quinta-feira, 23 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4726: In Memoriam (28): Saudades da nossa Locas (1976-2009): com a dor e o riso também se faz o luto... (Cristina Allen)

Lisboa > No eléctrico amarelo da Carris > Uma das últimas fotos da Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos (1976-2009), de chez les vivants... (*)

Foto: Cristina Allen (2009). Direitos reservados



1. Mensagens do nosso camarada Mário Beja Santos:

17 de Julho:

Meu caro Luís, oxalá não se tenha cometido nenhuma besteira no texto que acabamos de digitar. 2ª feira envio-te a fotografia que a Cristina sugere que acompanhe este agradecimento a todos os que nos confortaram. Não te esqueças do trabalho da Glória, de que ela andava tão orgulhosa. Recebe um abraço de profunda amizade e gratidão, Mário

20 de Julho:

Meu caro Luís, a Cristina pede-te a gentileza, quando lhe publicares a notícia que te enviei na passada 6ª feira que ponhas esta imagem que junto, era o lindo sorriso da nossa filha, foi seguramente uma das últimas fotografias. Tenho uma novidade para te dar: vou oferecer ao blogue, tão cedo quanto possível, as minhas recordações anotadas da minha missão na Guiné-Bissau, em 1990 e 1991. Não será para já, primeiro quero acabar a Mulher Grande e depois voltaremos à Guiné, onde procurei dar o meu melhor numa possível política de consumidores, tudo parecia ir arrancar bem, tudo falhou, com grande mágoa minha. Recebe um abraço do Mário



2. IN MEMORIAM (28) (**) > DE DOR, GRATIDÃO, ESTÓRIAS, RECADOS E RISOS SE FAZ LUTO
por Cristina Allen



Amigas e Amigos,

Pensara despedir-me de outra forma deste blogue (***). Há, numa gaveta, dois textos inacabados, um risonho, outro mais sério. Deixá-los estar na gaveta, até um dia.

No dia 26 de Janeiro deste ano atribulado, acordando de uma intervenção cirúrgica, escrevera, no tabuleiro do pequeno-almoço, uns modestos versinhos a Bissau, em modos de despedida. Posteriormente lhes dei alguma forma, já que os efeitos da anestesia me tinham obliterado sílabas. Bastava, pensei, Adeus Bissau!

Mas fui-vos acompanhado no blogue e a súbita, escancarada morte de Nino Vieira me aguçou a curiosidade. Que diriam vocês?

Eram longos – e muitos – os vossos comentários. Perdoai a minha crítica mas, se foi grande e justo o vosso louvor das capacidades de estratégia militar do Presidente assassinado, alguns de vós reflectiram uma quase irmandade de guerreiros adversos afundados no choro, o que me deixou perplexa.

É que vira na televisão a imagem de um preto gordo (assim ficara ele?!), com um anel imenso, um desmesurado “N”, em relevo, desafiando, desatento, a desgraça do seu povo, tirano e corrupto (dizem), o seu ego avassalador a trair, por longos anos, o ideário de Amílcar Cabral, que deveria ter cumprido. Não só ele o fez, mas ele mais que outros.

Conheço, no mínimo, duas vítimas suas e de muitas outras sei. “Paz à sua alma”, pensei. Quem era eu para o julgar? Também meu ego não é dos mais pequenos e sou a mulher dos 24 anéis, alguns bem desmesurados.

Pensei em enviar-vos o seco comentário de Mário Soares, de quem discordo tantas vezes: “Viveu na violência, morreu na violência”. Mas dei de ombros, não fosse despertar animosidades ideológicas, e rumei aos escritos aparentemente leves do Jorge Cabral, já que a seriedade não precisa de ser carrancuda... Adiante!

Na missa do 7º dia do passamento da minha filha e do vosso camarada Beja Santos, foi um consolo receber, cá fora, tantos abraços e gente cuja escrita conhecia, mas não rosto. A solidariedade e compaixão são, no meu sentir, das mais belas virtudes que, por dentro, nos aquecem.

Ao ver-vos ali, um pensamento súbito me acudiu – estes regressaram vivos; outros não. E um lamento de Adriano: “(...) nunca mais acenderei no meu o teu cigarro (...)”.

É que assistira, há 40 anos e alguns escassos meses, à missa de corpo ausente do melhor amigo do Mário, que cuidou de mim até partir para Moçambique, como alferes miliciano, [o Carlos Sampaio, na foto à esquerda].

Fora-se, com a estranha convicção de que lá morreria, e, terrível augúrio, a ideia de que nunca mais nos veríamos.

Tudo isso aconteceu. Uma mina (ter-se-ia ele adiantado ao picador?) desmantelou o seu delgado corpo, instante de beleza masculina, fez esvoaçar, nos ares de Cabo Delgado, os sonhos da poesia, da filosofia, de uma renovada livraria. Parou para sempre a sua mão que, à espátula, pintava texturas e tonalidades de azul. Acabou-se, para sempre, a voz irreverente do seu fado vadio. Veio de férias, ainda, e de tantos encontros combinados ao telefone, nenhum aconteceu. Soube que destruíra toda a sua pintura, restando apenas uma tela que eu guardava no meu quarto.

Outra citação poética me acode: ”(...) jaz morto e arrefece / o menino de sua mãe (...)” [, do poeta Fernando Pessoa].

Jazeu morto e não tiveram sua mãe, e irmãs, aquela necessária e crua certeza dolorosa de afagar, beijar a sua gélida face, de enovelar nos dedos os seus belíssimos de ouro quente.

Nós, pais e irmã, mais venturosos fomos no cumprimento inexorável fio de dor, caminho aberto ao luto que a benigna natureza manda. Não afagámos, na imaginação e nas memórias, a dureza da notícia, mas um corpo, carne da nossa carne, sangue do nosso sangue, num frio e sempre eterno sono, rasando o infinito.

Falo-vos dessa missa terrível do corpo ausente, porque ela ocorreu na véspera da celebração do contrato civil, por procuração, das minhas núpcias com o pai das minhas filhas. A minha mãe convidara para o almoço escassos parentes e amigos. Veio o notário.

Mas arrastara-me penosamente da cama e penosamente me cuidara, tremendo de frio e em lágrimas banhada. E, em lágrimas, fiz o necessário. Naquele mudo pranto, já nem sequer as limpava, estranha noiva!

O Mário tinha telefonado, contente, e eu só lhe perguntava, ansiosa, se recebera a minha carta. Receava estragar-lhe a festa que, em Bambadinca, se fazia. Não sei se disse ou não, mas ele sabe. Sei apenas que a carta cautelosa chegou num outro dia.

Fui ao blogue, no passado fim-de-semana.

As condolências, a vossa poesia, o belíssimo comentário da liturgia desta outra missa, a vossa capacidade de estar perto e reconfortar foram um benfazejo lenitivo. Ser gregário compensa e salva-nos, por vezes, do mais aterrador solipsismo em que a alma se estilhaça.


E, inesperada e súbita, estala no blogue uma violenta briga de homens que a tecnologia temperou. Mas a ira estava lá, senti-a. E também eu fui contagiada. Mas passou.

