A última história publicada data de 9/8/2010 (*)
Foto do autor, à esquerda, em Contuboel, Junho de 1969
Foto (e texto): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados.
A Galeria dos meus heróis (8) > Os seminaristas
Os seminários da Igreja Católica forneceram às forças armadas portuguesas, e sobretudo ao exército, importantes contingentes de graduados, milicianos, durante a guerra colonial. Furriéis e alferes, mas também capitães. Em quantidade e qualidade. Em geral, eram jovens com boa formação moral e intelectual, com hábitos de disciplina, sacrifício, resiliência e abnegação, e em princípio mais protegidos contra as "ideias subversivas" (ou "dissolventes") que grassavam nos liceus e universidades, sobretudo a partir da crise estudantil de 1962…
Tinham, além disso, competências relacionais (liderança, trabalho em equipa, gestão de conflitos) que eram relevantes para a condução de grupos de combate. Tinham também uma boa cultura geral e alguns animaram os "jornais de caserna" no mato…
Muitos eram oriundos do meio rural, mais conservador do que o meio citadino, e vinham de famílias pobres ou remediadas. Em geral, eram cooptados por toda uma vasta rede informal de professoras do ensino primário, catequistas e párocos, angariadores de potenciais vocações sacerdotais de entre os melhores alunos do ensino primário obrigatório.
Os seminários menores e maiores, nomeadamente diocesanos, ofereciam a estes jovens oportunidades de educação e mobilidade social ascendente que, à partida, lhes eram vedadas pela sua origem sociofamiliar. O acesso, nomeadamente ao ensino liceal, era limitado a certas camadas da população urbana. A barreira começava na preparação e nos exames de admissão ao liceu. As provas, escritas e orais, eram feitas em geral nas capitais de distrito, bem longe das pactas vilas e aldeias do interior do país…
Está por estudar o papel dos ex-seminaristas na nossa longa guerra colonial (1961/74)… Muitos deles, depois da saída do seminário, eram rapidamente chamados para a tropa… Recorde-se que, por força da Concordata de 1940 (assinada entre Portugal e o Vaticano), os sacerdotes católicos estavam dispensados do serviço militar obrigatório, podendo depois servir a Pátria como capelães castrenses, dependendo da vontade do seu bispo e das necessidades das Forças Armadas. Os seminaristas gozavam do mesmo privilégio.
Sobretudo os que deixavam de frequentar o seminário maior (curso de teologia, que se iniciava no 7º ano, de um total de 12 anos de seminário) eram rapidamente chamados às fileiras do exército. Recorde-se que as suas habilitações literárias não eram automaticamente reconhecidas pelo sistema de ensino oficial. Davam equiparação apenas para efeitos de emprego público e para a tropa. Os ex-seminaristas, com o 7º ano ou mais, não podiam inscrever-se automaticamente (e prosseguir os seus estudos) na escola pública e muito menos na universidade. Ou seja, o 7º ano do seminário (equivalente a 11 anos de escolaridade) não tinha os mesmos efeitos legais do 7º ano do liceu.
Não tinham, por isso, direito a "adiamento", como os estudantes universitários que não reprovassem… Não admira, por isso, que em quase todas as unidades ou subunidades houvesse um ou mais alferes miliciano, ou furriel miliciano, ex-seminarista.
Faltam-nos histórias de vida, relatos autobiográficos, depoimentos, entrevistas, trabalhos de investigação, estatísticas… Temos vinte e tal referências com o descritor "seminário", no nosso blogue. Há já alguns romances sobre este tema: recorde-se aqui, entre outros: (i) "O Seminarista e o Guerrilheiro”, de Cândido Matos Gago (edição de autor, 2015); e (ii) "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015). Mas também temos aqui o testemunho de vários capelães militares, membros da nossa Tabanca Grande: por exemplo, Horácio Fernandes, Mário de Oliveira, Arsénio Puim…
Este texto que se segue é um pequeno contributo para começar a colmar essa lacuna (o conhecimento sobre a participação de ex-seminaristas na guerra colonial). Trata-se de um longo diálogo sob a forma de entrevista, sendo B o entrevistador, que faz o papel de investigador, em contexto académico. Naturalmente que o texto é parcialmente ficcionado, de modo a se poder dizer que "qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência"… (LG)
A – Não sou um tipo de ação, sou um contemplativo. De preferência, fico no meu cantinho, com as minhas pantufas e o meu gato, em lugar de tomar o avião e dar uma volta ao mundo.
