptero, e à chegada eram informados de onde estava o inimigo, quantos eram e de que armamento dispunha”. O que podia dar fiascos, quando os infantes desconheciam na íntegra o contingente que tinham pela frente.
Raras vezes se encontra um texto tão acutilante sobre a delicadeza e a atividade nevrálgica do guia, sobre o qual espirravam todas as acusações, tantas vezes descabidas, quando não se atingia o objetivo. Quem era este homem?
“O guia era uma entidade curiosa, simultaneamente respeitada e marginalizada. Era um civil, sujeito à disciplina militar porque integrado na tropa, no entanto, liberto de outros serviços, a não ser o de a conduzir. Era natural dali, ali tinha a família, casa, filhos. Os batalhões iam e vinham, no remoinho das rendições, o guia ficava. O comandante de pelotão dava-lhe ordens, objetivos de percurso, mas na prática subordinava-se-lhe, na medida em que o pelotão ia por onde o guia quisesse. A soldadesca tratava-o com à-vontade, sentindo-se acima como militares de linha, pois o guia não tinha posto ou, quando muito, teria o de soldado raso. Contudo, nem sobre o mais humilde dos soldados tinha o guia qualquer autoridade, ficando muitas vezes impunes as piadas a ele dirigidas, por muito que se irritasse”.
E há aquela operação em que toda a tropa do nosso alferes conheceu o inferno da sede, com todas as suas chamas. É este o condão do autor, ir compassando uma dor que cresce e se enovela, os corpos exaustos, as passadas cada vez mais lentas, os carros que vêm buscar os homens extenuados e desidratados, então, o animalesco da sobrevivência impôs-se:
“Quando o pó, elevando-se do horizonte, anunciou a coluna, o pessoal começou a movimentar-se. Mas não da forma habitual, preparando o material para o embarque. Puseram-se de pé, espreitando a estrada, deixando a arma encostada à mochila. No pelotão guarnecendo as viaturas, ninguém trazia cantil, dado a viagem ser curta. E ficaram admirados de ver os camaradas precipitarem-se de mãos nuas estendidas, deixando o equipamento no chão, rostos ansiosos, olhar desvairado, correndo de carro para carro, pedindo água insistentemente. À frente de um dos veículos, gerou-se um tumulto estranho. O condutor e quem vinha ao lado saltaram dos lugares e atiraram-se a um soldado, derrubando-o.
Foi ver o que se passava. Já era um magote agitado, aglomerando-se à frente do carro, os que queriam ver não deixando ver o que se não via. O alferes comandante da coluna estava lá. Quando avistou o seu congénere, desabafou:
- Eh pá, eu nunca vi uma coisa assim! Um dos teus gajos atirou-se ao radiador para beber água. Está com as mãos todas queimadas.
Sentado no chão, olhando as mãos cheias de bolhas, o soldado chorava convulsivamente, na mais completa confusão mental. O condutor explicou-se, também ele aturdido:
- Tivemos de o tirar dali à força! É que ele era bem capaz de beber água a ferver, se lá chegasse…”.
Daniel Gouveia parece ter tido o dom de encontrar capelães caçadores, participar na construção de novas povoações para onde foi arrastada a população à força, assistiu a atos heróicos de pilotos da Força Aérea que não se escusavam, mesmo face a enormes riscos, a ir buscar feridos. Também lhe coube na rifa um soldado doente que de G3 em punho queria matar tudo e todos. É um retrato espantoso, de humanidade e de transe num quase salve-se quem puder, o que se passou com o “Panóias”:
“Soldado raso, ensimesmado e tristonho, sofria de epilepsia e crises de nervos. A reclusão no arame farpado, alternada com o atabafo da mata e a angústia das minas e emboscadas na picada, opunham-se à largueza plácida do seu Alentejo natal, de onde trouxera a alcunha e a misantropia. Várias vezes recambiado para o hospital do setor, como lá nunca tinha ataques, regressava com pareceres vagos de que talvez não fosse nada de cuidado”.
Sofre porque lhe tiraram a arma, uma inútil medida de precaução, armas é o que não falta nas casernas. No regresso de uma coluna, o capitão descobre que o quartel vive em estado de sítio. Ninguém sabe como descalçar a bota até que um amigo do Panóias se oferece para evitar desastres.
“Também alentejano, pegador de toiros, possuía um arcaboiço invejável e o destemor gerado nas lides da arena”. Lá se foi aproximando do Panóias, contou-lhe umas lérias e convenceu-o a irem até ao Paiol, disse-lhe que era ali que estava o capitão.
“Colocou-se atrás do amigo, marchando a passo certo com ele. Tirou as mãos dos bolsos. Juntou uma à outra. Levantou-as, como num gesto de triunfo, mas foi com a força bruta de quem assenta o batoque num tonel que as descarregou na cabeça do conterrâneo”. O Panóias foi metido num avião, a evacuação era inescapável.
“O piloto estupefacto viu meterem-lhe no aparelho um homem de olhar parado, sem uma gota de sangue, amarrado como um salpicão porque, à falta de colete-de-forças, usou-se a corda suficiente para embalar o Panóias como encomenda garantidamente inofensiva a bordo de um avião, na viagem que foi, para ele, o adeus às armas”.
(Continua)
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Nota do editor
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