A mente vagueou, rápida. Quem seria o “Pirata Vermelho” que teria escrito, a ponto de ser censurado? Conjecturas...Talvez tivesse achado excessivo tantos escritos, por causa de uma rapariga morta. Quiçá antigos diferendos, ideológicos ou pessoais, alguma rejeição das emoções à solta. E lá descobri, por fim, um nome: Salvador. Nome belíssimo.

É chegado o momento dos recados.

É exactamente para o Salvador que ora escrevo:

“Sabe que também a minha filha gerava a controvérsia? Em tempos em que era muito esbelta e estranhamente bela, por causa da sua exuberância e pressa de viver, andaram à briga forte e feia (Ria-se, ando agora a tentar ajudar no concerto de corações partidos...). O Salvador contribuiu para evocar, em mim, um quase divertido, mas arriscado cenário, que faz pano de fundo às suas estranhas “epifanias”.

Por isso, do coração lhe perdoo esta “pedrada no charco” por dentro do meu luto. Faltava neste doloroso puzzle uma peça solta. E o Salvador colocou-a ou fê-la surgir na mansidão latente. Não fez de “Pirata”, fez de Peter Pan!

Aceite, por favor, um conselho de uma mulher pouco sábia e, também ela, controversa – não se esconda nunca, pois não é preciso. E, com esse belo nome que lhe deram, salve-se, por si próprio, de si próprio. Corre o risco de ser menos amado, ou não ser tão generosamente reconfortado em suas penas, se e quando as tiver, pois jamais se sabe quando elas chegam.

Outro recado para o Luís Graça, desta vez.

Sabe que, na minha família há uma tradição em pompas fúnebres e momentos lutuosos, de gafes, informações corrigidas, risadas abafadas? Por algumas respondo eu, atrapalhada. Por outras, não. Carinhosamente, aqui vão os meus reparos e informes.

- A minha filha chamava-se Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos (deve estar a rir-se desta troca de apelidos!).

- A senhora que leu aquela curta e comovente passagem e não vos desejou, por ora, dar o texto, é alentejana, de Grândola, a meio caminho entre esta sua amiga e o Torcato. Faz voluntariado nos hospitais e até em favelas brasileiras. Tem uma voz lindíssima, foi – e talvez ainda seja – solista no coro da Igreja do Campo Grande. Chama-se Maria da Graça Espada Gersão Lapa.

- O Abudu Soncó não é neto do régulo Malã mas o seu filho “mais menino”. A poligamia é uma coisa complicada, quando se trata de genealogias. Era professor, sonhou dar melhor futuro aos filhos, trabalhou duro na construção civil, já sofreu dois enfartes. Mas continua a sonhar, o filho mais velho vai estudar em Argel, em breve.

- Por favor, não se arme em casamenteiro! A Sofia Arede, realizadora da SIC, na “Grande Reportagem” e jornalista, e o Pedro Calhau, igualmente jornalista, não são casados. Talvez um deles quisesse, mas o outro não (Risadas dos amigos e também minhas! Quem sabe se a picaresca Glória, amiga de ambos, não estará, também, a rir-se!).

A todas e a todos deixo um abraço de agradecimento e uma charada em italiano medieval, mesmo para os não crentes:

“(...) Laudato si, mi Signore, per sora nostra
Morte corporale, da la quale nullo ome vivente
po´ scampare. Guai (1) a quelli che morranero
ne le peccata mortali! Beati quelli che troverà
ne le tue sanctissime voluntati,
ca la morte seconda no li farrá male.”



S. Francisco de Assis, “Cantico delle Creature”
Versão original (*****)


Até breve! Cristina Allen

(1) ”Guai” – guiai. S. Francisco não foi Doutor da Igreja. Não havia nele qualquer traço de maniqueísmo teológico da negra Idade Média. Como conversará ele, um dia, com Herr Ratzinger?


2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Cristina, pelo teu soberbo texto, pela ternura contida com que falas de nós, pela grande dor que mal consegues conter ao evocar a tua Locas, pela altiva nobreza com que desancas o ex-Pirata Vermelho que seguramente nunca foi camarada da Guiné nem sabe o que é a compaixão, enfim, pela fina ironia com que elencas (e brincas com) as nossas gafes, a começar pela troca de apelidos da tua Locas... Já fiz as correcções que a leitura do teu texto me sugeriu... As nossas desculpas... Espero que a nossa blogoterapia te ajude, de algum modo, a superar este tremendo vazio que te deixou, a ti, ao Mário, à Joana, aos demais familiares e amiogos, a perda da Locas. Um chicoração do Luís Graça.


____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

6 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4644: In Memoriam (24): Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos: "Morte, onde está a tua vitória ?" (Mário Beja Santos / Luís Graça)


6 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4645: In Memoriam (25): Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos (1976-2009): Missa do 7º dia, 4ª feira, 19h, Igreja do Campo Grande

9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4660: In Memoriam (26): Fazendo o luto pela Maria da Glória e agradecendo a todos a solidariedade (Mário Beja Santos)

10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4664: Blogoterapia (116): Os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são (José Martins)

(**) 14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4685: In Memoriam (27): Recordando o Major Raul Passos Ramos (José Borrego)

(***) Postes da Cristina Allen, que é membro da nossa Tabanca Grande, publicados no nosso blogue:

9 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...

8 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3850: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (2): Quarto, precisa-se, por favor!

19 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3913: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (3): Quanta chuva, Mário ?

24 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3933: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (4): Cenas, pouco edificantes, de caserna, que não contarei...

24 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3667: As Nossas Mulheres (2): De Bissau a Lisboa, com amor (Cristina Allen)

(****) Citação, julgo eu, retirada de:

Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar (1903-1987), romance publicado pela primeira vez em França em 1951.

(*****) Tentativa de tradução:

Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã,
a morte terrena [corporal], da qual nenhum homem vivo
pode escapar. Guiai [ou ai d'] aqueles que morrerem
em pecado mortal! Bem-aventurados aqueles
que seguirem as tuas santíssimas vontades
pois a segunda morte não lhes fará mal
[ou não morrerão uma segunda vez].


Francisco de Assis (c.1181-1226), Cântico das Criaturas

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4725: Blogoterapia (120): Como falam as fotografias (António G. Matos)

1. Mensagem de António G. Matos, (*), ex-Alf Mil MA da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, com data de 20 de Julho de 2009: Caríssimos editores, Assim o considerem e aqui fica mais um dos meus flashbacks a pretenderem ser post. Um abraço amigo, António Matos 2. Como falam as fotografias!... Que clarividência!... Quanta angústia!... Quantas ilusões e desilusões naqueles corações de meninos que se apertam de encontro à carcaça do "Carvalho Araújo" na incerteza do dia seguinte.... E quanta afeição nos agarrou àquele barco para o resto da vida.... Lá dentro, um sentimento indefinido e confuso dum certo dever patriótico que não se ajustava ao desprezo aviltante criado pelas condições em que, principalmente os soldados, eram transportados para uma acção de defesa duma pátria que tudo lhes ficava a dever!... Até a vida !... Como falam as fotografias!... Desde o cais de S. Miguel até ao de Pijiguiti foram 10 dias sofridos, de uma lassidão confrangedora que a calmaria proporcionava, com uma derivação à Ilha do Sal para abastecimento de água (até nisto a ironia do destino...) e regresso ao Atlântico para a recta final... Para além do mais, tivemos que aguentar uma viagem com o barco inclinado (vejam as fotos!) que criava umas dores de costas dos diabos! O "Carvalho Araújo", também ele já entregou a alma ao Criador... Sinal dos tempos... Ficam-nos as recordações fotográficas para memória futura... António Matos Navio Carvalho Araújo > À partida de S. Miguel Navio Carvalho Araújo > À chegada a Bissau __________ Notas de CV: (*) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4674: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (16): O alvoroço dos (re)encontros: obrigado, malta da CCAÇ 2790 (António Matos) Vd. último poste da série de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4710: Blogoterapia (119): As Fantas, as Marias, as Natachas, ou o amor em tempo de guerra e de diáspora (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P4724: Controvérsias (32): Ainda e sempre os Cabos Milicianos (Jorge Teixeira)

