Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 18 de agosto de 2016
Guiné 63/74 - P16397: Parabéns a você (1120): Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira de Lisboa e Coronel Inf Ref António Melo de Carvalho, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465 (Guiné, 1969/70)
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16394: Parabéns a você (1119): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)
quarta-feira, 17 de agosto de 2016
Guiné 63/74 - P16396: Notas de leitura (871): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VII: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (III): Na mata do Fiofioli, pensei que ia morrer, pensei nos meus filhos, que iriam ficar sem pai… coitados, tão pequenos
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > Gã Garnes [ou Ponta do Inglês] > Novembro de 2010 > Viagem de Mário Beja Santos (Op Tangomau). Foto retirada do blogue.do poste P13898, do camarada Beja Santos, com a devida vénia, onde se lê: “a vista é extasiante, o que mais perturba o Tangomau é imaginar que se viveu naquele inferno e com aquele panorama edénico, pelo menos o que se avista em direcção a Quinara, a escassos quilómetros”.
Foto: © Beja Santos (2011). Todos os direitos reservados [Edição:Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Sétima parte, enviada em 15 do corrente, das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato, a especificidade e as limitações do blogue.
1. INTRODUÇÃO
Caros tertulianos; agradeço os vossos comentários aos textos anteriores. De seguida, apresento-vos a sétima parte deste meu projecto relacionado com a divulgação de algumas das memórias transmitidas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, nos anos de 1966 a 1969, mantendo o mesmo propósito de que vos dei conta no poste P16224: o primeiro fragmento, publicado em 22 de junho último (*).
Recordo que esta espontânea iniciativa surge na sequência de ter tido acesso ao livro escrito em castelhano pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch [, foto atual à esquerda], uma coletânea de memórias e experiências divulgadas pelos seus diferentes entrevistados, a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação. disponível em http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf
Neste livro, para além dos depoimentos desses três clínicos que estiveram na Guiné-Bissau (Domingo Diaz Delgado, Amado Alfonso Delgado e Virgílio Camacho Duverger), podemos ainda conferir e/ou comparar outros relatos sobre experiências vividas na primeira pessoa por outros médicos cubanos presentes em diversas missões africanas como foram os casos da Argélia, do Congo Leopoldville, do Congo Brazzaville ou de Angola.
Recordo, igualmente, que por estar perante uma tradução e adaptação do castelhano, onde procurei respeitar as ideias expressas nas respostas dadas a cada questão, entendi não fazer juízos de valor sobre o seu conteúdo, colocando entre parênteses rectos, quando possível, algumas notas avulsas de reforço sócio-histórico ao que foi transmitido, com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos do nosso blogue, na justa medida em que cada facto relatado ocorreu num tempo e num espaço (que não é o meu!), logo único, vivido por cada um dos sujeitos.
Contudo, esta minha decisão não significa que não se possa realizar, em cada situação concreta, o competente contraditório (ou acrescentar algo mais), uma vez que neste conflito bélico existiram dois lados, daí o título com que baptizei este trabalho: “d(o) outro lado do combate - memórias de médicos cubanos”.
Cada um julgará o que é credível ou é ficção…
2. O CASO DO MÉDICO AMADO ALFONSO DELGADO [III]
Esta sétima parte corresponde, com efeito, ao terceiro de quatro fragmentos em que foi dividida a entrevista ao dr. Amado Alfonso Delgado, médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia, natural de Santa Clara, capital da província de Villa Clara, a cidade mais central de Cuba.
No que concerne aos dois postes anteriores [P16357 e P16380] (*) neles se dão conta dos antecedentes que influenciaram a sua decisão de cumprir uma "missão internacionalista", tendo por cenário desejado o Vietname, o que não se concretizou, acabando por surgir outro destino alternativo, neste caso a Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau).
A sua missão africana inicia-se na véspera de Natal de 1967, tinha então vinte e sete anos de idade, na companhia de outro médico, voando de Havana até Conacri, com escala em Gander [Canadá], Praga, Paris e Senegal.
Os primeiros três meses passou-os na Guiné-Conacri, prestando serviço médico no Hospital de Boké na companhia de mais quatro clínicos cubanos: o cirurgião militar Almenares, um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X.
A integração na guerrilha ocorre, somente, em abril de 1968, quando segue para a frente Leste para substituir o seu companheiro Daniel Salgado, médico-cirurgião militar que entretanto adoecera com paludismo.
Vai entrar em território da Guiné-Bissau, pela fronteira sul, corredor de Guileje, vindo de Boké e Kandiafara: nesta base, encontravam-se na altura vinte combatentes cubanos. Seguiram-se outras etapas ao longo de oito dias, com caminhadas cada vez mais duras, pois não estava preparado para esse desempenho. Nesse período de tempo passou por diversas aldeias onde se alimentava com farinha e carne que lhe ofereciam, afirmando ter passado fome, habituando-se, desde então, a comer pouco.
Ao quarto dia disseram-lhe que tinha chegado à Mata do Unal, na região do Cumbijã, um local onde “o tiro era abundante”. Continua a sua “viagem” a pé, chegando à foz do Rio Corubal / Rio Geba onde lhe foi transmitido que naquele lugar havia um problema mais perigoso que a tropa portuguesa, chamado “macaréu”. Quando chegou à outra margem [?], encontrou um homem branco em calções, com gorro na cabeça e uma camisa. “Olhou-me com alguma indiferença perguntando-me: tu pensas aguentar esta ratoeira? “Esquece, pois não duras nem três meses”. Perguntei-lhe porquê? Ao que me respondeu: “tu verás como isto é”.
Entre maio de 1968 e setembro de 1969 [dezassete meses], movimentou-se nas matas do Unal e do Fiofioli [Sector L1 - Bambadinca], com destaque para esta última frente, aonde esteve os primeiros nove meses de 1969, que foram os últimos da sua missão, durante os quais viveu muitos sobressaltos, com muitas corridas em ziguezague, rastejanços e dores de barriga, que implicaram sucessivas trocas de acampamento, incluindo a destruição das suas enfermarias, por quatro vezes.
Devido a todas estas ocorrências, por efeito da intervenção dos militares portugueses em diferentes acções naquela região, e das tensões a elas associadas, pensou não ser possível sobreviver. Mas, conseguiu concluir a sua missão, regressando a Cuba em outubro desse ano.
Eis a continuação de outros relatos revelados pelo médico Amado Alfonso Delgado tendo por base o guião da sua entrevista que tem com 25 questões. Hoje apresentamos a resposta (em itálico) às questões de 12 a 15 com a devida vénia ao autor, o conhecido jornalista cubano Hedelberto López Blanch (n. 1947).
Entrevista com 25 questões [Parte III, da 12.ª à 15.ª]
“Cirurgias com a ténue luz de fachos de palha ardendo” (Cap XI, pp. 136 e ss)
Durante o segundo ano que ali estive [, em 1969, no triângulo Bambadinca- Xime - Xitole, corresponte ao nosso Sector L1 - Bambadinca] realizam-se muitos desembarques de tropas portuguesas helitransportadas, por exemplo, o hospitalito [enfermaria de colmo] da Mata de Fiofioli o/a queimaram em quatro ocasiões. Cada vez que uma avioneta [DO-27] nos sobrevoava duas vezes, logo nos atacavam. Primeiro realizavam um bombardeamento, para depois desceram os militares.
Os últimos seis ou sete meses que ali estive [com início em janeiro de 1969] [os portugueses] efectuaram uma operação muito grande e demorada.
“Cirurgias com a ténue luz de fachos de palha ardendo” (Cap XI, pp. 136 e ss)
(xii) Viveu muitas tensões nesses ataques?
Durante o segundo ano que ali estive [, em 1969, no triângulo Bambadinca- Xime - Xitole, corresponte ao nosso Sector L1 - Bambadinca] realizam-se muitos desembarques de tropas portuguesas helitransportadas, por exemplo, o hospitalito [enfermaria de colmo] da Mata de Fiofioli o/a queimaram em quatro ocasiões. Cada vez que uma avioneta [DO-27] nos sobrevoava duas vezes, logo nos atacavam. Primeiro realizavam um bombardeamento, para depois desceram os militares.
Os últimos seis ou sete meses que ali estive [com início em janeiro de 1969] [os portugueses] efectuaram uma operação muito grande e demorada.
[O entrevistado faz referência à “Op Lança Afiada”, realizada pelas NT no setor L1, entre 8 e 19 de março de 1969, uma das maiores operações levadas a cabo no CTIG, movimentando cerca de 1300 efectivos, dos quais 36 eram oficiais, 71 sargentos, 699 praças, 106 milícias e 379 carregadores civis. Nesta operação, comandada pelo então coronel Hélio Esteves Felgas (1920-2008), participaram as seguintes onze Unidades Orgânicas: CART: 1743, 1746, 2338, 2339 e 2413; CCAÇ: 1791, 2403, 2405 e 2406; Pel Mil da CCAÇ 2314 e Pel Caç Nat 53 (vd. poste P11575)].