B – Felizmente tens uma boa reforma, podias bem dar-te a esse luxo…
A – Mas, não. De resto, detesto viajar. E, mais ainda, de andar de avião.
B – Fobias, quem não as tem ?!
A – É mais fobia social do que outra coisa… E logo eu que fui diretor de pessoal toda a vida… Em grandes empresas, com centenas ou até milhares de colaboradores.
B – Claustrofobia ?
A – Também… Não ando de metro, não ando de avião. Isso também limitou, de certo modo, a minha carreira. Podia ter feito uma carreira internacional, cheguei a ser sondado por algumas multinacionais, nomeadamente do setor farmacêutico. Mas isso implicava viajar com frequência, viver no estrangeiro, hoje no Rio de Janeiro, amanhã no Dubai… O dinheiro não é tudo na vida…
B – Tudo tem um preço, é verdade…
A – Mesmo assim não consegui salvar o meu casamento… A minha ex-mulher era muito mais ambiciosa do que eu… Devíamos, os dois, ter trocado os papéis, eu ficar em casa a tomar conta dos putos…
B – Mas é mesmo horror aos espaços fechados?
A – Com a idade, tem-se vindo a agravar… Multidões, estádios, manifestações, espaços confinados… São imagens de infância, do "quarto escuro", de ficar sozinho em casa, enquanto a minha mãe ia às compras… Não sei… Acredita, não gosto de viajar, sobretudo de avião, barco, comboio, metro… Até de carro, em viagens de longo curso. Prefiro um bom passeio, a pé, à beira-mar, na maré vazia… Preciso de grandes espaços abertos...
B – Mas… nem mesmo um cruzeirito às ilhas gregas ?... Ou aos fiordes da Noruega ?
A – Nem isso, nem sequer uma excursão às Berlengas. Dispenso. Sei que moras para esses lados ou és dessa região… Peniche, não é ?!
B – Bem, sou da região, do Oeste, Estremadura… Compreendo, já te bastou o teu cruzeiro até à Guiné, em finais de 1968…
A – Sim, o nosso cruzeiro, já me esquecia que também foste, meses depois de mim, no "Niassa"…
B – O maldito cheiro do "Niassa"!...Eu sei lá, uma estranha mistura, merda, nafta, óleo, creolina, vomitado, maresia... A mim levou-me anos a sair-me das narinas…
A – Um cruzeiro felizmente de ida e voltam no nosso caso…
B – … E com tudo pago pela Pátria, não te esqueças… Exceto bebidas no bar… Eu fui em classe turística, tu em primeira… A Pátria lá sabia fazer as suas distinções…
A – Sabes bem que houve quem regressasse em caixão de chumbo.
B – E alguns, coitados, por lá ficaram aos bocados, nas picadas, ou a apodrecer nos rios, tarrafes, bolanhas, matas da Guiné…
Fez-se um silêncio, tácito, de cerca de um minuto, religiosamente respeitado pelos dois. Eu, que fazia o papel de entrevistador (B) para um trabalho académico sobre histórias de vida de ex-combatentes da guerra colonial, e o meu velho conhecido (e, porque não , também amigo e camarada de armas), o A…, cuja identidade não vou revelar, a seu pedido expresso… É demasiado conhecido ainda no seu meio profissional… Vou tratá-lo simplesmente por Zé… (Era, de resto, uma entrevista com consentimento informado e garantia de anonimato.)
A – Pois é, meu caro, se eu fosse um gajo de ação (ou de "tomates", para usar um termo do nosso calão militar…), eu não teria feito sequer aquela guerra!
B – Terias desertado, é isso ?!