1. Mensagem de Jorge Teixeira (*), ex-Fur Mil Art da CART 2412, Bigene, Guidage, Barro, 1968/70, com data de 15 de Julho de 2009:

Caro Carlos Vinhal
Camarada

Os meus respeitosos cumprimentos.

Ainda a propósito dos milicianos, neste caso os ditos cabos, deixo um texto à vossa consideração para ser publicado ou não, se acharem que tem interesse.

Fica à vossa atenção.
Um abraço



2. Camaradas

Vamos voltar aos milicianos... e não só. Parece que, como sempre, a coisa está a descambar.

O que iniciamente foi posto em causa, foi o porquê da existência, e sua invenção, de um posto no Exército com a designação de CABOS MILICIANOS e não saber se os bons eram os milicianos, ou os maus os permanentes no quadro, ou vice-versa, até porque a medalha tem duas faces e os bons e os maus estão nos... três lados, ou já se esqueceram que também havia o lado chamado IN?

Por este andar qualquer dia chega-se à conclusão que afinal quem fez a guerra foram os marcianos e a culpa foi dos lunáticos.

Mas voltemos aos cabos milicianos que foi assim que começou a polémica. Não há dúvida nenhuma que fomos roubados, ou alguém tem dúvidas? Senão vejamos:

Os cadetes do COM frequentaram o Curso de Oficiais Milicianos e foram promovídos a Aspirantes a Ofícial Miliciano (classe de Ofíciais)

Os instruendos do CSM frequentaram o Curso de Sargentos Milicianos e foram promovídos a Cabos Milicianos (classe de Praças)

Ah, mas estes são diferentes porque são cabos milicianos. Então, e os outros não eram todos milicianos?

Foi algum inteligente da altura, como alguns que há agora, que teve esta brilhante ideia para poupar uns cobres e cair nas boas graças do Salazar.

Normalmente um cabo miliciano era formado, de base, em 6 meses. Os atiradores eram colocados em unidades de recrutamento e eram, eles, chefiados pelos aspirantes do mesmo curso, que ministravam uma, duas, três ou mais recrutas, conforme eram ou não mobilizados.

Alguns eram colocados a fazer serviços administrativos, como foi o meu caso que fui colocado na "Torre de Controle" do GACA3 (o quartel tem partes do aeroclube local e as casernas são nos hangares) a dar os pareceres para o "Amparo de Pais". Também mandei ou ajudei a mandar alguns para casa mais cedo. Livraram-se da guerra?

Todos faziamos serviços à unidade como se de Sargentos se tratasse, mas éramos cabos para todos os efeitos, e pagos como tal, e aqui é que está o "busílis da questã" (como diz o meu primo d'aldeia).

Já agora, estive de Sargento de Dia à unidade no Natal 67. Foi para me habituar.
As outras especialidades que não atiradores, tinham também o seu tempo de treino devido ao estágio especial.

Mas não se pense que os atiradores ficavam por aqui. Aquando da mobilização tinhamos mais três meses ou de Minas e Armadilhas, ou de Operações Especiais (no duro, não era brincadeira, então quando era no inverno em Lamego, era a habituação ao clima da Guiné).

Alguns conseguiam safar-se das especializações e voltavam às recrutas aos soldados.

Com isto já se passou quase um ano de tropa, e o graveto continua na mesma.

Bom!!! (diz o professor Marcelo) agora, aspirantes e mais uma vez os cabos milicianos estavam prontos para formar a companhia para ir p'ra guerra. Têm 5 meses para isso.

Com a ajuda de altos cargos, diga-se patentes? Especialistas habituados à guerra de guerrilha? NÃO!!! Nem por lá se viam. O aspirante e os cabos que dizem ser milicianos que se desenrasquem, que a isso manda a tropa.

Nem o capitão que também era miliciano, sabia que existiam cabos milicianos, foi preciso o sargento da Companhia chamar-lhe à atenção.
- Oh meu Capitão, olhe que aqueles rapazes com umas divisas esquisitas são cabos, mas chamam-se cabos milicianos.
- No meu tempo não havia nada disso, eram Cabos e Prontos.
- Pois, o meu Capitão já é antigo.
- Antigo não, só sai da tropa há 10 anitos, ainda estou aqui p'rás curvas.
- Pois, mas passe a chamar a esses cabos: Oh nosso Cabo Miliciano... (só para não haver chatices)
- Está bem, mas podia-se poupar nas palavras e na saliva. Complicados!!!

Também não admirava, milicianos? Cabos milicianos? Então e os outros cabos não são? Até parecem milícias, ou pertencemos à milicia?

A Companhia está pronta, passaram-se 16 meses e até aqui o pilim continuava na mesma.

Não é, nosso Cabo Miliciano.

Já se fez o desfile da despedida e há que embarcar, rumo não se sabe a quê.
Antes do desfile e só no dia do desfile fomos promovidos (**), ou por outra trocamos as divisas de cabo miliciano pelas de furriel, e os aspirantes fizeram a mesma coisa para alferes, lógico, sem cerimónias, presidentes ou primeiros-ministros, até porque à época não compareciam nestas manifestações.

Agora sim estava tudo direitinho, apesar de na Caderneta Militar dizer que tinha condições para ser promovido a "Furriel Milº", 10 meses antes, ou seja e sito: "Escola de Recrutas, por equivalência a dois períodos completos de instrução básica", o que quer dizer que inventaram mais um cabo miliciano, e esqueceram-se do furriel.

Agora digam lá se fomos ou não, como se diz: roubados, enganados, vigarizados por um espertinho Salazarento?

Mas a vigarice não fica por aqui, não acabou. Já estou há 6 meses na Guiné.
Na mesma caderneta diz que tinha condições para ser promovido a 2º Sargento Miliciano, (mais um das milicias) e volto a sitar: "Escola de Recrutas, por equivalência a seis meses de serviço consecutivo em Unidade Operacional".

Ora isto também ficou esquecido e nunca se verificou nem mesmo quando passei à peluda passados 15 meses.

Nunca e era tão simples, era só virar as divisas ao contrário. Os carcanhóis é que seriam diferentes, o que era uma chatice, porque iria estragar o orçamento aos gandulos, agora já na era Marcelistas/Salazaristas.

