Amadora > Academia Militar > 1963 > Não é em Mafra, é na Amadora, na Academia Militar. ao tempo em que lá andava o nosso querido amigo, camarada ecoeditor(jubilado) Virgínio Briote... Cadetes de saída para fim de semana.
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que acaba de falecer esta semana (*).
Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue=: Virgínio Briote. Estes excertos, gentilmente cedidos pelo autor ao José Martins, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).
Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)
Diário de Guerra
por Cristóvão de Aguiar
(Continuação)
1964
Maio, 1 – Fala-se numa possível revolução no dia de hoje.
Até agora, nada. Mas, apesar de ser boato, as forças da ordem estão em vigilância absoluta nos quartéis, de onde ninguém pode sair. Nem nós, instruendos do C.O.M., temos dispensa.
Maio, 2 – Estes instrutores militares são de uma crueldade mazinha.
Aos sábados e às segundas-feiras, a instrução é sempre mais dura do que nos outros dias, para que o fim-de-semana fique estragado, sobretudo para quem o vai passar para fora de Mafra, e não dorme na noite de domingo para segunda.
Hoje, sábado, por exemplo, o meu pelotão foi para o C.E.M.E.F.E.D., mesmo ao pé do Convento, para fazermos o pórtico. Este consiste em uma estrutura de cimento armado, com mais de três metros de altura, no cimo da qual existe um rectângulo formado por vigas com não mais do que trinta centímetros de largura.
O exercício consistia em subir lá para cima por umas escadinhas, com a espingarda, e depois andarmos com a arma poisada em ambas as mãos para nos equilibrarmos. Por vezes em passo acelerado.
Recusei-me a fazer tal exercício. Eu e alguns mais. Sinto vertigens e não estava para me estatelar de tal altura no chão duro e ficar maltratado para o resto da vida. O alferes não reagiu mal à recusa. Apenas disse que teríamos, no final do curso, nota mais baixa. Que se lixe a nota e o brio militar. Mas, a maior parte do pelotão lá subiu e fez tudo quanto lhe foi ordenado. Só de os ver cá de baixo arrepiava. Ainda para mais com chuva e lama...
Às segundas-feiras, iniciamos a instrução com um cross de muitos quilómetros, espingarda em bandoleira, para anular o descanso (?) do fim-de-semana. Puta de vida esta! E a procissão ainda vai no adro...
Maio, 6 – Mudei de caserna há duas semanas.
Meti uma pretensão escrita ao comandante de companhia, que, entretanto, foi promovido a capitão. O meu pedido foi deferido. O Vítor Branco é agora meu companheiro. As nossas tarimbas ficam rente uma à outra, perto da entrada dos lavatórios e retretes.
Hoje à noite, vão aparecer, lá dentro, panfletos revolucionários das JAPs (Juntas de Acção Patriótica). Há bocado, ao entrar na porta-de-armas, não sei como não deu o oficial de dia pela minha barrigona de grávida de muitos meses. Quando me apanhei cá dentro, até suspirei de alívio. O Nogueira e Silva é muito mais calmo do que eu. O Vítor nem se fala. E o Camargo, apesar de nervoso, também disfarça muito bem.
Maio, 7 – Ainda não tinha tocado a alvorada e já o oficial de dia estava na caserna a passar revista aos cacifos.
Fingi que estava a dormir, mas ele abanou-me e lá lhe fui abrir o meu. E lá foi rosnando, entre dentes:
- Há por aí uns sacanas de uns gajos que querem pôr o quartel em polvorosa; apareceram uns panfletos comunistas em várias instalações sanitárias, mas ainda se vão foder todos que é um regalo.
Fiz-me desentendido e, depois da revista, voltei para o beliche. Não apanhou rastro de panfletos em nenhum dos cacifos da caserna. O Vítor Branco sorriu para mim, à socapa. Guardo o caderninho destes apontamentos debaixo do colchão e nunca me esqueço de o levar para Coimbra. Qualquer dia ainda me lixo.
Coimbra, Maio, 10 – Resolvi deixar o caderninho deste diário bem guardado na minha República, aqui em Coimbra.
Daqui em diante, vou passar a escrever em folhas soltas. Depois, trago-as comigo todos os
A tarde, passei-a no quartel com o Nogueira e Silva, que se encontra castigado. O comandante da unidade, um coronel tirocinado, deu-lhe uma punição de três fins-de-semana sem sair.
