Luís Graça, Candoz, 13 de abril de 2022
Foto (e legenda): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição : Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1/100. Domingo à tarde!… Um dia, algures na
tua infância, começaste a detestar os domingos à tarde: ou chovia ou fazia
vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Sobretudo nada acontecia,
no domingo à tarde. E até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da
igreja da tua terra, a que chamarás doravante a tua aldeia.
Só não sabes exatamente quando começaste a detestar os
domingos à tarde. De manhã havia a missa, e à tarde jogava-se à bola no campo
pelado do largo do convento. Talvez tenha
sido num final de verão, depois das vindimas, quando a miudagem ia ao rabisco [1]…
E passou a ser desoladora, descarnada, esquálida, a vinha do Senhor, depois da
vindima e depois do rabisco …
Seguramente foi algures, no fim da tua infância. No campo
pelado da bola. Três paus a servirem de baliza. Uma baliza sem rede. Daí a
ideia, tão nostálgica quanto tardia, desta
“viagem na tua terra”, desta “viagem ao
fundo da rua da tua infância”, a rua dos
Valados…
A infância é, metaforicamente falando, uma rua. Labiríntica. E, como todas as ruas, tem
um começo e tem um fim. E é atravessada por ruelas e becos. E, como todos os labirintos , tem um fio de
Ariadne. Pode ser uma rua mais ou menos comprida, ou até ter uma praça, um
largo, um chafariz. Com casas de um lado e do outro. Mas toda a rua tem um
princípio e um fim, tem um cabo, tem um fundo.
E a infância também. Ou se calhar não tem, porque se prolonga sob a forma de
saudade. Ou nostalgia. Ou memória. Ou do exercício da memória, como lhe queiras chamar. Ou até da recusa em
sair dela, da magia e da segurança da infância. Estás mais inclinado a pensar
que as ruas da infância não têm cabo nem fundo nem fim, são circulares. O que fica na
memória é uma espécie de caleidoscópio ou um “puzzle” onde faltam peças. Ou ainda mais exasperante, no fim, há peças que
não encaixam. Há umas a mais, e outras a menos. E, pior, não encontras mais a
ponta do fio de Ariadne.
Não sabias quantos números de polícia tinha a tua rua. Pouco
mais de meia centena, sessenta e tal, confirmarás mais tarde. Ia do Castelo às Aravessas. Era comprida
naquele tempo. A tua casa era o nº 47. E,
talvez por estranha coincidência ou não, tu tinhas nascido em 1947, no pós-guerra de
todas as guerras. A que deveria ser a última, ouvirás muito mais tarde ao teu
pai. Não herdaste dele o seu saudável otimismo e a genuína crença na bondade
humana. Afinal, nasceste e cresceste em plena guerra fria, dois anos depois de
Hiroshima. Ouvirás falar de Hiroshima. Muito mais tarde. E perceber então todo
o horror de Hiroshima. E o que era o “mal absoluto”.
Sabias lá tu o que se passava pelo mundo, largo e profundo… Nem
muitos menos onde ficava Hiroshima. Não vinha no mapa-múndi da tua escola. O
mundo era a tua rua e pouco mais. A tua aldeia.
E tinha princípio, meio e fim. Mais tarde arrancar-se-ão vinhas e pomares, na
periferia da tua aldeia. E abrir-se-ão
novas ruas. E construir-se-ão prédios altos como na cidade grande. De cimento
armado. Com elevador. E mais tarde rotundas. Para parecer a cidade grande. Tudo
em nome da ordem e do progresso, e segundo um qualquer plano de urbanização. Mas essa já não era a tua aldeia, quando a revisitaste.
2/100. Nada acontecia no domingo à tarde… Ao
domingo folgavam os corpos, era o dia do Senhor. Por isso era bom que nada acontecesse no domingo à
tarde. Nada que te tirasse da pasmaceira dos dias, semanas, meses e anos.
Podias escutar a boa nova do padre vigário, no largo do Convento,
ora sombrio ora soalheiro, mas a vida ia, sem alarde, no sentido inexorável dos
ponteiros do relógio: “dextrorsum” (que “palavra cara”, aprendê-la-ás, mais
tarde, na escola).