Finalmente passam 21 meses (aí tivemos alguma sorte, outros fizeram 24 ou mais) chega o descanso do guerreiro, e o miliciano que outrora tinha sido cabo, vai deixar de o ser. Agora...feitas as contas deveria ser:

- Instruendo do CSM durante - 6 meses
- Fur Mil - 16 meses
- 2.º Srgt Mil - 15 meses

...mas foram:

- Instruendo - 6 meses, sem cheta
- 1.º Cabo Mil - 10 meses
- Fur Mil - 21 meses

Total de Tropa - 37 meses (16 na Metrópole e 21 na Guiné)... e ainda se queixam, os de agora, coitadinhos, de fazerem 6 meses lá fora como voluntários, heróis a ganhar bem e na maior.

FUI ROUBADO!!!

Isto não era só comigo, passava-se com a generalidade dos ditos cabos milicianos, mais mês, menos mês.

Resta-nos a consolação que, no presente, emendar os erros do passado está fora de questão, ou a gente não estivesse já habituda a isso e muito mais, basta ver a consideração, e principalmente o respeito, que os governos e os políticos têm por nós.

Apesar de tudo, tal como diz o meu amigo,(o outro Jorge Teixeira, o Portojo) bons foram os tempos de amizade e camaradagem que passámos em Espinho no GACA3, como CABOS MILICIANOS, eramos uns Senhores.

Por essa razão ainda agora nos encontramos às segundas Quartas-feiras do mês no café Progresso no Porto para continuar essa amizade e camaradagem. Falta o Canhão... e não só, paciência, só aparece quem quer e quem pode, temos o Bioxene que também é maluco, mas há mais... malucos, claro.

Bando dos Furriéis, assim se chama, a tertúlia/conspiração no café. Designação utilizada muito antes do outro, um tal AB, chamar bando a tudo e a todos. Não tem arame pode aparecer quem quiser. E não se esqueçam da Barreta (tinha que falar nela).

Um abraço a todos os Tertulianos
cumprimento
teix-veterano de guerra
ex-Furriel Mil Art
CART 2412 68/70
Bigene-Guidage-Barro
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4417: Tabanca Grande (148): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil da CART 2412, Bigene, Guidage e Barro (1968/70)

(**) Na data de embarque fui graduado em Furriel Miliciano e só em 21 de Outubro de 1971, exactamente ao fim de 18 meses de tropa, fui efectivamente promovido.

Vd. último poste da série de 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4631: Controvérsias (24): Os Milicianos, combatentes de primeira, cidadãos de segunda (Vasco da Gama)

Guiné 63/74 - P4723: Estórias cabralianas (52): Em 20 de Julho de 1969, também eu poisei na Lua... (Jorge Cabral)

1. Mensagem do Jorge Cabral (*), ex-cmdt do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71, hoje jurista e professor do ensino superior universitário (*)

Caros Amigos,

Fui à Lua, sim senhor!...

Abraços Grandes.

Jorge Cabral

PS - Claro que lá deixei minha bandeira…



2. Estórias cabralianas (52) > Vinte de Julho de 1969, também eu poisei na Lua



Na Guiné, há mês e meio, mas já em Fá, havia nessa tarde muito calor.

O pessoal dormia e toda a gente procurara a aragem possível. Em silêncio, o Quartel repousava…

Eu porém, em tronco nu, saíra, a caminho da fonte mais pequena. Resolvera isolar-me, para escrever, calculem, um poema… Lá chegado, ainda nem escolhera um poiso confortável, quando vejo surgir, não sei de onde, um vulto de mulher, apenas com uns panos, caindo da cintura.

Eu olhei para ela, ela olhou para mim, e corremos os dois, um para o outro. Junto à água na frescura da sombra, sem uma única palavra, um Adão e uma Eva, cumpriram o destino. Nos dias seguintes, procurei-a em vão. Não, não pertencia à Tabanca, nem seria Mandinga. Quarenta anos passados, acredito, ter encontrado um Espírito da Floresta.

Aconteceu a Vinte de Julho de 1969.

Sim, nesse dia, também eu poisei na Lua. (**)

Jorge Cabral

3. Comentário de L.G.:

Ah! Grande alfero... tão pira e já tão cafrealizado!

É uma história das mil e uma noites, ou melhor dos mil e um dias, de Guiné, quenets e húmidos...E aqui não há presa nem caçador, ou melhor, não se sabe quem foi uma e quem foi outro...

Donde, neste caso, da "ida à lua em Fá", com a tecnologia mais simples e mais velha do mundo, não seria apropriado citar o provérbio (africano): "Tant que les lions n'auront pas leurs propres historiens, les histoires de chasse continueront de glorifier le chasseur"... Traduzido à letra, Enquanto os leões não souberem contar as suas histórias, são as estórias de caça que continuarão a glorificar o caçador"...

Foste à lua em Julho, em 20 de Julho de 1969... Mas, como diz o nosso povo, "Não há luar como o de Janeiro nem amor como o primeiro". Também não sei qual o melhor mês para ir à lua, poisar na lua, estar na lua. Eu, por mim, acho que (quase) todos as horas, dias, semanas, meses, anos, são bons... Mas há quem tenha as suas reservas e superstições:

"Lua de Agosto dá no rosto".
"Lua nova setembrina, sete meses determina".
"Lua de Outubro sete luas cobre, e se chove, nove"...

E há até quem vá mais longe sobre os horários:

"Lua deitada, marinheiro em pé";
"Lua nova calada, porta trancada";
"Quando minguar a lua, não comeces coisa alguma"...

Mas é precisa conhecer a dita... Sabemos que "a Lua é calma e tem vulcões no seu seio"... Que "ilumina mas não aquece"... Ou por outras palavras: "Com os raios da lua, não amadurecem as uvas"... E que mas que também " (...) é mentirosa: quando diz que desce, cresce; quando diz que cresce, desce"...Além disso, "não fica cheia num dia"...

Convenhamos que o teu feito, grande alfero piriquito caferalizado, é digno de ficar registado nos anais do nosso blogue... Dizem os africanos, na sua sabedoria milenar (ou não fora África a mãe de nós todos...) que "a Lua é coisa pouca, mas sem ela o mundo estaria incompleto"... É como as tuas pequenas estórias cabralianas: sem elas o nosso blogue seria mais pobre, quiçá mais triste... Um Alfa Bravo, alfero.
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série Estórias cabralianas > 7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4651. Estórias cabralianas (51): Alfero esfregador entre as balantas (Jorge Cabral)

(**) Vd. poste de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4713: Efemérides (17): 20 de Julho de 1969... O dia em que o primeiro homem pisou a Lua (Rui Felício, CCAÇ 2405, Samba Cumbera)

Guiné 63/74 - P4722: Depois da guerra, o stresse... da paz (4): Os dois piores anos da minha vida (João Tunes)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras > Reitoria > 28 de Maio de 2007 > Provas Públicas de doutoramento, em História Contemporânea, do Leopoldo Amado que veio defender a sua tese Guerra colonial 'versus' guerra de libertação (1963-1974): o caso da Guiné-Bissau... Uma delegação da Tabanca Grande esteve lá a ouvi-lo e a apoiá-lo...

