sábado, 27 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20014: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (55): O meu pai, El-Hadj Aliu Baldé (Tamba), falecido em 1999, com cerca de 80 anos: como bom fula e muçulmano, aceitava e suportava com dignidade o domínio dos brancos (portugueses e franceses), mas sempre desconfiado da sua comida, da sua ciência e das suas reais intenções a longo prazo.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > 1991 > Festa de Ramadão > El-Hadj Aliu Baldé (Tamba), o pai do Cherno > Em 1937 fez parte do grupo de jovens que saiu de Canhamina para Contuboel para receber e homenagear os combatentes de Sancorlã que participaram na última guerra de Canhabaque (Ilhas Bijagós)...

[Recorde-se: em rigor, foi uma expedição punitiva, contra os bijagós que se recusavam a pagar o "imposto de palhota", também conhecida por "quarta e última campanha de Canhabaque", decorrendo de 10 de novembro de 1935 a 20 de fevereiro de 1936... O pai do Cherno faleceu em Bissau em setembro de 1999, provavelmente com 80 anos. Recorde-se aqui que El Hadj é um título honorífico reservado ao crente muçulmano que, em vida, consegue ter a felicidade de fazer, com sucesso, pelo menos uma peregrinação anual, Hajj, a Meca]

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Cherno Baldé, Quichinau, Moldávia,
dezembro de 1985, aos 25 anos.   Formou-se
 em economia,  em Kiev, Ucrânia.
Fez uma pós-graduação  no ISCTE, Lisboa, 
em 1992/94, já casado com
Geralda Santos Rocha,
natural de Bissau, de origem nalu.
O casal tem 4 filhos.
1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P20005 (*):

Caros amigos,

Como já tive ocasião de dizer nas minhas memórias de infância, o meu pai era um homem muito decidido e sensato para a sua época e, ao mesmo tempo, era um homem de convicções muito fortes, sobretudo religiosas. (**)

Da mesma forma que nunca aceitou a ideia da chegada do homem a lua, também não aceitava a teoria da terra redonda. Não discutia isso com as outras pessoas fora do circuito restrito da família, mas não admitia que os seus filhos metessem na cabeça muitas fantasias. Uma vez, ameaçou mesmo retirar-me da escola se continuasse a falar dessas coisas anti-religiosas que nos ensinavam na escola. Isso aconteceu quando ainda estudava no ciclo preparatório e depois no Liceu de Bafatá (1975/79).

Um dia, depois do meu regresso da URSS em 1990, numa conversa em família, inadvertidamente falei de uma viagem que tinha feito às cidades históricas de Samarcanda e Bucara (Uzbequistão), no âmbito de uma excursão escolar, pensando que ele ficaria satisfeito por ter perdido o meu tempo a visitar localidades islâmicas históricas. No fim, o meu pai perguntou-me onde estavam situadas. Respondi que estas cidades eram da Ásia Central, para lá da cidade santa de Meca.

Não devia ter falado. O velho levantou-se visivelmente irritado e foi para a sua casa, sem dizer mais nada. No dia seguinte atirou-me à socapa : "Tu,  Cherno, não sei o que a tua escola te serviu, pois ainda continuas a mesma criança idiota que saiu daqui há mais de 15 anos e nem consegues entender que Meca é o fim do mundo?!... Como podes afirmar que há outro mundo para lá de Meca e que tu estiveste lá?!"

Era assim o meu pai, muito corajoso e sensato, mas completamente irascível nas suas crenças, de tal modo que não valorizava muito os nossos estudos na escola dos brancos, exceptuando, claro, a contrapartida monetária que podíamos fornecer.

Ao que parece e por aquilo que aprendi das suas relações, os brancos (portugueses e franceses) desconfiavam sempre dos fulas e da sua religião islâmica, da mesma forma que os homens grandes fulas (como bem disse o Mário Migueis) aceitavam e suportavam com dignidade o domínio dos brancos, mas sempre desconfiados da sua comida, da sua ciência e das suas reais intenções a longo prazo.

Um abraço amigo,
Cherno Baldé (***)

2. Comentário do editor, aquando da apresentação do Cherno Baldé, à Tabanca Grande, em 19 de junho de 2009:

(...) Não te vou tratar por senhor dr. Cherno Baldé, porque a tua vontade é ingressares nesta Tabanca Grande, onde não há ou não deve haver barreiras (físicas, simbólicas, sociais, protocolares, étnicas ou culturais)... Tratemo-nos, pois, por tu, e vamos retomar as conversas e as brinqueiras com os tugas do teu tempo de Fajonquito (1968/74)...

Também não te vou tratar por camarada porque não foste combatente, nem militar, tecnicamente falando... Em contrapartida, passaste pela mesma Escola que eu, o ISCTE, e isso reforça as nossas afinidades e cumplicidades... Estive além disso na CCAÇ 12 onde havia vários Chernos Baldé, gente do Cossé, de Badora, do Corubal, militares do recrutamento local, fulas, que foram de um inexcedível lealdade e camaradagem.

Estás em casa, espero que sintas hoje muito mais confortável do que nesse tempo, em que matavas a fome com as sobras do quartel de Fajonquito a troco de pequenos serviços... Como tu, houve milhares de djubis (como a gente dizia, referindo-se aos putos) que viviam literalmente nos nossos quartéis, estudaram e fizeram-se homens nos nossos quartéis...

Essa tua história, fabulosa,  de infância e adolescência merece ser contada...Uma história de vida, de luta, através do trabalho e do estudo, que é um exemplo,  que nos comove a todos nós e que te deve orgulhar, a ti e à tua família...

Recebo-te, pois, de abraços abertos, meu amigo e meu irmãozinho, guineense, mesmo não tendo conhecido Fajonquito (do leste só conheci a região de Contuboel, Geba, Bafatá, Galomaro e Bambadinca, até ao Saltinho, passandor Xime, Mansambo e Xitole...) (...)

__________


(**) Cherno Abdulai Baldé, guineense, de etnia fula, natural de Fajonquito, sector de Contuboel, região de Bafatá, nascido por volta de 1960. Entrou para a nossa Tabanca Grande em 2009; tem 193 referências no blogue; é nosso colaborador permanente para as questões etnolinguísticas: vd. poste de  18 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje quadro superior em Bissau...


Vd. últimos dez postes anteriores da série, começada em 19 de junho de 2009:

3 de janeiro 2018 > Guiné 61/74 - P18170: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (53): três balas de kalash para uma missão suicida: o trágico fim do ex-soldado 'comando', Cissé Candé, em abril de 1978

3 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16913: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (52): à semelhança da França (em relação aos seus "tirailleurs sénégalais"), quando é que Portugal reconhece aos seus antigos soldados guineenses a nacionalidade portuguesa?

20 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16321: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (51): Os portugueses tiveram tendência para menosprezar o PAIGC, antes e depois da guerra... Recordando uma cilada dos "homens do mato" aos homens grandes de Sancorlã/Cambaju, ao tempo da CCAÇ 412, Bafatá, 1963/65

31 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15556: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (50): Na minha língua materna, o fula, não existe a expressão "Feliz Natal"... Mas felizmente que a Guiné-Bissau é um país de tolerância religiosa, em que as duas religiões monoteístas, Islamismo e Cristianismo, coexistem bem com o animismo

1 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14956: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (49): Relativamente ao desaparecimento do Alferes Leite, trata-se de um caso do qual ouvi falar desde a minha infância (Cherno Baldé)

25 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14660: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (48): Avião amigo ou inimigo!?

