1. Luís Graça, que não é antropólogo (mas ficou com o "bichinho" da antropologia / etnologia, aquando das aulas e trabalhos de campo com o seu grande mestre e amigo Joaquim Pais de Brito, no ICSTE, no âmbito da sua licenciatura em sociologia, 1975/80), tem pelo menos a sensibilidade cultural (ou socioantropológica, passe o palavrão) para olhar para o passado sem saudosismos nem miserabilismos, mas sabendo que a roda de um carro de bois, a enxada, a matança do porco, a salgadeira, a panela de ferro, a "mina" (nascente de água") ou os muros de suporte da Quinta de Candoz de antigamente (quando ainda se fazia o milho, o centeio e havia rendeiros...), todos esses "signos", todas essas "coisas & loisas" falam do "antigamente" da gente. Falam da nossa infância, falam do campo da nossa infância, falam das nossas pequenas vilas e cidades de provincia, falam dos nossos "usos e costumes", das formas de vida e de trabalho, dos nossos pais e avós... nomeadamente na regiáo de Entre Douro e Minho, a que se referem as fotos que reproduzimos acima.
Há dias lançámos o mote e o desafio (**)...Vamos lá "relembrar" algumas das "coisas & loisas do antigamente", ainda do tempo em que nascemos, crescemos, andámos na escola, começámos a trabalhar e a namorar (e alguns casaram) e, entretanto, fomos para a tropa e depois para a "nossa querida Guiné" (**)... com "licença para matar e morrer"...
Vamos abrir uma série para deixar espaço para essas "recordações avulsas", de modo a que não se percam na voragem do tempo... Interessam-nos sobretudo as nossas vivências (no campo, mas também nas vilas e cidades onde nos fizemos homens). Afinal, tudo isto faz parte do nosso ADN sociocultural, da nossa identidade, da nossa humanidade, da nossa portugalidade... São as nossas raízes "telúricas", não as podemos enjeitar, temos orgulho nelas: afinal nascemos num pequeno grande país, já milenar,,,
O pontapé de saída cabe ao nosso querido amigo e camarada, minhoto dos quatro costados, Joaquim Costa (***).
Vila Nova de Famalicão > c. meados dos anos de 1950 > A família Costa: da esquerda para a direita na fila de trás: José (pai) e Gracinda (Mãe), seguindo-se os irmãos: Maria, Avelino, Manuel (que esteve na Guiné), Eduardo (o columbófilo) e na fila da frente o João (o Don Juan da família) a Noémia e o Joaquim, o mais novo.
Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
2. Coisas & Loisas do Tempo de Meninos e Moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)
(i) ex-fur mil at Armas Pesadas Inf, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74);
(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, tem cerca de 7 dezenas de referências no blogue;
(iii) autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicaram 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022), e que publicou em livro ("Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp);
(iv) tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto;
(v) foi professor do ensino secundário;
(vi) minhoto, de Vila Nova de Fmalicão, vive em Fânzeres, Gondomar.
Terminado o verão, de pé livre e descalço, minha mãe me levou à feira para comprar umas chancas, para resguardar o pezinho da chuva e do frio no caminho para a escola bem como o “material escolar”.
O dia de feira era um autêntico dia de festa, pelo que era o êxodo das aldeias para a vila na ânsia de encontrarem alguns produtos e artigos (escolares… e não só!) a bom preço, bem como um pouco de divertimento e “galhofa” fugindo, por algumas horas, às rotinas do trabalho diário. A feira era o sítio onde tudo se vendia e em que tudo podia acontecer:
- venda de gado apalavrado no recinto da feira e selado na taberna da Sara Barracoa à volta de uma malga de vinho tinto e montes de notas saltando de mão em mão. Durante toda a tarde nunca a malga era lavada : "Sara! lave com a mesma água !");
- onde se ferravam os cavalos enquanto os homens confraternizavam e reviam velhas amizades na Sara;
- onde se apregoavam e vendiam panfletos com histórias mirabolantes : um burro que nasceu com 3 cabeças e um homem que foi “morto matado” por um coice do cavalo e ressuscitou quando o cavalo se ajoelha junto do “morto matado” de lágrimas nos olhos de arrependimento;
- onde se jogava a vermelhinha (jogo com dois copos, manuseados com destreza, e um dado) com o homem em permanente fuga da GNR, montando e desmontando a banca percorrendo toda a feira;
- onde homens se zangavam, puxando do pau para uma boa refrega, com aplausos da assistência, a intervenção da GNR e as pazes na Sara Barracoa;
- onde sempre aparecia um grupo de saltimbancos com as suas habilidades, malabarismos, magias e o mais extraordinário o “cospe” fogo;
- onde não faltava, nos dias de maior calor, a “aguadeira”, com o seu cântaro de barro à cintura vendendo copos de água com limão, quente mas que apregoava como fresca;
- onde se vendia literalmente de tudo, desde todos os produtos agrícolas, roupa, móveis, ouro, animais e tudo o mais que se possa imaginar (...não esquecendo a banha da cobra) e em que as mulheres pagavam com o dinheiro embrulhado num lenço guardado em segurança entre os seios.
Depois de feirar: ver, apalpar, experimentar, regatear e pouco comprar, lá chega o momento do caçula. Depois da compra do material escolar: uma lousa, uma dúzia de “riscotes”, uma tabuada, um metro de serapilheira para fazer a sacola… e é tudo…, lá fomos às chancas.
Não era propriamente uma sapataria mas sim um artesão de calçado com sola de pau (Socas, chancas e outros artigos em madeira. O artesão era já conhecido, pois foi ele que calçou ao longo dos anos toda a família. Conhecedor dos hábitos da família começou logo a colocar vários pares de chancas para eu provar. Lá se chegou ao número que eu considerei o mais confortável. O artesão, que já conhecia o hábito da Gracinda diz: leva dois números acima não é D. Gracinda! Claro senhor António, sempre assim foi, pois eles crescem todos os dias e este é o último e não tem a quem deixar!
Sempre usei as chancas com com papeis ou trapos enfiados na biqueira para que as mesmas não me saíssem dos pés!
Nota: As tabernas da Sara Barracoa em Famalicão e a Bagoeira em Barcelos, poiso dos lavradores nos dias de feira, felizmente, ainda sobrevivem, com algumas adaptações aos novos tempos.
24 de setembro de 2023 às 12:27 (**)
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