Na foto, o João Tunes e o Leopoldo, ou melhor, o João Tunes "transmitindo a Leopoldo Amado aquilo que, nestas situações, pode fazer de melhor um amigo e admirador: absoluta confiança no reconhecimento dos seus esforçados méritos"... O João é assim, um amigo exigente e frontal, mas sempre solidário...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem, com data de 15 do corrente, enviada pelo João Tunes, membro da nossa tertúlia, desde Setembro de 2005 (é, portanto, um histórico). É um colaborador assíduo do nosso blogue, sobretudo até 2007. Costumo apresentá-lo como ex-Alf Mil Trms, tendo andado, de 1969 a 1971, por vários sítios da Guiné (não diz com quem...): Pelundo, Canchungo (ou Teixeira Pinto), Catió, Guileje, Bissau...Está, todos os dias, mesmo em tempo de pandemia de Gripe A (H1N1) no seu posto de trabalho, o blogue Água Lisa (6).



Caro Luís: Há quanto tempo não conversamos. Mas cá volto com candidatura a publicação no blogue, se o "politicamente correcto" editorial vigente assim o permitir.

Eu acredito e aceito tudo, excepto bruxas que não duvido que existem. Como sabes, para mim e quanto a mim, os meus dois anos na Guiné foram os piores da minha vida. Infelizmente, não apareceu ninguém para se oferecer ir no meu lugar, à minha volta a malta fardada só tinha olhos para ver se tinha prémio de ir para Timor, Macau, Cabo Verde ou o jack pot de não ir para lado algum, e se a canhota tinha de fumegar então fosse em Angola ou Moçambique, Guiné niqueles.

Mas lá, na Guiné, convivi com camaradas que acabaram por gostar, uns tantos até meteram o "chico". E havia, pelo menos, três maneiras de se meter o "chico":

(i) o propriamente dito, isto é, seguir a via profissional das armas e barões assinalados;

(ii) outra que era a assimilação do gosto pela guerra, descobrindo um guerreiro adormecido dentro de si, mas que implicava, explícita ou implicitamente, a justificação histórica e política da presença colonial portuguesa imposta pela força;

(iii) finalmente, a via da cafrealização, adoptando como ronco os costumes de fulas, balantas, mandingas ou manjacos, em carnavais de europeus travestidos de africanos, estereotipando as bajudas de mama rija como objectos eróticos e como se a sexualidade assim obtida fosse resultado do encontro de duas livres escolhas, transformar em prazer estético e folclórico o pôr-do-sol, o poilão, os macacos e os jacarés, uma cafrealização que era uma transmutação aparentemente adaptativa mas que mais não era que a afirmação, por via do poder, de uma pretensa superioridade eurocêntrica através do talento de se ser capaz de imitar o preto (sem que o inverso se pudesse verificar em contra-prova no mesmo plano).

Tudo isso aceitei e aceito. Porque aprendi na guerra que ela é a melhor e mais incontrolável forma de revelar um homem e precisamente por isso tudo se deve fazer para que um homem, todos os homens, não se revelem numa guerra pois as surpresas podem assustar.

Tento não me guiar pelo politicamente correcto de que falas e que não estou certo de sobre isso ter o mesmo entendimento que tu (depois do tanto que leio no blogue, fico com a ideia que o politicamente correcto ou dominante é ter gostado de lá ter estado, que devíamos lá ter estado, foram tempos porreiros, só não ganhámos a guerra porque ela não chegou ao fim) mas não faço questão de eventuais desencontros sobre os termos. A minha ternura solidária para com os meus camaradas da Guiné ensina-me a olhar todos por igual, pois cada homem é o seu mundo. Eu procuro aprender com o meu, os dos outros são gestões privadas em que não me meto. Só quero que sejam todos muito felizes.

Em homenagem aos vários diferentes, proponho a transcrição de uma peça histórica, um memorando enviado em 1960 por Amílcar Cabral e os seus companheiros ao governo de Salazar sobre o futuro da Guiné. Esse documento não teve resposta. E dessa falta de resposta nasceram todas as nossas viagens fardadas até à Guiné, para gosto de uns e desgosto de outros.

Com o habitual e forte abraço, segue o texto, Memorandum enviado ao governo português pelo PAIGC em 1960 (Poste de 9 de Julho de 2009, de Diana Andringa, no blogue Caminhos da Memória, de que o João Tunes é colaborador). [Devido à extensão do documento, não o vou publicar hoje, reservo-o para um próximo poste; fico, em todo o caso, o link, permitindo o acesso imediato ao histórico texto do PAIGC, tão pouco ou nada conhecido entre nós].

2. Comentário de L.G.:

Pois é, João, há quanto tempo não conversamos!... Dantes, eu ainda tinha o bom hábito de te telefonar de vez em quando. Agora falta-me o tempo, e sobretudo o (pre)texto... Mas não vale a pena arranjar desculpas nem alibis.

Pois é, o blogue aproximou-nos desde meados de 2005 e, às vezes, tem-nos separado... Deixa-me dizer que tenho saudades tuas. Da tua poderosa escrita, da tua frontalidade, da tua coerência de pensamento... Agradeço-te muito teres respondido, desta vez, à minha provocação, de resto canhestra ou ambivalente: como não vejo o mundo a preto e negro, e queria ter sol na eira e chuva no nabal, incentivei os tabanqueiros a falar da experiência da Guiné como um todo, embora com um enfoque especial na guerra... Mas também do regresso a casa, logo da paz, e do necessário coping da transição entre a guerra e a paz (sobretudo interior)(**)...

Há sempre que contar, do outro lado da blogosfera, com grandes e talentosas polemistas como tu... Digo do outro lado da blogosfera, como se tu não pertencesses, de pleno direito e de corpo inteiro, à nossa Tabanca Grande (ou tertúlia, como preferires). Mas, como eu também gosto de te dizer, tu tens aqui o estatuto do outlier (em termos estatísticos), ou melhor, do marginal-secante: intersectas dois sistemas de acção, tens o teu próprio blogue, colaboras noutros blogues, tens as tuas outras causas e bandeiras...

Sei que, para além do teu Benfica, não juraste fidelidade a mais ninguém... O nosso blogue (que tu continuas a insistir em chamar blogue do Luís Graça) não tem nem pode ter a veleidade de ser uma tribuna de quem quer que seja, muito menos o porta-estandarte de causas, por muito justas, boas ou necessárias que elas sejam: eu, por exemplo, não publico aqui tudo o que me apetece, da minha lavra e autoria...

Como gostas de dizer, somos amigos mas não tu não és nem nunca fostes um yes sayer... Não temos, felizmente, nenhum acordo de concordância sobre questões política ou ideologicamente (in)correctas. O único acordo (tácito) é o que enferma do espírito com que nasceu o blogue: podemos discordar um(uns) do(s) outro(s), mas respeitamo-nos... Sempre!

Sei que achas que eu abri demais o flanco... e que muito provavelmente deveria ser muito mais directivo e exclusivo como blogmaster. Continuo a pensar que a vida é a arte do possível... e que o nosso maior denominador comum é o facto de termos estado na Guiné, como miliatres, entre 1963 e 1974.