15 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13500: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (47): Retrato de uma família - A guerra, a pobreza e a presença dos soldados portugueses

3 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12929: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (46): Depois do ataque

25 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

19 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11730: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (44): A mulher mandinga e o soldado português

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20013: Notas de leitura (1202): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (16) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
É de lastimar que a história do BCAV 490 seja parcimoniosa quanto às operações desenvolvidas nas regiões de Mansabá e Bissorã, há dois relatórios centrados no Morés e no Oio, os grupos do PAIGC agem com elevado sentido tático, detetam precocemente e perseguem com emboscadas, não dão descanso. Os T-6 bombardeiam, as forças apeadas destroem as bases.
Começara o jogo do gato e do rato, só que naquele ano de 1963 ainda era relativamente fácil queimar tabancas do Morés e ali permanecer uma noite.
O bardo dedica versos tocantes ao 1.º Cabo Adozindo e já nos está a preparar para um acontecimento poderoso do início do ano, a batalha do Como.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (16)

Beja Santos

“Adozindo Carvalho morreu
com 21 anos de idade.
Nessa maldita emboscada
teve grande infelicidade.

A muito custo se arriscou
o 1.º Cabo Enfermeiro
depois de salvar um companheiro,
algum tempo rastejou.
Ao pé do Roque se deitou,
mas foi grande azar o seu,
um terrorista lhe deu
uma rajada em sítio mortal.
E quando chegou ao hospital
Adozindo Carvalho morreu.

Depois de penar na vida
foi morto este infeliz.
A sorte assim o quis
que ele abalasse desta lida.
Já não se vê a família querida
a quem tinha muita amizade.
Na força da mocidade
teve esse grande acidente.
Deixou pena a toda a gente
com 21 anos de idade.

A força do inimigo
estava à frente da Companhia.
Ele com coragem seguia
rastejando para o perigo.
Ele era um rapaz amigo
de toda a rapaziada.
No ombro levou uma rajada
e perdeu toda a acção.
Deu muito grito de aflição
nesta maldita emboscada.

Aos seus pais se abraçou
antes de vir para o Ultramar
pensando em voltar
mas na Guiné morto ficou,
já nunca mais regressou
à sua velha cidade.
Já está na eternidade
e em Bissau sepultado
foi morto por um malvado
teve grande infelicidade.”

********************

Na história do BCAV 490, o Capitão António Pais do Amaral elaborou um relatório em 7 de novembro de 1963 acerca desta operação no Morés, onde se refere explicitamente esta morte:  
“Havia feridos principalmente no primeiro grupo de combate mas também havia um na retaguarda do segundo grupo de combate e outro no meio da coluna. O 1.º Cabo Enfermeiro n.º 1826/63, Adozindo Carvalho de Brito do primeiro grupo de combate tinha sido atingido gravemente quando, indiferente ao perigo e com a maior decisão e sangue frio, acabava de curar um camarada seu. Havia necessidade de trazer todos para a retaguarda e entretanto os T-6 ainda não tinham chegado. Foi então que o Alferes Rui de Noronha de Ferreira e o Furriel António Covas num belo gesto de solidariedade transportaram à retaguarda um dos feridos mais graves. Cremos não exagerar que todos se portaram com muita galhardia. O Morés foi atingido pelas quatro horas, altura a partir da qual os helicópteros começaram a evacuar os feridos mais graves, um dos quais o 1.º Cabo Adozindo que não resistiu aos ferimentos recebidos”.

É então que a memória esvoaça para uma outra emboscada, da minha inteira responsabilidade, eu estava no Cuor, ao fim de escassos meses era bem claro que havia pontes de passagem entre as bases do PAIGC sitas em Madina e Belel para a outra margem do Geba, fosse para colher informações fosse para a troca de produtos, fosse para o que fosse para marcar presença naquela guerra. Matéria que recordei no meu livro “A Viagem do Tangomau”, publicado em 2012 e que aqui se reproduz na íntegra:
“Confirmado que é na região entre Chicri/Gambana e Saliquinhé que se processam as deambulações de quem vive no Cuor profundo, sempre que há deslocações a Mato de Cão ao romper da alva se aproveita por calcorrear velhos trilhos e fazer regressos em verdadeira oblíqua, um dia se encontrará um trilho escondido. É precisamente o que vai acontecer já passava do meio-dia de 14 de Novembro. Uma LDG passara à frente de um comboio de 6 embarcações por Mato de Cão, cerca das 9 horas. Quando os 25 homens que acompanhavam o Tangomau pensaram que este ia pedir boleia aos barcos, foram surpreendidos pela meia volta terminante, a coluna seguiu em passo estugado de Mato de Cão a Chicri, e é precisamente numa lala que se encontrou um caminho pronunciado, durante uma hora a coluna prosseguiu pelo mato adentro e não havia que duvidar, aquele caminho inflectia bem acima de Mato de Cão em direcção a Sinchã Corubal. É preciso que se diga que se andou sempre a ver o trilho mas fora dele, caso ali se deixassem marcas de presença a gente de Madina mudaria o curso das viagens. A coluna regressou prontamente a Missirá, o Tangomau aparentava indiferença pela descoberta. Conversou com os furriéis, foi uma conversa em surdina, ficou entendido que no dia seguinte sairia no princípio da tarde, prosseguindo por aquele caminho iria montar uma emboscada nocturna.

Dito e feito, após o almoço e de surpresa convocou cerca de 25 homens, incluindo um apontador de bazuca e quatro apontadores de dilagrama. Sucintamente, informou que partiam para uma emboscada nocturna, levavam um guia, que tomassem nota do itinerário da ida, seria por aquela picada, exactamente por aquela picada, se houvesse emboscada a gente provinda de Madina, que iriam retirar; caso aparecesse um grupo oriundo fosse de Santa Helena ou dos Nhabijões, retirariam em corta-mato até Chicri, e viriam pela estrada até Canturé, sempre beneficiando da lua nova. Que cada um levasse dois cantis, que o Veloso e o Raposo distribuíssem conservas de peixe e pão, cubos de marmelada, com ou sem emboscada regressariam a Missirá a meio da manhã.

