No decurso da pesquisa realizada a propósito da actualização da lista dos camaradas capitães, que tombaram no CTIGuiné durante a «Guerra do Ultramar» ou «Guerra Colonial» (1963-1974) – P19315, estruturada segundo a tríade em que foram classificadas as causas das suas mortes: 'acidente', 'combate' e 'doença', descobri a existência de casos onde se observavam algumas discrepâncias entre as fontes consultadas.
Com efeito, o exemplo que hoje partilho no Fórum, e que se refere ao do Capitão Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, natural do Entroncamento, falecido no CTIG em 14 de Outubro de 1963, 2.ª feira, captou uma particular atenção, dela emergindo o interesse no seu aprofundamento na busca de poder ficar mais próximo das causas e dos factos reais.
Assim sendo, em primeiro lugar, recupero o que está expresso no nosso blogue – P6638 e P9758 – onde o camarada Carlos Cordeiro (1946-2018), autor da primeira lista, dava conta, nesses dois postes, de que o Capitão Pilav João Rebelo Valente havia falecido por "doença", na data acima indicada.
Por outro lado, na consulta à importante base de dados sobre as «baixas» contabilizadas pelas NT na Guerra, como é o caso
, aí é referido que a sua morte aconteceu por "acidente", estando, porém, omisso o local onde foi sepultado. Esta última informação foi a que considerámos na elaboração do nosso anterior levantamento.
Em função da problemática acima identificada, e sabendo-se, tão só, que na data do seu óbito o Capitão Pilav João Rebelo Valente dirigia uma aeronave "T-6G Harvard, matrícula 1694" [Foto nº 1, imagem acima], logo procurámos ultrapassar esse obstáculo através da consulta a novas fontes bibliográficas relacionadas com o tema.
Encontrámos um trabalho sobre "Acidentes Mortais em Aeronaves – 1917-2016", da autoria do General Pilav Jorge Manuel Brochado de Miranda (1926-), no qual se faz referência a esta ocorrência [capa ao lado].
A propósito do autor desta obra, é de salientar o facto de ter exercido o cargo de Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, entre o dia 10 de Abril de 1984 e 28 de Agosto de 1988, tendo passado à reserva no dia seguinte e à situação de reforma cinco anos depois (1993). Em 31 de Janeiro de 2018, foi homenageado numa cerimónia que teve lugar no Auditório General José Lemos Ferreira, no Estado-Maior da Força Aérea, em Alfragide, que culminou com o descerrar de uma placa de homenagem. Após a cerimónia, o General Brochado de Miranda seguiu para a Presidência da República, em Belém, onde foi agraciado, pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada.
Quanto ao valor científico deste trabalho, que está disponível no Arquivo Histórico da Força Aérea, com data de Setembro de 2016, o autor refere que "as fontes de história que registaram acidentes de aeronaves são essencialmente os Processos de Segurança de Voo (SV), mas por má elaboração ou falta de dados nem sempre aparecem elementos essenciais para a caracterização do acidente e das suas causas, ou, na falta destes, a imaginação entrou à solta e deu curso à fantasia. Vão, todavia, aparecendo, aqui e além, fora das fontes citadas, referências a acidentes que vem completar, por vezes, as informações incompletas ou mal descritas dos documentos oficiais" (op.cit., p5).
[Fonte:
http://ahfa.emfa.pt/conteudos/acidentes_mortais_Aeronaves_1917_2016.pdf [p57]
Por outro lado, uma segunda fonte consultada, respeitante a "acidentes da aviação militar", referia que a mesma aeronave, pilotada pelo Capitão Pilav João Rebelo Valente, ao colidir com o solo, "após manobra acrobática", em Olossato, provocou a morte do piloto.
Esse facto é comprovado com a informação abaixo e respectiva fonte.
[Fonte:
https://acidentesaviacaomilitar.blogspot.com/search/label/T-6G, com a devida vénia.]
Influenciado pelas descrições supra, procurámos encontrar "D(o) Outro Lado do Combate" algo que nos pudesse ajudar a decifrar este "mistério" ou "conflito histórico". E tanto insistimos nessa busca, que no espólio documental de Amílcar Cabral (1924-1973), existente na CasaComum, da Fundação Mário Soares, encontrámos duas fotos alusivas ao "acidente".
