Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade).
1. Estamos a publicar uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...
- "Na cadeia e no hospital todos tempos um lugar";
- "Quem de puta faz cabedal vai acabar na cadeia ou no hospital";
- "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer".
Mas mesmo assim, "mal por mal, antes cadeia que hospital" (Quadro X). Mas o que é o hospital ?
Historicamente, é uma criação da cristandade da Alta Idade Média;
Etimologicamente, é um termo que vem do baixo latim hospitale (lugar onde se recebem pessoas que necessitam de cuidados, alojamento, hospedaria), do latim hospitalis (relativo a hospites ou hospes, hóspedes ou convidados) (Graça, 1996).
Na Europa medieval, que irá ser profundamente marcada pela:
Na Alta Idade Média, o hospital confundia-se com a albergaria ou o hospício (do latim hospitiu, alojamento, hospitalidade, também derivado de hospes). Em geral, ficava junto às catedrais ou aos mosteiros, em conformidade com as instruções dos concílios ecuménicos de Niceia (325) e de Cartago (398).
Com;
- Xenodochia (albergarias para os estrangeiros, os peregrinos, os viajantes e todos aqueles que, em trânsito ou viagem, necessitassem de alojamento ou assistência);
- Nosocomia (hospitais ou enfermarias que prestavam cuidados aos doentes ou enfermos pobres);
- Gerontochia (estabelecimentos geriátricos, ou , pelo menos, destinados ao acolhimento de idosos);
- Ptochia (hospícios ou albergues para os pobres que não fossem doentes);
- Lobotrophia (locais destinados aos leprosos ou doentes vítimas de epidemias);
- Orphanotrophia (orfanatos);
- Brephotrophia (locais destinados a receber e a criar as crianças abandonadas ou sem família).
- em termos jurídicos, os estabelecimentos hospitalares são vistos como uma parte distinta do património geral da Igreja, estando sob a tutela administrativa e religiosa do bispo;
- a responsabilidade pela manutenção e conservação do seu património é, entretanto, atribuída à figura de um provedor, em geral nomeado pelo bispo, pelo fundador do estabelecimento ou pelos seus herdeiros (Imbert, 1958).
Além disso, o hospital bizantino estava já organizado por serviços, em função do sexo e da patologia e, seguramente, melhor equipado em termos de pessoal (médico e de apoio) que o seu sucedâneo do Ocidente cristão medieval (Rosen, 1963).
Não haverá porventura nada de mais cruel, na literatura da administração hospitalar, do que esta insinuação de que, sendo o doente um "hóspede", ele é sempre um encargo e, em última análise, é indesejável. E também não há discurso sobre a humanização do hospital que possa resistir ao efeito corrosivo e perverso desta ideia da doença como punição e expiação.
Médicos e enfermeiros falam muito da atitude regressiva do doente, em geral, e do doente hospitalizado, em particular. A infantilização seria um dos traços característicos da chamada psicologia do doente. Ora, a regressão foi, desde sempre, um mito criado e alimentado pelo próprio sistema hospitalar. Sabemos que nem todos os doentes são infantilizantes, nem todos os doentes se deixam infantilizar. Há doentes "difíceis", "reivindicativos", que exigem ser informados, no dia-a-dia, sobre o seu estado de saúde e o tratamento que lhe está a ser administrado, etc. Trata-se de um atitude que tem muito a ver com o status (social, económico e cultural) do doente.
A relação material de dependência, provocada pela doença, não deve ser confundido com regressão. Esta, sim, seria um produto do sistema hospitalar:
Tais noções (regressão e infantilização) serviriam, sobretudo, para ocultar a imposição de um modelo de comportamento, o da submissão do doente ao pessoal e à instituição hospitalares, o que põe o problema da permanência, mesmo no hospital dos nossos dias, de traços da total institution (Goffman, 1967; Walton, 1988).
Segundo Goffman (1975), as instituições totalitárias vêm quebrar as fronteiras que separam habitualmente os três campos de actividade fundamentais do indivíduo, a casa, o trabalho e o lazer:
- em primeiro lugar, as pessoas estão colocadas sob uma única e mesma autoridade (por ex., o director do hospital psiquiátrico, o capitão do navio da marinha mercante, o comandante do aquartelamento militar, a madre superiora do convento, o reitor do seminário, o director do estabelecimento prisional);
- em segundo lugar, cada fase da actividade quotidiana desenrola-se, para cada indivíduo, numa relação de grande promiscuidade com um elevado número de outros indivíduos, submetidos às mesmas regras, procedimentos, deveres e obrigações (caso do recluso no estabelecimento prisional, do recruta na unidade militar, do idoso no lar de terceira idade, ou do doente crónico, moribundo ou terminal, acamado no hospital de retaguarda ou na ´clínica da morte’);
- em terceiro lugar, todos os períodos de actividade são regulados segundo um programa estrito, isto é, todas as tarefas estão "encadeadas", obedecem a um plano imposto "de cima" por um sistema explícito de regulamentos cuja aplicação é assegurada por pessoal técnico ou administrativo (guardas prisionais, prefeitos, vigilantes, médicos, enfermeiros, sargentos e oficiais, etc.);
- finalmente, as diferentes actividades assim impostas são por fim reagrupadas segundo um plano único e racional, concebido expressamente para responder ao fim ou missão oficial da instituição (custódia dos doentes mentais inimputáveis, tratamento psiquiátrico do doente esquisofrénico, reinserção social do jovem delinquente, recuperação do doente acamado, formação militar do recruta).