Ainda não tinha escurecido e a força operacional acoitou-se num ponto indefinido mas muito próximo das lalas de Sinchã Corubal, dentro da mata, com ampla visibilidade sobre a outra orla. O Tangomau leva três meses e meio de Cuor, sabe que a floresta à noite tem outras expressões de vida, os estalos da madeira sobressaltam, como o piar das aves pode parecer lúgubre ou de muito mau agoiro, um porco de mato pode aterrar uma patrulha em marcha, há sons que se confundem, perde-se ainda mais a noção das distâncias, só se sente o bafo dos vizinhos do lado, às vezes parece que se vai perdido num oceano de sombras. Assim se chegou à escuridão total, na primeira hora ainda houve umas mexidas para aliviar as precisões, mais adiante ouviram-se sons como o gorgolejar dos líquidos ou mandíbulas em movimento. Depois o som absoluto ou quase, havia o restolhar dos animais, não se ouvia o Geba, não bruxuleavam luzes, a lua nova assegurava uma visibilidade difusa do outro lado da mata, era a longa espera de um lince. E é exactamente quando se entra no período da dormência, em que o corpo entorpece e a mente vagueia sem préstimo que Mamadu Djau, um bazuqueiro de elite, cicia junto ao ouvido direito do Tangomau: aproxima-se gente, estão a sair do mato, vão entrar na lala. A ordem transmitida em murmúrio é de que ninguém se mexa, estejam de armas em riste, será ele a disparar, quer todos em fuzilaria para atormentar e desnortear o grupo colhido pela surpresa. E assim foi. Na maior tensão, deixou aqueles vultos avançar, descontraídos, só se ouvia a respiração descompassada dos emboscados. Alçou a G3 e disparou um carregador para dentro do caminho. Se uma flagelação dentro do quartel gera um tumultuo interior, nos primeiros segundos, e depois nos implica numa movimentação pré-concebida para um morteiro, para uma seteira, para um ponto alto e aí descarregar uma bazuca ou um dilagrama, com os nervos controlados, na fuzilaria da mata, a altas horas da noite, chega-se ao extremo de parecer que se está quase num corpo a corpo, mesmo sabendo que há distâncias insuperáveis, e que até naquele caso se ouviam urros e recuos precipitados, comprovando que quem ali vinha não possuía capacidade de ripostar. Como aconteceu. Foram minutos de fogo torrencial e depois deu-se ordem de seguir o comandante em passo de corrida por todo aquele trilho que doravante perderia préstimo para as gentes de Madina. Foi uma louca correria até Chicri, aqui verificou-se que estavam todos e de boa saúde, graças à lua nova deu para perceber como os rostos se embaciavam de suor e havia em todos uma respiração ofegante; seguiu-se para Gambana, a corta-mato até Canturé, no auge da madrugada entrou-se por Missirá, militares e civis vieram alvorotados saber o que se passava. Houve risos estrídulos, deram-se abraços, a ordem era de ir para a cama, a meio da manhã haveria trabalho à espreita.”

(continua)

Berliet destruída, lápis e aguarela de Manuel Botelho.
____________

Nota do editor

Poste anterior de 19 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19993: Notas de leitura (1199): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (15) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20011: Notas de leitura (1201): O nosso camarada A. Marques Lopes já chegou ao Brasil, ou melhor, o seu livro "Cabra-cega" (São Paulo: Paperblur, 2019, R$69,90, mais portes do correio)

Guiné 61/74 - P20012: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (12): Comemorando os 20 mil postes, com um excerto das memórias (boas e más) do Paulo Santiago, no Saltinho, como comandante do Pel Caç Nat 53 (1970/72)... Em que se fala dos banhos à fula no Corubal, de uma perna esfacelada por um coice de morteiro e cosida a sangue frio, e ainda dos foguetões 122mm...


O famoso "Jacto do Povo" (, na gíria do PAIGC), o foguetão ou foguete  de 122 mm, que terá sido utilizado pela primeira vez 24 de outubro de 1969 contra Bedanda e só depois em novembro de 1969, numa flagelação contra Bolama, segundo o nosso especialista em artilharia , o nosso camarada e amigo Nuno Rubim. Felizmente para nós, era um arma pouco precisa e fiável e a Guiné, tirando Bissau, a BA 12 em Bissalanca e Bafatá não tinha grandes alvos, civis ou miitares, apropriados...Afinal, a História com H grande, também se faz com a pequena história...



Guiné > Região de Bafatá  > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > c. jan / fev 1971 > O comandante do Pel Caç Nat 53 (1970/72), Paulo Santiago, tomando o seu banho à fula no Rio Corubal.

Foto (e legenda): © Paulo Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Paulo Santiago, Pombal, 2007. Foto: LG
1. Comemorando os vinte mil postes publicados em 15 anos, justamente em 21/7/2019 (*),  facto que passou despercebido à generalidade dos nossos leitores, voltamos a reproduzir um texto de memórias do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho e Contabane, 1970/72) (**):

Em 6 de Janeiro de 1971, fiz vinte e três anos de idade e um ano de tropa. Tinha entrado para o "calhau" em Mafra [, a EPI,], precisamente no dia em que fiz vinte e dois anos, foi o pior aniversário da minha vida, completamente perdido naquele labirinto de escadas e corredores.

Este 6 de Janeiro no Saltinho foi bem bebido, muito whisky a acompanhar umas rodelas de tomate com sal.

Em 21 de Janeiro, aí pelas 21,00 horas, entra um militar da CCAÇ 2701 pelo bar de Sargentos e Oficiais e informa, meio esbaforido, que um dos sentinelas está a avistar uma pequena luz numa curva do rio Corubal, situada aí a uns 500 metros na margem oposta à do quartel.

Saímos todos a correr em direcção ao posto de sentinela, verificando haver de facto uma pequena luz a mover-se no local indicado. Acrescento que a zona em causa daria uma boa base de fogos para uma flagelação ao Saltinho, com uma posterior retirada pelo rio. O abrigo do [Pel Caç Nat] 53 ficava ali ao lado, e foi onde me dirigi, agarrando no morteiro 60 e duas granadas.

Procuro um local, com visibilidade para a curva do rio, instalo o morteiro, joelho direito em terra, mão direita no tubo, calculo a inclinação e aí vai granada. Tudo foi feito com rapidez, esquecendo-me que a zona do Saltinho, contrariamente à maior parte da Guiné, era rochosa, o que resultou em azar. Não vi, estava escuro, o prato da arma ficou assente num afloramento de rocha. À saída da granada o prato desliza na pedra, atingindo-me a perna direita acima do joelho. A pancada foi tão forte que caí para o lado, cheio de dores, pensei logo ter ossos partidos.

O Cap Clemente e o Alf Julião, da CCAÇ 2701, que estavam ao meu lado, agarram-me ao colo e trazem-me para o Posto médico, onde me deitam na marquesa. Felizmente o osso ficou à vista, mas não estava partido. Havia que coser a perna, trabalho para o Fur Mil Enf Freire.

Como não havia anestesia, estavam quatro matulões a imobilizar-me e eu a sentir a agulha a coser-me, a repuxar músculos e peles. Hoje suporto a dor com alguma rusticidade, deverão ser
ainda resquícios do que passei naquela noite. Levei exteriormente quinze pontos e fiquei
inoperacional um mês e poucos dias.

No dia seguinte, deveria ficar de cama, não consegui e rebentei de imediato com um dos pontos. Agarrado a uma pseudo-bengala lá vim beber uns copos para o bar. Foi um mês de grandes exageros (ainda mais) com as bebidas. O maior problema passou a ser o banho, não podia mergulhar no rio, então protegia o penso com um plástico, sentava-me à beira da rio e, com uma bacia, ia virando água por cima da cabeça, um banho à fula.

Chegamos ao Carnaval e resolvem fazer um baile na escola que ficava junto do quartel, ficando eu a beber uns copos no bar . Por volta das vinte horas, ouço várias saídas de arma que não sei determinar. Venho agarrado à bengala dar uma espreitadela à parada, vejo o rasto de vários foguetões (?) dirigindo-se na direcção de Aldeia Formosa, ouço o estrondo dos rebentamentos, repetindo-se de imediato a mesma cena, várias saídas, o rasto dos foguetes e respectivos rebentamentos.

Chega entretanto o pessoal que andava no baile, ficando também a assistir aquela chuva de foguetes e a ouvir os rebentamentos. Aparece o Fur Rui, das Transmissões, informando que o quartel de Aldeia Formosa acaba de perguntar se estávamos a ser atacados, e quais as armas utilizadas no ataque.

