1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2016:
Queridos amigos,
É seguramente um dos documentos mais importantes dos últimos anos acerca da fragilidade institucional da Guiné-Bissau. O relatório intitula-se "40 anos de impunidade na Guiné-Bissau", é da responsabilidade da Liga Guineense dos Direitos Humanos, foi tornado público em 2013.
Aqui se define impunidade e se revelam as suas muitas faces e avança-se para as causas e tipologia da impunidade na Guiné-Bissau. Trata-se de uma publicação realizada com o apoio financeiro da União Europeia. O leitor interessado em conhecer o trabalho excecional desenvolvido por esta Liga Guineense dos Direitos Humanos só precisa de ir ao Google e escolher as publicações com que consequentemente são feitas as denúncias sobre violência, prisões arbitrárias e todas as outras formas de atentados à dignidade humana.
Um abraço do
Mário
40 anos de impunidade na Guiné-Bissau: uma leitura do relatório da Liga Guineense dos Direitos Humanos datado de 2013 (1)
Beja Santos
Trata-se de um dos mais importantes documentos chancelados pela
Liga Guineense dos Direitos Humanos. A coordenação e redação é de Pedro Rosa Mendes e a prosa ressente-se das altas qualidades literárias de quem o escreveu. Retenho uma frase da introdução:
“Dos sonhos muito se pode esperar; das cinzas pouco se pode conseguir”.
O relatório centra-se na questão magna da impunidade e divide-se em três tramos: primeiro, a definição de impunidade e a violência na Guiné-Bissau; segundo, as causas e tipologia das impunidade na Guiné-Bissau, relevando o papel das Forças Armadas como o cerne do fenómeno da impunidade, descrevendo-se igualmente os crimes económicos e financeiros; terceiro, o relatório oferece um panorama histórico da impunidade na Guiné-Bissau, terminando com a análise de uma década pós-guerra de políticas caóticas, de empobrecimento da população, de disputas violentas no seio do poder.
“A impunidade define-se pela ausência, de direito ou de facto, de responsabilidade penal dos autores de violações, bem como da sua responsabilidade civil, administrativa ou disciplinar, na medida em que estes escapam a todas as tentativas de investigação tendentes a possibilitar a sua acusação, a sua detenção, o seu julgamento e, no caso de serem considerados culpados, a sua condenação a penas apropriadas, incluindo a de reparar o dano sofrido pelas suas vítimas”.
Entre os princípios que permitem encarar o conjunto de requisitos que permitam uma luta contra a impunidade constam quatro linhas de força: a de saber, a justiça, a compensação, a garantia de não repetição.
O direito de saber consubstancia-se nos princípios do direito à verdade, no dever de memória e no direito imprescritível das vítimas ou dos seus familiares a conhecer com exatidão as circunstâncias em que os direitos foram violados. O direito à justiça é a obrigação de cada Estado adotar uma legislação interna ou modificá-la de forma a permitir que os tribunais possam exercer a sua competência universal em matéria de crimes graves segundo o direito internacional. O direito de compensação abrange o direito da vítima a ser ressarcida e o dever do Estado a garantir essa satisfação. A compensação pode ser concretizada através de medidas que restaurem a situação anterior, indemnização ou reabilitação. A garantia de não repetição tem a ver com obrigação do Estado a pautar-se por padrões de boa governação e à defesa do Estado de direito.
A Liga Guineense encara a luta contra a impunidade de uma forma abrangente, isto é, para além das violações dos direitos humanos (que abarcam agressões à integridade dos indivíduos, a restrições da sua liberdade pessoal e a outros atos de repressão) há a considerar os crimes económicos, os atentados contra as crianças e a igualdade de género, a mutilação genital feminina, entre outros.
É evidente que a corrupção, a espoliação de recursos públicos, o enriquecimento ilícito estão, aos olhos dos cidadãos, no topo dos atentados. Há a condenação e a responsabilização que deve expressar-se pelo ressarcimento. A Liga Guineense enfatiza que é tempo de deixar de promulgar mais amnistias, a figura da amnistia tem-se revelado um banho lustral que assegura toda a forma de impunidades, escrevendo-se explicitamente:
“Na Guiné-Bissau, o recurso à amnistia tem confirmado que este mecanismo pode ser uma porta escancarada para a impunidade. O vício da autoamnistia na cúpula do Estado e das Forças Armadas tem sido um obstáculo à justiça tem legitimado a não responsabilização dos culpados por crimes da maior gravidade”.
