1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Manel Pereira, amigo e camarada
Reencontro em Monte Real
As díspares situações individuais pelas quais passamos ao longo das nossas vidas, leva o homem a cruzar destinos diferentes quebrando-se laços de amizades que dantes foram férteis em convívios ocorridos no nosso dia a dia.
O Manel Pereira é um amigo e camarada de armas em solo guineense com o qual travei conhecimento em princípios de vidas quando abraçávamos as nossas carreiras profissionais, ou seja, quando entrámos para a antiga Caixa de Previdência e Abono de Família dos Serviços Médicos Sociais do Distrito de Lisboa, Avenida dos Estados Unidos nº 39, no dia 25 de junho de 1975.
Quis o destino que partilhássemos a mesma Secção laboral e que, naturalmente, nos tornássemos amigos próximos. No ano de 1976 compartilhámos o mesmo prédio no Bairro Comendador Joaquim Matias nº 39, em Paço de Arcos, eu no 1º A, ele no 8º F.
No meu Morris 1000, de cor branca, viajámos pelas ruas de Lisboa, convivemos, traçámos planos futuros, colocámos como meta a continuação dos estudos e fomos curiosos assistentes em efémeras reuniões de jovens onde a finalidade passava pelos exames “ADOC”, tendo estes como intuito principal uma entrada na faculdade.
Assistimos, também, a momentos revolucionários onde a afirmação do povo reclamava direitos. Lisboa, nesses tempos, apresentava-se como o ponto fulcral de imensas reivindicações. Lembro-me das noites de manifestações e dos estridentes bramidos oriundos de uma multidão que não cansava os pulmões entoando um cântico que simplesmente afirmava: “O povo é quem mais ordena”, como cantava o saudoso Zeca Afonso.
Ou, de uma noitada passada às portas do quartel de os “RALIS” reclamando porventura uma chamada às armas que visava defender um povo que reclamava somente justiça. Enfim, devaneios de uma época onde o clamor da juventude se enquadrava com a revolta de antigos combatentes que sentiam na pele o quão difícil fora a luta armada travada no interior das matas em terras de além-mar.
O tempo, nesse tempo, impunha pausas e sempre que possível lá caminhávamos por outros trilhos. Recordo, com uma inquestionável saudade, noites em que nós jovens, acompanhados pelas esposas ou companheiras, curtíamos as noitadas com idas às casas de fado, por exemplo. Numa noite calma, agora já não o é, marchámos, a pé, rumo ao Bairro Alto e desembocámos no “Faia” onde ao sabor de linguiça assada acompanhada com jarros de vinho tinto, ouvimos o grande fadista Carlos do Carmo.
Nesta panóplia de recordações viajo por aquela “Lisboa menina e moça menina… Cidade mulher da vida”, onde proliferava “o homem das castanhas”, ou as vendedeiras ambulantes que vendiam fruta por toda a cidade, ou as varinas que transportavam canastras com peixe fresco à cabeça apregoando o pescado, sendo a capital lusitana, nessa época, um polo de atração que mexia com a irrequieta mocidade. Era o tempo das calças à “boca de sino”, dos cabelos compridos e das camisas ajustadas ao corpo.
Do nosso relacionamento de amizade, que durou cerca de três anos, jamais trocámos conversa detalhada sobre a nossa estadia na Guiné. Aliás, falámos do tema pela rama e não em profundidade. Mas, como proclama o povão no seu provérbio popular “não há bela sem senão”, daí que passados mais de 40 anos concluíssemos que afinal o Manel passou, esporadicamente, pela Companhia sediada em Madina Mandinga e pertencente ao meu BART 6523, localizado em Gabu.
O Manel Pereira, limiano de gema, natural de Ponte de Lima, integrou a CCAÇ 3547 e pertenceu ao grupo “Os Répteis de Contuboel”.
Guardo do Manel a sua extrema sensibilidade aquando se deslocou, de propósito, de Ponte Lima a Lisboa para marcar presença na apresentação do meu último livro – AVC Recuperação do Guerreiro da Liberdade – um evento que teve lugar na Casa do Alentejo no dia 21 de outubro de 2017.
Foi o reencontro de dois velhos camaradas de armas que cruzaram destinos diferentes, seguindo-se Monte Real por altura do nosso convívio anual (2018) do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
Nessa manhã em que o sol brilhava intensamente, dissecámos pormenores das nossas comissões na Guiné e dos muitos pormenores que a guerra nos proporcionou. Claro que o Manel confirmou a sua passagem por Madina Mandinga, falou de “Os Répteis de Contuboel”, da sua atividade operacional, de momentos em que as dificuldades impunham a máxima prudência de entre outras saídas para o mato com o seu pessoal.
Ah, meu amigo Manel, somos, afinal, as tais pequeníssimas partículas de orvalho que, mesmo em dispersão, lá vão marcando vidas de antigos combatentes de uma Guiné onde conhecemos o teor dos flagelos, sendo a nossa mente, por enquanto, portadora de armamento pesado onde os sinos um dia tocarão a rebate para anunciarem uma fatídica emboscada que nos enviará para a tal viagem sem regresso.
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
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