sábado, 9 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22612: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte III: Mafra, maio-junho de 1964


Amadora > Academia Militar > 1963 > Não é em Mafra, é na Amadora, na Academia Militar. ao tempo em que lá andava o nosso querido amigo, camarada ecoeditor(jubilado) Virgínio Briote... Cadetes de saída para fim de semana.

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que acaba de falecer esta semana (*). 

Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue=: Virgínio Briote. Estes excertos, gentilmente cedidos pelo autor ao José Martins,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).





Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

1964

Maio, 1 – Fala-se numa possível revolução no dia de hoje.

Até agora, nada. Mas, apesar de ser boato, as forças da ordem estão em vigilân­cia abso­luta nos quartéis, de onde ninguém pode sair. Nem nós, instruendos do C.O.M., te­mos dis­pensa.

Maio, 2 – Estes instrutores militares são de uma crueldade mazi­nha.


Aos sábados e às segundas-feiras, a instrução é sempre mais dura do que nos ou­tros dias, para que o fim-de-semana fique estragado, sobretudo para quem o vai passar para fora de Mafra, e não dorme na noite de domingo para segunda.

Hoje, sábado, por exemplo, o meu pelotão foi para o C.E.M.E.F.E.D., mesmo ao pé do Convento, para fazermos o pórtico. Este consiste em uma estrutura de cimento armado, com mais de três metros de altura, no cimo da qual existe um rectângulo formado por vigas com não mais do que trinta centímetros de largura.

O exercício consistia em subir lá para cima por umas escadinhas, com a espingarda, e de­pois andarmos com a arma poisada em ambas as mãos para nos equilibrarmos. Por vezes em passo acelerado.

Recusei-me a fazer tal exercício. Eu e alguns mais. Sinto vertigens e não estava para me estatelar de tal altura no chão duro e ficar maltratado para o resto da vida. O alferes não reagiu mal à recusa. Apenas disse que teríamos, no final do curso, nota mais baixa. Que se lixe a nota e o brio militar. Mas, a maior parte do pelotão lá subiu e fez tudo quanto lhe foi ordenado. Só de os ver cá de baixo arrepiava. Ainda para mais com chuva e lama...

Às segundas-feiras, iniciamos a instrução com um cross de muitos quilómetros, espingarda em bandoleira, para anular o descanso (?) do fim-de-semana. Puta de vida esta! E a procissão ainda vai no adro...

Maio, 6 – Mudei de caserna há duas semanas.

Meti uma pre­tensão es­crita ao comandante de companhia, que, entretanto, foi promovido a capi­tão. O meu pedido foi deferido. O Vítor Branco é agora meu companheiro. As nos­sas tarimbas fi­cam rente uma à outra, perto da entrada dos lavatórios e retretes.

Hoje à noite, vão apare­cer, lá dentro, panfletos revolucionários das JAPs (Juntas de Acção Patriótica). Há bo­cado, ao entrar na porta-de-armas, não sei como não deu o oficial de dia pela minha bar­rigona de grá­vida de mui­tos me­ses. Quando me apa­nhei cá dentro, até suspi­rei de alívio. O No­gueira e Silva é muito mais calmo do que eu. O Vítor nem se fala. E o Camargo, ape­sar de nervoso, também disfarça muito bem.

Maio, 7 – Ainda não tinha tocado a alvorada e já o oficial de dia estava na caserna a passar revista aos cacifos.

Fingi que estava a dormir, mas ele aba­nou-me e lá lhe fui abrir o meu. E lá foi rosnando, entre dentes:
- Há por aí uns sa­ca­nas de uns gajos que querem pôr o quartel em polvorosa; apareceram uns panfle­tos comunistas em várias instalações sanitárias, mas ainda se vão foder todos que é um re­galo.

Fiz-me desentendido e, depois da revista, voltei para o beli­che. Não apa­nhou rastro de panfletos em ne­nhum dos cacifos da caserna. O Vítor Branco sorriu para mim, à socapa. Guardo o caderninho destes apontamentos de­baixo do colchão e nunca me esqueço de o levar para Coimbra. Qualquer dia ainda me lixo.

Coimbra, Maio, 10 – Resolvi deixar o caderninho deste diário bem guar­dado na minha República, aqui em Coimbra.

Daqui em diante, vou passar a es­crever em folhas soltas. Depois, trago-as comigo todos os 
fins-de-se­mana, para as juntar ao caderno. O seguro morreu de velho.

Mafra, Maio, 13 – Hoje, numa aula conjunta de filosofia militar, cha­me­mos-lhe assim, com todas as companhias do C.O.M., o major encarre­gado da pre­lec­ção semanal passou parte do tempo a falar sobre subversão nos quartéis.

Arengou so­bre os inimigos da Pátria e, como exemplo de subversão, leu um pan­fleto que tinha aparecido há dias nas instalações sanitárias das três casernas dos ca­detes. Pediu-nos a todos vigilância sobre o inimigo que já se en­contrava entre nós e in­centi­vou-nos à sua denúncia, que a Pátria em armas as­sim o exigia de seus filhos legítimos.

Maio, 20 – Mais panfletos, desta vez comentando os comen­tá­rios do nosso major na última aula de quarta-feira e inci­tando os cadetes à subver­são.

Es­tava mesmo bem escrito. Na aula da semana que vem, com o major e com to­das as compa­nhias do C.O.M. juntas, não posso ficar ao pé dos meus ami­gos. É uma questão de precau­ção.

Junho, 10 – Apesar do feriado, não fui a Coim­bra.

Passei o dia por aí. De manhã fui ao café Frederico e, sem querer, vi a parada militar na tele­vi­são. Até me arrepiei. Sobretudo com as conde­corações póstumas.

A tarde, passei-a no quartel com o Nogueira e Silva, que se encontra castigado. O co­mandante da uni­dade, um coronel ti­rocinado, deu-lhe uma punição de três fins-de-se­mana sem sair.

Há dias, numa livraria da Vila, estava o Nogueira e Silva a ver livros ao lado de um sujeito à paisana. Às tantas, esse senhor, vira-se para o ca­dete pitosga e dis­para:
– O nosso cadete não me conhece? 

Resposta pronta do Nogueira e Silva, esten­dendo-lhe a mão:
– Não, não tenho esse prazer, mas apre­sento-me, sou fu­lano. 

O ho­mem não gostou e disse-lhe: 
– Com­pa­reça no meu gabinete ama­nhã de manhã, sem falta; não sabe que, pelo Regu­lamento Militar, é obrigado a co­nhe­cer o seu co­man­dante?

Junho, 19 – Iniciámos a semana de campo.

Viemos de Ma­fra até à Praia de Santa Cruz, a pé, com a mochila às costas e a espingarda em ban­do­leira. Es­tamos acampados nuns pinhais não muito longe do areal. Cheguei com os pés es­fo­la­dos. Felizmente que hoje à noite não estou de guarda. Posso ir dormir para a tenda, que compartilho com o Júlio Freches. Dormir ves­tido, claro. Só se descalçam as botas.

Junho, 24 – Ontem à noite estivemos brincando à guerra.

Es­tive de sentinela ao acampamento. Havia-as de vinte em vinte metros, formando um cor­dão à volta do aquartelamento de campanha. Escuro que nem breu. Não se re­conhe­cia um vulto.
A dado mo­mento, sinto aproximar-se uma patrulha. Dou voz de alto e de ime­diato debitei a senha para que o comandante da pa­trulha me respon­desse com a con­tra-senha. Só assim lhe poderia dar autorização para prosse­guir.

Tinha-se es­quecido dela e eu não quis deixá-lo passar. Mas o capitão vinha também integrado na patrulha, ape­nas para ver como se portavam os homens da sua com­pa­nhia. Soube-o, não porque o ti­vesse visto, reconheci-o tão-só pela voz. Disse-me ele então:
– Deixe lá passar, nosso ca­dete e apre­sente-se amanhã de manhã junto da tenda do co­mando. 

Logo que termi­nou o exer­cício e clareou o dia, fui-me apresentar ao capitão. Só me queria co­nhecer. Fi­quei fulo comigo mesmo por ter sido tão milita­rista e tive algum nojo de mim... Afi­nal, a la­va­gem a que eu e os meus cama­radas havía­mos sido sujeitos durante cinco meses estava dando os seus frutos.

Junho, 26 – Terminou a semana de campo.

Regressámos em duas colunas, uma de cada lado das bermas da estra­da, mochila às cos­tas e es­pin­garda em bandoleira, caminhamos em direcção ao convento. Vem toda a gente der­reada, os pés em ferida, o corpo empastado de suor velho.