Foto nº 2 - Citação: (1973), "Lay Sek junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43815 (2019-6) - matrícula 1694, com a devida vénia.
Fundação Mário Soares. Pasta: 05222.000.534. Título: Lay Sek junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC [T-6 Harvard]. Assunto: Lay Sek junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC, presumivelmente utilizando um míssil antiaéreo Strela, de origem soviética. Data: c.1973. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.
Foto nº 3 - Citação: (1973), "População junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43566 (2019-6) - matrícula 1694, com a devida vénia.
Fundação Mário Soares. Pasta: 05359.000.006. Título: População junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC. Assunto: População junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC [T-6 Harvard], presumivelmente utilizando um míssil antiaéreo Strela, de origem soviética. Data: c.1973. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Fotografias.
Analisados os conteúdos narrados nas legendas sobre as duas fotos acima, constata-se que as datas citadas não estão correctas. Deve-se ler 1963. Quanto a Lay Sek [foto nº 2], guerrilheiro do PAGC e membro do Comité de Milícia Popular da Frente Norte, este estava, naquela altura, acantonado na base de Maqué (ou em trânsito) pelo que os destroços do "T-6G - FAP 1694" que nos aparecem nas imagens deveriam estar localizados na região de Morés (entre Maqué e Morés), conforme consta no livro da CECA, 6.º Volume, "Aspectos da Actividade Operacional" realizada pelas NT durante o período em análise (Outubro de 1963; pp121-122).
Assim sendo, o autor das legendas sobre as fotos {, um dos técnicos da Fundação Mário Soares], ao presumir que a data destas era de 1973, considerou que a queda da aeronave se ficara a dever à utilização de um míssil Strela, o que não corresponde à verdade, uma vez que este episódio ocorreu poucos dias antes do conflito armado completar o nono mês.
Foto nº 4 - Parelha de T-6 nos "Céus da Guiné". Foto do camarada Gil Moutinho, ex-Fur Pilav, BA12 (Guiné, 1972/1973) – P7088, com a devida vénia.
2.1. COINCIDÊNCIAS… OU, TALVEZ, NEXO DE CAUSALIDADE
- A CARTA DE AMÍLCAR CABRAL ENVIADA A OSWALDO VIEIRA (NO MORÉS)
No desenvolvimento desta investigação foi identificada uma carta enviada por Amílcar Cabral (1924-1973) a Oswaldo Vieira (1938-1974), onde aborda este tema, entre outros.
Porém, o conteúdo dessa carta, conforme se apresenta abaixo, tem dois exemplares: um manuscrito, sem data; o segundo, dactilografado, com a data de 31 de Dezembro de 1963.
Nele(s) pode-se ler:
"Meu caro camarada Oswaldo,
São portadores desta os camaradas emissários que tinham vindo de Bissau. Só voltam agora, porque eu tinha estado ausente, em missão, e havia aqui muito que fazer.
Escrevi-te há dias pelo Bebiano. Espero que já tenhas recebido a carta, e que tudo corra bem. Espero também que tenhas mandado algumas notícias ao Lourenço [Gomes] para nos enviar, pois estamos sem notícias há quase dois meses.
Lamento muito os mortos no bombardeamento de 14 de Outubro [de 1963], em particular a da nossa grande camarada Joncon Seidi, cujo nome e coragem nunca devemos esquecer. Dá saudações minhas a toda a população do Morés e aos camaradas todos. Podem estar certos de que, depois da nossa libertação, na independência da nossa Pátria, Morés há-de ser uma das mais belas cidades da nossa terra.
Queria dar-te algumas palavras de ordem, mas não posso fazer isso, porque não tenho notícias, não sei como vão as coisas nas diferentes áreas sob a tua direcção. Para eu poder dirigir a luta, tenho de saber, em pormenor, o que se passa com os nossos e com o inimigo. Mas não recebo notícias nem relatórios dos meus camaradas de luta, responsáveis de região e de zonas. Espero ir para dentro do país, antes que tenha de ficar calado e desligado da luta, no exterior. Porque isso é coisa que não pode ser, que não tem justificação". (…)
Na parte final da carta, enviada a Osvaldo Vieira, Amílcar Cabral acrescenta:
"Mas preciso de relatórios detalhados do responsável.