A – Não, não gosto do termo, muito menos da ideia… Bem sabes como era difícil desertar no teatro de operações da Guiné… Cá, antes do embarque, talvez te safasses … Alguns tentaram e tiveram sorte… Mas não os considero heróis. Nem todos terão desertado por razões nobres!... Por exemplo, aos objetores de consciência ainda os posso respeitar e até admirar… Mas como avaliar a sinceridade dos seus propósitos... Houve objetores de consciência da 23ª hora...
B – Ser contra a guerra, aquela guerra, já era um motivo de peso…
A – Para mim, era uma questão de honra e de coerência: se eu me meto nas coisas, mesmo que depois me venha a arrepender, é para ir até ao fim… Tirando o medo (pouco racional) de viajar de avião, até acho que sou um gajo com um mínimo de coragem física… Na guerra, pelo menos não fui medricas, sem nunca me ter armado em herói…
B – Qual quê ?!... Tu até tinhas bons contactos em França, se bem me lembro, do tempo de seminário… Não te era difícil pores-te daqui para fora…
A – Enganas-te… E, de resto, a minha fantasia era a Suécia e as suecas, louras, de olhos azuis…
B – Ah, sim ?!... Muito me contas!...E hoje poderias lá viver, casado ou descasado, talvez pai de filhos e avô de netos lourinhos que não falariam uma única palavra de português…
A – Sim, era o meu sonho: engenheiro eletrónico, reformado, admirador de Olof Palme e dos Abba… Um grande país, que eu muito admiro, pela sua capacidade de concertação social e de sensibilidade ecológica… E só lá estive uma vez, num congresso…
B – … E, para além de uma reforma dourada, talvez também um pequeno monte no Alentejo, para matar saudades da Pátria perdida e depois reencontrada…
A – Nada disso, sou sentimental mas não saudosista… Com uma casa, sim, à beira do lago, em Varmland… Não te esqueças que continuo a detestar viajar… A Suécia ainda fica longe, mas continua a atrair-me… Acho que nasci no país errado, no tempo errado… que me perdoem os mais patriotas do que eu.
Fiz questão de solidarizar-me com as "tentações do pecado" do meu amigo ( e antigo companheiro de seminário), neste caso a de "dar à sola", "dar o salto", “fugir”, antes da tropa… Era um pecado mortal, um crime de lesa-pátria…
B – Não foi nada, Zé, que não me tivesse passado também pela cabeça… A mim, e a milhares de mancebos em idade militar… Só que eu não tinha, como tu, os contactos e a “guita”… Qualquer passador, para te pôr em França, a são e salvo, exigia-te, adiantados, 10 contos… Naquele tempo, por volta de 1968/69, era muita massa. Equivaleria hoje a mais de 3 mil euros…
A – Desertar não desertava. Não faz o meu género. Era algo que me repugnaria, sobretudo depois de ter feito o juramento de bandeira. Para mim, um juramento é algo de sagrado. O juramento de bandeira é um juramento de sangue. Mas faltar às sortes, ou à inspeção militar, ou até ser refratário… era coisa que eu devia ter feito, no devido tempo, e que não violava a minha consciência.