À entrada da Vila de Mafra vejo o casa­rão pesado e ba­lofo e até se me exulta o coração como se regres­sasse a casa após uma longa au­sência. Antes de chegarmos à porta-de-armas, ouve-se a Banda do Regi­mento. To­ca para nós marchas militares.

E não é que os nossos pés ganham le­veza, as feri­das se ca­la­m, o peito se ergue, os bra­ços pegam de fen­der o ar com altivez e dos olhos re­bentam lá­grimas de um prazer sensual?
Ao pas­sarmos em continência ao lado da Banda Regi­men­tal já não somos os mesmos maltrapi­lhos que regressam alquebra­dos de um teatro simulado de guerra.

Creio que fo­ram os Espartanos que ganharam uma batalha, com um general coxo e gago, que os Atenienses lhes haviam mandado por escárnio. En­quanto lutavam, o gene­ral can­tava-lhes, com a afinação dos gagos, cantos bélicos que enchiam os guerrei­ros de ânimo. Foi o meu velho pro­fessor de História do terceiro ano, o Doutor Ruy Galvão de Carvalho, quem nos con­tou este episódio.

Junho, 28 – Juramento de Bandeira em frente do Convento de Mafra.

Não só não junto a minha voz ao coro, como também faço figas... Juro o raio que os parta! Fim do primeiro ciclo de instrução. A especialida­de são mais dois me­ses. Ao todo sete. É demais. É este o primeiro curso que tem tamanha duração.

O Estado Maior justificou o prolonga­mento por se tratar de oficiais que vão ter a res­pon­sabili­dade de co­mandar homens em teatro de guerra. E cinco meses de ins­tru­ção, in­cluindo recruta e especialidade, como vinha sendo praticado até agora, era pouco tempo. Vou continuar em Mafra, que a minha es­pecialidade é a de atirador de infan­taria. Nem os testes psico-técnicos, aos quais respondi com sinceridade, me valeram.

Muitos cama­radas vão para outras uni­dades receber a instrução, con­soante a espe­cialidade que lhes ca­lhou. Os que entraram para a Força Aé­rea foram os mais sortu­dos. No sorteio que há dias se fez, tirei o número quarenta e sete. Como eram sessenta os cadetes pedi­dos ao Exército pela Força Aérea, deviam ser para lá trans­feridos os que haviam ti­rado os primeiros sessenta algarismos, isto segundo o crité­rio de sorteios ante­ri­ores.

Ainda ali­mentei grandes esperanças e esfreguei as mãos de contenta­mento durante algum tempo. Mas, dias depois, viu-se perfeitamente o crité­rio seguido. Primeiro, as cunhas. E, para não dar muito nas vistas, os dois ou três números mais próximos delas.

Por exemplo, entraram para a aviação o 70, 71, 72, depois o 19, 20, 21, depois o 120, 121, 122, e assim por diante, sem qualquer ordem ou aparente critério. Ninguém deu pio, mas toda a gente perce­beu. O Ca­margo e o Vítor Branco tiveram sorte e lá vão para a Ota dentro de dias. O nosso grupinho desmanchou-se, cada um para seu lado, ligações corta­das. Com a queda há semanas de Nikita Krutchev baral­ha­ram-se muitos espíri­tos.

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Postes anteriores:

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22611: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte II: Mafra, fevereiro-março de 1964


 Lisboa > Benfica > Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandella > 27 de novembro de 2008 > Cristóvão de Aguiar,à esqureda, na apresentação da nova edição do seu livro "Braço Tatuado".

Foto (e legenda): © José Martins (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da (re)publicação  do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que acaba de falecer. 

Publicámos, no devido tempo, em 2009, há cerca de 12 anos, este "Diário de Guerra", que nos chegou às mãos, por intermédio do José Martins (ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70).

A grande maioria dos nossos leitores não teve oportunidade de conhecer este notável texto, de que se publicaram 11 postes (, muito espaçados, entre janeiro e setembro de 2009).

O "Diário de Guerra", do Cristóvão de Aguiar,  abarca um período de tempo de seis anos, desde a entrada do autor em Mafra, em 26 de janeiro de 1964, para fazer a recruta e dar início ao Curso de Oficiais Milicianos até ao fim da comisão na Guiné (onde foi alf mil, CCAÇ 800, Contuboel e Dunane, 1965/67) e o "difícil regresso à vida civil", entre 1967 e 1970.

Estes textos fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).

Na altura a revisão e fixação do texto foi da responsabilidade do nosso coeditor (hoje, jubilado) Virgínio Briote. Mais uma vez agradecemos ao José Martins a sua sensibilidade e a sua generosidade ao servir de intermediário entre o nosso blogue e o escritor, e ao aceitar organizar o texto para publicação no blogue, com a devida autorização do autor.

Esta é também uma forma de homenagearmos a memória do nosso camarada açoriano Cristóvão de Aguiar.



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


1964

Fevereiro, 3 – Afinal, houve fim-de-semana.

Mas, aqui, nunca nada é dado como certo. Deve fazer parte da filosofia da instrução esta constante expectativa em que nos fazem andar as altas patentes. Assim como o boato. Só no sá­bado de manhã, depois da ginástica de aplicação militar, mais dura do que nos dias prece­dentes, é que nos deram carta de alforria.

Fui a Coim­bra passar parte da tarde e a noite de sábado e o domingo todo o dia, até às dez da noite, hora da camionete. Vi-a a uma janela do lar. Cumprimentei-a, mas não vi jei­tos de ela querer al­guma coisa co­migo. Agora estou arrependido de me ter derramado em duas fo­lhas de carta. Paciên­cia.

Tenho alguns mús­culos do corpo doloridos, mas já me vou sentindo besta. Não preguei olho durante a noite de domin­go noite de domin­go - a camionete che­gou a Mafra, três horas e pouco antes de princi­piar a ins­trução e ao contrário da maioria dos cama­radas não consigo dormir em transportes. Viajo por dentro de mim e chego sempre à Ilha, onde Ela ficou. Apesar de estar tresnoitado, aguentei bem a dureza militar do dia.

Fevereiro, 4 – Quando um homem aflito se abre a medo com al­guém e logo depois se acha falando a mesma linguagem, ilumina-se-lhe o íntimo do prazer que os primeiros cristãos deviam sentir quando um desenhava um peixe no chão e o outro lhe respondia com o mesmo gesto...

O Júlio Freches do meu pelotão, que tem a sua tarimba ao lado da minha, tornou-se meu amigo. Ele iluminou-se e eu acendi-me. O Júlio engraxava as botas ao pé de mim, o tempo e a tinta escorrendo pelos dedos. A caserna era, ao meio-dia e ao fim da tarde, após a instrução, uma enorme caixa e banco de engraxador profissional. As nossas conversas eram ciciadas como na penumbra de um confessionário. E quem poderá revelar o segredo da confis­são?

Fevereiro, 24 – Principiei o dia e a semana com um cross de cinco quiló­me­tros.


Já vou tendo resistência de atleta. Nenhum do pe­lotão arreou, o que sa­tisfez o alferes, que ia à frente marcando o ritmo. Depois, fomos para a ta­pada, para rece­ber­mos in­s­trução sobre gra­na­das e explosivos. Um alferes da 1ª com­panhia ficou sem um dedo. Rebentou-lhe um detonador nas mãos.

Março, 5 – O meu fato-macaco cheira mal que se farta.

Não admi­ra. Estive quase toda a manhã a rastejar e a dar cam­balhotas na lama. Só não con­segui saltar a vala. Caí dentro dela e fiquei com as botas e as meias en­charca­das. Mas se­ca­ram. As meias e as botas e o fato zuarte. No próprio corpo. Faz parte do endure­ci­mento do corpo e da alma.

Março, 19 – Mudámos de comandante de pelotão.

O tercei­rense foi de novo mobilizado, desta vez para a Guiné. Houve jantar de despedida na Eri­ceira. Foi o pelotão em peso. Era um alferes maluco, mas no trato não era de­su­mano.

Uma segunda-feira, cheguei mais tarde a Mafra, por se ter avariado a ca­mionete. Pelo regu­lamento, tinha obrigação de ser castigado. Felizmente que me mandou à ca­serna vestir a farda de trabalho e disse-me que, por ele, não vira nada nem de nada sabia. Fe­chou os olhos. Alguns camaradas de outros pelotões não tive­ram a mesma sorte. Apa­nharam um fim-de-semana de castigo. Chama-se a isto solidarie­da­de entre ilhéus!

O novo coman­dante é um aspirante da Academia, que acabou de fazer o seu tirocínio aqui em Mafra. É um puto reguila, que nos vai fazer a vida ainda mais ne­gra. Traz todo o tesão de mijo da Academia.