Chegou-se à conclusão que as granadas estavam a cair em zona entre Saltinho e Quebo
e a arma era desconhecida. Passados alguns dias veio informação do Com-Chefe: naquele ataque falhado a Aldeia Formosa, o IN tinha utilizado pela primeira vez Foguetes Katyusha, também
conhecidos por Órgãos de Estaline

O foguete 122 mm, o Grad
 (na terminologia do PAIGC
ou "jato do povo").
Foto: Nuno Rubim (2007)
2. Nota do editor LG:

O pretexto é termos chegado aos 20 mil postes e aos 15 anos a blogar (***),  sem esquecer os cerca de 11,2 milhões de "visitantes" e os quase 800 membros (registados) da Tabanca Grande... Mas, como o tempo é curto, e o relógio não pára, e não há patacão para festas, vamos lá ao que interessa, para  refrescar a nossa memória e corrigir a memória futura...

Na realidade, os tais foguetões ou foguetes 122 mm,  já se teriam estreado antes, no TO da Guiné, em Bolama, em 3/11/1969, ou em Bissorã, em 1/5/1970, segundo a tese do nosso camarada Armando Pires (****), o que o Paulo Santiago contesta, em comentário ao poste P9337:

(...) "Não quero contrariar o camarada Armando Pires, mas não estamos a falar da mesma arma, isto é certo. A Katiusha, Orgãos de Estaline, BM 21 Grad,chamemos-lhe um destes nomes, à escolha, é uma arma, conjunto de tubos de lançamento de foguetes, colocada numa viatura pesada. Tem de haver uma picada para a viatura se deslocar, não pode ser levada às  costas. Assim, não estou a ver nenhuma possibilidade de uma viatura pesada, do PAIGC, se deslocar no interior da Guiné para atacar Mansoa, Bissorã, Bolama. Um quartel, perto da fronteira, com alguma dimensão de espaço, caso de Aldeia Formosa, o ataque foi possível, mas com resultados nulos (para o IN). Também não estou a ver um ataque de Katiusha (4 foguetes) lançar apenas três (Bolama) num alvo de grande dimensão.

A info do COMCHEFE  foi que aquele ataque direccionado para Aldeia Formosa, tinha sido o primeiro com a utilização dos Órgãos de Estaline. É só." (****)

Oiçamos também aqui o nosso especialista de armamento, o Luís Dias: havia dois tipos de "foguetão 122 mm", o foguete (míssil) no calibre 122mm, desenvolvido em 1963,  o 122mm BM-21 GRAD, de lançamento múltiplo, e uma variante, o foguete 9P132/BM-21-P,  também de calibre 122mm (mais curto que o modelo standard) a ser lançado por um único tubo – o lançador 9M28/DKZ-B.  (*****)

(...) "A arma Katyusha era originalmente a denominação para os foguetões utilizados pelos multi-lançadores, que eram transportados em diversos tipos de camiões. Depois da guerra, os soviéticos aperfeiçoaram estes multi-lançadores, com o surgimento do míssil 122mm BM-21 GRAD, colocados em viaturas diversas e com diverso número de tubos.

 Aperfeiçoaram também um míssil portátil, na origem do anterior, mas ligeiramente mais curto, com o mesmo calibre, com a denominação 9P132/BM-21-P, que era lançado pelo uni-tubo 9M28/DKZ-B e era este o míssil mais utilizado nos ataques por foguetões na Guiné, pelo menos dentro do território, tendo sido, inclusive, capturadas diversas rampas de lançamento do tipo referido, conforme diversas fotos existente" (...)

O Nuno Rubim (, um abraço para ele, e as suas melhoras!) também prefere chamar-lhe foguete, embora ficasse conhecido, entre nós, no TO da Guiné, como "foguetão 122mm".  Terá sido utilizado pela primeira vez, em Bedanda, antes de Bolama, Cacine e Cufar (******).

__________



(*****) Vd. poste de 1 de janeiro de  2012 > Guiné 63/74 – P9344: Armamento (7): O foguetão de 122 mm (Luís Dias)

(...) O lançador de foguetes Katyusha é uma arma de artilharia (lançador de foguetes múltiplos) desenvolvida e utilizada pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Foi apelidado na época de "Órgão de Estaline" pelas tropas alemãs (em alemão: Stalinorgel) em referência ao dirigente soviético com o mesmo nome. Já o nome Katyusha foi dado pelo Exército Vermelho,  retirado de uma música famosa durante o período da guerra, que contava a história de uma jovem russa (Katyuhsa, diminutivo russo para Catarina) cujo namorado estava longe em virtude da guerra. 

(...) O desenvolvimento dos foguetes lançados por artilharia na URSS iniciou-se em finais dos anos 40, a fim de se substituírem ou complementarem os Katyusha de 82mm, 132mm e 300mm, da II Guerra Mundial. A fábrica estatal, situada em Tula, sob a liderança de A. Ganichev, apresentou um foguete (míssil) no calibre 122mm, em 1963, denominado 122mm BM-21 GRAD. Ao longo de 1964 foram produzidos diversos tipos desta série e a serem transportados em camiões e outros veículos de vários tipos e dimensões, com diversos conjuntos e combinações de lançamento múltiplo. 

Também foi fabricado o Foguete 9P132/BM-21-P, no calibre 122mm (mais curto que o modelo standard, embora também pudesse ser usado por um multi-tubo), a ser lançado por um único tubo – o lançador 9M28/DKZ-B." (...)

(******) Vd. poste de 10 de junho de  2007 > Guiné 63/74 - P1828: Armamento do PAIGC (3): O Foguetão 122 mm ou a arma especial Grad (Nuno Rubim)

Guiné 61/74 - P20011: Notas de leitura (1201): O nosso camarada A. Marques Lopes já chegou ao Brasil, ou melhor, o seu livro "Cabra-cega" (São Paulo: Paperblur, 2019, R$69,90, mais portes do correio)



Capa do livro "Cabra-cega", de A. Marques Lopes, lançado agora no Brasil (Paperblur, São Paulo, 2019). Não está à venda nas livrarias, é impresso sob encomenda, 
um novo conceito de edição.


1. O nosso camarada, cor DFA, reformado, A. Marques Lopes enviou-nos a seguinte
lacónica mensagem:


[A. Marques Lopes:

 (i)  um dos "históricos" da Tabanca Grande: coronel inf, DFA, na situação de reforma:

(ii) foi alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/1968) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968):

(iii) foi  membro, em 2005, da direção da delegação do norte da Associação 25 de Abril (A25A), 

(iv) e é em termos históricos, o nosso quarto grã-tabanqueiro mais antigo, depois do fundador, Luís Graça, do Sousa de Castro e do Humberto Reis; 


(vi) é autor de "Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015), autobiografia escrita sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que conta a história de António Aiveca; 

(vii) tem 243 referências no nosso blogue]

Data: 25/07/2019, 15:06
Assunto: Cabra.cega


Só para informação:

O meu livro já está publicado no Brasil. A editora Paperblur está ligada à Amazon do Brasil e, táctica segura, só vende por encomenda. Dizem: «Livro impresso sob demanda. Prazo de até 7 dias para produção + prazo dos Correios». O preço é pouco mais de 14€ mas há mais os “fretes”. Ver o link.