B – Como aconteceu, de resto, a centenas de milhares de gajos da nossa geração… que deram o "salto", os tais que "votaram com os pés" contra a situação, a ditadura, a miséria (para muitos), a guerra em África… Dizem que refratários foram para aí uns 250 mil… Faltosos não sei se há números, terão sido dezenas e dezenas de milhares, seguramente. Desertores, quase que se contam pelos dedos… Se não contarmos os africanos, sobretudo no final da guerra…
A – A porra toda foram os meus pais, se queres que te apresente um alibi… Filho único, mãe católica, beata, devota de Nossa Senhora de Fátima, pai republicano, do "reviralho", mas conservador, daqueles – e eram muitos! – com dúvidas sobre o destino a dar ao nosso glorioso império…
B – Em boa verdade, devias ter dado o salto antes de perfazeres os teus 18 anos, depois de teres acabado o 7º ano… Mas tens razão, Zé, um gajo não escolhe os pais, o país, a história… E depois o coração tem razões que a razão desconhece…
A – Pode ser uma atenuante, mas não é uma desculpa. Eu, na altura, era já um convicto existencialista, tinha lido o Sartre e o Camus, autores que estavam na moda, e só tinha uma opção a tomar: escolher a liberdade, a autodeterminação, como se diz agora… Sim, não me deveriam ter apanhado no "Niassa"…
B – Se, se, se… Bem sabes, pelo que me conheces (, e puxando agora um pouco pelos meus galões, como "académico", "investigador", "sociólogo", que é o papel em que estou aqui a entrevistar-te…), sabes que o "se" (ou o "if", em inglês) não existe em história, na historiografia… Não vais agora reescrever a tua história de vida, nem tu nem eu… De resto, até tens uma bela história de vida…
A – Bela ?!... Não gozes comigo!... Se eu pudesse voltar atrás, à encruzilhada dos meus 18 anos, eu teria cortado à esquerda… Virei à direita, ou melhor, segui em frente, com o rebanho, todos direitos ao matadouro…
B – Bolas!, tens passado, presente e futuro. Há quem o não tenha, muita gente da nossa geração não tem presente nem futuro… E vai ficar na "vala comum do esquecimento", como eu gosto de dizer. Tens, ao menos, uma família, uma carreira, tens saúde, uma boa reforma… E uma pátria!... Bolas, tens uma pátria, com mil anos de existência… Uma língua que é trinta vezes mais falada que o teu adorado sueco que nunca chegaste a aprender e a falar!... Desculpa, se me excedi…
Aqui o meu entrevistado, interrompeu-me com um ar que tanto podia ser de amargura como de irritação:
A – Carreira ?!... Tirei o curso que não queria, direito, para fazer a vontade ao meu pai que trabalhava num tribunal, e por causa da merda do latinório, e acabei por fazer o papel sabujo e burocrático do sargento na gestão de recursos humanos… Passei por muitas empresas, quase sempre para fazer o jogo dos patrões, ou melhor, dos chefões do conselho de administração. Que os patrões, a esses, nunca se lhes via a cara…
E, continuando em registo de (in)confidência, o meu entrevistado, o Zé, acrescentou:
A – Na guerra, não sei se matei… É possível que sim, mas nunca ou raramente se via a cara do gajo que te queria matar… em emboscadas nas picadas ou nos ataques ou flagelações aos aquartelamentos e destacamentos… Vias-lhes as caras só quando prisioneiros ou deixados mortos no capim… Mas nas empresas cortei muitas orelhas, cabeças, pernas, braços, tripas, corações… E sobretudo, cortei muitos sonhos… Apanhei o pior da gestão de pessoal (hoje diz-se, eufemisticamente, "gestão do capital humano", coisificam-se as pessoas…). Refiro-me às empresas nacionalizadas, no nosso desvario revolucionário do 11 de março de 75, e que depois foram (re)privatizadas…
B – "Gorduras", cortaste muitas "gorduras"… Não era assim que se dizia, algo cinicamente, com a moda da "lean production", a produção limpa ou magra, na nossa indústria transformadora ?!
A – Trabalho de carniceiro, devia ter vergonha de o reconhecer e dizer. E até nem me pagavam mal…
B – Alguém tem sempre de fazer o "trabalho sujo", seja nas empresas seja na guerra… Tal como esse camarada que tu foste substituir no tal Pelotão de Caçadores Nativos…
É uma história algo insólita que merece ser retomada mais adiante. Para já anote-se a resposta que me deu o meu entrevistado:
A – Não me fodas com essa, bem sabes que eu era um gajo com princípios e valores… Andei no seminário, casei pela igreja, ia à missa aos domingos, … Como tu, tive uma boa educação, nalguns dos melhores colégios internos do país de Salazar, que eram os nossos seminários, tirei um curso superior…
B – Todos éramos bons rapazes, simplesmente não tínhamos vocação para padres ou então foi Deus que não foi suficientemente convincente para nos motivar… Ou que nos abandonou.