Em relação à mensagem trazida pelos emissários de Bissau, eles te dirão o que penso e resolvemos. Acho que, como te mandei dizer pelo camarada Chico, é preciso uma boa coordenação entre vocês e Bissau, para fazer as coisas marchar.
Vão algumas bonecas para Bissau, que tu enviarás conforme for melhor. Vale a pena desenvolver as coisas [Zonas] em 0 [Ilha de Bissau], 1 [Varela e Barro], 2 [Bigene, Farim e Cuntima], 3 [Pirada, Canquelifá, Buruntuma, Piche e Nova Lamego], 6 [Geba, Bafatá, Contuboel, Sare Bacar e Sonaco] e 10 [Teixeira Pinto e Bula], com urgência.
Acho que não é indispensável esperar que chegue tudo o que desejamos mandar.
Sucesso no teu trabalho e para todos".
Fontes:
● Carta manuscrita: Citação: (s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34265 (2019-6).
Fundação Mário Soares. Pasta: 07058.020.026. Assunto: Entre outros assuntos lamenta os mortos no bombardeamento de 14 de Outubro [1963], em particular a de Joncon Seidi, e a falta de notícias e de relatórios. Refere também a necessidade de regressar ao interior do país. Remetente: Amílcar Cabral. Destinatário: Osvaldo [Vieira], Morés. Data: s.d. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.
● Carta dactilografada: Citação: (1963), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36712 (2019-6).
Fundação Mário Soares. Pasta: 04606.045.063. Assunto: Bombardeamento do dia 14 de Outubro [1963]. Remetente: Amílcar Cabral. Destinatário: Osvaldo [Vieira]. Data: Terça, 31 de Dezembro de 1963. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Cartas e textos dactilografadas enviados por Amílcar Cabral; 1960-1967. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.
Triângulo Maqué-Olossato-Morés, onde se supõe ter caído o "T-6G-1694" e onde morreu o Cap Pilav João Rebelo Valente, desconhecendo-se o que aconteceu ao seu corpo.
2.2. RESULTADOS… OU AS CONCLUSÕES POSSÍVEIS
Para encerrar este ponto, e esta narrativa, o que podemos concluir:
(i) – Com data de 14 de Outubro de 1963, 2.ª feira, foram encontrados diferentes registos historiográficos relacionadas com:
a) - A morte do Capitão Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, quando pilotava uma aeronave "T-6G, com matrícula 1694", de acordo com o referido pelo General Brochado de Miranda, no seu trabalho de investigação, titulado: "Acidentes Mortais em Aeronaves – 1917-2016, p57.
b) - Um outro apontamento, retirado do blogue sobre acidentes da aviação militar, acrescenta que a aeronave "FAP-1694" caiu no Olossato.
c) - O bombardeamento de uma base na região de Morés, de que resultaram alguns mortos, como referido por Amílcar Cabral em carta remetida a Osvaldo Vieira, então na base de Morés.
(ii) – Pelas imagens observadas, os destroços da aeronave "T-6G - FAP 1694" foram localizados:
a) - Não na "área do aeródromo", em Bissalanca, como é referido na obra do General Brochado de Miranda, acima citada.
b) - Mas, sim, numa das matas da região do Óio-Morés, no triângulo Maqué-Olossato-Morés [mapa acima], como se depreende/infere das fotos onde aparece o Lay Sek e alguns elementos da população.
(iii) – O que não é possível provar é que a queda da aeronave tenha sido provocada por fogo IN, ainda que nessa data/período as forças terrestres (NT) estivessem em manobras na região do Óio-Morés [Sector C, criado pela remodelação do dispositivo de 02Ago63], sob a supervisão do BCav 490 e do BCaç 512.
(iv) – Uma vez que não encontrámos qualquer referência ao local onde foi sepultado o corpo do Capitão Pilav João Rebelo Valente, considera-se, do ponto de vista académico, que ele não foi recuperado.
Eis, em síntese, o que foi possível apurar neste trabalho.
Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
16jul2019
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Último poste da série > 3de julho de 2019 >
Guiné 61/74 - P19944: (D)o outro lado combate (51): a morte de 'Guerra Mendes' (Jaime Silva) em Bulel Samba, Buba, em 14 de fevereiro de 1965, na Op Gira - II (e última) Parte (Jorge Araújo)