Março, 20 – Dos novos aspirantes tirocinados que aqui fi­caram nesta unidade, há dois que foram meus colegas no Liceu.

O Luciano e o Rocha, de Ponta Delgada e de Água de Pau, respecti­vamente. A primeira vez que os vi, fiz-lhes a continência, não fosse o diabo tecê-las. Havia muitos mili­tares por perto. Ri­ram-se. Conversaram comigo sem qualquer problema, mas disseram-me que, sem­pre que es­tivessem outros graduados à vista, devia bater-lhes a pala. Por causa das coisas.

Hoje de manhã, no render da guarda e do oficial de dia, a Banda do Regi­mento tocava a mar­cha Angola é Nossa. Toda a gente estava em sentido. Eu, que estava ao pé de um dos muros da parada, fui-me encostando vagarosamente a ele. Ainda não tinha aque­cido nem as costas nem o rabo ao en­costo, e o Rocha de longe fazendo-me um gesto muito delicado e sub-reptício para que me pusesse direito.

Mais tarde, quando teve oportuni­dade de falar comigo, disse-me que tinha sido o coman­dante da companhia que lhe ti­nha chamado a atenção a meu respeito. E como na tropa as ordens são dadas em ca­deia, ele teve de a transmitir. Pena não ter chamado um sargento. Tenho de to­mar cui­dado, que os estudantes de Coimbra são, aqui, considerados sub­versivos...

Março, 25 – Corre por aí que temos bufos por todo o lado.

Até no próprio pelotão os há. Disseram-me que ontem foi visto um cadete sen­tado a uma mesa, sozinho, num café da Vila, com um microfone disfarçado no quépi, es­trategi­ca­mente abandonado sobre o tampo. Hoje fiz versos...

Março, 27 – Há dois meses com uma farda e uma espin­garda, que, de tanto andar comigo, já me parece um membro do corpo.

Quando a não te­nho, e raro é, fico com a impressão de que me falta qualquer coisa. É a besta, salvo seja, crescendo cada vez mais dentro de mim. Durmo como uma pe­dra e até engor­dei.

Hoje, à tarde, na Vila, com a dispensa de recolher e da ter­ceira refeição no bolso, eu e o Camargo fomos jantar num restaurante barato, para variar. A dada altura, disse-me que queria falar comigo. Mas ali, não, que havia muitos ouvidos. Fomos então passear para um descam­pado.

E disse-me longamente da sua justiça. No fim da par­lenga, per­guntou-me:

– Queres per­tencer à organi­za­ção? – res­pondi-lhe que sim senhor, que não me im­por­tava nada. – De­pois serás con­tac­tado por alguém; temos muito traba­lho a fazer no quartel.

(Continua)
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22610: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Paulo Guilherme já regressou a Bambadinca, recomeçaram as andanças da guerra, há para ali uma atmosfera frenética, o batalhão de caçadores aguarda a todo o instante que cheguem os substitutos e até parece que a guerra deu tréguas com a exceção de uma singularidade que é a pressão em permanência do PAIGC sobre as tabancas em autodefesa. Ir-se-á abandonar aquela que estava mais ao extremo, em direção ao Xitole, de nome Moricanhe, a fatura virá depois, a pressão sobre a região do Cossé. E há o patrulhamento ofensivo de nome Beringela Doce, apanhou-se a coluna de reabastecimento ou de reaprovisionamento, o Paulo bem falou com o comandante que se estava a pagar a outra fatura, o abandono da Ponta do Inglês, ele encolheu os ombros, era problema para quem o vinha substituir. Deste modo se vivia a guerra. E de novo o serviço de justiça vai convocar Paulo para Bissau, ele vai testemunhar a santa inocência de Quebá Sissé que matou no acidente mais estúpido Uam Sambu, ao alvorecer de 1 de janeiro de 1970.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Páginas de comentários de Annette Cantinaux, constantes de um dossiê com a comissão de Paulo Guilherme, papéis que ela trouxe para organizar em Lisboa, havia inúmeros pedidos de explicação, ela pôs uma folha exterior a apensar um rol de imagens, aerogramas, até ordens de serviço e textos avulsos daquele alferes miliciano que voltara recentemente de Bissau; nessa folha exterior escreveu laconicamente: “Só de mim para mim”.

Nunca tive umas férias de verão como estas, com tanta ternura, com tanto desvelo deste meu adorado companheiro, recebeu com a maior afabilidade Jules, deu-nos a conhecer tanta beleza, sei que um dia destes tenho que regressar, um intérprete não pode falhar ao chamamento, é o seu modo de vida, tenho que cuidar de mim e dois filhos e continuar a pensar seriamente o que é que eu e o Paulo desejamos do futuro.

É um país surpreendente, a uma hora de Lisboa, na região Oeste, entramos num mundo frutícola e vinícola, há lindos castelos, visitei a Lagoa de Óbidos cheia de reentrâncias, o Paulo insistiu em mostrar a Jules onde passava as férias na sua juventude, um local chamado Foz do Arelho, um mar encapelado, uma vista panorâmica à esquerda em direção a Peniche, era um dia sem bruma, avistavam-se uns pontos ao fundo, o Paulo informou que eram as ilhas Berlengas, tenho a promessa de que lá iremos quando eu voltar a Portugal. Há praias lindíssimas, tomei uma fotografia de um pôr-do-sol na Praia da Areia Branca, tínhamos ido à Lourinhã visitar uma igreja que o Paulo disse ser do período manuelino e falou-nos daquela arquitetura que dias depois, já o Jules regressara a Bruxelas, encontrei no Convento de Tomar, em todo o seu esplendor, parecido só no Mosteiro dos Jerónimos, que me deixou emudecida, quando lá entrei pela primeira vez pensei que era o casco de um navio.

Mesmo em férias, o Paulo tinha que enviar artigos para publicações, organizou espaço no seu escritório para estarmos os dois, abri este dossiê, bem volumoso por sinal, estamos em maio de 1970, ainda faltam alguns meses para a comissão de Paulo terminar, um dia em agosto, no porto do Xime, entrará numa lancha da Marinha, regressará a Bissau, a guerra acabou. Uma vez dei comigo a pensar que sou um pouco como Xerazade, sei que é um comentário amargo, Xerazade tinha a cabeça a prémio se deixasse de contar histórias, a nossa relação não será afetada, estou absolutamente convicta, quando acabar a história da comissão. Mas afeiçoei-me a esta história, àquele período dos preparativos, ao modo como ele se integrou nas comunidades do Cuor, como ultrapassou aquele vexame de dois dias de prisão simples, acusado de não estar a dar o máximo para assegurar a segurança do quartel, ele que escrevia para todos, que sonhava todos os dias com o conforto, a segurança e o bem-estar dos dois destacamentos de que era responsável. Demorei a entender como ele se sentiu um tanto estrangeiro por ir viver para Bambadinca, alteraram-se as relações com as populações, fracionaram-lhe o pelotão, foi incumbido, permanentemente, de emboscadas, patrulhamentos, colunas de abastecimento, de trazer e levar feridos, sacos de arroz, munições, convocado para operações, grande parte delas sem pés nem cabeça. De saúde abalada, foi para Bissau, regressou tonificado a Bambadinca, rememora ainda hoje aquela experiência que viveu no hospital militar, não só o que se passou na Neuropsiquiatria, mas por ter presenciado um pesadelo que ignorava, os amputados medem-se uns aos outros e consolam-se quando têm mais membros que os comparados.

Tenho feito perguntas ao Paulo sobre o ambiente que ele encontrou em Bambadinca, o batalhão está pronto a partir, aguarda o substituto, o próprio pelotão do Paulo já não é o mesmo, saiu muita gente, vieram também substitutos. É um período em que aparentemente o PAIGC está mais calmo ou diversificou a estratégia, menos agressivo no Xime, no Xitole e Mansambo, mas flagelando cruelmente as tabancas em autodefesa, é um período de flagelações constantes na linha que vai de Amedalai a Moricanhe. Soube-se no Cuor que ele regressara, o régulo veio com comitiva convidá-lo a assistir à inauguração do gerador elétrico, era a linha do progresso no Cuor. Devia ter dito que não, continua a pensar que ainda era muito cedo para se poder aplacar tão grande saudade, disse que sim, como se Missirá e Finete, o Cuor por inteiro, não fizessem parte da recordação mais terna e inviolável do seu tempo guinéu. Combinou com o capitão Figueiras e lá partiram para o evento, aos primeiros alvores da manhã, foi recebido ruidosamente, conseguiu guardar distâncias, enquanto viajava pelo Geba estreito recordou as dezenas de cartas enviadas para a engenharia, talvez a primeira fosse datada de outubro de 1968, promessas não faltaram, e agora estava ali, sabe-se lá porque lhe passou a ideia pela cabeça, uma faísca que parecia anunciar um tornado não era mais do que toda a luz elétrica que dava sinal de vida, um bonito contraste com as chapas zincadas que faiscavam à crueza do sol, soltaram-se umas lágrimas rebeldes entre os aplausos e a risada da população.