2.  Livro “Cabra-Cega” (Lopes, António M.)

R$69,90

Sinopse

O autor assume a personagem Aiveca para contar a sua própria história. Ele sou eu, ou o que passaste é tal e qual o que eu passei. E, assim, vai contando a sua ida para o seminário e as várias etapas do que lá passou: seminário menor, noviciado, filosofia e professor em colégio de meninos pobres. Aspectos do conflito com o director do seminário, reflexões sobre anseios amarfanhados. 

Fora do seminário, antes dele e depois, é a constatação da pobreza do povo português, da repressão política e mental. Já como militar, diz como foi a sua preparação para a guerra, a mentalização feita para tal, o relato de uma deserção e fuga para o estrangeiro. 

Durante a guerra colonial na Guiné: operações difíceis e sofredoras, dúvidas sobre a guerra, conflitos com as patentes superiores, história das circunstâncias do seu ferimento, como foi considerado desaparecido em combate. E os amores depois de vir ferido, e os que teve lá na Guiné durante a guerra.

Prazos
Livro impresso sob demanda. Prazo de até 7 dias para produção + prazo dos Correios:
Frete econômico via Registro Módico;
SP/RJ  [São Paulo / Rio de Janeiro] – em até 15 dias após data da postagem;
Demais regiões do Brasil – em até 30 dias após a data da postagem.


3. Nota do editor LG;

Parabéns, António, chegaste ao Brasil, 519 anos depois do Pedro Álvares Cabral. 

Abres uma nova frente, no mercado livreiro, à nossa literatura da guerra colonial. Essa tal editora Paperblur deve ter existência física (, sede em São Paulo, presumo), mas pelo sítio que nos mandaste parece que só existe na "nuvem"... Os gajos são muito parcos em publicidade... Não sei como chegaste lá...

É um novo conceito de edição, inaugurado, ao que sei, pela gigantesca Amazon.com... (Hoje a empresa "mais valiosa do mundo", ultrapassando a Apple e a Microsoft)...

Já te estou a dar uma ajuda em termos de marketing...Boa sorte para o teu "Cabra-cega", que finalmente passa a ter pai, ou melhor, a sair de uma certa clandestinidade...De facto, tiveste que ir para longe para assumir a paternidade da obra... E ainda bem, porque tens talento literário para dar e vender...

Por outro lado, sem o subtítulo ("Do seminário para a guerra colonial"), o livro fica mais intemporal e, quiçá, universal. Para os brasileiros, "guerra colonial" deve ser um conceito obstruso: afinal, eles não tiveram que lutar muito, de armas na mão, pela sua independência, receberam-na de bandeja, foi um parto sem dor... Ficou tudo em família, a revolta do filho (Dom Pedro) contra o pai (Dom João)...

Oxalá todas as novas nações tivessem nascido assim, de um quase operático (e mitificado)  "Grito do Ipiranga"  (, em 7 de setembro de 1822, tendo Portugal reconhecido a independência do Brasil em 1825).

Recorde-se que, na edição portuguesa (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 382 pp,  19 €), o "Cabra.cega" é uma  autobiografia escrita sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que conta a história de António Aiveca. 

Eis o que diz a Chiado Books (. agora mudou de nome,) sobre o autor, João Gaspar Carrasqueira, pseudónimo literário de A. Marques Lopes (, só nós, na Tabanca Grande,  é que sabíamos...)

"António Aiveca, a personagem principal e real deste livro, nasceu em Lisboa, na maternidade Magalhães Coutinho. Com apenas um ano foi para a terra dos pais no Alentejo, Penedo Gordo, perto de Beja

Aos sete anos regressou a Lisboa, onde fez a instrução primária num colégio de padres de onde saiu para o seminário, donde foi convidado a sair aos vinte anos, resultado de vários percalços.

Esteve cerca de um ano como ajudante de fiel de armazém na AGPL, Administração Geral do Porto de lisboa, em Santos, como ajudante de fiel de armazém. Foi incorporado em Mafra, depois, para frequentar o COM, Curso de Oficiais Milicianos, aí estando sete meses e onde tirou a especialidade de Atirador.

Nove meses depois foi mobilizado para a Guiné, integrado numa companhia metropolitana. Foi ferido em combate e evacuado para o Hospital Militar, na Estrela. Esteve aí em tratamento durante nove meses.

Após isso foi novamente enviado para a Guiné e colocado numa companhia de recrutamento local, isto é, de naturais da Guiné, onde esteve dez meses.

Regressado à metrópole e já consciente dos males da guerra e dos seus responsáveis, foi militante de algumas organizações que lutavam contra o regime e a guerra colonial."

_________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de julho de  2019 > Guiné 61/74 - P20002: Notas de leitura (1200): “Crónicas de um Tenente, Guiné-Bissau, 1968-2018”, o autor é Fernando Penim Redondo, o prefácio é de Mário de Carvalho; Edições Colibri, 2019 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Guiné 61/74 - 20010: (D)o outro lado do combate (52): O T-6G FAP 1694 e o cap pilav João Rebelo Valente, desaparecido em 14/10/1963, na região do Óio- Morés (Jorge Araújo)


Foto nº 1 - Número de matrícula do “T-6G” pilotado pelo Capitão Pilav João Rebelo Valente




Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,  CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974);  coeditor do blogue desde março de 2018


 (D)O OUTRO LADO DO COMBATE:

A MORTE DO CAPITÃO PILAV JOÃO CARDOSO DE CARVALHO REBELO VALENTE E A MISSÃO DA FORÇA ÁREA COM O "T-6G - 1694", EM 14 DE OUTUBRO DE 1963, NA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS: O QUE REFEREM AS FONTES DE HISTÓRIA



1. INTRODUÇÃO

No decurso da pesquisa realizada a propósito da actualização da lista dos camaradas capitães, que tombaram no CTIGuiné durante a «Guerra do Ultramar» ou «Guerra Colonial» (1963-1974) – P19315, estruturada segundo a tríade em que foram classificadas as causas das suas mortes: 'acidente', 'combate' e 'doença', descobri a existência de casos onde se observavam algumas discrepâncias entre as fontes consultadas.

Com efeito, o exemplo que hoje partilho no Fórum, e que se refere ao do Capitão Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, natural do Entroncamento, falecido no CTIG em 14 de Outubro de 1963, 2.ª feira, captou uma particular atenção, dela emergindo o interesse no seu aprofundamento na busca de poder ficar mais próximo das causas e dos factos reais.

Assim sendo, em primeiro lugar, recupero o que está expresso no nosso blogue – P6638 e P9758 – onde o camarada Carlos Cordeiro (1946-2018), autor da primeira lista, dava conta, nesses dois postes, de que o Capitão Pilav João Rebelo Valente havia falecido por "doença", na data acima indicada.

Por outro lado, na consulta à importante base de dados sobre as «baixas» contabilizadas pelas NT na Guerra, como é o caso  «Dos Veteranos da Guerra do Ultramar - Portal UTW», aí é referido que a sua morte aconteceu por "acidente", estando, porém, omisso o local onde foi sepultado. Esta última informação foi a que considerámos na elaboração do nosso anterior levantamento.


2. NOVAS FONTES CONSULTADAS E RESULTADOS OBTIDOS

Em função da problemática acima identificada, e sabendo-se, tão só, que na data do seu óbito o Capitão Pilav João Rebelo Valente dirigia uma aeronave "T-6G Harvard, matrícula 1694" [Foto nº 1, imagem acima], logo procurámos ultrapassar esse obstáculo através da consulta a novas fontes bibliográficas relacionadas com o tema.

