O A. Marques Lopes e o seu guarda-costas
1. Em maio de 1968, o alf mil at inf A. Marques Lopes está de regresso à Guiné para completar o resto da sua comissão de serviço, depois de nove meses no HMP, em Lisboa (*).
Em junho de 1968 está em Barro, na região do Cacheu, na fronteira com o Senegal, comandando 3º Gr Com da CCAÇ 3. À frente do COP 4 está o major Correia de Campos. E da CCAÇ 3, o cap art Carlos Alberto Marques de Abreu.
Na altura, e de visita a a Barro, o gen Spínola "deu indicação para se dividir a companhia em pelotões de acordo com as etnias (o tirar partido das rivalidades entre eles)"...
Vamos ver como foi feita essa "partilha" étnica, conforme a "ordem" do Spínola (**).
Como nasceram os "Jagudis", o nome de guerra do meu grupo de combate,
na CCAÇ 3 (Barro,1968/69)
por A. Marques Lopes (1944-2024)
(...) Como eu era o alferes mais antigo, o comandante da companhia perguntou-me o que é que eu queria:
– Quero os balantas – disse eu.
– Quero os balantas – disse eu.
E o meu grupo de combate foi quase todo de balantas (tinha um cabo fula, o Mamadu, e três furriéis brancos, além de mim). Ouviam a rádio do PAIGC mas demo-nos sempre bem. Porque eu sempre fiz por isso. Por exemplo: um dia, fui com um que estava doente através da mata até Bigene, porque em Barro não havia médico; emprestei dinheiro a todos, mas todos me pagaram quando me vim embora...
Foi sempre minha preocupação não matar população civil (o tal alferes Gonçalves terá alguma coisa a dizer sobre isto... lembro-me de uma situação). Mas era difícil, pois a visão e a filosofia da vida deles era diferente. Um dia, por exemplo, foi apanhado no meio de um tiroteio um velho cego.
– Mata! – foi a reacção.
– Não – disse eu.
Mas foi complicado.
Numa das tais operações do COP 3, não sei já qual, um guerrilheiro do PAIGC levou uma rajada no baixo ventre e ficou com os tomates pendurados. Disse para fazerem uma maca para o levarem. Fizeram a maca, mas não o quiseram levar:
– Alfero, deixa estar, vem jagudi [abutre] e come ele...
– Não!
Eu e um furriel pegámos na maca e começámos a atravessar uma bolanha com água pelo pescoço. A meio da bolanha, vieram dois e disseram:
– Alfero, a gente pega.
Chegámos à base de operações, onde estava o tenente-coronel Correia de Campos, um helicóptero e uma enfermeira paraquedista, e, azar, o homem do PAIGC morreu.
Em frente destes, formei o grupo de combate e, porque estava furioso, chamei-lhes todos os nomes. O tenente-coronel Correia de Campos estava de boca aberta. É evidente que nós, os ocidentais, temos uma maneira de ver as coisas, a vida e a morte, de uma forma diferente. Assim como outras, por exemplo, a democracia e a política.
Numa outra situação, houve um deles que ficou com a garganta aberta por um estilhaço de RPG2. Sucedeu mais ou menos a mesma coisa. Mas, com visões diferentes da nossas, era gente muito fixe, amigos. Tenho saudades deles e pena de não me poder encontrar com eles. Vou mandando fotografias e vou contado mais alguma coisas. (...). (**)
(...) Gostava mais dos balantas. Eram pão pão, queijo queijo. Se gostavam, gostavam, se não gostavam, mostravam logo que não gostavam. Os fulas, está bem, estavam abertamente com a tropa, mas as suas falinhas mansas e de submissão deixavam-me muitas interrogaçóes sobre o que estaria no interior,
Desconfianças minhas, talvez, mas era facto que gostava mais da natural frontalidade dos balantas. No grupo de combate anterior tinha uns e outros e ficara com essa sensação. (pág. 496).
(...) A seguir houve ordem para destroçar. Disse aos meus para ficarem. Já tinha magicado umas coisas. Havia um ou outro mais maduro mas a maioria era muito jovem, tinha que lhes incutir motivação.
– Eu quero que vocês sejam o melhor grupo de combate da companhia. Que todos vos admirem e respeitem. Vou mandar fazer uma boina camuflada e um lenço preto para cada um. Será o nosso distintivo.
Deu resultado, já sabia. Ficaram contentes e cochiraram entre eles. (....)
Vi que estavam satisfeitos e avancei com outra,
– Além disso o nosso grupo de combate tem de ter um nome paar que todos npos conheçam bem, mesmo os turras no mato quando nós aparecermos. Quem dá uma ideia ?
Fiquei a olhá-los por um momento.
– Jagudis! – disse um deles.
– Ficam com esse nome, é ? – perguntei alto.