Há dias, numa livraria da Vila, estava o Nogueira e Silva a ver livros ao lado de um sujeito à paisana. Às tantas, esse senhor, vira-se para o cadete pitosga e dispara:
– O nosso cadete não me conhece?
(*) Postes anteriores:
Maio, 1 – Fala-se numa possível revolução no dia de hoje.
Até agora, nada. Mas, apesar de ser boato, as forças da ordem estão em vigilância absoluta nos quartéis, de onde ninguém pode sair. Nem nós, instruendos do C.O.M., temos dispensa.
Maio, 2 – Estes instrutores militares são de uma crueldade mazinha.
Aos sábados e às segundas-feiras, a instrução é sempre mais dura do que nos outros dias, para que o fim-de-semana fique estragado, sobretudo para quem o vai passar para fora de Mafra, e não dorme na noite de domingo para segunda.
Hoje, sábado, por exemplo, o meu pelotão foi para o C.E.M.E.F.E.D., mesmo ao pé do Convento, para fazermos o pórtico. Este consiste em uma estrutura de cimento armado, com mais de três metros de altura, no cimo da qual existe um rectângulo formado por vigas com não mais do que trinta centímetros de largura.
O exercício consistia em subir lá para cima por umas escadinhas, com a espingarda, e depois andarmos com a arma poisada em ambas as mãos para nos equilibrarmos. Por vezes em passo acelerado.
Recusei-me a fazer tal exercício. Eu e alguns mais. Sinto vertigens e não estava para me estatelar de tal altura no chão duro e ficar maltratado para o resto da vida. O alferes não reagiu mal à recusa. Apenas disse que teríamos, no final do curso, nota mais baixa. Que se lixe a nota e o brio militar. Mas, a maior parte do pelotão lá subiu e fez tudo quanto lhe foi ordenado. Só de os ver cá de baixo arrepiava. Ainda para mais com chuva e lama...
Às segundas-feiras, iniciamos a instrução com um cross de muitos quilómetros, espingarda em bandoleira, para anular o descanso (?) do fim-de-semana. Puta de vida esta! E a procissão ainda vai no adro...
Maio, 6 – Mudei de caserna há duas semanas.
Meti uma pretensão escrita ao comandante de companhia, que, entretanto, foi promovido a capitão. O meu pedido foi deferido. O Vítor Branco é agora meu companheiro. As nossas tarimbas ficam rente uma à outra, perto da entrada dos lavatórios e retretes.
Hoje à noite, vão aparecer, lá dentro, panfletos revolucionários das JAPs (Juntas de Acção Patriótica). Há bocado, ao entrar na porta-de-armas, não sei como não deu o oficial de dia pela minha barrigona de grávida de muitos meses. Quando me apanhei cá dentro, até suspirei de alívio. O Nogueira e Silva é muito mais calmo do que eu. O Vítor nem se fala. E o Camargo, apesar de nervoso, também disfarça muito bem.
Maio, 7 – Ainda não tinha tocado a alvorada e já o oficial de dia estava na caserna a passar revista aos cacifos.
Fingi que estava a dormir, mas ele abanou-me e lá lhe fui abrir o meu. E lá foi rosnando, entre dentes:
- Há por aí uns sacanas de uns gajos que querem pôr o quartel em polvorosa; apareceram uns panfletos comunistas em várias instalações sanitárias, mas ainda se vão foder todos que é um regalo.
Fiz-me desentendido e, depois da revista, voltei para o beliche. Não apanhou rastro de panfletos em nenhum dos cacifos da caserna. O Vítor Branco sorriu para mim, à socapa. Guardo o caderninho destes apontamentos debaixo do colchão e nunca me esqueço de o levar para Coimbra. Qualquer dia ainda me lixo.
Coimbra, Maio, 10 – Resolvi deixar o caderninho deste diário bem guardado na minha República, aqui em Coimbra.
Daqui em diante, vou passar a escrever em folhas soltas. Depois, trago-as comigo todos os
fins-de-semana, para as juntar ao caderno. O seguro morreu de velho.
Mafra, Maio, 13 – Hoje, numa aula conjunta de filosofia militar, chamemos-lhe assim, com todas as companhias do C.O.M., o major encarregado da prelecção semanal passou parte do tempo a falar sobre subversão nos quartéis.