[Quinze dias após esta operação, mais duas foram realizadas no mesmo sector com o objectivo de “se completarem as destruições dos meios de vida naquela região”, cada uma delas com a duração de dois dias. A primeira, “Op Baioneta Dourada”, decorreu em 2 e 3 de abril de 1969, envolvendo a CART 1746 e as CCAÇ 2314 e 2405, num total de sete Gr Comb; a segunda, em 4 e 5 de abril de 1969, na “Op Espada Grande”, estiveram envolvidas as CART 2339 e 2413 e a CCAÇ 2406, com nove Gr Comb: as bases do PAIGC percorridas foram as situadas na zona de Satecuta, Galo Corubal e Poindom (P9095) )***)].
[Três anos depois, também de dois dias, em 26 e 27 de fevereiro de 1972, foi realizada a “Op Trampolim Mágico” (infogravura abaixo), envolvendo o meu BART 3873, com as CART 3492, 3493 e a minha 3494, o BCAÇ 3872, com as CCAÇ 3489, 3490 e 3491, a CCAÇ 12, dois GEMIL, 309 e 310, e a Companhia de Caçadores Paraquedistas, CCP 123 / BCP 12, num total de vinte e oito Gr Comb, equivalente a um efectivo de cerca de setecentos elementos, missão que contou com a presença no terreno do Comandante-chefe general António de Spínola (1910-1996).]
[Esta operação contou, ainda, com o apoio da FAP, com uma parelha de Fiat G91, uma parelha de T-6, dois Hélis e um Heli-canhão, e da Marinha, através do desembarque anfíbio na margem direita do Rio Corubal, da CART 3492 (Xitole; 4GC), CART 3493 (Mansambo; 4GC), CCAÇ 3489 (Cancolim; 1GC), CCAÇ 3490 (Saltinho; 1GC) e CCAÇ 3491 (Dulombi; 2GC), respectivamente na Ponta Luís Dias e em Tabacuta, tendo estas forças realizado acções de ataque a aldeias controladas pelo PAIGC atravessando as matas do Fiofioli até Mansambo (vd. poste P13359) (***)].
Guiné > Setor L1 > Mapa do Fiofioli > 1972 > Zona de mato denso onde estavam diversas palhotas que serviam de refúgio a elementos do PAIGC e população que os apoiava e que foram destruídas pela nossa passagem. (Foto de Luís Dias, ex-alf mil, CCAÇ 3491, Dulombi, 1971/74,vd. poste P13359)
Foto (e legenda): © Luís Dias (2014). Todos os direitos reservados.
A intensa actividade operacional registada no início de 1969 ocorre pelo facto de se ter verificado uma mudança de governador em maio de 1968, com a chegada do general António de Spínola, o qual disse que ia acabar com os revoltosos.
Por esse motivo passei um período de vários meses que não tive contacto com o comando, nem com o mundo, porque nos tinham cercado. Todos os dias éramos atingidos pela artilharia, pelo fogo de armas ligeiras e pelas bombas dos aviões, sobretudo de manhã quando cozinhávamos, devido ao fumo que saía e se via de muito longe. Havia que fazer a fogueira ao ar livre para dispersar o fumo e que não nos denunciasse.
Aquilo esteve muito tenso, porque durante algum tempo eles andaram atrás de nós até que nos cercaram. Pensámos que iam acabar connosco, pois estávamos entre dois rios, com aviões e barcos à volta, destruindo quase todas as canoas em que podíamos fugir.
Na última semana deste cerco, os bombardeamentos eram constantes na mata e tínhamos de sair e pormo-nos mais perto de onde nos estavam a atacar com a artilharia para poder esquivar do ataque. Tínhamos vários feridos e não havia alternativa senão dar-lhes as armas, e escondermo-nos em abrigos com árvores e folhas e tentar romper com o cerco. Éramos cerca de quarenta elementos [bigrupo].
Na última noite, quando aguardávamos o dia seguinte ao ataque final, fomos para a mata muito devagar, tomando todas as precauções. Vimos um grupo que vinha na direcção contrária e acreditámos que iriam abrir fogo sobre nós, mas o que aconteceu é que era um grupo de guerrilheiros de outra zona que surgiram em nossa protecção. No princípio fez-me confusão porque não sabia que eram nossos e, embora não tivessem feito disparos, durante o corre-corre chocamos com uma enorme colmeia, tendo sido picado por cerca de trezentas abelhas e estive mais de três dias a tirar os seus ferrões.
A experiência de médico ensinou-me de que, se isso acontecesse hoje eu teria morrido, uma vez que uma dezena de picadas são perigosas, podendo provocar um choque na pessoa, mas quando se está perante uma tensão tão grande, produzem-se esteroides que é precisamente o tratamento que usamos contra a alergia. Nenhuma me infectou, o mesmo aconteceu com os outros seis que tiveram igual sorte.
Nesse dia, depois de termos escapado ao primeiro cerco, voltaram a cercar-nos e o comandante da guerrilha informou-me que iam levar-me. Disse-lhe que queria ficar por ali com os feridos, ao que me respondeu que depois de mim logo seguiriam os feridos. Assim sendo, numa pequena embarcação, levaram-nos, a mim e a outro cubano que andava comigo, que era sargento e que me dava apoio, através de um rio mais pequeno que o Corubal. Levava já mais de uma semana em constante tensão, e depois de sair do cerco, empapado, cheguei de noite a um acampamento na outra margem [?]. Pendurei a maca numa árvore, despi toda a roupa e fiquei nu. Pelas cinco da manhã, quando me estava a vestir, senti um som por cima de mim; era uma explosão. Aviões estavam-nos a atacar com napalm. Se não corro desenfreadamente tinham-me atingido, pois as bombas estavam a cair muito perto.
[Os resultados obtidos pelas NT nesta operação, Op Lança Afiada, foram os seguintes: 5 mortos confirmados; capturados 17 nativos na sua maioria mulheres; 1 carabina “Mosin Nagant”, 7,62, modelo de 1944; 1 espingarda “Mauser”, 7,92, modelo K98K; 1 espingarda “Mauser”, 7,9, modelo 904; 1 espingarda semiautomática “Simonov”, 7,62; 2 metralhadoras pesadas “Goryonov”, 7,62; 2 pistolas-metralhadoras “Shpagin”, 7,62; 1 granada para LG P-27 “Pancerovka”; 12 granadas para LG, RPG-7; 85 granadas para LG, RPG-2; 1 granada de morteiro 60; 19 granadas de morteiro 82; 1 mina A/P de salto e fragmentação (bailarina); 1 mina A/P de fragmentação PPMI; 1 mina TMB; 2 petardos de trotil de 1,2 kg.; 24 cargas suplementares para morteiro (caixas); 42 espoletas de granada de morteiro 82; 3 bolsas para carregadores PPZSH; 1 bolsa para carregadores “degtyarev” e cerca de 10 mil cartuchos 7,62 e 7,9 (60% dos quais impróprios). Vd. poste P11740.
Estranha-se a não referência, neste inventário, a material de enfermagem e a medicamentos, na justa medida em que a enfermaria (o tal "hospitalito" do dr. Delgado) foi destruída por quatro vezes, segundo o insuspeito testemunmho do médico cubano.]
(xiii) Andava sempre com apoio?
Durante esse período tive três ajudantes cubanos, o primeiro era técnico de raios X, adoeceu e foi transferido, o segundo trabalhava como técnico de gastroenterologia do Hospital Naval em Havana e que substituíram por este companheiro que era um sargento, de sobrenome Arrebato, e que falava muito pouco.
(xiv) Teve algum problema com ele,
o srgt Arrebato?
o srgt Arrebato?
Com este sargento passei todo o tempo do cerco fugindo. Parece que tinha uma personalidade alterada e isso acabou por o descompensar.
Depois do bombardeamento com napalm, apareceu o chefe da zona, que era um comandante guineense, jovem, forte e muito bem-disposto. Como estavam a cair bombas por todo o lado, chamou um guerrilheiro a quem faltava um braço e pediu-lhe para nos levar dali, a mim e ao sargento através da margem do rio, que era uma zona lodosa [tarrafo] cheia de raízes aéreas.
Para chegar ao rio era preciso passar por zonas de terreno abertas, sem vegetação, e no meio existiam três palmeiras. Chegados às palmeiras parámos para descansar. nesse momento ouvimos o barulho dos hélis e ficámos parados. De imediato, começaram a baixar quinze [?] hélis donde saíram militares portugueses com armas modernas e de impecáveis uniformes, que passaram a poucos metros das palmeiras onde estávamos.
Apercebi-me que um dos hélis estava a cerca de quinze metros e sinceramente pensei que ali mesmo iria morrer.
(xv) O que aconteceu depois?
Não nos detectaram. Passaram muito perto de nós mais de sessenta militares. Estávamos vestidos de verde e encostados em redor das três palmeiras.
Nesse momento pensei nos meus filhos, que iriam ficar sem pai… coitados, tão pequenos. Mas, não. Alguns ramos das palmeiras caíram-nos em cima, por efeito dos hélis estarem a participar no ataque, e os militares portugueses passavam por outro lado em direcção ao local onde haviam caído as napalm. Depois os hélis começaram a retirar.
Entre o ruído dos aparelhos e das bombas, fiquei com muita vontade de urinar, para não dizer outra coisa. Os três nos levantámos, vimos que continuávamos vivos e corremos até à margem do rio. Creio que nos viram quando chegámos ao rio, pelo que nos procuraram atingir com os morteiros. Mas quanto mais granadas nos atiravam mais nós corríamos por cima do lodo.