E volta para Bambadinca e é convocado pelo major de operações para o tal patrulhamento ofensivo, da sua inteira responsabilidade, tem um nome um tanto cómico, Beringela Doce, estão o major e ele na sala de operações, ele acompanha o movimento do ponteiro no mapa: sai de Amedalai, contorna Ponta Coli, avança para Gundaguê Futa-Fula, importa contornar as bases do Baio e do Burontoni, procurar sinais da presença do inimigo e seguir cuidadosamente para Ponta Varela, sai de manhã cedo, regressa no dia seguinte à tarde, algo como mais de 30 horas e um número incontável de riscos. Guardo os rascunhos que o Paulo ataviou, trouxe mesmo uma carta desta região do Xime, mas desta feita fazia-se acompanhar de secções de pelotões de milícias, inclusivamente gente de Finete e Amedalai, não foi envolvida a unidade militar do Xime, sabiam que não podiam sair do quartel, na medida em que o Paulo e os seus homens iam percorrer Ponta Varela. Uma noite destas conversei com o Paulo sobre tudo o que se passou: não havia indícios de passagem de população ou militares do PAIGC entre Amedalai e Ponta Coli, e mesmo até Chicamiel, a razão parecia ser muito simples, estava-se a alcatroar a estrada entre Xime e Bambadinca com alta proteção. Tenho aqui um papel do Paulo em que diz ter ouvido desabafos das milícias, estava anunciado que se ia abandonar Moricanhe e não havia já ilusões que seria a região de Badora a próxima a ser altamente flagelada. Há mesmo um comentário escrito pelo Paulo sobre a progressão até Ponta Varela: sinais muito antigos, mesmo indícios de uma antiga barraca do PAIGC, só em Ponta Varela é que encontrámos trilhos batidos, andámos sempre a corta-mato, pernoitámos entre Gundaguê Beafada e Madina Colhido.

Os acontecimentos dolorosos surgiram na manhã seguinte, vai-se de Ponta Varela até às proximidades do Poidon, nisto ouve-se tiroteio, acontecera que o soldado Serifo Candé viu avançar em sua direção uma coluna de lavradores ou de reabastecimento, não deu tempo para se perceber exatamente o quê e quem, Serifo atira uma rajada, feriu um homem e uma mulher, os outros fugiram, deixando para ali sacos de arroz e esteiras, pediu-se evacuação Y, perdida que estava a surpresa, regressou-se ao Xime e partiu-se imediatamente para transportar as milícias para os respetivos destacamentos. E tenho aqui um aerograma, um texto de profundo desalento em que o Paulo escreveu a um amigo a contar a conversa com o comandante, este insistia em policiamentos semanais para intimidar o PAIGC, não tinha ilusões, só as tropas especiais é que podiam desalojar forças tão enquistadas no terreno dos santuários, aprendera-se muito com uma operação chamada Lança Afiada, por ali se tinha andado doze dias até que a tropa regressou exausta e profundamente combalida, houve mesmo evacuações de barco no Corubal, gastara-se uma fortuna para resultados nulos, tinham-se apreendido umas toneladas de arroz, uns velhos desdentados e uns canhangulos, o PAIGC, inevitavelmente, saíra robustecido deste jogo do gato e do rato, o Paulo replicou que era indispensável manter Moricanhe e mudar a rota das operações, o Poidon era um celeiro, havia que aprender de uma vez por todas que se devia recuperar a posição da Ponta do Inglês. No final desse aerograma o Paulo observava que fora um discurso inútil, este batalhão está de partida, vamos ver se poderá passar a mensagem para quem dentro de dias vai chegar. É nisto que o tenente Pinheiro me informa que tem que estar dentro de dois dias em Bissau, é testemunha abonatória de Quebá Sissé, o amável cozinheiro de Missirá, que ao amanhecer do dia 1 de janeiro daquele ano, ao subir para uma viatura metera o dedo no gatilho da espingarda ferindo mortalmente Uam Sambu, que tombou para o regaço de Paulo, lá foram desvairados para a enfermaria de Bambadinca, mas nada se podia fazer mais, Uam espirara durante o voo em direção ao hospital militar. Enquanto arruma um saco de trastes para voltar a Bissau, Paulo conversa consigo próprio, é crucial que o magistrado perceba que se tratou do mais estúpido e funesto dos acidentes e que Quebá Sissé é um homem bom entre os bons.

(continua)


Pôr-do-sol na praia da Areia Branca
Trancoso, cidade medieval
Penedono, célebre pela sua castanha
Os achados arqueológicos de Freixo de Numão
Barbearia Chiado, no Bissau Velho
A azáfama no cais do Pidjiquiti
Guarita do antigo comando da defesa marítima da Guiné, hoje chefia do Estado-Maior da Armada
Uma evacuação em Madina Colhido (regulado do Xime) durante a operação Boga Destemida
Batelões civis navegando no rio Geba em direção a Bambadinca
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22585: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (72): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22609: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte I: Mafra, janeiro de 1964


Mafra > EPI > Março de 1967 > "Fotografia do meu pelotão (1.º Pelotão da 1.ª Companhia de Instrução) do COM de janeiro de 1967, desfilando de regresso à parada da EPI, depois do juramento de bandeira. Nesta foto, do meu álbum de guerra, estou em 3.º lugar na 1.ª fila. O sargento, que empunha uma FBP, não conta.

"A foto foi tirada por um familiar de um camarada soldado-cadete. A foto é de março de 1967. Ainda fiquei mais cerca de 3 meses em Mafra para a especialidade de atirador de infantaria." 
 

Foto (e legenda): © Eduardo Moutinho Santos (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Publicámos, no devido tempo, em 2009, há cerca de 12 anos, o "Diário de Guerra", do nosso camarada e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021) (*)
, que nos chegou às mãos,  por intermédio do José Martins (ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70). 

A grande maioria dos nossos leitores não teve oportunidade de conhecer este notável texto, de que se publicaram 11 postes (, muito espaçados, entre janeiro e setembro de 2009).

O "Diário de Guerra" abarca um período de tempo de seis anos, desde a entrada do autor em Mafra, em 26 de janeiro de 1964, para fazer a recruta e dar início ao Curso de Oficiais Milicianos (**) até ao fim da comisão na Guiné (onde foi alf mil, CCAÇ 800, Contuboel e Dunane, 1965/67) e o "difícil regresso à vida civil", entre 1967 e 1970. (***)

Estes textos fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).

Na altura a revisão e fixação do texto, para efeitos de publicação neste blogue,  foi da responsabilidade do nosso coeditor (hoje, jubilado( Virgínio Briote. Agradecemos ao José Martins a sua sensibilidade e a sua generosidade ao servir de intermediário entre o nosso blogue e o escritor, e ao aceitar organizar o texto para publicação no blogue, com a devida autorização do autor. 

Está é também uma forma de homenagearmos a memória do nosso camarada açoriano Cristóvão de Aguiar que,como escritor,é dono de uma vasta obra (publicada na totalidade pelas Edições Afrontamento).



Cristóvão de Aguiar. 
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar

1964

Janeiro, 26 – Acabei de chegar.


O casarão do convento é tão frio e tão feio, que tenho o coração a doer e vontade de chorar. Quem me dera agora na Ilha, o ventre materno para onde volto sempre que me sinto aban­donado.

Durante a viagem de boleia de Coimbra para Lisboa, bem se esforçou o Carlos Can­dal, meu amigo e companheiro de República, por me animar. Está na tropa, na capital, e só amanhã vou principiar o Curso de Oficiais Milicianos. Fi­quei na ca­serna número quinze, no ter­ceiro piso, a maior de todas, de tecto abaulado e baixo.

Acabei de fazer a cama, como soube e pude. Segui atentamen­te a demons­tração de um habilidoso fur­riel que exibiu as suas capacidades domésticas com mãos rápidas e tarimbeiras para um grupo de novos cadetes que entraram na caserna, de­bai­xo de forma, para tomar posse do cacifo e do beliche. Também nos deu sá­bias instruções sobre disci­plina, la­trocínio de quartel e obediência.

Fiquei soldado-cadete número mil cento e catorze, barra ses­senta e quatro. De­pois de ar­ru­mar as minhas coisas e de mu­dar de roupa, fui até o Bar do Cadete, no piso do rés-do-chão, e lá encontrei o Ca­margo, que chegara na véspera. Já envergava o seu fato-macaco militar cor de azei­tona.