A – Nem para soldados… Deixa-me contar-te: numa empresa que trabalhava para a Lisnave, mandei uma vez mais de uma centena para a rua, tudo gajos "velhos" e "inaptos", acima dos 40 anos, só com a 4ª classe ou menos… E alguns, coitados, tinham passado, como eu, pela Guiné, e tinham bocas para sustentar, filhos a estudar, empréstimos do apartamento a pagar ao banco… Mas nessa altura, em finais de 80 ou princípios de 90, ainda tínhamos vergonha de falar da guerra. Ninguém dizia que tinha estado na Guiné, e muito nem no seminário, mas eu sabia pela história deles, o cadastro de pessoal…
B – Tempos difíceis, não queria estar na tua pele… E, confesso, também não saberia o que fazer no teu lugar…
A – Nessa altura, eu ainda era um bom católico, praticante… Falava com Deus e tinha um bom diretor espiritual… Hoje vai-se ao psicólogo por tudo e por nada. Vivi esses dramas de consciência, sozinho, quando muito com a presença, distante, de Deus e a santa paciência do meu confessor, dominicano, um bom homem, mas de outro século, que nada sabia de economia nem de finanças…
Tive a infeliz ideia de o interromper para lhe perguntar:
B – Ainda continuas crente ?
Fulminou-me com um olhar de reprovação:
A – Por favor, não me voltes a fazer essa pergunta, que é do foro mais íntimo de um homem. Combinámos que íamos apenas falar do nosso tempo de Guiné…
B – Desculpa, Zé, percebi que estavas a entreabrir uma porta ou uma janela. A conversa é como as cerejas, e eu não tenho um guião rígido de entrevista. Nem quero que abras o livro todo… Eu, por mim, já te contei que fui parar a uma companhia africana (… com o Spínola, já não se dizia "companhia de pretos"). Mas não me posso queixar: safado, safei-me e voltei inteiro (ou talvez não tão inteiro quanto isso)…
A – De acordo… Eu, por mim, passei por Mafra e Vendas Novas, fiz os mínimos para merecer os galões (ou as divisas ?, nunca sei a diferença) de aspirante a oficial miliciano… Como sabes, fui sempre bom aluno, no seminário (em Santarém, em Almada, nos Olivais) e depois na faculdade de direito de Lisboa, mas a carreira de tiro e a instrução física não eram o meu forte… Não era dado ao desporto, fui apenas guarda-redes de hóquei em patins… Lembras-te ?!… Era mau no futebol, no atletismo… Em suma, podia ter chumbado, e ir parar a cabo miliciano ou até a soldado básico…
B – O que não te convinha… Pelo que te encheste-te de brio…
A – Pois, não… Queria acabar a merda da tropa, casar-me, trabalhar, continuar a estudar, ter filhos… Na instrução, safei-me, como muitos outros. E sem fazer batota. Claro, fui parar a atirador. Nunca meti uma cunha, e até tinha um colega nosso nos psicotécnicos…
B – E, tal como eu, foste parar à Guiné e a uma companhia africana… Pior sorte, não era possível…
A – Não, fui parar a um Pelotão de Caçadores Nativos, pior ainda…
B – Conta-me lá como foi isso…
A – Fui mobilizado e integrado num batalhão de artilharia, fazia parte de uma unidade de quadrícula. Era alferes miliciano, atirador de artilharia, que eu nunca soube o que era, por comparação com os atiradores de infantaria… Mas não deu para aquecer o lugar… Passado pouco tempo, uns meses, fui chamado para substituir, em rendição individual, um alferes que comandava um Pelotão de Caçadores Nativos, lá para os lados de Farim, na região do Óio…
B – Chegaste a estar com ele ? A conhecê-lo ?
A – Não, já estava de baixa psiquiátrica,ou talvez na metrópole, depois de ter levado uma porrada do Spínola. Havia um pacto de silêncio entre os soldados do pelotão, que era interétnico, com uma maioria relativa de origem fula, e os poucos graduados metropolitanos (2 cabos, 2 soldados condutores, 2 furriéis e poucos mais).