O sargento Arrebato, porque corria muito rápido, ia à frente. De imediato acabaram-se as raízes aéreas mas a vinte metros existiam outras. Arrebato continuou a correr e quando passava entre as duas caiu a um pântano e começou a afundar-se. Com o impulso que levava foi parar tão longe que nem com a arma o podíamos alcançar. Os troncos das matas eram muito pequenos e, entretanto, uma avioneta sobrevoava-nos. Pensámos que ele iria morrer diante de nós, pois já estava muito enterrado e gritava «tirem-me daqui». O guineense, que tinha um só braço e que estava connosco, não podia fazer uma corrente. Entretanto chegam dois guerrilheiros, embora as morteiradas continuassem a cair perto. Estes elementos foram buscar vários troncos e os atiraram para ele caminhar por cima do lodo, até que finalmente ficou a salvo.
Quando o ataque começou eram sete da manhã e estivemos correndo até às cinco da tarde. Eu não podia nem respirar da secura da garganta, pois não tínhamos água. Chegámos a uma aldeia desolada e no centro havia uma espécie de nascente com lodo e muitos bichos, e assim mesmo a bebemos. Eu levava uma lata de leite condensado, e essa foi a comida: água com lodo e leite condensado para poder seguir.
Cerca de vinte guerrilheiros juntaram-se, depois, a nós e disseram que já podíamos regressar, uma vez que já não se ouviam os rebentamentos. Quando chegámos a um arrozal larguíssimo, a que chamavam lala, sentimos o ruído dos hélis. Tiraram-nos o sono, e os aparelhos passaram-nos por cima. Não sei como não nos viram, pois o terreno era verde e a fila de homens, deitados por terra, usavam uniformes amarelos que receberam de oferta.
Esta foi outra das coisas inconcebíveis que me sucederam. Os hélis recolheram os militares portugueses e retiraram-se. (**)
Continua…
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Notas do editor:
(*) Vd. postes anteriores destas "notas de leitura":
11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16380: Notas de leitura (868): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VI: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (II): Na margem direita do rio Corubal, na mata do Fiofioli: «¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses" / "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”...
3 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16357: Notas de leitura (864): (D)o outrolado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte V: o caso doclínico geral Amado Alfonso Delgado (I): queria ir para o Vietname foi parar ao Fiofioli...
(*) Vd. postes anteriores destas "notas de leitura":
11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16380: Notas de leitura (868): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VI: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (II): Na margem direita do rio Corubal, na mata do Fiofioli: «¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses" / "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”...
3 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16357: Notas de leitura (864): (D)o outrolado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte V: o caso doclínico geral Amado Alfonso Delgado (I): queria ir para o Vietname foi parar ao Fiofioli...
24 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (851): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)
22 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)
(**) Último poste da série > 15 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16390: Notas de leitura (870): A Guiné-Bissau pelo fotógrafo Michel Renaudeau (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P16395: Os nossos seres, saberes e lazeres (169): Eu fui ao Faial e não vi os Capelinhos (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2016:
Queridos amigos,
Ainda me pedem colaboração para as coisas que têm a ver com a política dos consumidores. Sempre que reclamam a minha presença dos Açores, não sei dizer que não, forjou-se uma ligação profunda desde que por li andei a dar recrutas, entre 1967 e 1968. Fiz grandes amizades e gosto muito da afabilidade açoriana. Foi mesmo uma "visita de médico", mas deu para registar impressões que me são muito gratas e aqui estou a partilhá-las convosco. Hoje em dia não há maior satisfação que me pedirem sugestões sobre o quer ver nessas ilhas de bruma, de verde constante e acachoada das ondas em fragas e penedios, e poder desfiar propostas para visitas e passeios, não escondo que sou um cicerone altamente comprometido com estas venturas e desventuras arquipelágicas.
Um abraço do
Mário
Eu fui ao Faial e não vi os Capelinhos (1)
Beja Santos
Tratou-se de uma visita de médico, só faltou ida e volta no mesmo dia. O pretexto foram as comemorações do Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, a celebrar na Horta. Com os organizadores, acordei em partir de Lisboa ao nascer do dia, já que havia paragem obrigatória de algumas horas em Ponta Delgada, aqui vivi seis meses, fiz amigos, tenho lembranças indestrutíveis. Decorre uma exposição de um dos meus escultores preferidos, Ernesto Canto da Maya, um modernista sem rival, deixou-nos pares amorosos inultrapassáveis. Era segunda-feira, esperava encontrar o Núcleo de Santa Bárbara aberto, a deceção foi mais que muita, ainda pedinchei uma visita excecional, negada. Pude comprar imagens de obras expostas, vejam, caso não conheçam, como este senhor que triunfou em Paris lavrou obras-primas em terracota. À entrada do núcleo de Santa Bárbara imortalizaram um dos seus referenciais em bronze. Para que conste.
Quanto a Canto da Maya, missão cumprida. Houvesse tempo e ia visitar a exposição sobre a história do chá em S. Miguel, pelo livro que comprei é evento cultural com várias estrelas. E atiro-me à cidade, recordo o aspirante a oficial miliciano que calcorreou estas ruas, que se enamorou destes sítios onde predomina a rocha vulcânica que dá estas harmonia de preto e branco dos passeios elaborados ao melhor gosto da calçada portuguesa.
Mudei de passeio atraído pelo anúncio de uma refeição a 2€ em tempos de crise. Estou habituado a ver sopa e sandes a 3,40€, o fast food a cerca de 5€, este é o menu mais barato que até hoje vi.
Atalhei por uma transversal a caminho da Igreja Matriz, era um dia de céu forrado, se tem muitos inconvenientes tem também a vantagem de olharmos para os interiores dos prédios e ressalta o seu conteúdo. Umas boas décadas atrás que eu não via este vitral, associado ao nome de uma empresa lendária da região, a Corretora. Bisbilhotei para o interior dos escritórios, uma bela arquitetura cheia de vidro e latão, tudo fechado, oxalá que um dia reapareça para fruição pública, eu estava ali especado a pensar nos dias prósperos destes escritórios, com guichês e balcões bem ataviados e lembrei-me da redação do jornal O Século, outra beleza, felizmente intacta, no edifício que é hoje o Ministério do Ambiente.
Outra lembrança perdurável é a flora, há pouco menos de meio século só pude conhecer a micaelense, deslumbrante nos seus jardins e parques. É certo que estamos em Março, que aqui chove abundantemente e humidade não falta, aqui são-se perfeitamente as árvores, os arbustos e as plantas de quase todo o mundo. Era um dia baço mas as flores estavam resplendentes para me receber.
Há também arquitetura religiosa manuelina noutros locais, caso de Vila Franca do Campo, mas a Matriz de Ponta Delgada tem direito ao que há de mais significativo. Estes elementos exteriores excedem em importância todo o miolo do tempo que tem, no entanto, um pequeno e atrativo museu, quando disponho de tempo ali vou em revisitação, não sei que por artes ali estão expostas uma casula e uma dalmática que vieram de Inglaterra, ao tempo em que o protestantismo triunfou. Virei-me no Largo da Matriz, mesmo em frente à porta lateral, não havia visita a Ponta Delgada que eu não visitasse um camarada da Guiné muito especial, o oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo, foi ele que me limpou os olhos depois de uma mina anticarro em que andei em bolandas, em Outubro de 1969. Olhei com nostalgia, já não há consultório em frente a esta porta lateral, há muito que ele me dobrou os 80 anos, não tenho coragem de lhe ir bater à porta na rua Bruno Tavares Carreiro, era uma insensatez e indelicadeza sem limites dizer-lhe que venho com os minutos contados.
E pronto, regressei ao aeroporto, espera-me um voo Lajes-Horta, mas não resisto em fixar esta azálea, um verdadeiro cíclame, passa-se algo de estranho e labiríntico nas minhas recordações, neste preciso instante em que tirava a fotografia lembrei-me de um juramento de bandeira, nos Arrifes, em Dezembro de 1967, mandaram-me fazer o discurso e falei das criptomérias e nas azáleas, na doçura da natureza açoriana, tratei as coisas militares como meras adjacências. A verdade é que o amor incondicional às terras açorianas já estava entranhado. E para todo o sempre.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16377: Os nossos seres, saberes e lazeres (168): Visita à Igreja do Convento de Jesus, de Setúbal (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Ainda me pedem colaboração para as coisas que têm a ver com a política dos consumidores. Sempre que reclamam a minha presença dos Açores, não sei dizer que não, forjou-se uma ligação profunda desde que por li andei a dar recrutas, entre 1967 e 1968. Fiz grandes amizades e gosto muito da afabilidade açoriana. Foi mesmo uma "visita de médico", mas deu para registar impressões que me são muito gratas e aqui estou a partilhá-las convosco. Hoje em dia não há maior satisfação que me pedirem sugestões sobre o quer ver nessas ilhas de bruma, de verde constante e acachoada das ondas em fragas e penedios, e poder desfiar propostas para visitas e passeios, não escondo que sou um cicerone altamente comprometido com estas venturas e desventuras arquipelágicas.