Como poeta, acredito na utopia (o lugar perfeito e ao mesmo tempo que não existe). É a única concessão que faço à ideologia... Sempre fui e continuo a ser um desalinhado, à esquerda... Igrejas, só tive uma, a que me baptizou... Aos quinze, tornei-me orfão, incapaz de me colar aos ismos... Faço um esforço por pensar por mim, e ser independente (que veleidade!), mesmo quando a independência é politicamente inoportuna, incorrecta, socialmente não desejável, etc.

Tudo isto para te dizer, meu caro João, que não sei responder à tua pergunta (tramada!), sobre o politicamente (in)correcto... Não sou capaz de raciocionar nesses termos... Mais importante: adorei o teu regresso ao nosso convívio, mesmo sabendo que não és um tipo fácil (isto é, que não faz fretes a ninguém). A tua lucidez a mim faz-me bem, a outros pode fazer comichão... Je m'en fous...

Posso às vezes discordar do teu estilo comunicacional, mas tu fazes-nos falta... Sei que a nossa Tabanca Grande pode ser, às vezes, demasiado granel e intelectualmete pouco estimulante para pessoas como tu ... Mas, acredita, ela é também o micro-retrato sócio-antropológico do teu e do meu país, um país que, afinal, não escolhemos, mas que amamos, cada um à nossa maneira. Não é o Portugal que tu ou eu ou todos nós gostaríamos de ter... Da minha parte, não tenho ideias definitivas sobre o Portugal que qostaria de ter, só para mim (que egoísta!). E mesmo que as tivesse, não as exporia aqui. Por pudor...

Por outro lado, sei da tua ternura pelos camaradas da Guiné, mesmo quando não estás intelectualmente sintonizado com eles... Tal como os irmãos, os camaradas (na guerra) não se escolhem...

Claro que vou publicar o teu escrito, como sempre o fiz... (Por uma fracção de segundo, fiquei triste só de pensar que tu podias pensar que eu não to publicaria....). Mas sou eu que te levo pela mão, desculpa a metáfora: serei eu o teu editor... É uma honrosa tarefa que fiz questão de ser eu a desempenhar... Até por que te devia a gentileza de um comentário.

Recebe um grande Alfa Bravo de um camarada que te estima e tem apreço pela tua coragem, física e moral... (Não preciso de evocar outros predicados teus para justicar o ABraço). Luís

PS - Não devia, mas não resisto a, comentar o termo cafrealização, que acho uma delícia... Ao fim e ao cabo faz parte do glosssário do meu ofício, de antropólogo e sociólogo... Logo, sinto-me em casa, para fazer uma abordagem sócio-antropológica do conceito ou da ideia...

Há séculos que somos cafres, o que estamos cafrealizados... No Séc. XVI, os nossos homens, os tetravós dos nossos tetravós, andavam embarcados, na aventura do ouro da Mina, da pimenta da Índia, do imaginário do mar sem fim... Abriam a autoestrada da globalização, eram os primeiros europeus a chegar ao longínquo oriente, depois de baterem, milha a milha, toda a costa de África... Éramos um milhão e picos... Tínhamos perdido mais de um terço da população com a peste negra de 1348-1353... Quem cá ficou para cuidar das nossas mulheres e das nossas crianças e cultivar os nossos campos, a partir de meados do Séc. XV e sobretudo depois da euforia das índias e dos brasis ? ... O preto da Guiné (Senegâmbia)... 15 % da população de Lisboa era de origem africana, em pleno do Séc. XVI... A nossa pool genética é também bérbere (e não árabe), judia, africana... Também somos cafres, meu camarada!

Diz o dicionário: (i) Cafre = indivíduo pertencente aos Cafres, povo banto da Cafraria, na África meridional, o qual vive sobretudo da agricultura e da caça e cuja designação tem origem da palavra árabe cafir, que significa «infiel»; por extensão, os africanos subsaharianos, os pretos...

(ii) Cafreal = relativo a negro africano (v.g., frango à cafreal, ou de cafriela)...

(iii) cafrealização (não vem no dicionário) = tornar-se cafre, viver como um cafre, adoptar os usos e costumes dos cafres...

Na Guiné, durante a guerra colonial, vimos de tudo um pouco... Soldados, milicianos, oficiais do quadro cafrealizaram-se... Conhecemos camaradas (oficiais do quadro, a milicianos, soldados do contingente geral) que compraram bajudas para poderem climatizar os seus pesadelos à noite... Ou simplesmente como investimento, obrigando-as a prostituirem-se para os seus camaradas...

Conhecemos homens que se apaixonaram e tiveram belas estórias de amor com a negrinha da Guiné, retintamente preta ou da cor do ébano... Comerciantes brancos (poucos) que fizeram a sua vida em África, constituiram família (numerosa), mas que nunca nos mostraram a sua esposa, fula, mandinga, papel... que fazia um deliciosos chabéu de peixe ou carne, ou o famoso frango à cafreal...

Conheci um, em Bambadinca, cujo casa frequentei... Estava na Guiné desde os 17 anos, tinha um bando de filhos, nunca vi a cara da esposa, que era a cozinheira (não sei se tinha mais do que uma...).

A história do nosso alfero cafrealizado é também a nossa história, a metáfora de um povo que, para sobreviver, soube plasmar-se, adaptar-se, aculturar-se, cafrealizar-se (um termo pejorativo, usado pela elite ocidental para classificar comportamentos regressivos dos civilizados em África: o antropólogo, o missionário, o administrador, o soldado, o comerciante...).

__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes do João Tunes, publicados na I e II Séries do nosso blogue:

11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo) (João Tunes)

15 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CXC: João Tunes, o novo tertuliano

25 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXI: Pelundo: Nº do batalhão ? Não sei, não me lembro (João Tunes)

27 Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVI: BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71), o primeiro batalhão do João Tunes

4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)

12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVIII: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXVIII: Ainda sobre os fuzilados... ou comentário ao texto do Jorge Cabral (João Tunes)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXVI: E os patriotas guineenses, torturados e assassinados em nome de Portugal ? (João Tunes)

24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCI: Todos camaradas, mas uns mais do que outros ? A propósito do assassínio de Amílcar Cabral (João Tunes)

24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCII: O limpo e o sujo, nós e os pides (João Tunes)

24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXVII: Fazer a catarse antes de vestir a toga de juiz (João Tunes)

27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCV: O 'turra' Luandino Vieira recusa Prémio Camões (João Tunes)

30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74- DCCCXVIII: Confissões de um pacifista: A minha paixão pela bela Kalash (João Tunes)

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXVII: A 'legenda' do capitão comando Bacar Jaló (João Tunes)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!