Os meus passos naqueles tú­neis perdiam-se de perdidos que estavam. E logo amaldiçoei o empreiteiro de tal enormidade arquitectónica e as ordens religiosas que ali se encafuavam praticando as piores patifarias em nome de uma fé codificada. Tanto eu como o Camargo parecía­mos dois fan­tasmas navegando por den­tro das bo­tas e do fato zuarte. Não ficámos na mesma ca­serna. Ele ficou na um, a an­tiga capela, junta­mente com o Nogueira e Silva. Ao Vítor Branco, ilhéu da Madeira, coube a dois, a mais pequena e a mais acon­che­gada das três. Foi-me apre­sentado pelo Ca­margo. Fazemos um molhi­nho de soli­darie­dade.


Janeiro, 27 – Esta noite não preguei olho.

Acolhido na caserna com uma caterva de jovens como eu, senti, ao deitar-me, uma tristeza encharcando-me os ossos e um desânimo só semelhante ao da criança perdida dos pais por entre uma multidão de desconhecidos, numa feira ou num arraial de festa de padroeira. Mas, ali, na caserna, não havia altifalantes como nos re­cintos das festas para anunciar a criança perdida.

Ali, naquele enorme dormitório, com um nauseabundo odor a pés, a ventosidades sonoras e a outras sorrateiras mas enjoosas, estava mesmo perdido para sempre. Mesmo que de mim próprio fizesse um grito de terror. Um toque, ainda madrugada escura, estranho, fez-me levantar do leito da insónia. Era o toque da alvorada. Depois de far­dado, olhei-me de alto a baixo, e achei-me ridículo. Só não chorei por vergonha. Fiz a cama como quem escreve o a, e, i, o, u pela pri­meira vez. Estava ainda na pri­meira classe atrasada...


Mafra, Janeiro, 28 – Fiquei a pertencer ao quarto pelotão da terceira com­panhia de in­s­tru­ção.

O comandante da companhia, um tenente goês, é muito apa­ratoso nas con­ti­nên­cias. Parece um sinaleiro a apascentar o trânsito. Que mundo este!

O coman­dante do meu pelotão, o quarto da companhia, é um açoriano da Ilha Ter­ceira. Mas ainda não me dei a conhecer, nem deve ser preciso, que ele deve-me topar pela pro­núncia. Pelo que lhe já ouvi, deve ser um grande maluco e vai-nos decerto pôr a to­dos no mesmo estado. Já esteve em An­gola cum­prindo uma comissão e segundo consta fez lá das suas.

Hoje passámos o dia a aprender a fazer continência e a dis­tin­guir os postos. As aulas são na parada, com o pelotão formado em U. Aos supe­ri­o­res trata-se por meu. Meu isto, meu aquilo. Aos infe­riores, por nosso. O cade­te Carva­lhosa, que tira aponta­mentos do que ouve ao al­feres e está sempre muito atento à li­ção, como se estivesse nos bancos da Uni­versidade, passou a tratar o cabo lateiro da arre­cadação do material por meu cabo. O alferes foi aos arames com a atoarda. Nin­guém pode sair do quartel para a Vila, após a instrução - ainda não sabemos com­por­tar-nos militarmente. E não se sabe se vamos a fim-de-semana.

Janeiro, 29 – O comandante de pelotão mandou-nos formar.

E explicou-nos que a formatura era sagrada. Não se podia falar, mexer, rir ou sequer pensar. Creio, no entanto, que alguns pensaram. Depois afivelou uma cara de mau e afirmou que era proibido haver doentes. Só o médico poderia comprovar, porque as­sim determinava o Regulamento... Não está no Regulamento - era quanto bastava para se dar uma resposta menos regulamentar.

Janeiro, 30 – Escrevi-lhe para Coimbra uma longa carta.

An­tes de para aqui vir, estive com ela e outras colegas no bar da Faculdade de Medi­cina, mas não tive coragem de me declarar. Fi-lo há pouco numa longa carta que por acaso prin­cipiei a escrever ainda na República, a semana passada.

Se for a fim-de-semana, vou tentar encontrar-me com ela e hei-de obter uma res­posta. Mora num lar de freiras, ao lado da República. Não há-de ser difícil che­gar-lhe à fala. Ainda não cicatrizei a ferida da outra, a da Ilha, e já estou a meter-me noutra...

Hoje, na segunda hora de instrução, com o pelotão formado em U, a aula versou sobre o conceito de pátria, como vem nas fichas da instrução, que esclarecem que se deve apresentar aos instruendos significati­vos exemplos da nossa História para lhes incutir os verdadeiros valores.

O nosso alfe­res pegou no manual e principiou a ler: 

"Temos, por exemplo, D. Duarte de Almeida, o decepado, o porta-bandeira ou alferes, que ofereceu com o seu gesto heróico um verdadeira lição de patriótico amor, abnegação e audácia.

"Outro feito que dignifica as páginas doiradas da nossa História é o praticado por D. João de Castro, Vice-Rei da Índia, que num acto valoroso, cortou, como penhor, as venerandas barbas... E a pro­pósito, nossos cadetes, quero lembrar-vos que na formatura para terceira refeição vou passar revistas às barbas e cabelos"..

Janeiro, 31 – Iniciámos de manhã o estudo da espingarda Mauser, que se di­vide em dez partes, a saber...

O alferes ia chamando os cadetes por or­dem numérica. Todos receberam a velha Mauser – "A vossa noiva, estimai-a como à vossa noiva..."

Saímos hoje para a Vila, depois da instrução da tarde na tapada. Mas não tivemos dis­pensa do recolher, nem da ter­ceira re­fei­ção. Foi pre­ciso fazer uma for­matura de saída. O oficial de dia veio-nos pas­sar mi­nu­ciosa re­vista. À barba, ao ca­belo, à graxa das botas ou dos sapa­tos da ordem, ao vinco das calças da farda número um, aos botões da camisa e da farda! Dois camaradas não fo­ram autorizados a sair. Tinham os pêlos da barba a arra­nhar.

Voltámos ao quartel an­tes da terceira refeição. Como estava a chuvis­car, fez-se a forma­tura para o jantar no corredor em frente do refeitório. Chama-se o corredor La Couture e nele andam jipes e outras viaturas mili­tares. Na forma­tura do recolher tinha tanto sono que cabeceava em pé, enquanto o sargen­to de dia lia a ordem, fazia a cha­mada e distribuía o correio.

O Magalhães rece­beu um telegrama da namorada, já aberto. O instruendo fazia anos. E o sar­gento, com ar de gozo, leu alto: Amo-te, stop, Mada­lena... Quando chegou ao meu número, pus-me em sentido e bati com os tacões das botas. Depois de ter man­dado destroçar, fui para a cama. Eram nove e pouco da noite. Nunca dormi tão bem em toda a minha vida.

(Continua)
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Notas dos editores VB / LG:

(*)  Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021


(**) Vd. postes de:


10 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4932: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (XI): Final (Mai68-Jan70)

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22608: Blogpoesia (750): "Guiné-Bissau - Canchungo", por Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70)

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 4 de Outubro de 2021:

Bom dia Carlos Vinhal
Aqui estou retomando o envio de coisinhas minhas mas para todos.
Espero que tenham passado este tempo em que desapareci daqui, bem dispostos e de boa saúde.
Para que não fiques sem trabalho, aqui vai a Vila de Teixeira Pinto.
Um Abraço para os Membros da Tabanca Grande, em especial para os Régulos.
Albino Silva







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Último poste da série de Albino Silva de 10 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22272: Blogpoesia (740): "Guiné-Bissau - Canchungo", por Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70)

Último poste da série Blogpoesia de 26 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22573: Blogpoesia (749): "Na proximidade do espaço e do tempo"; "A aproximação dos rios"; "Palavras doces" e "Armadilhas", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P22607: Fichas de unidades (20): Batalhão de Comandos da Guiné (Brá, 1972/74), incluindo 1ª CCmdsAfr (1969/74), 2ª CCmdsAfr (1971/74) e 3ª CCmds (1972/74)


Batalhão de Comandos da Guiné (Brá, 1972/74)

Identificação BCmds

Crndt: 

Maj Cav Cmd João de Almeida Bruno
Maj Inf Cmd Raul Miguel Socorro Folques
Maj Inf Cmd Florindo Eugénio Batista Morais

2º Crndt: 

Cap Inf Cmd Raul Miguel Socorro Folques
Cap Inf Cmd João Batista Serra
Cap Cav Cmd Carlos Manuel Serpa de Matos Gomes
Cap Art Cmd José Castelo Glória Alves

Início: 02Nov72 | Extinção: 07Set74

Síntese da Actividade Operacional

A unidade foi criada, a título provisório, em 02Nov72, a fim de integrar as subunidades de Comandos da Metrópole em actuação na Guiné e também as CCmds Africanas, passando a superintender no seu emprego operacional e no seu apoio administrativo e logístico.