Um abraço do
Mário
Eu fui ao Faial e não vi os Capelinhos (1)
Beja Santos
Tratou-se de uma visita de médico, só faltou ida e volta no mesmo dia. O pretexto foram as comemorações do Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, a celebrar na Horta. Com os organizadores, acordei em partir de Lisboa ao nascer do dia, já que havia paragem obrigatória de algumas horas em Ponta Delgada, aqui vivi seis meses, fiz amigos, tenho lembranças indestrutíveis. Decorre uma exposição de um dos meus escultores preferidos, Ernesto Canto da Maya, um modernista sem rival, deixou-nos pares amorosos inultrapassáveis. Era segunda-feira, esperava encontrar o Núcleo de Santa Bárbara aberto, a deceção foi mais que muita, ainda pedinchei uma visita excecional, negada. Pude comprar imagens de obras expostas, vejam, caso não conheçam, como este senhor que triunfou em Paris lavrou obras-primas em terracota. À entrada do núcleo de Santa Bárbara imortalizaram um dos seus referenciais em bronze. Para que conste.
Quanto a Canto da Maya, missão cumprida. Houvesse tempo e ia visitar a exposição sobre a história do chá em S. Miguel, pelo livro que comprei é evento cultural com várias estrelas. E atiro-me à cidade, recordo o aspirante a oficial miliciano que calcorreou estas ruas, que se enamorou destes sítios onde predomina a rocha vulcânica que dá estas harmonia de preto e branco dos passeios elaborados ao melhor gosto da calçada portuguesa.
Mudei de passeio atraído pelo anúncio de uma refeição a 2€ em tempos de crise. Estou habituado a ver sopa e sandes a 3,40€, o fast food a cerca de 5€, este é o menu mais barato que até hoje vi.
Atalhei por uma transversal a caminho da Igreja Matriz, era um dia de céu forrado, se tem muitos inconvenientes tem também a vantagem de olharmos para os interiores dos prédios e ressalta o seu conteúdo. Umas boas décadas atrás que eu não via este vitral, associado ao nome de uma empresa lendária da região, a Corretora. Bisbilhotei para o interior dos escritórios, uma bela arquitetura cheia de vidro e latão, tudo fechado, oxalá que um dia reapareça para fruição pública, eu estava ali especado a pensar nos dias prósperos destes escritórios, com guichês e balcões bem ataviados e lembrei-me da redação do jornal O Século, outra beleza, felizmente intacta, no edifício que é hoje o Ministério do Ambiente.
Outra lembrança perdurável é a flora, há pouco menos de meio século só pude conhecer a micaelense, deslumbrante nos seus jardins e parques. É certo que estamos em Março, que aqui chove abundantemente e humidade não falta, aqui são-se perfeitamente as árvores, os arbustos e as plantas de quase todo o mundo. Era um dia baço mas as flores estavam resplendentes para me receber.
Há também arquitetura religiosa manuelina noutros locais, caso de Vila Franca do Campo, mas a Matriz de Ponta Delgada tem direito ao que há de mais significativo. Estes elementos exteriores excedem em importância todo o miolo do tempo que tem, no entanto, um pequeno e atrativo museu, quando disponho de tempo ali vou em revisitação, não sei que por artes ali estão expostas uma casula e uma dalmática que vieram de Inglaterra, ao tempo em que o protestantismo triunfou. Virei-me no Largo da Matriz, mesmo em frente à porta lateral, não havia visita a Ponta Delgada que eu não visitasse um camarada da Guiné muito especial, o oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo, foi ele que me limpou os olhos depois de uma mina anticarro em que andei em bolandas, em Outubro de 1969. Olhei com nostalgia, já não há consultório em frente a esta porta lateral, há muito que ele me dobrou os 80 anos, não tenho coragem de lhe ir bater à porta na rua Bruno Tavares Carreiro, era uma insensatez e indelicadeza sem limites dizer-lhe que venho com os minutos contados.
E pronto, regressei ao aeroporto, espera-me um voo Lajes-Horta, mas não resisto em fixar esta azálea, um verdadeiro cíclame, passa-se algo de estranho e labiríntico nas minhas recordações, neste preciso instante em que tirava a fotografia lembrei-me de um juramento de bandeira, nos Arrifes, em Dezembro de 1967, mandaram-me fazer o discurso e falei das criptomérias e nas azáleas, na doçura da natureza açoriana, tratei as coisas militares como meras adjacências. A verdade é que o amor incondicional às terras açorianas já estava entranhado. E para todo o sempre.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16377: Os nossos seres, saberes e lazeres (168): Visita à Igreja do Convento de Jesus, de Setúbal (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P16394: Parabéns a você (1119): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)
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Nota do editor
Último poste da série de 16 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16391: Parabéns a você (1118): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)
Nota do editor
Último poste da série de 16 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16391: Parabéns a você (1118): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)
terça-feira, 16 de agosto de 2016
Guiné 63/74 - P16393: Facebook...ando (40): Sou açoriano, nasci em janeiro de 1955, fui à inspeção em dezembro de 1970, com 15 anos... Em abril de 1971 fui para a tropa, e em setembro, com apenas 16 anos, parti para o CTIG... (ex-1º cabo Alcides, da CCÇ 3476, "Bebés de Canjambari", Canjambari e Dugal, 1971/73; emigrante no Canadá, desde junho de 1974)
Guiné > Região do Oio > Farim > Canjambari > CCAÇ 3476 (Canjambari e Dugal, 1971/73) > Os "Bebés de Canjambari" era uma companhia açoriana...
1. O nosso editor de serviço, Carlos Vinhal, mandou-nos, em 14 do corrente a seguinte mensagem, com conhecimento a alguns colaboradores permanentes do blogue:
Camaradas
Grande novidade para mim.
Conheciam este caso ou semelhante?
Esta mensagem caiu no facebook da Tabanca Grande Luís Graça (**):
Caro amigo e ex-combatente, eu escrevo pouco em português, porque só tirei a 4ª classe.
O meu comentário é a respeito do Fernando Andrade Sousa (*), que não sabia que se podia para ir para o exército com menos de 18 anos. Pois eu fui à inspeção para a tropa em dezembro de 1970, e só tinha 15 anos. Fiquei apurado para todo o serviço Militar, e em abril de 1971 fui para a tropa, em setembro de 1971 fui para a Guiné, com a CCac 3476, "Bebés de Canjambari" [Canjambari e Dugal, 1971/73].
Hoje estou no Canadá, razão de ir voluntário e tão novo. Meus Pais imigraram para aqui e o governo português disse que eu não podia vir sem cumprir o serviço militar, foi a razão de ir mais cedo. Em dezembro 1973 regressei da Guiné com 18 anos, livre do serviço militar, que como vês aqui eu sou de janeiro de 1955.
Em junho de 1974 vim para o Canadá. e aqui me encontro, continuo a trabalhar porque sou tenho 61 anos e me sinto com saúde.
Eu fui Primeiro Cabo, talvez o mais novo do exército!
Um bem haja para ti e toda a equipa da Tabanca Grande!
O [Manuel] Lima Santos [, membro da Tabanca Grande,] foi meu Furriel do meu Pelotão [, foto atual à direita], só para se quiseres confirmar, e podes ver o meu álbum da tropa!
O [Manuel] Lima Santos [, membro da Tabanca Grande,] foi meu Furriel do meu Pelotão [, foto atual à direita], só para se quiseres confirmar, e podes ver o meu álbum da tropa!
Bem Haja,
Alcides.
Alcides.
2. Comentário do António José Pereira da Costa no mesmo dia:
Olá, Camaradas
Desconhecia esta ou outra situação similar. Estava convencido que só se poderia ser voluntário aos 18 anos. Recebi na minha companhia um miúdo com essa idade que ficou com essa alcunha por isso mesmo. Mas só a lei do tempo o poderá confirmar.
Um Ab.
Tó Zé
3. Comentário do editor
Em contacto telefónico com o camarada Lima Santos, este disse que se lembra perfeitamente do Alcides, com quem ainda hoje mantém contacto. Disse ainda que julga ter havido mais duas situações semelhantes na Companhia, combatentes com 18 anos ou menos, assim com provavelmente o mesmo se terá passado com a Companhia irmã, a CCAÇ 3477 (Gringos do Guileje).
Os mancebos açorianos, para poderem mais rapidamente juntar-se aos pais, emigrados por terras do continente americano, ofereciam-se como voluntários para servirem o exército antes da idade normal.
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(*) Vd. poste de 12 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16382: Álbum fotográfico de Fernando Andrade Sousa (ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 12, 1969/71) - Parte III: Lembrando, com saudade, o "puto" Umaru Baldé
(**) Último poste da série > 9 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16179: Facebook...ando (39): O crocodilo do Rio Ganjola (Alcides Silva, ex- 1.º cabo estofador, CCS / BART 1913, Catió, 1967/69)
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Guiné 63/74 - P16392: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (5): O diagnóstico
Adão Cruz com meninos de Bigene
Foto: © Adão Cruz
1. Memória enviada pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), relatando uma consulta com diagnóstico bem difícil, tal a dificuldade de comunicação entre médico e doente.
MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA
5 - O DIAGNÓSTICO
(Mais um conto da Guiné. Espero que saboreiem como eu saboreei)
O sol baixava a sua fogueira comendo a sombra à medida que a luz crescia. Como sempre, meti o corpo dentro de uma velha bata branca e dirigi-me ao posto de socorros, onde me aguardavam soldados e nativos para a consulta matinal. Hora respeitada. Ritual.
Logo que cheguei, os olhos caíram-me na figura de uma velha, cuja idade mirrara na secura das carnes. A pele parecia colada aos ossos, e a silhueta nem sombra dava. Os sorrisos esqueceram-se para lá da boca, e dois ninhos de rugas guardavam os olhitos faiscantes.