Arengou sobre os inimigos da Pátria e, como exemplo de subversão, leu um panfleto que tinha aparecido há dias nas instalações sanitárias das três casernas dos cadetes. Pediu-nos a todos vigilância sobre o inimigo que já se encontrava entre nós e incentivou-nos à sua denúncia, que a Pátria em armas assim o exigia de seus filhos legítimos.
Maio, 20 – Mais panfletos, desta vez comentando os comentários do nosso major na última aula de quarta-feira e incitando os cadetes à subversão.
Estava mesmo bem escrito. Na aula da semana que vem, com o major e com todas as companhias do C.O.M. juntas, não posso ficar ao pé dos meus amigos. É uma questão de precaução.
Junho, 10 – Apesar do feriado, não fui a Coimbra.
Passei o dia por aí. De manhã fui ao café Frederico e, sem querer, vi a parada militar na televisão. Até me arrepiei. Sobretudo com as condecorações póstumas.
Mafra, Maio, 13 – Hoje, numa aula conjunta de filosofia militar, chamemos-lhe assim, com todas as companhias do C.O.M., o major encarregado da prelecção semanal passou parte do tempo a falar sobre subversão nos quartéis.
Arengou sobre os inimigos da Pátria e, como exemplo de subversão, leu um panfleto que tinha aparecido há dias nas instalações sanitárias das três casernas dos cadetes. Pediu-nos a todos vigilância sobre o inimigo que já se encontrava entre nós e incentivou-nos à sua denúncia, que a Pátria em armas assim o exigia de seus filhos legítimos.
Maio, 20 – Mais panfletos, desta vez comentando os comentários do nosso major na última aula de quarta-feira e incitando os cadetes à subversão.
Estava mesmo bem escrito. Na aula da semana que vem, com o major e com todas as companhias do C.O.M. juntas, não posso ficar ao pé dos meus amigos. É uma questão de precaução.
Junho, 10 – Apesar do feriado, não fui a Coimbra.
Passei o dia por aí. De manhã fui ao café Frederico e, sem querer, vi a parada militar na televisão. Até me arrepiei. Sobretudo com as condecorações póstumas.
A tarde, passei-a no quartel com o Nogueira e Silva, que se encontra castigado. O comandante da unidade, um coronel tirocinado, deu-lhe uma punição de três fins-de-semana sem sair.
Há dias, numa livraria da Vila, estava o Nogueira e Silva a ver livros ao lado de um sujeito à paisana. Às tantas, esse senhor, vira-se para o cadete pitosga e dispara:
– O nosso cadete não me conhece?
Resposta pronta do Nogueira e Silva, estendendo-lhe a mão:
– Não, não tenho esse prazer, mas apresento-me, sou fulano.
O homem não gostou e disse-lhe:
– Compareça no meu gabinete amanhã de manhã, sem falta; não sabe que, pelo Regulamento Militar, é obrigado a conhecer o seu comandante?
Junho, 19 – Iniciámos a semana de campo.
Viemos de Mafra até à Praia de Santa Cruz, a pé, com a mochila às costas e a espingarda em bandoleira. Estamos acampados nuns pinhais não muito longe do areal. Cheguei com os pés esfolados. Felizmente que hoje à noite não estou de guarda. Posso ir dormir para a tenda, que compartilho com o Júlio Freches. Dormir vestido, claro. Só se descalçam as botas.
Junho, 24 – Ontem à noite estivemos brincando à guerra.
Estive de sentinela ao acampamento. Havia-as de vinte em vinte metros, formando um cordão à volta do aquartelamento de campanha. Escuro que nem breu. Não se reconhecia um vulto.
A dado momento, sinto aproximar-se uma patrulha. Dou voz de alto e de imediato debitei a senha para que o comandante da patrulha me respondesse com a contra-senha. Só assim lhe poderia dar autorização para prosseguir.
Tinha-se esquecido dela e eu não quis deixá-lo passar. Mas o capitão vinha também integrado na patrulha, apenas para ver como se portavam os homens da sua companhia. Soube-o, não porque o tivesse visto, reconheci-o tão-só pela voz. Disse-me ele então:
– Deixe lá passar, nosso cadete e apresente-se amanhã de manhã junto da tenda do comando.