Em O1Abr73, o BCmds foi criado a título definitivo, tendo a sua organizaçãon sido aprovada por despacho de 21Fev73 do ministro do Exército.

Desenvolveu intensa actividade operacional, efectuando diversas operações independentes em áreas de intervenção do Comando-Chefe ou em coordenação com os batalhões dos diferentes sectores onde as suas forças foram utilizadas, nomeadamente nas regiões de:

  •  Cantanhez (operação "Falcão Dourado", de 15 a 19Jan73, e operação "Kangurú Indisposto", de 21 a 23 Mar73); 
  • Morés (operação "Topázio Cantante", de 25 a 27Jan73); 
  • Changalana-Sara (operação "Esmeralda Negra", de 13 a 16Fev73); 
  • Morés e Cubonge (operação "Empresa Titânica'', de 27Fev73 a 0IMar73); 
  • Samoge-Guidage (operação "Ametista Real", em 20 e 2IMai73); 
  • Caboiana (operação "Malaquite Utópica", de 21 a 22 Jul73 e operação "Gema Opalina", de 24 a 27Set73); 
  • Choquenone (operação "Milho Verde/2", de 14 a 17Fev74); 
  • Biambifoi (operação "Seara Encantada", de 22 a 26Fev74); e 
  • Canguelifá (operação "Neve Gelada", de 21 a 23Mar74), entre outras. 

As suas subunidades, em especial as metropolitanas, foram ainda atribuídas em reforço de outros batalhões, por períodos variáveis, para intervenção em operações específicas ou reforço continuado do respectivo sector.

Das operações efectuadas, refere-se especialmente a operação "Ametista Real", efectuada de 17 a 20Mai73, em que, tendo sofrido 14 mortos e 25 feridos graves, provocou ao inimigo 67 mortos e muitos feridos, destruindo ainda 2 metralhadoras antiaéreas e 22 depósitos de armamento e munições com 300 espingardas, 112 pistolas-metralhadoras, 100 metralhadores ligeiras, 11 morteiros, 14 canhões sem recuo, 588 lança-granadas foguete, 21 rampas de foguetão 122, 1785 munições de armas pesadas, 53 foguetões de 122 mm, minas e 50.000 munições de armas ligeiras.

Destacou-se também, pela oportunidade da intervenção e captura de 3 morteiros 120, 367 granadas de morteiro, 1 lança granadas foguete e 2 espingardas e 26 mortos causados ao inimigo, a acção sobre a base de fogos que atacava Canquelifá, em 21Mar74.

Em 20Ag074, as três subunidades de pessoal africano foram desarmadas, tendo passado os seus efectivos à disponibilidade.

Em 07Set74, o batalhão foi desactivado e exinto.

Observações - Não tem História da Unidade.


1ª Companhia de Comandos Africanos

Identificação; 1ª CCmdsAfr
Cmdt: 

Cap Grad Cmd João Bacar Jaló
Ten Grad Cmd Abdulai Queta Jamanca
Ten Grad Cmd Cicri Marques Vieira
Cap Grad Cmd Zacarias Saiegh

Início: 09Ju169 | Extinção: 07Set74

Síntese da Actividade Operacional

Foi organizada em Fá Mandinga a partir de 09Jul69, exclusivamente com pessoal natural da Guiné e foi formada com base em anteriores Grupos de Comandos existentes junto dos batalhões, tendo iniciado a sua instrução em 06Fev70 e efectuado o juramento de bandeira em 26Abr70.

A subunidade ficou colocada com a sede em Fá Mandinga, com a missão de intervenção e reserva do Comando-Chefe, após ter terminado o seu treino operacional na região de Bajocunda, de 21Jun70 a 15Jul70, e onde, seguidamente, se manteve em reforço do COT 1, em face do aumento da pressão inimiga na área, até finais de Set70, tendo então recolhido a Fá Mandinga.

A partir de 300ut70, foi atribuída em reforço de vários sectores, tendo tomado parte em operações nas regiões de Enxalé, de 300ut70 a 07Nov70, na zona de acção do BArt 2927; de Nova Sintra, Brandão, Jabadá e Bissássema, de Fev71 a meados de Julho71, em reforço do BArt 2924. 

Tomou ainda parte na Op "Mar Verde", em 21 e 22Nov70, em acção sobre Conacri e destacou três pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, de princípios de Dez70 a finais de Jan71.

Em finais de Ju171, seguiu de Tite para Bolama, para um curto período de descanso e recuperação, tendo, em meados de Ago71, passado a ficar instalada em Brá (Bissau), nas instalações do futuro BCmds.

Seguidamente, passou a efectuar operações conjuntas com a 2ª CCmdsAfr, em regiões diversas, nomeadamente nas regiões de: 

  • Cancodeá Beafada, em 060ut71; 
  • Choquemone, de 18 a 220ut71; 
  • Tancroal, de 290ut71 a 01Nov71; 
  • Morés, de 20 a 24Dez71 e de 07 a 12Fev72; 
  • Gussará-Tambicó, de 30Mai72 a 03Jun72;
  • e ainda as operações preparatórias e de consolidação da instalação do COP 7 na península de Gampará (operação "Satélite Dourado", de 11 a 15Nov71 e a operação "Pérola Amarela", de 24 a 28Nov71). 

Tomou também parte em operações desenvolvidas pelo CAOP 1, na região de Caboiana-Churo, de 28Abr71 a 01Mai72, de 26 a 28Jun72 e de 19 a 21Dez72 e pelo COP 4, na região de Salancaúr-Unal-Guileje, de 28Mar72 a 08Abr72.

Em 02Nov72, foi integrada no BCmds, então criado, tendo tomado parte em todas as operações planeadas e comandadas por este e tendo ainda sido atribuídas  algumas vezes para realização de operações desenvolvidas pelos sectores ou comandos equivalentes.

A 1ª CCmdsAfr foi desactivada e extinta em 07Set74, com as restantes forças do BCmds.

Observações - Não tem História da Unidade.

Fonte -CECA (2002), pp. 648/649

2ª Companhia de Comandos Africanos

Identificação: 2ª CCmdsAfr
Cmdt: 
Ten Grad Cmd Mamadu Saliu Bari
Ten Grad Cmd Adriano Sisseco
Ten Grad Cmd Armando Carolino Barbosa

Início: 15Abr71 | Extinção: 07Set74

Síntese da Actividade Operacional

Foi organizada e instruída em Fá Mandinga a partir de 15Abr71 exclusivamente com pessoal africano natural da Guiné e foi formada com base em anterior Grupos de Comandos existentes junto dos batalhões e com graduados vindos da 1ª CCmdsAfr, tendo realizado o treino operacional de 28Ag071 a 23Set71, o qual incluiu a participação em operações realizadas nas regiões de Sancorlá-Cossarandim e Ponta Varela, no sector do BArt 2917.

A subunidade ficou colocada em Fá Mandinga, com a função de intervenção e reserva do Comando-Chefe, tendo sido atribuída inicialmente ao BArt 2917, com vista à realização de operações nas regiões de Malafo-Enxalé, em 10/11Set71 e Gã Júlio, de 02 a 040ut71.

Em meados de Out71, passou a ficar instalada em Brá (Bissau) nas instalações do futuro BCmds, em conjunto com a 1ª CCmds Africana com a qual passou a tomar parte em operações realizadas em regiões diversas, nomeadamente nas regiões de:

  • Cancodeá Beafada, em 060ut71; 
  •  Choquemone, de 18 a 220ut71; 
  • Tancroal, de 290ut71 a 01Nov71; 
  • Morés, de 20 a 24Dez71 e de 07 a 12Fev72; 
  • Gussará-Tambicó, de 30Mai72 a 03Jun72;
  • e ainda as operações preparatórias e de consolidação da instalação do COP 7 na península de Gampará (operação "Satélite Dourado", de l l a 15Nov71 e operação "Pérola Amarela", de 24 a 28Nov71.

Tomou também parte em operações desenvolvidas pelo CAOP 1 na região de Caboiana-Churo, de 28Abr71 a 0IMai72, de 26 a 28Jun72 e de 19 a 21Dez72 e pelo COP 4, de 28Mar72 a 08Abr72. 