O “Manjaco”, nome da etnia de que era originário, um dos meus ajudantes nestas tarefas clínicas, alto e desengonçado, sempre feliz e afável, surgia acima de todas as cabeças.
- Manjaco, vamos ao trabalho.
- Dotô, manga pessoal, manga chatice!
Quando chegou a vez da velha, o Manjaco torceu o nariz, dando a perceber que era de língua difícil e de terra sem lugar, lá onde acabam bolanhas e começam mangueiros e coqueiros. Por universal defeito de raças e linguagens, as nossas falas não se cruzaram. O Manjaco olhou em volta, procurando intérpretes para aquele resto de corpo. Bateu o pé no chão para espantar a pequenada, debruçada na curiosidade.
- Maldita canalha, maldita velha qui só vem no chateanço. Tu, vem cá, e tu.
Os dois rapazes entreolharam-se como se mutuamente se desconfiassem. Um deles era mandinga e o outro não me lembro.
Puseram a velha a queixar-se. Ela sacudiu os ossos em imitação de tosse, ao mesmo tempo que apertava entre os dedos a pele seca da garganta. Numa espécie de dança, mexia o corpo para a frente e para trás baloiçando a magreza. Agitava-se em tremuras fingidas, emitindo uma espécie de grunhidos salpicados de baba, enquanto as mãos apanhavam o baixo-ventre ou se espalmavam nas hipotéticas ancas. O Manjaco ia observando toda aquela mímica com ar enfastiado:
- Ché! A velha é maluca!
Olhou de maneira inquisidora os dois moços, apontou para a velha, e já com a paciência a apagar-se, exclamou:
- Fala pá, fala maleita di velha.
Os dois esquinaram o olhar, torceram a boca, e a aflição somou as duas caras. O primeiro virou-se para o segundo e disse numa lenga-lenga:
- blá, blá, blá.
O segundo voltou-se para o Manjaco e traduziu:
-blé, blé, blé.
O manjaco encolheu os ombros, esboçou o gesto de quem nada percebeu, olhou-me de soslaio e exclamou:
- Dotô, isto estar grande merda!
De novo solicitada, a velha repetiu a cena escorrendo as palmas das mãos pelas pernas abaixo, esboçou um espasmo figurativo de dor, enroscou-se num ar felino e cravou os olhos desafiadores na cara do Manjaco. Disso é que ele não gostou. Com ar zangado, agarrou os dois rapazes pelos ombros, e numa última tentativa interpelou de novo:
- Tu ca sabi pá, tu ca sabi puto língua di velha, puxa por mimória, pá.
O primeiro virou-se para o segundo e disse:
- Blá, blá, blá.
O segundo voltou-se para o Manjaco e traduziu:
- Blé, blé, blé.
O Manjaco não atingiu e enraivou o anterior desabafo, espaçando as palavras:
- Dotô,… isto… estar… grande… merda!
Caracoleou então por entre queixas e deixas, desmontou os arrebiques da velha, denunciou a incapacidade dos intérpretes, e bufou de furor e impaciência. Tomou ele a iniciativa. Ensaiou uma cantoria zombeteira e atirou à cara da velha uma autêntica algaraviada. Furiosa, a mulher fez assomar ao nariz uma lágrima de ranho, fincou no chão os pés calçados de lama seca, olhou os dois intérpretes, fulminou o Manjaco, calou uns segundos de silêncio e voltou aos mesmos gestos e grunhidos, com força redobrada e descrição veloz, como cena de filme a correr em acelerado. Parou de repente, fitou de maneira desafiadora os circunstantes e cravou pela primeira vez os olhos em mim, como que a dizer: Então, já percebeste?
O Manjaco estava desorientado. Começou a dar uns passos curtos e outros compridos, rodopiou sobre si mesmo, volveu os olhos ao céu, e a despeito da vontade de estrangular a velha, voltou-se calmamente para mim e disse:
- Olha Dotô, corpo de ela tá todo fodido.
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16381: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (4): Joãozinho, nunca na vida te deixarei sozinho
Guiné 63/74 - P16391: Parabéns a você (1118): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16375: Parabéns a você (1117): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63) e Tomás Carneiro, ex- 1.º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)
Nota do editor
Último poste da série de 10 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16375: Parabéns a você (1117): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63) e Tomás Carneiro, ex- 1.º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)
segunda-feira, 15 de agosto de 2016
Guiné 63/74 - P16390: Notas de leitura (870): "Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional", fotografias de Michel Renaudeau, Éditions Delroisse, Paris, 1978 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2015:
Queridos amigos,
Trata-se de uma chamada edição de prestígio, boa encadernação, bom papel, fotografias exemplares. Fica-se com a ideia de que aquele país está no bom caminho, que tem um povo feliz, cada vez mais serviços sociais, que as fábricas fabricam, desde sumos e compotas a automóveis.
Dou comigo a pensar se este álbum poderá ser classificado como material auxiliar para interpretar um tempo, mas estou convicto que o povo retratado, passado este tempo todo, é aquele que continua a votar na esperança por melhores dias. E estão ali os rostos de reis e de princesas, por ali perpassa a imagem da dignidade, estão ali os traços fundos e profundos de uma especificidade cultural que nos assombrou quando passámos de meninos a homens.
Um abraço do
Mário
A Guiné-Bissau pelo fotógrafo Michel Renaudeau
Beja Santos
Em 1978, com financiamento do Banco Nacional da Guiné-Bissau, as Éditions Delroisse, Paris, publicavam um luxuoso álbum intitulado Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional, com texto em quatro línguas, sendo óbvios os objetivos de apresentar aos investidores aspetos aliciantes de uma promissora Guiné-Bissau aberta a diferentes formas de cooperação internacional.
O texto é simples e corresponde ao pensamento da época: a Guiné é apresentada como um país essencialmente agrícola onde preside um princípio de justiça social, já que a população rural fora a classe mais explorada durante a dominação colonial; faz-se o enquadramento geográfico dos recursos naturais, alude-se aos elevados índices de florestação, à qualidade das suas madeiras e enumeram-se culturas onde o país parecia estar em vantagem: arroz, mancarra, coconote e caju; quanto aos recursos naturais diz-se explicitamente que são constituídos por depósito de bauxite de uma capacidade estimada em mais de 250 milhões de toneladas métricas de mineral e mencionam-se os indícios de presença de petróleo nas zonas costeiras, bem como de ferro, minerais calcários e fosfatos, Aqui e acolá, no luxuoso álbum há uma certa tentação em empolar as notas da propaganda. Um exemplo:
“Não existe uma informação segura sobre a população do país, havendo contudo dados básicos para uma estimativa. A última realizada em 1970 nas áreas então ocupadas pelo exército colonial atingia 350 mil pessoas, segundo um censo preliminar realizado em 1974. Considerando as fontes e os números acima indicados e supondo uma taxa de crescimento anual de 2% e ainda o retorno de cerca de 70 mil refugiados desde a libertação completa do nosso território em 1974, a população estimada é de cerca de 930 mil habitantes”.
É apresentada a forma de organização política e administrativa do Estado, na órbita do PAIGC: este é a força política dirigente da sociedade na Guiné e em Cabo Verde, com um papel na definição e de direção política em relação a todas as atividades sociais, elenca-se em seguida a estrutura do partido, os três congressos do PAIGC então realizados e os órgãos do poder político: Assembleia Nacional Popular, Conselho de Estado e Conselho dos Comissários de Estado.
Estamos chegados à estratégia de desenvolvimento, utiliza-se uma linguagem suave para referir uma lógica de regime totalitário:
“O elemento essencial da estratégia de desenvolvimento consiste em dirigir de preferência o processo de acumulação de capital para o setor agrário onde se encontra mais de 90% da população ativa do país.
A modernização das estruturas produtivas das zonas rurais permitirá elevar rapidamente o excedente agrícola e incrementar simultaneamente o rendimento do trabalho rural. O excedente agrícola comercializado deverá permitir, a médio prazo, reduzir substancialmente as importações de bens alimentares. A crescente interpenetração entre o campo e cidade constitui o núcleo essencial do processo de desenvolvimento futuro. Sobre ele deverá articular-se o desenvolvimento industrial, o das infraestruturas e dos serviços básicos, devendo também definir-se sobre essa base a organização institucional do Estado, os sistemas de distribuição e os chamados setores sociais (Educação e Saúde) estima-se que os aumentos de exportações conseguido em 1977 deverá continuar num ritmo acelerado nos próximos anos. Será dada ênfase no que se pode caraterizar como um modelo de desenvolvimento para dentro, fundamentado na progressiva ampliação do mercado interno e na integração campo-cidade. A concretização a médio prazo desta estratégia de desenvolvimento implica amplo recurso à ajuda externa. Esta ajuda externa será, na medida do possível, orientada para o desenvolvimento da infraestrutura económica e social, da importação e produção industrial de meios de produção para a agricultura e da importação e produção de bens de consumo popular. A necessidade de se atingir a fase de crescimento autossustentado na base da estratégia desenhada impõe a superação do atual período de transição pós-colonial”.