Ficaram. Assim nasceram os "Djagudis". Tá bem, fossem abutres. A minha intenção era ganhar a confiança e a simpatia deles. Não propriamente para fazer a guerra, porque já não acreditava nela, mas sim porque tinha que estar ali e queria ter influência sobre aquela gente que desconhecia. Já me apercebera que, no fundo, eram soldados como aqueles que tivera antes, os da metrópole. Tinham sido recrutados como estes e estavam na companhia por isso. Procurei conhecê-los um a um.
O Watna, o Sumba, o Bidinté, o Abna, o N’dafá, o Kuluté, e outros, eram normais, sem nada de especial. Mas havia uns que se distinguiam. Por exemplo:
- o Falcão, o que avançara com o nome para o grupo de combate e que era o apontador da metralhadora ligeira; apresentava um rosto sempre com ar de dureza e usava umas botas de borracha, chovesse ou fizesse sol; tinha voz seca mas não era conflituoso;
- o André Gomes, a quem chamavam “o professor”, porque estudara no Liceu Honório Barreto antes de ser recrutado, que era de etnia balanta mas cristão, sempre impecável com uma camisola branca limpinha por baixo do camuflado;
- o Blétche Intéte, aquele a quem eu dera um murro por ter abandonado o posto, pequeno de altura mas entroncado, ficara seu amigo, talvez por isso; não lhe dissera que o preterira como guarda-costas mas ele andava sempre por perto com ar protector;
- e o Otcha, fula no meio de balantas, distinto só por isso, porque, sempre sereno e com voz calma, ia ganhando a simpatia de todos.
Achara tanta piada a esta situação que tentei tirar-lhes uma fotografia em conjunto mas o Moba não deixou. Disse que o Diancong, uma espécie de entidade dos animistas balantas, não permitia porque ele era Ngahy, uma categoria social deles, e o Etudja era Fuur, outra categoria social entre os 17 e os 20 anos., podia fazer com que ele não arranjasse mulher.
Não entendi bem, tal como me custara antes a entender muitas coisas e costumes daquela gente da Guiné. O Moba também não explicou, porque não tinha explicação, era só crença.
Encarreguei o André Gomes de dar aulas de português aos que quisessem, não obriguei ninguém. Nunca foram muitos os alunos porque aquilo era voluntário e a maior parte estava-se borrifando para o português.
O Blétche, se bem que já soubesse o que queria dizer “um murro no focinho”, foi um dos que quis ir, talvez por, tendo sido antes guarda-costas do Rodolfo, ter visto que era bom saber mais português.
Assisti algumas vezes às aulas e fora interessante ver “o professor” explicar palavras em português ao Otcha. Como o André era balanta e não sabia fula, a base da explicação tinha de ser em crioulo.
Com este contacto os três até se tornaram bons amigos. Mas esta amizade teve outra razão mais profunda. É que eu, informalmente mas na prática, tornei os três meus adjuntos. O Otcha por ser o meu guarda-costas, é claro, o André por ser ponderado e ter influência sobre os outros e o Blétche porque, desde o episódio do murro, se tornara um fiel admirador meu.
Mas houve também outro factor de peso nesta escolha. Na primeira noite que saíra com eles para uma emboscada num dos carreiros de infiltração, ficara admirado por vê-los todos a ir munidos de cantil. Não ia ser preciso assim tanta água, mas tava bem, não liguei.
Ao fim de uma hora depois de se instalarem fui dar uma vista de olhos pelos locais onde estavam distribuídos. Espanto. Grande parte deles estava a dormir e os que não dormiam estavam quase bêbedos. Vi logo que o que tinham levado nos cantis era aguardente de cana.
Só o Otcha não, estava ao pé de mim, além de que era fula e não bebia. O André também não, estava atento, só bebia às vezes e pouco, não era por hábito. O Blétche estava bem desperto. Sabia que bebia, mas ele mostrou-me que não tinha levado aguardente de cana. Mas os outros estavam todos mais ou menos apanhados pela cana. Dei um raspanete aos furriéis e ficou assente que, de futuro, ninguém saía à noite com o cantil.
E foi assim em todas as noites que saímos aos corredores para emboscadas (pp. 500/503)
(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 7 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26017: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (13): Uma descida ao inferno do Anexo de Campolide do Hospital Militar Principal (onde visitou o ex-prisioneiro Manuel Fragata Francisco) e o regresso à guerra ("Cabra Cega", 2015, pp. 475 / 484)
(**) Vd. poste de 23 de outubro de 2024 > Guné 61/74 - P26069 O Spínola que eu conheci (37): "Nunca foram ao Senegal ?!... Deixe-se de rir, nosso alferes, pois comecem a pensar em ir lá"... (A. Marques Lopes, 1944-2023)
(**) Vd. poste de 23 de outubro de 2024 > Guné 61/74 - P26069 O Spínola que eu conheci (37): "Nunca foram ao Senegal ?!... Deixe-se de rir, nosso alferes, pois comecem a pensar em ir lá"... (A. Marques Lopes, 1944-2023)
(***) Vd. poste de 6 de junho de 2005 > Guiné 63/74 - P47: O Alferes Lopes, com os balantas (CCAÇ 3, Barro, região de Cacheu, 1968/69)