Ou, por palavras, mais
simples, “do berço à cova, donde ninguém escapava”,
os novos sucedendo-se aos velhos na fila da morte. “E quem acabava, sua cova
tapava”.
Não podias queixar-te do destino (se é que ele já existia nesse
tempo, mas já devia existir). E muito
menos dizer que “mais valia a morte que tal sorte”… Felizardo, não sabias ainda
o que era a morte. A morte dos que te
eram próximos. A morte à tua volta. A
morte dos corpos, que das almas ainda sabias muito pouco ou nada. Muito menos a
morte em massa. Dos alinhados contra os muros, e fuzilados de olhos vendados.
Dos esmagados sob os escombros dos bombardeamentos das cidades. Dos empilhados
nas carroças da morte nos campos de concentração. Eras filho do pós-guerra. E
essa, a guerra, não chegara, felizmente, à tua aldeia. "Da peste, da fome e da guerra... e do bispo da nossa terra, libera nos, Domine".
Quanto à tua morte, essa, também não a podias vivenciar. Nem sequer a
imaginar. Não tinhas consciência da morte. Não te lembravas sequer de fingir de
morto, nem por brincadeira, dentro de um
caixão, a tampa aberta, num velório, com toda a família e vizinhos à tua volta,
uns a rir, outros a chorar, outros a contar anedotas ou a comer pevides e
tremoços. Ou um pires de arroz doce com delicados desenhos feitos, a dedo, por um fio de canela em pó. Ou a
abrir a boca de sono e de enfado. Ou uma velha desdentada, carpideira, a
enxotar as moscas da tua cara esverdeada, picada das bexigas, da varíola. Ou o Brutamontes de sobrepeliz branca e
cornos negros como os do diabo, a encomendar a tua alma.
Não, não se brincava com a morte, quando eras menino. A não
ser nas brincadeiras de guerra (não se dizia brincar mas reinar), no alto do Castelo, nas escadinhas da rua do Cemitério ou no largo do Convento. Nunca querias ser índio, porque tinhas que fingir de
morto, um olho aberto, outro fechado. E usar arco e flecha. Os cobóis, esses, nunca morriam. Eram os
heróis gregos dos tempos modernos. Mas nenhum se chamava Ulisses. E tinham revólveres
e espingardas. E todos queriam ser o xerife.
Tu querias imitar o Cary Cooper ou o John
Wayne que chegarás a ver no cinema do Clube, um casarão que começava
na tua rua e ia até à outra rua abaixo
da tua. (Infelizmente, nada resta do edifício, nem sequer uma placa, foi mais
uma vítima do camartelo camarário, e do tsunami que varreu a memória coletiva
da tua aldeia.)
Enfim, essa era a vantagem de seres menino e moço e de ainda
não teres uma imaginação mórbida nem seres masoquista. Sê-lo-ás mais tarde, ao
desejares ser órfão!... Aos onze ou doze anos, quando já fores um ser híbrido,
um púbere, uma amostra de gente, mas eleito
de Deus. Enfim, tudo fruto das dores do crescimento, dir-te-ão mais tarde, prosaicamente.
Mas é quando se deseja ser órfão, que acaba a infância e desaparece a rua onde
foste menino. A rua da tua infância. Até então os teus pais eram os teus
heróis. E a tua rua era o teu palco de brincadeiras, a extensão da tua casa, o
centro do teu pequeno mundo.
Se algum bebé morria na vizinhança, era logo metido num
pequeno caixão branco, com pegas de latão amarelo. A morte vestia-se de branco, naquele tempo. Da cor das
asas e dos fatos dos anjinhos e das colchas das procissões, das noivas e das
flores da laranjeira. Não havia grandes choros. “Deus o deu, Deus o levou”. Tão
simples quanto isso.
Não podes hoje jurar que te lembravas de algum anjinho,
na tua rua. Aliás, era feio jurar, dizia a tua mãe. A memória hoje prega-te partidas, é
seletiva, tantos anos depois. Por certo deves ter apanhado no ar bocados de conversas da tua mãe ou das vizinhas, a
bichanar entre elas para que as crianças não ouvissem e não se perturbassem e não
fizessem xixi na cama à noite. A morte
perturbava os vivos, que se vestiam de preto quando morria algum adulto. Nunca
se falava da morte e dos mortos à mesa. Muito menos dos que lançavam uma corda
por cima do barrote da adega e se enforcavam. Nunca se falava da morte e dos
mortos à frente das crianças. Nem da
morte nem do sexo. Eram tabu, o sexo, a morte, Deus, a Pátria e a Família.