Em 1976, o PNB era estimado em 3780 milhões de pesos guineenses, o que representava um rendimento per capita de 123 dólares. Segue-se a enumeração dos setores produtivos (agricultura e pesca, indústria, energia, transportes e telecomunicações). Falando do comércio interno, são referenciados os Armazéns do Povo, assim apresentados:
“Nas zonas libertadas do país foram criados em 1964 os Armazéns do Povo, entidade comercial cujo objetivo era manter o abastecimento dos bens essenciais nas referidas zonas. Ao mesmo tempo, os Armazéns do Povo absorviam parte da produção gerada pelo setor agrícola. Após a libertação, os Armazéns do Povo, passaram a constituir a principal empresa do país, estendendo a sua atividade a todo o território nacional. De 20 postos comerciais em 1974, os Armazéns do Povo passaram atualmente a 129”.
O álbum faz igualmente referência a salários e preços, comércio externo, situação fiscal, dívida externa e situação monetária.
Beneficiando já de uma impressionante ajuda externa, é natural que a publicação desse destaque à cooperação internacional, e mais uma vez se incensa a política de não alinhamento e a diversidade de formas de cooperação internacional. Na primeira linha, os países socialistas, depois a assistência sueca, a seguir a CEE no quadro da Convenção de Lomé, seguindo-se países europeus e os EUA e tece-se uma consideração para o que há de determinante nesta cooperação:
“O governo da Guiné-Bissau, consciente das dificuldades económicas inerentes ao atual período de transição, atribui uma grande importação à manutenção, durante os próximos anos, destes fluxos de assistência internacional, que deverão continuar a desempenhar um papel equilibrador das relações económicas internacionais do país a fim de permitir que se reúnam as condições para um crescimento económico autónomo”.
É um tanto ocioso descrever o que aqui se sonhou e fantasiou e as derrocadas que tomaram conta desses sonhos, as atividades económicas que se soçobraram, as infraestruturas que perderam préstimo, as fábricas que fecharam. O que fica de palpitante são estas de fotografias de Michel Renaudeau, rostos que saem do papel, arte africana de incomparável beleza, a atmosfera nostálgica de Bolama já em fase de irreversível decadência, gente na labuta, a cor de bauxite. Não sei se este álbum passará à história como material auxiliar de um tempo de aspirações que em breve se transformou em desilusões. Sei que esta gente é transmissora da boa-fé e era portadora de uma esperança que, como se vê em sucessivos atos eleitorais, ainda não murchou. Este fotógrafo pode gabar-se de ter alcançado imagens únicas de um povo que teima em sonhar.
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Nota do editor:
Último poste da série de 12 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16383: Notas de leitura (869): "Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Trata-se de uma chamada edição de prestígio, boa encadernação, bom papel, fotografias exemplares. Fica-se com a ideia de que aquele país está no bom caminho, que tem um povo feliz, cada vez mais serviços sociais, que as fábricas fabricam, desde sumos e compotas a automóveis.
Dou comigo a pensar se este álbum poderá ser classificado como material auxiliar para interpretar um tempo, mas estou convicto que o povo retratado, passado este tempo todo, é aquele que continua a votar na esperança por melhores dias. E estão ali os rostos de reis e de princesas, por ali perpassa a imagem da dignidade, estão ali os traços fundos e profundos de uma especificidade cultural que nos assombrou quando passámos de meninos a homens.
Um abraço do
Mário
A Guiné-Bissau pelo fotógrafo Michel Renaudeau
Beja Santos
Em 1978, com financiamento do Banco Nacional da Guiné-Bissau, as Éditions Delroisse, Paris, publicavam um luxuoso álbum intitulado Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional, com texto em quatro línguas, sendo óbvios os objetivos de apresentar aos investidores aspetos aliciantes de uma promissora Guiné-Bissau aberta a diferentes formas de cooperação internacional.
O texto é simples e corresponde ao pensamento da época: a Guiné é apresentada como um país essencialmente agrícola onde preside um princípio de justiça social, já que a população rural fora a classe mais explorada durante a dominação colonial; faz-se o enquadramento geográfico dos recursos naturais, alude-se aos elevados índices de florestação, à qualidade das suas madeiras e enumeram-se culturas onde o país parecia estar em vantagem: arroz, mancarra, coconote e caju; quanto aos recursos naturais diz-se explicitamente que são constituídos por depósito de bauxite de uma capacidade estimada em mais de 250 milhões de toneladas métricas de mineral e mencionam-se os indícios de presença de petróleo nas zonas costeiras, bem como de ferro, minerais calcários e fosfatos, Aqui e acolá, no luxuoso álbum há uma certa tentação em empolar as notas da propaganda. Um exemplo:
“Não existe uma informação segura sobre a população do país, havendo contudo dados básicos para uma estimativa. A última realizada em 1970 nas áreas então ocupadas pelo exército colonial atingia 350 mil pessoas, segundo um censo preliminar realizado em 1974. Considerando as fontes e os números acima indicados e supondo uma taxa de crescimento anual de 2% e ainda o retorno de cerca de 70 mil refugiados desde a libertação completa do nosso território em 1974, a população estimada é de cerca de 930 mil habitantes”.
É apresentada a forma de organização política e administrativa do Estado, na órbita do PAIGC: este é a força política dirigente da sociedade na Guiné e em Cabo Verde, com um papel na definição e de direção política em relação a todas as atividades sociais, elenca-se em seguida a estrutura do partido, os três congressos do PAIGC então realizados e os órgãos do poder político: Assembleia Nacional Popular, Conselho de Estado e Conselho dos Comissários de Estado.
Estamos chegados à estratégia de desenvolvimento, utiliza-se uma linguagem suave para referir uma lógica de regime totalitário:
“O elemento essencial da estratégia de desenvolvimento consiste em dirigir de preferência o processo de acumulação de capital para o setor agrário onde se encontra mais de 90% da população ativa do país.
A modernização das estruturas produtivas das zonas rurais permitirá elevar rapidamente o excedente agrícola e incrementar simultaneamente o rendimento do trabalho rural. O excedente agrícola comercializado deverá permitir, a médio prazo, reduzir substancialmente as importações de bens alimentares. A crescente interpenetração entre o campo e cidade constitui o núcleo essencial do processo de desenvolvimento futuro. Sobre ele deverá articular-se o desenvolvimento industrial, o das infraestruturas e dos serviços básicos, devendo também definir-se sobre essa base a organização institucional do Estado, os sistemas de distribuição e os chamados setores sociais (Educação e Saúde) estima-se que os aumentos de exportações conseguido em 1977 deverá continuar num ritmo acelerado nos próximos anos. Será dada ênfase no que se pode caraterizar como um modelo de desenvolvimento para dentro, fundamentado na progressiva ampliação do mercado interno e na integração campo-cidade. A concretização a médio prazo desta estratégia de desenvolvimento implica amplo recurso à ajuda externa. Esta ajuda externa será, na medida do possível, orientada para o desenvolvimento da infraestrutura económica e social, da importação e produção industrial de meios de produção para a agricultura e da importação e produção de bens de consumo popular. A necessidade de se atingir a fase de crescimento autossustentado na base da estratégia desenhada impõe a superação do atual período de transição pós-colonial”.
Em 1976, o PNB era estimado em 3780 milhões de pesos guineenses, o que representava um rendimento per capita de 123 dólares. Segue-se a enumeração dos setores produtivos (agricultura e pesca, indústria, energia, transportes e telecomunicações). Falando do comércio interno, são referenciados os Armazéns do Povo, assim apresentados:
“Nas zonas libertadas do país foram criados em 1964 os Armazéns do Povo, entidade comercial cujo objetivo era manter o abastecimento dos bens essenciais nas referidas zonas. Ao mesmo tempo, os Armazéns do Povo absorviam parte da produção gerada pelo setor agrícola. Após a libertação, os Armazéns do Povo, passaram a constituir a principal empresa do país, estendendo a sua atividade a todo o território nacional. De 20 postos comerciais em 1974, os Armazéns do Povo passaram atualmente a 129”.
O álbum faz igualmente referência a salários e preços, comércio externo, situação fiscal, dívida externa e situação monetária.
Beneficiando já de uma impressionante ajuda externa, é natural que a publicação desse destaque à cooperação internacional, e mais uma vez se incensa a política de não alinhamento e a diversidade de formas de cooperação internacional. Na primeira linha, os países socialistas, depois a assistência sueca, a seguir a CEE no quadro da Convenção de Lomé, seguindo-se países europeus e os EUA e tece-se uma consideração para o que há de determinante nesta cooperação:
“O governo da Guiné-Bissau, consciente das dificuldades económicas inerentes ao atual período de transição, atribui uma grande importação à manutenção, durante os próximos anos, destes fluxos de assistência internacional, que deverão continuar a desempenhar um papel equilibrador das relações económicas internacionais do país a fim de permitir que se reúnam as condições para um crescimento económico autónomo”.
É um tanto ocioso descrever o que aqui se sonhou e fantasiou e as derrocadas que tomaram conta desses sonhos, as atividades económicas que se soçobraram, as infraestruturas que perderam préstimo, as fábricas que fecharam. O que fica de palpitante são estas de fotografias de Michel Renaudeau, rostos que saem do papel, arte africana de incomparável beleza, a atmosfera nostálgica de Bolama já em fase de irreversível decadência, gente na labuta, a cor de bauxite. Não sei se este álbum passará à história como material auxiliar de um tempo de aspirações que em breve se transformou em desilusões. Sei que esta gente é transmissora da boa-fé e era portadora de uma esperança que, como se vê em sucessivos atos eleitorais, ainda não murchou. Este fotógrafo pode gabar-se de ter alcançado imagens únicas de um povo que teima em sonhar.