Para a generalidade dos doentes, a hospitalização é sentida com um misto de culpa e de obrigação:
- culpa, por um lado, de estar doente, representando um encargo para os outros (a família, a empresa, a sociedade, o Estado, os médicos e os outros profissionais de saúde, etc.);
- obrigação, por outro, de se curar o mais rapidamente possível, de ser um doente colaborante, complacente, bem comportado, etc.
Estes dois sentimentos variam também em função da classe social e do sistema de saúde: quando o doente se sente, se reconhece e se assume como um utente, consumidor ou cliente, naturalmente que ele está em melhores condições para negociar, numa base mais equitativa.
Quadro X— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o hospital, a loucura, a misericórdia e a caridade |
Objecto | Provérbio |
Albergaria Hospital |
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Caridade Misericórdia |
|
Louco Loucura |
|
4.3. "Dar aos pobres é emprestar a Deus"
Não havia, no entanto, uma clara distinção entre o cuidar dos corpos e o cuidar das almas. Segundo a mentalidade cristã da época, a doença, o sofrimento, a pobreza e a morte estavam submetidas à vontade divina (como já vimos anteriormente, na Parte I):
A assistência aos enfermos e aos demais "pobres de Cristo" era, por sua vez, considerada como uma virtude cristã e como uma manifestação da misericórdia de Deus. Em termos metafóricos, diríamos que a caridade era vista então como uma espécie de certificado de alforro: "Dar aos pobres é emprestar a Deus" (Quadro X), ou seja, quantas mais boas obras amealhasse na terra, mais garantias tinha um cristão de alcançar o céu e, com ele, a salvação eterna.
A caridade (sob a forma da esmola) representava um investimento seguro que não punha em causa a "ordem natural das coisas":
- em primeiro lugar, "dar esmola não empobrece"; e deve dar-se apenas o supérfluo ("O que cair da mão dá-o a teu irmão");
- e depois, "mãos generosas [ são sempre ] mãos poderosas", pelo que "não dá quem tem, dá quem quer bem", e seguramente "quem deu dará, quem pediu pedirá".
Por fim, é bom não esquecer que - mesmo se às vezes "caridade de rico é mania de dinheiro" - Deus nosso senhor "manda ser bom, mas não manda ser parvo". Ou por outras palavras: "Quem dá e reparte e não fica com a maior parte ou é burro ou no partir não tem arte".
É com base neste ethos cristão, que se vão fundar milhares de hospitais e outros estabelecimentos similares, ao longo de séculos, de Constantinopla a Lisboa. Não admira, por isso, que o hospital cristão medieval vá ser estruturado, até na sua própria arquitectura e na sua organização espacio-emporal, como a casa de Deus, um lugar onde, mais do que curar a doença, se cuida sobretudo da salvação da alma. Daí os primitivos hospitais em França adoptarem a designação de Hôtel-Dieu, como o de Paris, fundado no Séc. VII (Imbert, 1958).
Nos finais do Séc.XV, surgem entretanto as primeiras misericórdias portuguesas Esta designação advém do facto de serem instituições, com o estatuto de confrarias e irmandades, que se propunham realizar as obras de misericórdia. De acordo com a tradição cristã e a interpretação do Evangelho segundo São Mateus, essas obras eram em número de catorze: sete espirituais e sete corporais, incluindo o curar dos enfermos (Graça, 1997)(Quadro XI).
Quadro XI - As catorze obras de misericórdia
(i) Sete espirituais
- A primeira he ensinar os simprezes
- A segunda he dar bom conselho a quem o ped
- A terceira he castigar cô caridade os que erram
- A quarta he cõsolar os tristes descõsolados
- A quinta he perdoar a quem nos errou
- A sexta he sofrer as jnjurias cõ paciençia
- A setima he Rogar a ds pellos viuos e pellos mortos
- A primeira he remir captiuos e visitar os presos
- A segunda he curar os enfermos
- A terceira he cubrir os nus
- A quarta he daar de comer aos famintos
- A quinta he daar de beber aos que ham sede
- A sexta he daar pousada aos peregrinos e pobres
- A setima he enterrar os finados
26de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24170 : Manuscrito(s) (Luís Graça) (219): Na despedida da Terra da Alegria: à minha querida 'mana' Nitas, Ana Ferreira Carneiro Pinto Soares (Candoz, 1947 - Porto, 2023)