Neste relatório é do maior interesse o que se escreve sobre a tipologia da impunidade na Guiné-Bissau, assim:
• A impunidade é a falta de aplicação de uma sanção prevista para a violação de uma determinada regra da vida em comum;
• A impunidade é um privilégio do poder: “sabes quem eu sou”;
• “Militares” e “políticos” são apontados como principais responsáveis pela impunidade reinante no país mas, convém não esquecer, numa sociedade que valoriza a lei do mais forte;
• A impunidade reflete-se mais abertamente na inoperância do setor da Justiça;
• Outra dimensão da impunidade é relacionada com a generalização da corrupção e com a estratificação entre o poder do dinheiro de alguns e a extrema fragilidade económica da maioria;
• A sociedade guineense tem valores que facilita(ra)m o agravamento da impunidade;
• A Justiça é exercida cada vez com mais frequência pelas forças de segurança; vigora na prática o princípio da “presunção da culpa” e do favor ao primeiro queixoso;
• O falhanço do Estado em providenciar justiça abriu caminho à reemergência da justiça tradicional e a formas de defesa popular do tipo milícias e vigilantes;
• A má gestão ou inexistência de mecanismos pacífico de resolução de conflitos tem aumentado o risco de etnicização de disputas comunitárias;
• Falta hoje aos guineenses uma referência comum;
• A impunidade agravou-se a partir de 1980; por isso, a Guiné-Bissau enfrenta não apenas o desafio da reforma das instituições mas de refundação de uma ordem constitucional que sofre há três décadas de ataques sucessivos.
A confiança no Estado sofre permanentemente abalos. No decurso das muitas entrevistas que enformam este relatório, é a patente do desencanto. Alguém desabafa:
“Na Guiné ninguém diz o que pensa”. Não há conversa, ninguém disse o que pensa, as pessoas dizem o que os outros querem ouvir. Ou não dizem porque têm medo. Acabem com essa história de que os guineenses têm que sentar e conversar. O próprio Amílcar Cabral foi morto porque ninguém aceitou conversar, conclui o entrevistado.
Os depoimentos colhidos apontam para uma sociedade sem regras, uns dizem que a impunidade do Estado começou em 14 de Novembro de 1980, outros recuam até à era de Luís Cabral e ao poder ditatorial da Segurança do Estado.
Há quem responsabilize só os militares ou só os políticos, mas há quem se incline para os dois grupos. Há militares que observam os deputados que abandonam o partido e se tornam independentes para fazerem negociatas, violando o mandato que lhe foi confiado pelo povo. Há também quem critique as Forças Armadas que recusam a subordinação ao poder político.
Todos são de acordo que o país está à deriva e que a maior das fragilidades é de que todos os casos que devastaram a nação são completamente impunes. Os militares protestam contra o atraso das suas remunerações mas recusam perentoriamente quaisquer reformas. Veja-se o Programa de Desmobilização, Reinserção e Reintegração das Forças Armadas (PDRRI), este e todos os outros falharam. Há quem sugira que se deve acabar com estas forças Armadas que podem funcionar como uma guarda pretoriana substituindo-as pelo recrutamento militar obrigatório.
Ainda na primeira década do século XX se fizeram tentativas para a reforma do setor de Defesa e Segurança, em concreto não se avançou. E o relatório cita que “O recenseamento mais recente mostrou a realidade de uma pirâmide invertida com o efetivo de 4458 elementos dos quais 1869 são oficiais superiores (41% dos efetivos) e, na base, 877 soldados (19%). A crise de comando nas Forças Armadas é marcada pela fragilidade institucional, insuficiência de recursos humanos, forte resistência à inovação num contexto de conflitos de gerações, promoções com base em clientelismo e afinidade étnica”.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de Novembro de 2017 >
Guiné 61/74 - P17978: Notas de leitura (1015): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (9) (Mário Beja Santos)