Encontrámos um trabalho sobre "Acidentes Mortais em Aeronaves – 1917-2016", da autoria do General Pilav Jorge Manuel Brochado de Miranda (1926-), no qual se faz referência a esta ocorrência [capa ao lado].

A propósito do autor desta obra, é de salientar o facto de ter exercido o cargo de Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, entre o dia 10 de Abril de 1984 e 28 de Agosto de 1988, tendo passado à reserva no dia seguinte e à situação de reforma cinco anos depois (1993). Em 31 de Janeiro de 2018, foi homenageado numa cerimónia que teve lugar no Auditório General José Lemos Ferreira, no Estado-Maior da Força Aérea, em Alfragide, que culminou com o descerrar de uma placa de homenagem. Após a cerimónia, o General Brochado de Miranda seguiu para a Presidência da República, em Belém, onde foi agraciado, pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada.

Quanto ao valor científico deste trabalho, que está disponível no Arquivo Histórico da Força Aérea, com data de Setembro de 2016, o autor refere que "as fontes de história que registaram acidentes de aeronaves são essencialmente os Processos de Segurança de Voo (SV), mas por má elaboração ou falta de dados nem sempre aparecem elementos essenciais para a caracterização do acidente e das suas causas, ou, na falta destes, a imaginação entrou à solta e deu curso à fantasia. Vão, todavia, aparecendo, aqui e além, fora das fontes citadas, referências a acidentes que vem completar, por vezes, as informações incompletas ou mal descritas dos documentos oficiais" (op.cit.,  p5).


[Fonte: http://ahfa.emfa.pt/conteudos/acidentes_mortais_Aeronaves_1917_2016.pdf  [p57]


Por outro lado, uma segunda fonte consultada, respeitante a "acidentes da aviação militar", referia que a mesma aeronave, pilotada pelo Capitão Pilav João Rebelo Valente, ao colidir com o solo, "após manobra acrobática", em Olossato, provocou a morte do piloto.

Esse facto é comprovado com a informação abaixo e respectiva fonte.


[Fonte: https://acidentesaviacaomilitar.blogspot.com/search/label/T-6G, com a devida vénia.]

Influenciado pelas descrições supra, procurámos encontrar "D(o) Outro Lado do Combate" algo que nos pudesse ajudar a decifrar este "mistério" ou "conflito histórico". E tanto insistimos nessa busca, que no espólio documental de Amílcar Cabral (1924-1973), existente na CasaComum, da Fundação Mário Soares, encontrámos duas fotos alusivas ao "acidente".


Foto nº  2 - Citação: (1973), "Lay Sek junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43815 (2019-6) - matrícula 1694, com a devida vénia.

Fundação Mário Soares. Pasta: 05222.000.534. Título: Lay Sek junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC [T-6 Harvard]. Assunto: Lay Sek junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC, presumivelmente utilizando um míssil antiaéreo Strela, de origem soviética. Data: c.1973. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.


Foto nº  3 - Citação: (1973), "População junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43566 (2019-6) - matrícula 1694, com a devida vénia.

Fundação Mário Soares. Pasta: 05359.000.006. Título: População junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC. Assunto: População junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC [T-6 Harvard], presumivelmente utilizando um míssil antiaéreo Strela, de origem soviética. Data: c.1973. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Fotografias.

Analisados os conteúdos narrados nas legendas sobre as duas fotos acima, constata-se que as datas citadas não estão correctas. Deve-se ler 1963. Quanto a Lay Sek [foto nº  2], guerrilheiro do PAGC e membro do Comité de Milícia Popular da Frente Norte, este estava, naquela altura, acantonado na base de Maqué (ou em trânsito) pelo que os destroços do "T-6G - FAP 1694" que nos aparecem nas imagens deveriam estar localizados na região de Morés (entre Maqué e Morés), conforme consta no livro da CECA, 6.º Volume, "Aspectos da Actividade Operacional" realizada pelas NT durante o período em análise (Outubro de 1963; pp121-122).

Assim sendo, o autor das legendas sobre as fotos {, um dos técnicos da Fundação Mário Soares], ao presumir que a data destas era de 1973, considerou que a queda da aeronave se ficara a dever à utilização de um míssil Strela, o que não corresponde à verdade, uma vez que este episódio ocorreu poucos dias antes do conflito armado completar o nono mês.


Foto nº 4 - Parelha de T-6 nos "Céus da Guiné". Foto do camarada Gil Moutinho, ex-Fur Pilav, BA12 (Guiné, 1972/1973) – P7088, com a devida vénia.


2.1.  COINCIDÊNCIAS… OU, TALVEZ, NEXO DE CAUSALIDADE

- A CARTA DE AMÍLCAR CABRAL ENVIADA A OSWALDO VIEIRA (NO MORÉS)

No desenvolvimento desta investigação foi identificada uma carta enviada por Amílcar Cabral (1924-1973) a Oswaldo Vieira (1938-1974), onde aborda este tema, entre outros.

Porém, o conteúdo dessa carta, conforme se apresenta abaixo, tem dois exemplares: um manuscrito, sem data; o segundo, dactilografado, com a data de 31 de Dezembro de 1963.

Nele(s) pode-se ler:

"Meu caro camarada Oswaldo,

São portadores desta os camaradas emissários que tinham vindo de Bissau. Só voltam agora, porque eu tinha estado ausente, em missão, e havia aqui muito que fazer.

Escrevi-te há dias pelo Bebiano. Espero que já tenhas recebido a carta, e que tudo corra bem. Espero também que tenhas mandado algumas notícias ao Lourenço [Gomes] para nos enviar, pois estamos sem notícias há quase dois meses.

Lamento muito os mortos no bombardeamento de 14 de Outubro [de 1963], em particular a da nossa grande camarada Joncon Seidi, cujo nome e coragem nunca devemos esquecer. Dá saudações minhas a toda a população do Morés e aos camaradas todos. Podem estar certos de que, depois da nossa libertação, na independência da nossa Pátria, Morés há-de ser uma das mais belas cidades da nossa terra.

Queria dar-te algumas palavras de ordem, mas não posso fazer isso, porque não tenho notícias, não sei como vão as coisas nas diferentes áreas sob a tua direcção. Para eu poder dirigir a luta, tenho de saber, em pormenor, o que se passa com os nossos e com o inimigo. Mas não recebo notícias nem relatórios dos meus camaradas de luta, responsáveis de região e de zonas. Espero ir para dentro do país, antes que tenha de ficar calado e desligado da luta, no exterior. Porque isso é coisa que não pode ser, que não tem justificação". (…)




Na parte final da carta, enviada a Osvaldo Vieira, Amílcar Cabral acrescenta:

"Mas preciso de relatórios detalhados do responsável.

Em relação à mensagem trazida pelos emissários de Bissau, eles te dirão o que penso e resolvemos. Acho que, como te mandei dizer pelo camarada Chico, é preciso uma boa coordenação entre vocês e Bissau, para fazer as coisas marchar.

Vão algumas bonecas para Bissau, que tu enviarás conforme for melhor. Vale a pena desenvolver as coisas [Zonas] em 0 [Ilha de Bissau], 1 [Varela e Barro], 2 [Bigene, Farim e Cuntima], 3 [Pirada, Canquelifá, Buruntuma, Piche e Nova Lamego], 6 [Geba, Bafatá, Contuboel, Sare Bacar e Sonaco] e 10 [Teixeira Pinto e Bula], com urgência.