2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1018: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (III): E o jipe nunca voou

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1020: Stress pós ou pré-traumático ? (João Tunes)

16 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1037: Não cuspir no rancho, mas RDM... nunca mais ! (João Tunes)

9 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1088: Pensamento do dia (7): Capitão do Exército Português: 'O filho da p... do Tenente traiu-me miseravelmente' (João Tunes)

20 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1090: Op Mar Verde: O cabo enfermeiro paraquedista que foi no Grupo Sierra, do Capitão Morais e do Tenente Januário (João Tunes)

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1245: Quarenta anos sobre Catió (João Tunes)

4 de Dezembro de 2006 >Guiné 63/74 - P1337: O campo de concentração da Ilha das Galinhas (João Tunes)

18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1441: Questões politicamente (in)correctas (20): Sempe camaradas, nunca censores (João Tunes)

27 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1465: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (4): Os majores foram temerários e corajosos (João Tunes)

3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

22 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1619: Questões politicamente (in)correctas (27): Teixeira Pinto, a Coroa e a República (João Tunes)

22 de Março de 2007 >Guiné 63/74 - P1621: Questões politicamente (in)correctas (28): Salazar, um dos últimos reis de Portugal (David Guimarães / João Tunes),

24 de Maio de 2007 >Guiné 63/74 - P1783: Tese de doutoramento de Leopoldo Amado: Guerra colonial 'versus' guerra de libertação (João Tunes)

3 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1916: Álbum das Glórias (16): O Doutor Leopoldo Amado... ou a segunda derrota de Spínola (João Tunes)

30 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2008: Dando a mão à palmatória (1): A fotografia dos saudosos majores Pereira da Silva, Passos Ramos e Osório (João Tunes / Editores)

3 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2325: Massacre do Chão Manjaco: Todos iguais na morte, mas nos relatórios uns mais iguais do que outros (João Tunes)


10 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2516: Blogue-fora-nada: O melhor de...(4): Pedido de desculpas às Senhoras do MNF muitos anos depois (João Tunes, oficial e cavalheiro)

1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3008: O caso do embaixador de Portugal em Bissau (4): Não ao linchamento popular... (João Tunes / J. Mexia Alves)

2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3962: Nuvens negras sobre Bissau (5): Um adeus a Nino (João Tunes)

(**) Vd. postes de:

15 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4690: Depois da guerra, o stresse... da paz (1): Em Binta, vivi uma experiência única (José Eduardo Oliveira)

17 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4698: Depois da guerra, o stresse... da paz(2): Não foi o melhor tempo da minha vida... (João Bonifácio)

17 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4704: Depois da guerra, o stresse... da paz (3): José Eduardo Oliveira, ex-Fur Mil, CCAÇ 675, Binta, 1965/66

terça-feira, 21 de julho de 2009

Guiné 64/74 - P4721: Documentos (8): ”PAIGC – Análise dos tipos de resistência , 2 - Resistência económica”, Páginas 0 a 4 (Magalhães Ribeiro)

1. Do arquivo pessoal do Eduardo José Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil Op Esp (Ranger) da CCS do BCAÇ 4612/74, Mansoa 1974.

Camaradas,
Principalmente para aqueles que coleccionam documentação histórica relacionada com a nossa frente da Guerra do Ultramar, vou começar hoje a publicar as 5 primeiras, dum total de 28 páginas, de um dos meus documentos de arquivo.
Esta peça creio que é rara (não sei se é???), nunca a vi em mais lado nenhum, e consta de um caderno político, com as seguintes inscrições na capa: ” PAIGC - ANÁLISE DOS TIPOS DE RESISTÊNCIA, 2 - Resistência económica, Aos camaradas participantes no seminário de quadros, realizado de 19 a 24 de Novembro de 1969, (Este texto é escrito a partir de uma gravação das palavras do secretário geral)”.
O motivo de ter que se partir as 28 páginas em parcelas de 5, é o problema dos cerca de 900 KB que ocupa cada uma delas, em formato GIF (Graphics Interchange Format).
Algumas das páginas originais apresentam alguns problemas de qualidade, mas como o conteúdo na generalidade, além da história que regista, está muito interessante e polémico, aqui está.
Assim, mais creio que poderá contribuir sobremodo, para o conjunto da catarse da guerra, que temos vindo a levar a efeito aqui no blogue.
Um abraço Amigo,
Magalhães Ribeiro

Documentos: © Eduardo José Magalhães Ribeiro (2009). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

20 de Maio de 2009 > Guiné 64/74 - P4721: PAIGC Actualités (Magalhães Ribeiro) (5): O nº 48, Dezembro de 1972, dedicado à 'visita da OUA às regiões libertadas no sul'

Guiné 63/74 - P4720: Histórias de José Marques Ferreira (4): Uma estranha emboscada, CCAÇ 462, 1963/65


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Soldado Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, enviou-nos com data de 15 de Julho de 2009, mais uma curiosa estória passada com a sua companhia:


UMA EMBOSCADA À… DISTÂNCIA?

Existiam informações que davam conta da possível passagem de um grupo IN (que parece já era habitual), por um caminho já nosso conhecido, que fazia cruzamento com a estrada entre Ingoré e Barro.


Era natural a existência desse corredor, que se situava a sul da margem direita do Cacheu e a norte da estrada Ingoré - Barro.

Passada essa estrada a meia dúzia de quilómetros ficava a fronteira com o Senegal, e Ingorézinho localizava-se a poente.

Era, aquilo a que se designava então em termos militares, um importante corredor…


Face à informação recolhida, foi decidido montar uma emboscada no citado cruzamento, tendo-se previamente, como mandavam as boas regras “emboscadoras”, feito um cuidado e meticuloso reconhecimento ao local.

Já no quartel, delineou-se um plano para montar a emboscada, tendo-se tomado as devidas providências que, incluiu a antecipação da hora do jantar que foi servido mais cedo que o habitual (pouco depois das 16h00), após o que partimos para o local transportados em viaturas.


A certa altura descemos das viaturas, que regressaram à base, e todo o pessoal seguiu apeado, em direcção para o local estipulado.

Nada de anormal até aqui, o que veio a seguir é que “estragou” tudo.


Como já era hábito e conhecido, quando o horizonte se apresentava escuro, era presságio de aproximação de mau tempo. Passada cerca de meia hora, o presságio passou a certeza, pois desabou tamanho temporal em cima de nós, tipicamente tropical, com o consequente e rápido escurecimento da paisagem à nossa volta.

Não se enxergava nada a mais de um metro de distância.

A técnica já velhinha para não nos perdermos, foi seguir o caminho em fila indiana, agarrados aos casacos dos camaradas da frente, com uma das mãos.


A chuva desabou a cântaros, a trovoada era constante e iluminava perfeitamente toda a zona. Nas botas, a lama já pesava mais que as mesmas.

Os trovões ribombavam constantemente, com um ruído mais ensurdecedor que o dos disparos dos canhões e obuses.

Os efeitos luminosos das faíscas e os estrondos dos trovões, à nossa volta, eram mais espectaculares que qualquer fogo-de-artifício de S. João, que algum dia tivesse visto.


Mas lá fomos sempre a andar. Estava decidido que não voltávamos para trás, pois o temporal, tal como os outros anteriores, havia de passar e o nosso capitão estava decidido a levar a bom termo a emboscada.

Até que a certa altura, no meio daquela escuridão, o capitão manda parar, e refere que lhe parece ser ali o local onde a operação sobre o grupo IN devia ser montada.

O dispositivo das forças foi então distribuído, de acordo com o esquema pré-delineado, partindo do princípio que estávamos no local correcto.


Em pequenos grupos ou individualmente, como no meu caso, lá ficamos abrigados nos respectivos esconderijos, esperando pelo momento de entrar em acção.

Vimos as horas a passar e… nada!

Quando a manhã raiou é que constatei bem do local que me coube em sorte. Eu estive a noite toda deitado, debaixo de uma árvore de porte e altura enormes.