B – A minha companhia era composta por pessoal fula. Os fulas eram "ingénuos", quero eu dizer, não sabiam ser cínicos nem politicamente corretos. Contavam-me muitas histórias, de boa fé, algumas macabras, do início da guerra. E alguns aceitavam, como parte dos seus deveres de lealdade e disciplina, "fazer o trabalho sujo" que nós, brancos, os "tugas", detestávamos fazer… Como, por exemplo, os interrogatórios, com tortura, de prisioneiros, civis ou guerrilheiros… Nenhum de nós tinha sido treinado para isso, em Mafra, em Vendas Novas, em Tavira, em Lamego… Os fulas eram leais (e preciosos "auxiliares" das NT, tanto as milícias como os soldados do recrutamento local). Os mais velhos tinham uma boa experiência de guerra, e sabiam "pôr a cantar" qualquer prisioneiro… Coitados deles se chegassem a cair nas mãos dos "turras",,,
A – Pois, esse alferes que eu fui substituir, era ainda do tempo do Schulz e batia-se à cruz de guerra. Disseram-me que era valente. Outros, que era doido varrido. Não sei muitos pormenores, porque o pelotão não me recebeu bem e fechou-se em copas… De resto foi transferido para a região do Cacheu antes de eu lá chegar.
Só pela consulta do arquivo na "secretaria" do meu Pel Caç Nat, é que eu vim a descobrir que o tipo era do distrito de Braga, e – imagina! - que também tinha andado no seminário dos franciscanos… Onze anos ou mais, já não me recordo. Devia estar quase a chegar a padre.
B – Não terá sido um caso virgem…
A – Resumindo: o tipo não chegou a receber a tão almejada cruz de guerra das mãos do Schulz, levou, isso sim, uma porrada do Spínola, logo em princípios de 1969. Veio-se a descobrir que ele se autopromovera em "senhor da guerra", fazendo a guerra à sua maneira, à revelia, em grande parte, da cadeia hierárquica… Havia quem dissesse que não era bem assim, que ele tinha as costas quentes, tanto no QG como no comando do batalhão, ou pelo menos por parte do major de operações que estava ao corrente do que ele fazia… e que o protegia. Ambos eram minhotos e "bons católicos".
No seu destacamento (isto passou-se na região do Óio, na região fronteiriça, que eu nunca conheci), ele tinha formado, logo em meados de 1967, um "grupo especial" (cerca de 15 a 20 homens da sua inteira confiança, incluindo alguns milícias, fulas). Faziam raides em tabancas sob duplo controlo, ou em "áreas libertadas", em "barracas" (acampamentos temporários) do PAIGC, sobretudo na zona fronteiriça com o Senegal. O objetivo era o "ronco" (de preferência, captura de armas, munições de armas pesadas, liquidação de elementos ou simpatizantes do IN, isolados ou de passagem pelas tabancas e corredores fronteiriços).
B – Que me lembre, no meu tempo, o Marcelino da Mata era o único que tinha um "grupo especial" desse tipo, mas às ordens do com-chefe, dizia-se… Em Angola, havia os "Flechas", ligados à PIDE/DGS, se não me engano…
A – Ao que parece, este alferes e o seu "grupo especial" atuavam à revelia da hierarquia militar. Mas o tipo era considerado um "grande operacional"… E incontestavelmente deu provas de grande coragem. Tinha, com ele, um sargento miliciano ou do QP, não sei ao certo, já com duas comissões de serviço na Guiné: usava, ao que parece, um cavalo marinho e encarregava-se dos interrogatórios, falava bem o crioulo…. E inclusive estava este Pel Caç Nat autorizado a usar armamento e fardas do PAIGC, no tempo do Schulz, para certas "missões" (reconhecimento, contrapenetração, golpe de mão, etc.) na zona fronteiriça… No pelotão, ainda fui encontrar algumas Kalash, já usadas…
B – Um dia, eles teriam mesmo que dar nas vistas, não?!
A – Metade do pelotão (incluindo os 2 cabos e os 2 furriéis) mais o grosso da milícia ficavam a guarnecer o destacamento durante as saídas do "grupo especial", à noite ou de madrugada… Oficiosamente, iam fazer emboscadas ou patrulhamentos ofensivos.