Acho que não é indispensável esperar que chegue tudo o que desejamos mandar.

Sucesso no teu trabalho e para todos".



Fontes:

● Carta manuscrita: Citação: (s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34265 (2019-6).

Fundação Mário Soares. Pasta: 07058.020.026. Assunto: Entre outros assuntos lamenta os mortos no bombardeamento de 14 de Outubro [1963], em particular a de Joncon Seidi, e a falta de notícias e de relatórios. Refere também a necessidade de regressar ao interior do país. Remetente: Amílcar Cabral. Destinatário: Osvaldo [Vieira], Morés. Data: s.d. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.

● Carta dactilografada: Citação: (1963), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36712 (2019-6).

Fundação Mário Soares. Pasta: 04606.045.063. Assunto: Bombardeamento do dia 14 de Outubro [1963]. Remetente: Amílcar Cabral. Destinatário: Osvaldo [Vieira]. Data: Terça, 31 de Dezembro de 1963. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Cartas e textos dactilografadas enviados por Amílcar Cabral; 1960-1967. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.


Triângulo Maqué-Olossato-Morés, onde se supõe ter caído o "T-6G-1694" e onde morreu o Cap Pilav João Rebelo Valente, desconhecendo-se o que aconteceu ao seu corpo.


2.2. RESULTADOS… OU AS CONCLUSÕES POSSÍVEIS

Para encerrar este ponto, e esta narrativa, o que podemos concluir:

(i) – Com data de 14 de Outubro de 1963, 2.ª feira, foram encontrados diferentes registos historiográficos relacionadas com:

a) - A morte do Capitão Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, quando pilotava uma aeronave "T-6G, com matrícula 1694", de acordo com o referido pelo General Brochado de Miranda, no seu trabalho de investigação, titulado: "Acidentes Mortais em Aeronaves – 1917-2016, p57.

b) - Um outro apontamento, retirado do blogue sobre acidentes da aviação militar, acrescenta que a aeronave "FAP-1694" caiu no Olossato.

c) - O bombardeamento de uma base na região de Morés, de que resultaram alguns mortos, como referido por Amílcar Cabral em carta remetida a Osvaldo Vieira, então na base de Morés.

(ii) – Pelas imagens observadas, os destroços da aeronave "T-6G - FAP 1694" foram localizados:

a) - Não na "área do aeródromo", em Bissalanca, como é referido na obra do General Brochado de Miranda, acima citada.

b) - Mas, sim, numa das matas da região do Óio-Morés, no triângulo Maqué-Olossato-Morés [mapa acima], como se depreende/infere das fotos onde aparece o Lay Sek e alguns elementos da população.

(iii) – O que não é possível provar é que a queda da aeronave tenha sido provocada por fogo IN, ainda que nessa data/período as forças terrestres (NT) estivessem em manobras na região do Óio-Morés [Sector C, criado pela remodelação do dispositivo de 02Ago63], sob a supervisão do BCav 490 e do BCaç 512.

(iv) – Uma vez que não encontrámos qualquer referência ao local onde foi sepultado o corpo do Capitão Pilav João Rebelo Valente, considera-se, do ponto de vista académico, que ele não foi recuperado.

Eis, em síntese, o que foi possível apurar neste trabalho.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.
16jul2019
_____________

Último poste da série >  3de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19944: (D)o outro lado combate (51): a morte de 'Guerra Mendes' (Jaime Silva) em Bulel Samba, Buba, em 14 de fevereiro de 1965, na Op Gira - II (e última) Parte (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P20009: Agenda cultural (696): Apresentação do livro do nosso camarada Joaquim da Silva Jorge, "Ferrel através dos tempos", 9 de agosto de 2019, 6ª feira, às 17h00, no salão de festas do Jardim Infantil de Ferrel, "a capital da luta contra o nuclear"









Capa do livro do Joaquim da Silva Jorge, "Ferrel através dos tempos", edição de autor, 2019, 391 pp. Índice da obra e ficha técnica


1. Mensagem de Joaquim [da Silva] Jorge, régulo da Tabanca de Ferrel / Peniche, ex-alf mil, CCAÇ 616, Empada, 1964/66, BCAÇ 619, Catió, 1964/66), bancário reformado, ex-autarca e ativista comunitário:

Enviado: 8 de julho de 2019 19:43

Assunto: convite

Agradeço a tua presença na apresentação do meu livro "Ferrel através dos Tempos" que se realizará no dia 9 de Agosto (6ª feira) às 17h00, no salão de festas do Jardim Infantil de Ferrel.

Obrigado!
Joaquim Jorge.

2. Há 43 atrás, em 15 de março de 1976, a população de Ferrel levantou-se em peso contra a planeada construação de um central nuclear no concelho de Peniche. 

Ficou desde então conhecida como a Capital da Lutra contra o Nuclear. Joaquim Jorge, membro da comissão de moradores de Ferrel, e posteriormente da CALCAN – Comissão de Apoio à Luta Contra a Ameaça Nuclear, teve na altura um papel destacado nesta luta, aqui evocada no seu livro (pp. 61-80), tal como a participação dos jovens de Ferrel quer na I Grande Guerra quer na guerra colonial (pp. 45-60).

A efeméride, o 43º Aniversário da Luta Contra o Nuclear, em Ferrel, foi devidamente assinalado,  com diversas atividades, no passado dia 15 de março de 2019. Foi descerrada uma placa com o marco da "Capital da Luta Contra o Nuclear". Destaque para a intervenção do nosso camarada e amigo Joaquim Jorge.
_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 20 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19996: Agenda cultural (695): o fabuloso grupo musical Galandum Galundaina, 4 vozes, 20 instrumentos, os sons únicos, ancestrais, das Terras de Miranda, Nordeste Transmontano, hoje, às 24h00, na "Batalha do Vimeiro, 1808", Vimeiro, Lourinhã

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20008: Historiografia da presença portuguesa em África (169): “Monjur, o Gabú e a sua História”, por Jorge Vellez Caroço; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1948 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Jorge Vellez Caroço, filho do Governador Vellez Caroço, deu provas de competência e rigor enquanto foi Diretor dos Assuntos Indígenas, e numa das suas atividades procedeu a um inquérito no Gabú. Reúne elementos à luz dos conhecimentos da época, do que se sabia ou discutia quanto às origens das populações africanas, grandes invasões, impérios do Gana e Mali, reinos Fulas.
A investigação avançou muito e a todos os que se interessam por estas matérias não se pode deixar de recomendar a tese de doutoramento de Carlos Lopes com o título "Kaabunké - Espaço, Território e Poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance Pré-Coloniais", editado pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1999. Iremos apreciar a restante obra até ao período do régulo Monjur e posteriormente far-se-á referência ao trabalho de Eduardo Costa Dias sobre o regulado do Gabú entre 1900 e 1930.