____________
Nota do editor:
Último poste da série de 12 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16383: Notas de leitura (869): "Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)
domingo, 14 de agosto de 2016
Guiné 63/74 - P16389: Manuscrito(s) (Luís Graça) (90): Ó Praia de Paimogo da minha infância!...
Lourinhã. Praia da Areia Branca, a caminho de Paimogo > 30 de julho de 2016 > Caprichosa "escultura" escavada na rocha, por efeito da erosão do mar, da chuva, da areia e do vento.
L;ourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII)
L;ourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Lado sul
L;ourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Lado sul
L;ourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Lado norte
Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Interior
Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Interior
Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Escadaria para o terraço
Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Vista do terraço
Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Cisterna
Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Cisterna
Lourinhã> O Mar do Cerro, a sul de Paimogo > Vista das imediações do Forte de Paimogo
Lourinhã> Praia de Paimogo > Emseada > Vista do Forte
Lourinhã> Praia de Paimogo > Vista do Forte
.
Lourinhã> Praia do Caniçal (entre a praia de Paimogo e a praia do Vale de Frades) > Vista do Forte de Paimogo
Fotos (e legendas): © Luís Graça(2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Ó Praia de Paimogo da Minha Infância
por Luís Graça
Não preciso de ser geólogo
para te amar,
ó praia de Paimogo
da minha infância.
Nem de ser paleontólogo
para desenhar na areia
as pegadas da tua errância
de dinossauro do Jurássico Superior.
Nem muito menos biólogo ou sociólogo
para te conhecer aí onde
se alimenta o recolector-caçador,
e o polvo, o povo, se esconde
nas marés vivas de lua cheia.
Fugi de terramotos e tempestades,
procurei abrigo na tua enseada,
domei as ondas e o vento,
desfiz lendas e mitos,
adorei divindades,
vendi a alma ao diabo,
esculpi a esfinge alada
que guarda a porta do teu templo.
Andei na pesca ao candeio,
fui pescador de lagosta,
camponês,
jornaleiro,
camarada,
andarilho de costa a costa,
negociante de peixe,
almocreve,
apanhador de algas,
caçador submarino,
Carreguei vinho em barris
no bojo da nossa Nau Catrineta,
para a corte russa, imperial.
Naufraguei em ilhas longínquas, polinésias,
adubei as inférteis terras
com o limo do mar dos sargaços.
Fiz o meu ninho de ave de rapina
no alto das tuas falésias,
fui presa e predador,
dos contrabandistas segui, à noite, os passos.
Lavrei o mar, semeei a morte,
sobrevivi a mil e uma guerras,
e os meus mortos enterrei
nas tuas areias.
Vigiei o mar, o céu e a terra
do alto setecentista do teu forte.
Tive visões, vi monstros, seduzi sereias,
fugi das garras dos terópodes,
escapei dos mandíbulas dos crocodilos,
lutei contra muitas outras feras,
fiz a paz, fiz a guerra,
e ao teu seio retornei,
minha Mátria, Frátia, Pátria amada.
Da vida conheci todo os estilos,
fui condenado às galeras
e quase devorado por gigantes gastrópodes,
peguei de caras o auroque e o minotauro,
estive cativo do mouro
nas longínquas Mauritânias,
choquei os teus ovos de dinossauro,
construí castros, citânias,
andei à deriva dos continentes,
fui maçarico, checa e periquito
nas guerras coloniais,
sobrevivi à fome, à cólera e à peste
(e ao bispo da nossa terra!)
aos vulcões e aos tsunamis,
andei a monte, fugi a salto,
lutei pela liberdade,
pus os pontos nos ii
das letras do nosso alfabeto,
pela lei e pela grei gritei bem alto,
de norte a sul, de leste a oeste,
e o teu chão te defendi,
contra todos os invasores e usurpadores,
piratas e corsários.
A verdade, a verdade,
é que cobiçada por muitas gentes,
desejada por muitos senhores,
nunca nenhuma armada invencível te venceu,
ó Praia de Paimogo da minha infância.
Se te perdeste,
se alguma vez te perdeste,
foi só por amores.
No antigo reino mouro,
e. depois franco e fero, da Lourinhã,
também os búzios me diziam
que à noite as luzinhas,
a sul das ilhas das Berlengas,
eram as alminhas
dos que morriam
no mar, sem sepultura cristã.
Pobres náufragos,
marinheiros, pescadores,
poetas loucos, errantes, noctívagos,
imigrantes clandestinos,
desterrados, degredados das guinés e dos timores,
soldados perdidos das batalhas da Roliça e do Vimeiro,
corsários, contrabandistas,
pecadores, mariscadores.
à deriva,
sem um ui nem um ai,
agarrados às tábuas do barco Deus é Pai.
Hoje não acredito mais
nessas lendas das alminhas
que eu ouvia aos ceguinhos das feiras,
vendedores de letras de fado
e do Borda-d’Água:
afinal essas luzinhas,
lá longe e ali tão perto,
nada têm de fétiche,
são apenas as traineiras,
ao largo do Mar do Cerro,
que andam atrás dos cardumes de sardinhas,
e depois regressam a Peniche.
Lourinhã, 12/8/2004
Versão 11, 14 ago 2016
Lourinhã > Vimeiro > 8 de agosto de 2011 > Monumento comemorativo e centro de interpretação da Batalha do Vimeiro > Azulejo alusivo ao desembarque das tropas luso-britânicas, na Praia de Paimogo, em 19 de Agosto de 1808... A batalha do Vimeiro desenrolou-se em 21 de Agosto de 1808. Azulejo desenhado e pintado à mão por Salvador (2000). (*)
Foto (e legenda): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados.
Deus é Pai - O concelho da Lourinhã também tem a sua quota-parte na história trágico-marítima deste país. Entre 1968 a 2000, foram contabilizados seis naufrágios de barcos de pesca onde morreram três dezenas de filhos da terra, com especial destaque para as gentes de Ribamar (fora outros acidentes de trabalho mortais, cujo número se desconhece).
andarilho de costa a costa,
negociante de peixe,
almocreve,
apanhador de algas,
caçador submarino,
amigo do fado e da boémia,
poeta, pirata e frade,
mulher e fêmea,
viúva de vivo e de morto,
Zé-Ninguém, cidadão, clandestino.
Vim da Bretanha em barcos a vapor,
remei do estuário do Tejo,
em bateiras,
costa acima,
e avieiro fui nos teus longos meses de verão,
na pesca da raia.
Fui fenício, cartaginês, romano,
visigodo, bérbere, moçárabe,
português do mundo em cada porto.
Fui moço de convés nas caravelas e naus dos Descobrimentos,
armei navios, enriqueci, trafiquei,
de escravos fui senhor,
e dono de engenhos nos Brasis,
feitorias e pontas na Guiné,
roças e fazendas em Angola.
Embarcadiço e capitão do norte,
aventureiro e explorador colonial,
bandeirante, roceiro e garimpeiro,
prostituta e proxeneta,
e até de príncipes fui conselheiro.
poeta, pirata e frade,
mulher e fêmea,
viúva de vivo e de morto,
Zé-Ninguém, cidadão, clandestino.
Vim da Bretanha em barcos a vapor,
remei do estuário do Tejo,
em bateiras,
costa acima,
e avieiro fui nos teus longos meses de verão,
na pesca da raia.
Fui fenício, cartaginês, romano,
visigodo, bérbere, moçárabe,
português do mundo em cada porto.
Fui moço de convés nas caravelas e naus dos Descobrimentos,
armei navios, enriqueci, trafiquei,
de escravos fui senhor,
e dono de engenhos nos Brasis,
feitorias e pontas na Guiné,
roças e fazendas em Angola.
Embarcadiço e capitão do norte,
aventureiro e explorador colonial,
bandeirante, roceiro e garimpeiro,
prostituta e proxeneta,
e até de príncipes fui conselheiro.
Carreguei vinho em barris
no bojo da nossa Nau Catrineta,
para a corte russa, imperial.
Naufraguei em ilhas longínquas, polinésias,
adubei as inférteis terras
com o limo do mar dos sargaços.
Fiz o meu ninho de ave de rapina
no alto das tuas falésias,
fui presa e predador,
dos contrabandistas segui, à noite, os passos.
Lavrei o mar, semeei a morte,
sobrevivi a mil e uma guerras,
e os meus mortos enterrei
nas tuas areias.
Vigiei o mar, o céu e a terra
do alto setecentista do teu forte.
Tive visões, vi monstros, seduzi sereias,
fugi das garras dos terópodes,
escapei dos mandíbulas dos crocodilos,
lutei contra muitas outras feras,
fiz a paz, fiz a guerra,
e ao teu seio retornei,
minha Mátria, Frátia, Pátria amada.