Realizou ainda operações em diversas zonas de acção, nomeadamente na região de Suarecunda, em 17Jan72 e de 18 a 21Mai72, no sector do BCaç 3832 e de Sare Bacar, em 06Mai72, no sector do BCav 3864, entre outras.
 
Em 02Nov72, foi integrada no BCmds, então criado, tendo tomado parte em todas as operações planeadas e comandadas por este batalhão e tendo ainda sido atribuída algumas vezes para realização de operações desenvolvidas elos sectores ou comandos equivalentes.

A 2ª CCmdsAfr foi desactivada e extinta em 07Set74, com as restantes forças do BCmds.

Observações - Não tem História da Unidade.

Fonte: CECA (2002) pp. 650/651

3ª  Companhia de Comandos Africanos

Identificação: 3ª CCmdsAfr
Cmdt: 
Alf Grad Cmd António Jalibá Gomes
Ten Grad Cmd Bacar Djassi
Alf Grad Cmd Aliú Fada Candé
Alf Grad Cmd Malan Baldé

Início: 14Abr72 | Extinção: 07Set74

Síntese da Actividade Operacional

Foi organizada e instruída em Fá Mandinga a partir de 14Abr72 até 16Set72, para concretização do despacho de 03Mar72 do CCFAG, sendo constituída exclusivamente com pessoal africano natural da Guiné, recrutado nas subunidades africanas da organização territorial e das subunidades de milícias e com graduados vindos das anteriores CCmdsAfr, tendo a imposição das insígnias de "comando" sido efectuada na cerimónia de criação do BCmds, em 02Nov72.

Em 02Nov72, foi integrada no BCmds, então criado, ficando instalada em Brá (Bissau) e tomando parte nas operações planeadas e comandadas por aquele batalhão. 

Algumas vezes foi atribuída para realização de operações desenvolvidas por sectores ou comandos equivalentes, nomeadamente na região de Campada /  Barraca Banana, em 04Dez72, no sector do BCav 3846.

A 3ª CCmdsAfr foi desactivada e extinta em 07Set74, com as restantes forças do BCmds.

Observações - Não tem História da Unidade.

Fonte: CECA (2002), pág. 652


Fonte: Excerto de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pp.. 646/652-

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Nota do editor:

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021

IN MEMORIAM

Luís Cristóvão Dias de Aguiar (Ilha de S. Miguel, 1940 -  Coimbra, 2021)
Ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67)


Faleceu ontem, dia 5 de Outubro, em Coimbra, o nosso camarada Cristóvão de Aguiar, nascido em 8 de Setembro de 1940, no Pico da Pedra, Ilha de S. Miguel.

Autor de referência (, possivelmente o maior escritor açoriano do séc.XX, depois de Vitorino Nemésio), deixa uma vasta obra literária, de que se destaca a trilogia romanesca Raiz Comovida, O Braço Tatuado (onde relata a sua experiência como combatente na Guiné durante a Guerra Colonial, de 1965 a1967) e Relação de Bordo, conjunto de diários que abrange os anos de 1965 a 2015
.[*]

Tem no nosso Blogue 27 referências.

Os editores e demais membros desta tertúlia de amigos e camaradas da Guiné expressam  à família os seus mais sentidos votos de pesar.
Cristóvão de Aguiar, em 27 de Novembro de 2008, na Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandella, na apresentação da nova edição do seu livro "Braço Tatuado".
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Notas do editor:

[*] Vd. recensões de Mário Beja Santos à obra de Cristóvão de Aguiar nos postes de:

5 de abril de  2010 > Guiné 63/74 - P6109: Notas de leitura (88): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6115: Notas de leitura (89): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar - (II) (Beja Santos)

de abril de2010 > Guiné 63/74 - P6124: Notas de leitura (90): Relação de Bordo, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

14 
de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6155: Notas de leitura (92): Trasfega, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

16 
de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6162: Notas de leitura (93): Braço Tatuado, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)
e
17 
de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6170: Notas de leitura (94): Crónica dos dias levantados da guerra, com os horrores de Goya e tudo (Beja Santos)

Vd. postes com o "Diário de Guerra de Cristóvão de Aguiar", textos cedidos pelo autor ao nosso camarada José Martins:

31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P3823: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (I): Mafra, Janeiro de 1964

3 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (II): Mafra, Fevereiro/Março de 1964

5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3843: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (III): Mafra, Maio/Junho de 1964

26 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3944: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (IV): Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965)

11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4013: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (V): Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)

19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VI): Estadia em Contuboel e férias na Metrópole (27Mai65 a 29Set65)

25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Estadia em Contuboel e Dunane (Out-Dez 1965)

28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4876: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VIII): Estadia em Contuboel e Sonaco com a Otília (Jan-Ago 1966)

3 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4893: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (IX): Nascimento do primeiro filho (Set - Dez 1966)

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4917: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (X): O difícil regresso à vida civil (Jan - Jun 1967)
e
10 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4932: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (XI): Final (Mai68-Jan70)

Vd. último poste da série de 4 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22598: In Memoriam (409): Lissy Jarvik (née Feingold) (1924-2021): teve no seu funeral a presença do nosso cônsul honorário em Los Angeles e o senhor Presidente da República emitiu uma mensagem de condolências (João Crisóstomo, Nova Iorque, de passagem por Portugal, adviser da Sousa Mendes Foundation, com sede nos EUA)

Guiné 61/74 - P22605: Efemérides (353): Cerimónia do Dia Municipal do Combatente, em Gondomar, no dia 11 de Outubro de 2021, às 11 horas da manhã, na Praça Heróis do Ultramar, em Fânzeres

C O N V I T E

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22506: Efemérides (352): 22 anos depois do referendum sobre a autodeterminação, o ativista João Crisóstomo, líder do LAMETA, mostra-se apreensivo sobre o futuro da língua portuguesa em Timor Leste, em entrevista dada em Nova Iorque à Agência Lusa

Guiné 61/74 - P22604: Historiografia da presença portuguesa em África (284): História breve da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
O seu a seu dono, era uma tremenda injustiça não referir este ensaio inserido num número da revista "Ultramar" onde há outros trabalhos que merecem destaque, como é o caso do artigo de António Carreira dedicado à Guiné e às ilhas de Cabo Verde, o estudioso refere a sua unidade histórica e populacional, bem como o artigo de Rogado Quintino, sobre os temores ao Deus-Irã, entre outros. Em dezenas de páginas, o historiador Banha de Andrade circunscreveu-se à problemática do descobrimento da Guiné, ao histórico da presença portuguesa até à I Guerra Mundial e dados civilizacionais como as missões. Discreto e sóbrio, nada propagandístico, não há para ali nenhuma mentirola sobre os nossos cinco séculos na Senegâmbia.

Um abraço do
Mário



História breve da Guiné Portuguesa

Beja Santos

É do conhecimento geral que a Guiné Portuguesa não dispõe de um livro histórico minimamente atualizado. Houve tentativas, no todo ou na parte, deixaram o seu rasto, e a sua leitura é recomendada. Logo João Barreto com a sua “História da Guiné (1418-1918) ”, de 1938; a “Guiné Portuguesa” de Avelino Teixeira da Mota, 1954; Mário Matos e Lemos publicou “Os portugueses na Guiné – apontamentos para uma síntese”, em 1917; e possuímos uma vasta bibliografia parcelar com autores como António Carreira, José da Silva Horta e Eduardo Costa Dias, Carlos Lopes, Peter Karibe Mendy, René Pélissier, Armando Tavares da Silva, Julião Soares Sousa, Francisco Travassos Valdez, Philip Havik, António Duarte Silva, Francisco Henriques da Silva e este autor. Mas havia um esquecimento imerecido, na revista “Ultramar” N.º 32, 1968, dedicado à Guiné tem destaque a história breve da Guiné Portuguesa, de António Alberto Banha de Andrade, historiador e professor universitário.