Logo que terminou o exercício e clareou o dia, fui-me apresentar ao capitão. Só me queria conhecer. Fiquei fulo comigo mesmo por ter sido tão militarista e tive algum nojo de mim... Afinal, a lavagem a que eu e os meus camaradas havíamos sido sujeitos durante cinco meses estava dando os seus frutos.
Junho, 26 – Terminou a semana de campo.
Regressámos em duas colunas, uma de cada lado das bermas da estrada, mochila às costas e espingarda em bandoleira, caminhamos em direcção ao convento. Vem toda a gente derreada, os pés em ferida, o corpo empastado de suor velho.
À entrada da Vila de Mafra vejo o casarão pesado e balofo e até se me exulta o coração como se regressasse a casa após uma longa ausência. Antes de chegarmos à porta-de-armas, ouve-se a Banda do Regimento. Toca para nós marchas militares.
E não é que os nossos pés ganham leveza, as feridas se calam, o peito se ergue, os braços pegam de fender o ar com altivez e dos olhos rebentam lágrimas de um prazer sensual?
Ao passarmos em continência ao lado da Banda Regimental já não somos os mesmos maltrapilhos que regressam alquebrados de um teatro simulado de guerra.
Creio que foram os Espartanos que ganharam uma batalha, com um general coxo e gago, que os Atenienses lhes haviam mandado por escárnio. Enquanto lutavam, o general cantava-lhes, com a afinação dos gagos, cantos bélicos que enchiam os guerreiros de ânimo. Foi o meu velho professor de História do terceiro ano, o Doutor Ruy Galvão de Carvalho, quem nos contou este episódio.
Junho, 28 – Juramento de Bandeira em frente do Convento de Mafra.
Não só não junto a minha voz ao coro, como também faço figas... Juro o raio que os parta! Fim do primeiro ciclo de instrução. A especialidade são mais dois meses. Ao todo sete. É demais. É este o primeiro curso que tem tamanha duração.
O Estado Maior justificou o prolongamento por se tratar de oficiais que vão ter a responsabilidade de comandar homens em teatro de guerra. E cinco meses de instrução, incluindo recruta e especialidade, como vinha sendo praticado até agora, era pouco tempo. Vou continuar em Mafra, que a minha especialidade é a de atirador de infantaria. Nem os testes psico-técnicos, aos quais respondi com sinceridade, me valeram.
Muitos camaradas vão para outras unidades receber a instrução, consoante a especialidade que lhes calhou. Os que entraram para a Força Aérea foram os mais sortudos. No sorteio que há dias se fez, tirei o número quarenta e sete. Como eram sessenta os cadetes pedidos ao Exército pela Força Aérea, deviam ser para lá transferidos os que haviam tirado os primeiros sessenta algarismos, isto segundo o critério de sorteios anteriores.
Ainda alimentei grandes esperanças e esfreguei as mãos de contentamento durante algum tempo. Mas, dias depois, viu-se perfeitamente o critério seguido. Primeiro, as cunhas. E, para não dar muito nas vistas, os dois ou três números mais próximos delas.
Por exemplo, entraram para a aviação o 70, 71, 72, depois o 19, 20, 21, depois o 120, 121, 122, e assim por diante, sem qualquer ordem ou aparente critério. Ninguém deu pio, mas toda a gente percebeu. O Camargo e o Vítor Branco tiveram sorte e lá vão para a Ota dentro de dias. O nosso grupinho desmanchou-se, cada um para seu lado, ligações cortadas. Com a queda há semanas de Nikita Krutchev baralharam-se muitos espíritos.
Junho, 19 – Iniciámos a semana de campo.
Viemos de Mafra até à Praia de Santa Cruz, a pé, com a mochila às costas e a espingarda em bandoleira. Estamos acampados nuns pinhais não muito longe do areal. Cheguei com os pés esfolados. Felizmente que hoje à noite não estou de guarda. Posso ir dormir para a tenda, que compartilho com o Júlio Freches. Dormir vestido, claro. Só se descalçam as botas.
Junho, 24 – Ontem à noite estivemos brincando à guerra.
Estive de sentinela ao acampamento. Havia-as de vinte em vinte metros, formando um cordão à volta do aquartelamento de campanha. Escuro que nem breu. Não se reconhecia um vulto.