Segundo a versão do nosso entrevistado, a coisa parece que funcionou sob rodas durante meses e meses. Não houve baixas e ganhou-se dinheiro a rodos com os "roncos"…
A – Como sabes, o armamento capturado era trocado por "pesos"… O patacão, justiça se faça ao meu antecessor, era distribuído por todo o pelotão, e não apenas pela malta do "grupo especial"… Eu acho que a guerra é viciante como a droga… Enfim, tudo corria bem até à morte do sargento, que pisou um fornilho, num trilho que ia dar a uma "barraca", já abandonada… Houve mais 3 feridos graves. E foi preciso chamar o heli para as evacuações. A operação era "clandestina" (ou só conhecida do tal major de operações)…
Aí chegou a mostarda ao nariz do Spínola: alguém do comando do batalhão levou com os patins, o major de operações, creio eu, e o alferes foi destituído do comando do Pel Caç Nat. Se bem me lembro, apanhou 30 dias de prisão disciplinar agravada. Com uma boa cunha, acabou na psiquiatria no HM 241 e, passadas umas semanas, foi evacuado para a metrópole. Acabou a guerra sem honra nem glória…
B – Não me lembro desse caso… Mas em 1970 encontrei, nos Adidas, em Bissau, dois camaradas que estavam à espera de julgamento em tribunal militar, um capitão e um furriel de uma companhia que estava na região do Cacheu… Eram acusados de tortura e liquidação de prisioneiros, rapto e violação de bajudas… Não sei qual foi o desfecho…
A – Também ouvi falar desse caso… Creio que o capitão foi ilibado, e o furriel apanhou uns anos de prisão…
B – E então é aqui que tu entras neste filme…
A – Recebi ordens para fazer as malas e ir comandar o pelotão, já colocado na região do Cacheu. Não foi fácil dar a volta à situação: havia uma crise de autoridade no pelotão. E de falta de confiança no oficial, que era eu, que veio substituir o anterior líder, um militar carismático, sem dúvida, e lendário, para os seus homens… Capaz de dar a vida por eles...
B – O pelotão devia sentir-se "órfão" e "injustiçado", não ?!
A – Levei muitos meses a gerir toda esta crise… E não sei se o consegui, quando acabou a minha comissão... Em contrapartida, abracei de alma e coração a política spinolista "Por Uma Guiné Melhor", fiz (ou apoiei) reordenamentos e o melhor que podia e sabia fazer na área da ação psico-social… Confesso que admirava o nosso comandante-chefe e sobretudo o governador-geral, António Spínola.
B – Em suma, fizeste a guerra e a paz…
A – Podes escrever aí, que sim… Fiz a guerra, defendi-me a mim e aos meus homens, sem nunca me armar em "rambo"… Mas também abri uma escola para os meus soldados, para as mílícias e para os "djubis" da tabanca, construí um poço e um fontanário, apoiei a extensão do posto sanitário do batalhão a que estávamos adidos, fizemos uma horta, oferecíamos legumes à população e às famílias dos nossos homens, pus as nossas parcas viaturas ao serviço da população, transportámos doentes e sacos de arroz e mancarra...
B – Sei que tiveste uma condecoração qualquer…
A – Não, não tive uma cruz de guerra, mas sim um belíssimo louvor do general Spínola, que ainda hoje muito me honra e cujo teor já um dia mostrei aos meus filhos, quando eles já eram crescidinhos, com idade para ouvir falar da guerra em que o pai andou…
Confesso que fiz mal em esconder, no meu currículo, durante tantos anos, o facto de ter feito uma comissão de serviço militar na Guiné… E, já agora, de ter omitido, no meu CV profissional, a minha passagem pelo seminário, de que guardo, de resto, as melhores recordações, contrariamente a muita outra gente…
E aqui termina a 1ª parte da nossa entrevista, gravada em ficheiro áudio. A segunda parte ainda está por transcrever, um trabalho moroso: há uns anos atrás, gastava-se um hora para se transcrever cerca de 10 minutos de conversa (incluindo a tarefa de rever e fixar o texto). Hoje está tudo mais facilitado, a inteligência artificial, a famosa IA, chegou para tornar obsoletos os escribas como eu...
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