“Xiça, que perigo - pensei eu naquele momento -, com aquele temporal e trovoada, e eu debaixo deste “pára-raios”! Meu Deus, que sorte a minha, nenhum raio ter atingido esta árvore. Com esta altura toda… uma faísca por aqui abaixo e lá ia o filho do meu pai desta para melhor, sem apelo nem agravo!

Ao raiar a aurora, o capitão deu ordem de reunião.

Respirei com alívio e fui-me juntar aos meus camaradas na estrada, com lama em cima de medir ao palmo, e passamos a bater a zona periférica à procura de eventuais indícios da presença inimiga.


Grande bronca, pois começamos por constatar que havíamos ficado emboscados a cerca de 150 metros, acima do cruzamento pré-referenciado!

Acercámo-nos do dito local e detectamos várias pegadas humanas fresquinhas, naturalmente de pessoas, que por ali haviam passado.

Conclusão, nós não demos pela passagem do IN e eles não deram pela nossa presença…

Foi assim uma emboscada… fracassada… da CCAÇ 462.




Nota: - Aproveito esta oportunidade para enviar uma foto rara, que mostra com direito a placa identificativa e tudo, a Fonte Longa de Ingoré, onde nos abastecíamos de água salobra. Era a única nascente natural vários quilómetros em redor. Mais tarde, outros camaradas nossos chegaram a ser ali emboscados, com resultados catastróficos. Fui lá muitas vezes buscar abastecimentos aproveitando para tomar umas boas banhocas. Era vulgar encontrarmos lá, também, muitos nativos a fazerem o mesmo.

Para todos um abraço,

J.M. Ferreira

Foto: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4719: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (17): Segundo ataque ao Olossato

1. Mensagem de Raul Albino, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70, com data de 20 de Julho de 2009:

Caros editores,

Não sei quem está de serviço, mas sei que de certeza merecia estar de férias. Aqui vai mais um episódio da história da CCaç 2402, para ser lida por aqueles que não estão na praia a tomar banho.

Um abraço a todos,
Raul Albino



CCaç 2402 - Segundo Ataque ao Olossato

Edifício da administração da companhia destacada no Olossato (nesta altura a CCaç 2402)

Relato sintético do ataque:

A 18 de Janeiro de 1970, pelas 17,00 horas, deu-se o segundo ataque ao aquartelamento do Olossato, efectuado por um numeroso grupo inimigo.

Mais uma vez o nosso Capitão Vargas Cardoso não estava presente, encontrando-se em Bissau, possivelmente a tratar de assuntos da Companhia ou em consulta externa. Estas coincidências não podiam ser acidentais. Era mais que certo que o inimigo tinha informadores bem colocados que transmitiam essas ausências do Comandante da Companhia, procurando o inimigo desencadear os seus ataques nesses períodos, esperando encontrar a guarnição enfraquecida ou pelo menos descoordenada. Nas ausências do nosso Capitão, ficava no comando o alferes mais antigo, nesse dia estava o Alferes Brito a assumir essa função.

O inimigo flagelou o quartel e povoação durante cerca de 50 minutos, utilizando fogo de Canhão S/R, Morteiros 82 e 60, Metralhadora Pesada, Lança Granadas Foguete e armas ligeiras automáticas, das direcções de Mabar, Cansambo e Maca.

As nossas tropas reagiram prontamente pelo fogo de Morteiro 81 e 60, Lança Granadas Foguete e Metralhadora Breda, bem como pela manobra de um grupo de milícias que saiu na perseguição do inimigo. Face a esta reacção o inimigo não conseguiu obter grandes êxitos, embora devido à surpresa ainda tivesse incendiado duas moranças da povoação, ferindo 7 nativos, ficando um deles em estado grave. O inimigo conseguiu ainda raptar 3 homens da população que se encontravam em trabalhos agrícolas.

O aquartelamento sofreu pequenos danos materiais.

O que este ataque teve de original, digno de referência:

Neste ataque ao Olossato deu-se um episódio interessante que vale a pena contar.

Já depois do ataque ter passado, entra-me espavorido no quarto o Alf Brito. Gritava-me ele:

- Anda depressa que está na sala do soldado uma granada de morteiro 82 que não rebentou. Como tu és especialista em minas e armadilhas, vai lá tu resolver o assunto!

Bom, lá fui com ele ver o que se passava e fiquei pasmado quando me deparei com uma granada de morteiro 82, em cima da mesa de ping-pong, com o focinho – parte da frente da granada que contem o detonador – partido, podendo rebentar a qualquer momento.

A espoleta poderia reagir ao mais pequeno toque, rebentando, ou pelo contrário, ter ficado irremediavelmente danificada. Esta granada partiu o focinho porque atingiu o telhado da sala do soldado, que era feito em telha de Marselha. A telha não teve resistência suficiente para provocar a detonação, pelo que a granada fez um buraco no tecto, partiu a parte dianteira e caiu desamparada em cima da mesa de ping-pong.

Mesa de ping-pong onde caiu a granada que não explodiu, danificando ligeiramente o tampo

Vendo aquilo virei-me para o meu colega Brito, que estava um pouco nervoso pela responsabilidade de estar na situação de comandante do quartel, e disse-lhe:

- Olha, eu como especialista de explosivos, fui instruído para em situações de material instável – como era o caso desta granada – esse material deva ser destruído no próprio local, não devendo ser removido por se desconhecer em que estado ficou a munição. Isso, de facto, é uma incumbência minha ou de qualquer outro especialista desta área, mas como não é isso que com certeza tu queres, pois a sala do soldado ia pelos ares, o que tu pretendes é que a granada vá lá para fora para ser então neutralizada, não é?

Tinha-se reunido à nossa volta um conjunto de mirones, militares e nativos, a observarem a situação, cheios de curiosidade temerária. Então continuei:

- Levar a granada para a rua, é uma coisa que não requer especialização e tu próprio o podias fazer. Basta pegar nela ao colo, fazer votos para que não nos rebente nos braços e levá-la lá para fora para a rua, para o especialista tratar do assunto.

O nervosismo dele aumentou, especialmente devido à plateia que ali se reuniu a escutar o nosso diálogo. Aí eu acrescentei:

- OK! Eu levo a granada, mas afasta-te com toda essa gente, porque se a granada explodir que provoque o mínimo de baixas.

Cada vez mais nervoso, ia-me dizendo a tudo que sim. Afastou o pessoal que nos rodeava e qual não foi o meu espanto quando eu, já com a granada no colo, me apercebi que o meu colega Brito não se descolava de mim um segundo, acompanhando-me sempre até ao local onde depositei a granada, alheio aos meus conselhos para se afastar.

Em suma, se a granada explodisse morríamos os dois inutilmente, porque ele, possivelmente depois do que eu lhe disse, não estava bem com a consciência se me deixasse correr aquele risco sozinho.

Devo confessar que eu, no lugar dele, tinha-me afastado mesmo.

2. Comentário de CV

Raul, tenho a certeza absoluta que farias exactamente o mesmo que fez o teu camarada Brito. A solidariedade em tempo de guerra não se compadece com as regras de segurança.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4345: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (16): Emboscada nocturna no Olossato