Da vida conheci todo os estilos,
fui condenado às galeras
e quase devorado por gigantes gastrópodes,
peguei de caras o auroque e o minotauro,
estive cativo do mouro
nas longínquas Mauritânias,
choquei os teus ovos de dinossauro,
construí castros, citânias,
andei à deriva dos continentes,
fui maçarico, checa e periquito
nas guerras coloniais,
sobrevivi à fome, à cólera e à peste
(e ao bispo da nossa terra!)
aos vulcões e aos tsunamis,
andei a monte, fugi a salto,
lutei pela liberdade,
pus os pontos nos ii
das letras do nosso alfabeto,
pela lei e pela grei gritei bem alto,
de norte a sul, de leste a oeste,
e o teu chão te defendi,
contra todos os invasores e usurpadores,
piratas e corsários.
A verdade, a verdade,
é que cobiçada por muitas gentes,
desejada por muitos senhores,
nunca nenhuma armada invencível te venceu,
ó Praia de Paimogo da minha infância.
Se te perdeste,
se alguma vez te perdeste,
foi só por amores.
Quando eu era criança,
quando eu tive a sorte de ser criança
como diria o Fernando Pessoa,
as sardinhas voltavam sempre,
em frágeis cardumes de prata e luar,
à praia onde haviam desovado.
Quando eu era menino e moço,
no tempo em que ainda partiam soldados
para as nossas índias, para as nossas goas,
havia uma princesa, moura, encantada,
numa das tuas grutas submarinas,
o corpo coberto de ágar-ágar.
Era fonte de água pura, quente e doce,
alimentando mares interiores e lagoas,
donde bebiam os ofegantes cavalos alados,
com as suas enormes narinas.
E o vento, a nortada,
nas velas dos barcos e dos moinhos,
falavam-me da tragédia antiga,
mas ainda viva,
da filha do teu capitão
que se havia matado do alto da arriba,
dizem que por amor e solidão.
quando eu tive a sorte de ser criança
como diria o Fernando Pessoa,
as sardinhas voltavam sempre,
em frágeis cardumes de prata e luar,
à praia onde haviam desovado.
Quando eu era menino e moço,
no tempo em que ainda partiam soldados
para as nossas índias, para as nossas goas,
havia uma princesa, moura, encantada,
numa das tuas grutas submarinas,
o corpo coberto de ágar-ágar.
Era fonte de água pura, quente e doce,
alimentando mares interiores e lagoas,
donde bebiam os ofegantes cavalos alados,
com as suas enormes narinas.
E o vento, a nortada,
nas velas dos barcos e dos moinhos,
falavam-me da tragédia antiga,
mas ainda viva,
da filha do teu capitão
que se havia matado do alto da arriba,
dizem que por amor e solidão.
No antigo reino mouro,
e. depois franco e fero, da Lourinhã,
também os búzios me diziam
que à noite as luzinhas,
a sul das ilhas das Berlengas,
eram as alminhas
dos que morriam
no mar, sem sepultura cristã.
Pobres náufragos,
marinheiros, pescadores,
poetas loucos, errantes, noctívagos,
imigrantes clandestinos,
desterrados, degredados das guinés e dos timores,
soldados perdidos das batalhas da Roliça e do Vimeiro,
corsários, contrabandistas,
pecadores, mariscadores.
à deriva,
sem um ui nem um ai,
agarrados às tábuas do barco Deus é Pai.
Hoje não acredito mais
nessas lendas das alminhas
que eu ouvia aos ceguinhos das feiras,
vendedores de letras de fado
e do Borda-d’Água:
afinal essas luzinhas,
lá longe e ali tão perto,
nada têm de fétiche,
são apenas as traineiras,
ao largo do Mar do Cerro,
que andam atrás dos cardumes de sardinhas,
e depois regressam a Peniche.
Lourinhã, 12/8/2004
Versão 11, 14 ago 2016
Lourinhã > Vimeiro > 8 de agosto de 2011 > Monumento comemorativo e centro de interpretação da Batalha do Vimeiro > Azulejo alusivo ao desembarque das tropas luso-britânicas, na Praia de Paimogo, em 19 de Agosto de 1808... A batalha do Vimeiro desenrolou-se em 21 de Agosto de 1808. Azulejo desenhado e pintado à mão por Salvador (2000). (*)
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Notas de LG:
Fonte: Cipriano, Rui Marques (2001) – Vamos falar da Lourinhã. Lourinhã: Câmara Municipal da Lourinhã.
[Dizia-se na época que o barco Deus é Pai fora cortado ao meio à noite por um cargueiro russo, e que os náufragos teriam sido levados, vivos, para aquele país da "cortina de ferro", na altura a URSS... Em vão esperaram por notícas deles, as "viúvas dos vivos", vestidas de preto... Os únicos destroços que deram à praia terão ao sido restos de redes e a tabuleta com os dizeres "Deus é Pai".]
Dinossauros - A região do Oeste (e em particular o concelho da Lourinhã) é rica em vestígios paleontológicos dos dinossauros do Jurássico Superior (c. 150 milhões de anos). Em 1993, foi descoberto na zona de Paimogo aquilo que viria a ser considerado o maior ou um dos maiores ninhos de ovos de dinossauro do mundo. Segundo o jovem paleontólogo e meu amigo, o Doutor Octávio Mateus, a jazida de Paimogo tem cerca de 120 ovos. “Existem ovos ou cascas de ovos mais antigos, mas o ninho de Paimogo é a mais antiga estrutura de nidificação. É o único com embriões na Europa e possui os mais antigos ossos com embriões do mundo (150 milhões de anos)”. Além disso, misturados com os ovos de dinossauro, “descobriram-se três ovos de crocodilo, os mais antigos do mundo". Essa ocorrência, conclui o jovem cientista lourinhanense, "permite-nos pensar numa relação de comensalismo entre dinossauros e crocodilos durante o Jurássico”. [Vd. Museu da Lourinhã > Paleontologia]
Mariscadores - Em agosto de 2005 foi lançado um livro interessante sobre A Apanha Artesanal de Recursos Marinhos Costeiros no Concelho da Lourinhã, da autoria da bióloga marinha Ana Silva, natural do concelho da Lourinhã. Esta actividade, embora complementar (da agricultura, da pesca, etc.), ainda hoje é um dos traços da identidade cultural das gentes ribeirinhas deste concelho. A edição do livro é da Câmara Municipal da Lourinhã (2005).
Paimogo - A presença humana em Paimogo está documentada por vestígios arqueológicos, remontando pelo menos ao Calcolítico. A região da Lourinhã também foi habitada por povos como os iberos, os fenícios, os gregos, os túrdulos e os cartagineses. A passagem mais marcante foi, todavia, a dos romanos e, depois, a dos mouros. Na reconquista destas terras, D. Afonso Henriques foi ajudado por cavaleiros francos (isto é, oriundos da antiga Gália), entre eles D. Jordão [Jourdain, em francês], que irá ser o primeiro donatário da Lourinhã.
[Dizia-se na época que o barco Deus é Pai fora cortado ao meio à noite por um cargueiro russo, e que os náufragos teriam sido levados, vivos, para aquele país da "cortina de ferro", na altura a URSS... Em vão esperaram por notícas deles, as "viúvas dos vivos", vestidas de preto... Os únicos destroços que deram à praia terão ao sido restos de redes e a tabuleta com os dizeres "Deus é Pai".]
Dinossauros - A região do Oeste (e em particular o concelho da Lourinhã) é rica em vestígios paleontológicos dos dinossauros do Jurássico Superior (c. 150 milhões de anos). Em 1993, foi descoberto na zona de Paimogo aquilo que viria a ser considerado o maior ou um dos maiores ninhos de ovos de dinossauro do mundo. Segundo o jovem paleontólogo e meu amigo, o Doutor Octávio Mateus, a jazida de Paimogo tem cerca de 120 ovos. “Existem ovos ou cascas de ovos mais antigos, mas o ninho de Paimogo é a mais antiga estrutura de nidificação. É o único com embriões na Europa e possui os mais antigos ossos com embriões do mundo (150 milhões de anos)”. Além disso, misturados com os ovos de dinossauro, “descobriram-se três ovos de crocodilo, os mais antigos do mundo". Essa ocorrência, conclui o jovem cientista lourinhanense, "permite-nos pensar numa relação de comensalismo entre dinossauros e crocodilos durante o Jurássico”. [Vd. Museu da Lourinhã > Paleontologia]
O Forte de Paimogo, construído em 1674, durante a regência do príncipe D. Pedro, futuro rei D. Pedro II, “fazia parte de uma linha defensiva da costa portuguesa, que começava na Praça Forte da vila de Peniche e se estendia até ao Forte de São Francisco de Xabregas, na cidade de Lisboa” (Cipriano, 2001.143). Embora classificado como imóvel de interesse público pelo Decreto nº 41191, de 18 de Julho de 1955, encontrava-se até há uns largos anos em estado de ruína. Foi, entretanto, objeto de recuperação pela Câmara Municipal da Lourinhã, mas está novamente em estado de abandono... (**)
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 18 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11950: Manuscrito(s) (Luís Graça) (8): Périplo amoroso pelas praias da Lourinhã, no nosso querido mês de agosto de todos os aniversários...
(**) Último poste da série > 13 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16385: Manuscrito(s) (Luís Graça) (89): O exército de reserva de mão de obra infantil...
(*) Vd. poste de 18 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11950: Manuscrito(s) (Luís Graça) (8): Périplo amoroso pelas praias da Lourinhã, no nosso querido mês de agosto de todos os aniversários...
(**) Último poste da série > 13 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16385: Manuscrito(s) (Luís Graça) (89): O exército de reserva de mão de obra infantil...
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