Mas, se não foi na tua rua, terá sido na rua abaixo. Ou no largo da Bica. Anjinho não
tinha nome próprio, muito menos sexo, nem
morada. Tinha direito apenas a uma cova, pouco funda. E um número em chapa de
ferro. Era apenas isso, um anjinho. A não ser que a parteira ainda fosse a tempo
de o batizar, “in extremis”, e na ausência do padre… Davam-lhe então nome,
cristão, que seria o mesmo da próxima criança a nascer, no seio da mesma
família, se fosse do mesmo sexo. Mas
deve ter havido algum anjinho na tua
rua, que a mortalidade infantil era alta nos anos quarenta e tal do pós-guerra em
que nasceste.
Se algum bebé morria, ou nascia
já morto, na tua rua ou na rua abaixo, ou ruelas e travessas perpendiculares, metiam-no
logo no caixão branco, de tábuas de pinho, e levavam-no para o talhão dos anjinhos no cemitério que ficava logo
ali, a 100, 200 ou 500 metros. Acompanhado de meninos de sobrepeliz branca. Não tinha direito a padre, como os suicidas
ou os infiéis ou as mulheres públicas. Nem caldeirinha de água benta. E muito menos a uma lápide tumular com o RIP dos romanos, o requiescat in pace. E lá ia direitinho, coitadinho, para o
“limbo”. Nunca te explicaram o que era o “limbo”: uma nuvem muito grande que
funcionava como depósito dos “anjinhos” que não tiveram tempo de ser batizados
como cristãos. Por quanto tempo ficavam lá ? Não sabias, nunca te souberam
explicar isso, direito. Mas a tua curiosidade também era limitada, naquele tempo.
A rua dos Valados
era também a rua do Cemitério. Para
ti era a mesma rua, com o mesmo empedrado, não fazias distinção. E era
comprida. Ia do Castelo às Aravessas.
Para os enterros poderem levar muita gente. Sobretudo os enterros dos ricos.
Isto é, dos importantes. Na tua terra confundia-se por vezes os ricos com os
que mandavam e eram importantes. Os ricos não precisavam de mandar. Tinham os
criados e os feitores que mandavam por eles, em nome deles. E as demais “forças
vivas”, que estavam sempre do seu lado. E tinham charretes e cavalos e galgos e
podengos para correr atrás nas lebres e das perdizes no Cercal do Alentejo. E mastins para
açular os amigos do alheio.
Aliás, mandar era uma
chatice, um incómodo, uma boldreguice. Às vezes era precisar calçar as botas de cano alto e afogar em sangue os que
não queriam ser mandados e alçavam a cabeça, como os burros, os machos e os
cavalos, quando se lhe punha o cabresto. Era para isso que servia o chicote que
deixava o corpo do recalcitrante em carne viva no tempo em que ainda havia escravos. Já não te lembras desses tempos, só dos criados de lavoura e das criadas de servir.
Que a importância social do habitante da tua aldeia, media-se,
quando morto, pelo número de acompanhantes do seu féretro e pela riqueza
ou grandeza do jazigo da família. Ou pelo número de padres de fora que
abrilhantavam as cerimónias fúnebres… E pelo número de vozes no coro que
cantavam o Requiem. Havia vozes lindas no coro da igreja da tua aldeia. E uma
delas era a da Branca de Neve, a tua
catequista.
Ao longo da ruela principal do cemitério velho, alinhavam-se os
jazigos de família, em estilos revivalistas. Cobertos de musgo e líquenes, os jazigos das famílias
importantes datavam do virar do século XIX e da 1ª primeira metade do século XX.
Parte da história recente da tua aldeia
estava lá inscrita nas lápides dos jazigos, desde que se construíra o cemitério
na segunda metade do século XIX .