Um abraço do
Mário


Monjur, o Gabú e a sua História, por Jorge Vellez Caroço (1)

Beja Santos

Em 1948, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa publicava o trabalho “Monjur, o Gabú e a sua História” por Jorge Vellez Caroço. Jorge Vellez Caroço, filho de Jorge Frederico de Vellez Caroço, governador da Guiné entre 1921 e 1926, fora diretor de um departamento ligado aos assuntos indígenas, o seu nome aparece num conjunto de relatórios que tiveram a ver com um incidente de uma aeronave francesa que se teria despenhado em chão Felupe, nos anos 1930, esta vasta documentação, bem curiosa por sinal, está a ser estudada pela investigadora Lúcia Bayan, razão pela qual aqui não se faz referência ao seu conteúdo. Diga-se em abono da verdade que o título da obra não corresponde completamente ao conteúdo. Em 1933, no exercício das suas funções, Jorge Vellez Caroço conduziu um inquérito sobre o estado da política indígena na circunscrição civil do Gabú, mexeu em muitos papéis, fez muitas consultas, ouviu populações e consultou mesmo autoridades da África Ocidental Francesa.

Arranca a sua investigação sobre os autóctones da raça negra, fala dos negrilhos, seres de estatura abaixo da mediana, tudo mudou com as invasões dos Bantos ao Sul e os Indo-arianos ao Norte, ficaram poucos vestígios destes autóctones. Refere a seguir os negros invasores, negros da Índia, Filipinas e Oceânia, afirma claramente que os negros de África vieram de Oceânia. Constituíram uma civilização primitiva, tinham um fundo acentuadamente religioso, são-lhes atribuídos monumentos em pedra de origem bastante misteriosa que se têm descoberto em várias regiões da África Negra, caso dos edifícios do Zimbabué e das rochas gravadas da Gâmbia. Segue-se outra invasão e os negros eram já miscigenados com negrilhos e Bantos, formou-se um terceiro grupo, o dos negros sudaneses. Seria esta a origem da África Negra. Tece depois referências aos Hicsos e aos Árabes, seguem-se os Berberes. E assim se chega ao Império do Gana, que teve o seu período florescente entre os séculos IX e X, entrando em declínio no século XI sob a pressão conquistadora dos Almorávidas, que conquistaram a capital do Império em 1203. Na continuação da miscigenação apareceram os Songais, os Sereres, os Gangara e os Mandingas propriamente ditos ou Malinqués. Em novos cruzamentos aparecem dois grupos populares importantes: os Saracolés ou Soninqués e os Fulas. Estes povoaram a região do Futa-Toro e Futa-Djalon, chegando até à região do Chade. Assim se vão definindo os dois principais povos que habitaram o Gabú. O autor tem a hombridade de esclarecer que o trabalho fora elaborado 14 anos antes, formular hipóteses sobre a origem dos Fulas, faltavam-lhe estudos mais recentes.

Segue-se a influência do Islamismo na constituição de vários Estados. São essencialmente os Almorávidas, a um tempo guerreiros e missionários que se lançaram na Guerra Santa, um grupo foi para o Norte, fundou um poderoso império em Marrocos, que se estendia até à Argélia e ao Ebro e o outro desenvolveu a sua ação nas regiões sudanesas, atacou todos os agrupamentos étnicos das margens do Senegal e do Níger, lançando-se sobre o Império do Gana, que dominou. Após esta conquista, o Islão foi aceite pacificamente pelos reis Mandingas, senhores do Alto Senegal e Alto Níger, estendendo a sua ação até aos Djolas e muito mais. Quem não quis abraçar o Islamismo sujeitou-se a penosas migrações, dando origem a novos Estados. Foi o que aconteceu com os Sereres, os ancestrais dos Fulas, os Soninqués que se estabeleceram além-Senegal, no Futa-Toro.

O Império Mandinga entrara em declínio no século XVI, a hegemonia passou para os Songai ou Songoi. Quando, na segunda metade do século XVII, sucumbiu o poder marroquino, os Mandingas tentaram recuperar o seu predomínio, encontraram as maiores dificuldades, povos como os Bambaras fizeram-lhes frente. É dentro destas migrações que os Fulas avançam para as regiões de Firdu e Kabou, hoje aproximadamente a área do Gabú.

Jorge Vellez Caroço procede ao registo do Império Mandinga Malinqué ou de Mali entre os séculos XI a XVII, dizendo que este império fundado por Malinqués ou Mandingas foi o mais poderoso dos impérios indígenas que se constituíram no Sudão Ocidental. No século XIII, este império esteve submetido por pouco tempo ao poder de um rei Sôsso, depois recuperou autonomia, o império atingiu o seu apogeu e entra em declínio no século XV. É neste período, mais propriamente em 1481 que o Mansa ou Rei, vendo-se ameaçado pelas investidas dos seus inimigos, aproveitou-se da vizinhança das feitorias dos portugueses e pediu auxílio a D. João II. O monarca português procurou estabelecer amistosas relações com o Império Mandinga, estas operações de boa vontade continuarão. Os Bambaras destruíram o Império do Mali em 1670.

Procurando equacionar a presença Mandinga e Fula na região do Gabú, o autor refere-se ao reino Fula, cheio de vicissitudes. E entramos numa matéria nova, o Futa-Djalon, o Firdu e o Gabú, a correlação entre estas regiões e os seus habitantes. Fala-se novamente no Futa-Toro, que se estendia do rio Senegal e de regiões da Gâmbia até às montanhas e que teve um Estado fundado em meados do século XV por um Fula pagão, Coli Tenguela. O Futa-Djalon situa-se numa região montanhosa, ao tempo em que o autor escreveu era habitado por população da África Ocidental Francesa e constituía a maior parcela da Guiné Francesa. Dada a fertilidade do solo, das magníficas pastagens, foram atraídos Saracolés, Mandingas, Fulas e Sôssos. Desse cruzamento resultaram os Fulas do Futa que na Guiné-Bissau são conhecidos por Futa-Fulas. O Estado do Futa-Djalon foi fundado em meados do século XVIII, eram guiados por Marabús, homens de letras e estudiosos, sob a forma de um reino feudal.

Falemos agora de Firdu e Gabú. A vasta região conhecida por Kabu é contornada ao norte pelo rio Gâmbia, estende-se a oeste até às vizinhanças da embocadura do rio Casamansa, compreendendo quase todo o território do mesmo nome – rio Geba e rio Grande. Na então Guiné Portuguesa, abrangia o território que era a terra dos Djolas e Beafadas a que os Fulas chamaram Forreá, a terra dos Nalus e as atuais circunscrições de Farim, Bafatá e Gabú. É um caleidoscópico étnico difícil de assimilar, com Fulas-Cativos, Fulas-Pretos, Fulas-Forros, Soninqués, Mandingas, Djolas ou Beafadas. Importa esclarecer que a designação de Soninqués, atribuída aos Saracolés, parece ter origem no facto de professarem a religião do Deus Soni, constituíam uma força resistente ao Islamismo a que não se converteram.

Dado, na lógica do autor, o mosaico étnico da África Negra, a constituição de sucessivos impérios, o reino do Kabu, faz-se uma referência a Firdu e ao seu grande régulo Alfa Moló, estamos numa época em que o Tenente Francisco Marques Geraldes, da circunscrição de Geba, é obrigado a reprimir uma invasão de Mussá Moló, filho de Alfa, e com grande sucesso, acabara-se o grande território do Firdu. E agora o autor vai falar-nos sobre o povoamento do Gabú, a partir da ocupação Mandinga.

(continua)


____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19985: Historiografia da presença portuguesa em África (167): “A Cultura do Poder, a propaganda nos Estados autoritários”, com coordenação de Alberto Pena-Rodríguez e Heloísa Paulo, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016 (Mário Beja Santos)