O seu ensaio é organizado em torno dos problemas da descoberta da Guiné, da soberania portuguesa e da civilização, com destaque para os problemas de missionação. Pode trazer muitos dados consabidos, outros entretanto aclarados, mas o historiador consulta fontes probas, fez uma súmula de acontecimentos que ajudarão o investigador e o curioso. E como? Falando da origem do termo ‘Guiné’, das viagens em torno da Costa de África e quando se dobrou o Cabo Bojador, a ignorância dos nautas portugueses e dos árabes era profunda quanto a geografia e as populações residentes. Recorda o autor as viagens feitas no interior do continente para contatar o chefe dos Mandingas no alto Níger, Diogo Gomes subiu pelo Gâmbia até Cantor. “Duarte Pacheco Pereira, em 1505, informa que os portugueses denominam Guiné a Etiópia que se estende do rio Senegal até ao cabo da África”. Sonhava-se em chegar a Tombuctu, era a miragem das relações comerciais. E mais adiante, já precisando a descoberta da Guiné: “Atribui-se essa glória a Nuno Tristão, morto pelos nativos do rio Grande, o atual Geba. Duarte Leite, porém, secundado por Damião Peres, acreditam nas narrativas de Diogo Gomes e Cadamosto e optam pelo descobrimento por um destes, em 1456. Avelino Teixeira da Mota ainda deixa a Nuno Tristão a glória de haver sido o primeiro português a entrar em contato com os Mandingas. Nuno Tristão não teria chegado ao atual território da Guiné Portuguesa, porque fora trucidado na região do Niumi, entre o Gâmbia e o Jumbas, a região dos Barbacins dos nossos cronistas”. Pondo ainda outros nomes em cima da mesa, conclui o autor: “Assentamos que, sendo natural ter-se efetuado o descobrimento da Guiné Portuguesa em 1446 ou perto deste ano, e nunca em 1456, as honras dessa proeza se devem continuar a atribuir a Nuno Tristão, à falta do nome do navegador que se seguiu à sua viagem e à de Álvaro Fernandes”.

Quanto ao problema da soberania, o historiador recorda a gestão do comércio cedida pela Coroa aos habitantes de Cabo Verde, o arrendamento a Fernão Gomes, a concorrência de espanhóis, ingleses e holandeses no então vasto litoral da Senegâmbia. O período filipino foi nefasto para os interesses portugueses na região, o comércio transitara para as mãos dos espanhóis, franceses, ingleses e holandeses, recuou a presença portuguesa para limites geográficos bastante próximos àqueles que irão ser definidos na Convenção Luso-Francesa de 1886. O autor refere que após a Restauração, se fundou capitanias, companhias de comércio, se mantém o tráfico de escravos, predominantemente na região de Cacheu, surge a primeira fortificação de Bissau, a ameaça da presença inglesa e o progressivo alargamento de feitorias francesas no Casamansa. Na primeira metade do século XIX, distingue-se Honório Pereira Barreto que redigiu a cáustica e exemplar “Memória sobre o estado atual da Senegâmbia Portuguesa, causas da sua decadência, e meios de a fazer prosperar”, com data de 1843. Em 1879, a Guiné passa a ser província independente de Cabo Verde, reorganizam-se os serviços e a pressão francesa é sufocante. “A França exigiu que, em troca do apoio ao plano de ligar Angola e Moçambique, o governo português lhe reconhecesse a posse da rica bacia do rio Casamansa. Barbosa du Bocage, ministro dos Negócios Estrangeiros, aceitou a condição. Entretanto, novo Governo subiu ao poder, e o progressista Henrique de Barros Gomes, que sobraçou aquela pasta, não aprovou, de entrada, a renúncia do seu antecessor. Porém, era tarde de mais e as negociações foram fechadas”. O autor explana sobre a organização administrativa da colónia e releva a Carta Orgânica de 31 de maio de 1917.

A última parte do trabalho de Banha de Andrade prende-se com a questão da civilização, é uma presença praticamente reduzida ao litoral durante séculos, o contributo cabo-verdiano é determinante, a presença tem destaque no Casamansa, em Cacheu, em Bolola, na região de Buba, em Bolama e outros locais dos Bijagós. O autor socorre-se de documentos como o de Francisco Lemos Coelho, do século XVII, que dá um retrato da presença portuguesa na região. A história missionária que Banha de Andrade aqui descreve tem afinidades com o trabalho incontornável do padre Henrique Pinto Rema sobre as missões católicas na Guiné, digamos que as missões foram mal sucedidas menos por encontrar populações evangelizadas, mais pelos problemas do clima e a hostilidade dos comerciantes e traficantes. Tal como estudou Teixeira da Mota, Banha de Andrade faz menção a uma visita pastoral do Bispo de Cabo Verde à Guiné, ilha de Bissau, onde chegou D. Vitoriano do Porto, em 27 de março de 1694. O régulo recebeu-o ao som de música. Depois D. Vitoriano seguiu para Farim e Cacheu e daqui regressou a Santiago, Cabo Verde.

É um estudo onde está ausente o espalhafato ou a exaltação propagandística de que os portugueses estavam presentes por toda a Guiné, o que não tem ponta de verdade. Diz o que efetivamente aconteceu nas missões e recorda aquela figura invulgar do Padre Marcelino Marques de Barros, autor do livrinho “Literatura dos Negros” e o primeiro arremedo de dicionário português-crioulo. É de elementar justiça pôr o trabalho de Banha de Andrade na bibliografia geral sobre a Guiné Portuguesa.


António Alberto Banha de Andrade
Almirante Teixeira da Mota
Obra de 1973 em que Teixeira da Mota republicou o seu incontornável trabalho sobre o descobrimento da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22587: Historiografia da presença portuguesa em África (283): Texto dos acordos de Argel, Lusaka e Alvor e seus anexos

Guiné 61/74 - P22603: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (91): Agradecimento da investigadora Sílvia Espírito-Santo pela colaboração dos nossos camaradas em projecto sobre o Movimeno Nacional Feminino


Cartaz do evento


1. Mensagem a investigadora Sílvia Espírito-Santo, autora do livro “Cecília Supico Pinto: o rosto do movimento nacional feminino” (Lisboa: A Esfera do Livro, 2008, 222 pp.), doutoranda em História Contemporânea na Universidade do Minho, mestre em Estudos sobre as Mulheres na Universidade Aberta, licenciada em História na Faculdade de Letras -Universidade de Coimbra;


Data - 03/10/2021, 10:29 (há 3 dias)



Assunto . Agradecimento


Caro Luís Graça,

Em primeiro lugar os meus cumprimentos. Deve ter estranhado o meu silêncio, mas tenho estado a escrever o artigo sobre o MNF e a preparar a sua apresentação no âmbito da Conferência realizada dia 1 de Outubro e cujo «cartaz» envio junto. (Peço desculpa pela qualidade da imagem).

Como foi gravada, logo que seja possível enviarei a minha comunicação em que agradeci genericamente a colaboração dos ex-combatentes. (*)

Porém, não queria deixar de lhe pedir que fizesse chegar a todos, e a cada um, a minha gratidão pela forma generosa com que acederam ao meu pedido, mesmo aos que o Covid adiou um encontro pessoal.  (**)

Ao v/ dispor
Sílvia Espírito-Santo
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Notas do editor:

(*) Vd. poste e 3 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22062: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (84): Pedido de colaboração aos nossos leitores para resposta a algumas questões sobre o Movimento Nacional Feminino ( Sílvia Espírito-Santo, doutoranda pela Universidade do Minho, biógrafa de Cecília Supico Pinto)

Guiné 61/74 - P22602: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XVIII: Montanha Wutai, província de Shanxi, China, 2002












Montanha Wutai, província de Shanxi, China, 2002



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74]. (*)


 Montanha Wutai, província de Shanxi, China, 2002

por Antóni0 Graça de Abreu

[ Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem cerca de 290 referências no blogue.]



Wutaishan, a montanha sagrada dos Cincos Terraços. No Verão, verdejante e fresca, no resto do ano, árida, fria, branca de neve. 

Hoje habitam-na quarenta e sete templos dedicados a Buda, e dois mil monges flutuantes. Praticam o budismo chan禅, o zen que só chegou ao Japão no século XII. Também reverenciam Buda, ao modo do lamaísmo tibetano.

Esta noite, os montes vestidos de espasmos de névoa, um rendilhado imenso de cascatas de brumas. Amanhece. Poeiras cinza voam e desfazem-se no rosa, depois ténue céu azul. O templo de Pusading, o pagode, agarrado à terra, coroa a crença dos homens em viagem.

Tomo uma nuvem branca, inebrio-me em perfumes de incenso. O coração quer galopar nas nuvens, no sibilar da brisa nos pinheiros. Passeio no esplendor do vazio, subo, desço escadarias, perco-me de terraço em terraço. A natureza protectora e mãe acaricia o fundo do vale, os montes verdes, húmidos de prazer, abrem os braços ao clarão do dia.

Encontro o monge Manjusri, “mão esquerda de Buda”, em meditação. Veio de longe, da Índia, no século V e viveu em Wutaishan durante mais de quarenta anos. Pergunto-lhe:

-- Em que pensa, nessa imobilidade absoluta?

-- Penso no que está para além do pensamento.

-- Como consegue pensar no que está para além do pensamento?

-- Não pensando.

Procuro limpar a mente, depurar o coração, a busca da pequena sabedoria e da iluminação. Contemplar a natureza, embalar-me nos braços serenos de Buda.

António Graça de Abreu

Texto e fotos enviafos em 18/8/2021

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