E, depois, havia o talhão dos Anjinhos
e o dos Combatentes da Grande Guerra,
de quem já ninguém se lembrava nada, a não ser o nome de rua de algum coronel
de bigode façanhudo, sobrevivente das "campanhas de pacificação" em África ou das trincheiras na Flandres. Anjinhos e antigos combatentes não se misturavam com o
povo das catacumbas. Nunca vistes ninguém rezar por eles. Ninguém rezava aos heróis que tinham morrido pela Pátria, e muito menos aos anjinhos que iam parar ao limbo.
Se algum velho morria, os putos da tua rua não davam conta. Os putos só queriam era reinação. Os filhos, sim, esses é que se preocupavam com os velhos que morriam. Porque passavam, os
filhos, a dar um passo em frente na fila da morte. E depois dos filhos, eram os
netos.
Era tudo muito mais simples aos teus olhos de menino e moço. Simplesmente, deixavam,
os velhos, de estar à janela, o nariz
esborrachado contra o vidro embaciado, o olhar vidrado, a respiração rouca. Horas
a fio, como as múmias do Egito que nunca viste. Ou então como os bonecos de palha que se punham nos
campos de trigo, a servir de espanta-pardais.
Era uma terra, então, de searas de trigo e de vinhas e de
moinhos, a tua aldeia, estendendo-se
por montes e vales, até às arribas do mar. E todas tinham dono, até as arribas. Só mar, não, porque era livre e selvagem com um potro. Estava tudo cadastrado. Até as Berlengas tinham dono. Com nome registado nas
finanças e na conservatória do registo predial.
Ou então ficavam sentados à porta da tasca, os velhos, a
fumar a sua beata, entre dedos enrugados, trémulos e amarelecidos. Como o teu
avô paterno, Domingos Henriques,
natural do Mont’oito. Casou três
vezes, teve três famílias, contava-te o teu pai. E “tinha três pinhais e sete
fazendas”…
Não te lembras da sua morte. Nem da sua vida. Só das suas
muletas de pau, almofadadas na extremidade superior, e do seu barrete preto onde guardava as beatas
e os tostões para o “copo de três”. E da
sua farfalheira. A última vez que o viste, coitado, foi sentado à porta da taberna do Macaco (ou ainda era a do Maneta ?).
Não te lembras de ir ao funeral do teu avô. Nem de alguma vez
de ele te ter afagado o rosto. “Ficou entrevado dos resfriados do mar”, dizia o
teu pai. Delapidou o património com a “filharada” e os “amigos do petisco”,
contar-te-á mais tarde, quando fores mais crescido e tiveres o entendimento das
coisas comezinhas da vida. O teu pai resumia muito bem, e com humor negro, a história
de vida do seu pai, e teu avô, que do segundo e terceiro casamentos “tivera 11
filhos e um suplente", ou seja, "uma equipa de futebol”.
Aliás, havia poucos velhos na tua aldeia. “Na era de trinta e um, poucos moços, velhos nenhum”. O teu
pai nunca esqueceria a morte da mãe, tinha ele dois anos. Morreria jovem, aos vinte e tal anos, a tua avó. Tuberculosa.
“Tísica”, como então se dizia. Nunca lhe
deu um beijo, ao teu pai. Punha-lhe a mão em cima da cabeça, num gesto
derradeiro de despedida, sabendo que
iria partir em breve para a viagem sem
retorno. Depois de ter cumprido o seu curto papel na terra, que era parir.
Essa imagem ficou gravada a ferro e fogo na pele da memória
do teu pai. De todo improvável, aos dois anos de idade, dirão todavia os
psicólogos. Mas tu acreditavas mais no teu pai do que nos psicólogos. Nesse
tempo ainda não existiam. Ou, se existiam, tu nunca tinhas visto nenhum.
Sabias lá tu o que era a doença, a pneumónica, a tuberculose,
a tísica, a morte, a dor lancinante da
perda de uma mãe ou de um pai. Ou a tragédia da perda de um filho. E muito
menos sabias o que era a sorte. “Até à
morte, dura a sorte”, assegurava-te o
teu pai, sempre com uma “fezada” (o termo era dele) na “sorte grande”, a lotaria em que ele jogava
(ainda não havia o totoloto) e que lhe saía sempre “em branco”… Pelo menos, foi
feliz, em vida, o teu pai, contrariando o rifão: “A felicidade é como a sorte
grande: só sai aos outros”. (...)
(Excertos)
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[1] Noutras terras, diz-se rebusco, respigo…