A dado momento, sinto aproximar-se uma patrulha. Dou voz de alto e de imediato debitei a senha para que o comandante da patrulha me respondesse com a contra-senha. Só assim lhe poderia dar autorização para prosseguir.
Tinha-se esquecido dela e eu não quis deixá-lo passar. Mas o capitão vinha também integrado na patrulha, apenas para ver como se portavam os homens da sua companhia. Soube-o, não porque o tivesse visto, reconheci-o tão-só pela voz. Disse-me ele então:
– Deixe lá passar, nosso cadete e apresente-se amanhã de manhã junto da tenda do comando.
Logo que terminou o exercício e clareou o dia, fui-me apresentar ao capitão. Só me queria conhecer. Fiquei fulo comigo mesmo por ter sido tão militarista e tive algum nojo de mim... Afinal, a lavagem a que eu e os meus camaradas havíamos sido sujeitos durante cinco meses estava dando os seus frutos.
Junho, 26 – Terminou a semana de campo.
Regressámos em duas colunas, uma de cada lado das bermas da estrada, mochila às costas e espingarda em bandoleira, caminhamos em direcção ao convento. Vem toda a gente derreada, os pés em ferida, o corpo empastado de suor velho.
À entrada da Vila de Mafra vejo o casarão pesado e balofo e até se me exulta o coração como se regressasse a casa após uma longa ausência. Antes de chegarmos à porta-de-armas, ouve-se a Banda do Regimento. Toca para nós marchas militares.
E não é que os nossos pés ganham leveza, as feridas se calam, o peito se ergue, os braços pegam de fender o ar com altivez e dos olhos rebentam lágrimas de um prazer sensual?
Ao passarmos em continência ao lado da Banda Regimental já não somos os mesmos maltrapilhos que regressam alquebrados de um teatro simulado de guerra.
Creio que foram os Espartanos que ganharam uma batalha, com um general coxo e gago, que os Atenienses lhes haviam mandado por escárnio. Enquanto lutavam, o general cantava-lhes, com a afinação dos gagos, cantos bélicos que enchiam os guerreiros de ânimo. Foi o meu velho professor de História do terceiro ano, o Doutor Ruy Galvão de Carvalho, quem nos contou este episódio.
Junho, 28 – Juramento de Bandeira em frente do Convento de Mafra.
Não só não junto a minha voz ao coro, como também faço figas... Juro o raio que os parta! Fim do primeiro ciclo de instrução. A especialidade são mais dois meses. Ao todo sete. É demais. É este o primeiro curso que tem tamanha duração.
O Estado Maior justificou o prolongamento por se tratar de oficiais que vão ter a responsabilidade de comandar homens em teatro de guerra. E cinco meses de instrução, incluindo recruta e especialidade, como vinha sendo praticado até agora, era pouco tempo. Vou continuar em Mafra, que a minha especialidade é a de atirador de infantaria. Nem os testes psico-técnicos, aos quais respondi com sinceridade, me valeram.
Muitos camaradas vão para outras unidades receber a instrução, consoante a especialidade que lhes calhou. Os que entraram para a Força Aérea foram os mais sortudos. No sorteio que há dias se fez, tirei o número quarenta e sete. Como eram sessenta os cadetes pedidos ao Exército pela Força Aérea, deviam ser para lá transferidos os que haviam tirado os primeiros sessenta algarismos, isto segundo o critério de sorteios anteriores.
Ainda alimentei grandes esperanças e esfreguei as mãos de contentamento durante algum tempo. Mas, dias depois, viu-se perfeitamente o critério seguido. Primeiro, as cunhas. E, para não dar muito nas vistas, os dois ou três números mais próximos delas.
Por exemplo, entraram para a aviação o 70, 71, 72, depois o 19, 20, 21, depois o 120, 121, 122, e assim por diante, sem qualquer ordem ou aparente critério. Ninguém deu pio, mas toda a gente percebeu. O Camargo e o Vítor Branco tiveram sorte e lá vão para a Ota dentro de dias. O nosso grupinho desmanchou-se, cada um para seu lado, ligações cortadas. Com a queda há semanas de Nikita Krutchev baralharam-se muitos espíritos.
(Continua)
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Nota do editor:
(*) Postes anteriores:
8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22611: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte II: Mafra, fevereiro-março de 1964
8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22609: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte I: Mafra, janeiro de 1964
8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22609: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte I: Mafra, janeiro de 1964