Fotos: © Idálio Reis (2007). (Editadas por L.G.). Direitos reservados.
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1. Mensagem de hoje do Idálio Reis
Grande companheiro Luís
Julgo prudente não emitir qualquer opinião ante a verborreia maliciosa e cínica do paisano Manuel Trindade (1).
Já tive a oportunidade de me pronunciar sobre o hino de Gandembel, aquando do envio, [em 6 de Novembro último,] do CD do António de Almeida. Segue de novo em anexo.
A Tertúlia deverá tomar conhecimento prévio desse post, e então procurarei conseguir dar a compreender o que a letra daquela canção, genuinamente popular, quer significar. A guerra teve várias faces, mas a pior de todas tem sido a do seu branqueamento.
Fraternal abraço à tertúlia do Idálio Reis
3. Mensagem de 6 de Novembro de 2007:
Meus caros editores-mor:
Enviei para a Escola do Luís um CD contendo 2 versões do Hino de Gandembel, do meu camarada ex-soldado António Almeida.
Demorou mais algum tempo que previa, mas ele andou a encetar diligências para se fazer acompanhar por uma banda, com gravação num estúdio.
Como me afirmou, foi a 1.ª vez que se viu metido nestas alhadas e sentiu-se um pouco nervoso.
De qualquer forma, o Almeida está de parabéns e o Blogue fica mais rico. Quem quiser apoiá-lo, o seu telemóvel é o 932896244.
Anexo um pequeno texto que apelidei de traços de Gandembel, para lhe emprestar algum enquadramento.
Um grande abraço do Idálio Reis.
Comentário de L.G.:
Idálio: Por lapso, o teu texto, tão autêntico, tão profundo, tão rico, de análise de conteúdo à iconografia de Gandembel/Balana e à letra do vosso hino, que acompanhou o envio do CD-ROM com a versão musical do Hino de Gandembel, não foi lamentavelmente publicado na altura (2)... Se o tivesse sido, talvez não houvesse nenhum (pré)-texto humorístico como aquele que publicámos...
E a propósito dou-me agora conta de que, muitas vezes sem querer, podemos magoar as pessoas e os seus sentimentos mais propfundos, com as coisas que escrevemos e publicamos aqui, no nosso blogue... É um risco calculado, com que todos os camaradas da Guiné têm que saber viver... Nada do aqui dizemos é neutro, inócuo, inocente, gratuito...mesmo quando abordamos, com ligeireza, o nosso quotidiano (sofrido) de guerra...
Um ou outro dos nossos camaradas já se têm afastado da nossa Tabanca Grande, discretamente, sem grandes protestos, porque nem sempre se reconhecem nas coisas que publicamos, e implícita ou até explicitamente têm criticado a nossa orientação editorial. Como sabes, o nosso blogue tem feito um esforço por ser plural, pluralista, aberto, isento... Não é fácil, ainda por cima quando se é generoso e se abre as portas a toda (ou quase toda) a gente...
Tu, que estiveste em Balana, sabes a importância que tem uma ponte...Ora o nosso blogue não é apenas um jornal de caserna, uma câmara de eco dos que nele escrevem, um circuito de comunicação fechada e autofágica, é também uma ponte, um elo de ligação entre duas margens, mas também uma via para a outra margem... para aqueles, mais jovens, como porventura é o caso do Manuel Trindade e de outros paisanos que nos visitam - e que, no fundo, nos admiram e respeitam, embora possam não compreender-nos, em parte ou em grande parte... Não vamos cortar essas pontes. E, muito menos, silenciar com tiro de morteiro certeiro aqueles que estão do outro lado, na outra margem...
Temos, contudo, o direito... à indignação quando não respeitam os nossos sentimentos. De qualquer modo, és um homem sábio quando decides desvalorizar o caso... Dito isto, vamos ao que interessa, que é o teu texto, que merece toda a nossa atenção e reflexão.
Não serve de consolo dizer-te isto, mas tenho que o dizer, embora tu o saibas muito melhor do que eu: Gandembel e Balana ficarão para sempre ligados à tua companhia, aos teus bravos da tua companhia, a CCAÇ 2317. Gandembel/ Balana é vosso, para sempre: refiro-me não ao pedaço de floresta desmatada do sul da Guiné, junto ao Rio Balana, onde flutuou a bandeira verde-rubra entre Abril de 1968 e Janeiro de 1969, mas sim às memórias, às emoções, ao desassossego, à saudade, ao medo, à fome, à tristeza, ao desalento, à merda, ao sangue, às lágrimas... e também ao orgulho, ao brio, à coragem, à brincadeira, à camaradagem, à alegria, à esperança... Isso, camarada, nada nem ninguém (nem muito menos a História) vos pode roubar!!!
Hino de Gandembel cantado por António Almeida, residente em pedrouços, Maia, ex-soldado da CCAÇ 2317 ( Gandembel / Balana , 1968/69), com acompanhamento musical de um amigo e conterrâneo. Vídeo: 2 m 42 s. Alojado no You Tube > Nhabijoes.
Vídeo: © António Almeida / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
Traços de Gandembel: das fotografias ao seu hino
por Idálio Reis
Meus caros Luís, Vinhal e Briote.
Faço enviar, para o Luís, um CD de áudio onde o meu camarada ex-soldado António Pinto de Almeida, residente em Pedrouços-Maia, fez gravar o hino da sofrida Gandembel, cantado a seu modo, entoado como ele o fazia há quase 40 anos. Mas agora, até se deu ao privilégio de se fazer acompanhar de uma banda, e ao ouvi-lo fiquei encantado.
A maneira como se prestou a fazer partilhar este favor que lhe pedi, já o agradeci em nome da Tertúlia. Para quem sempre esteve ao lado desta enorme gente, mais uma enorme prova de estima e consideração por este seu velho amigo.
Porventura, caberá a vez ao nosso balador-mor Gabriel Gonçalves saber conjugar, com o seu benjamim, essa voluntariosa missão técnica de sonoplastia, e assim em definitivo fazer florescer mais uma das célebres cantigas de amigo, para fazer repartir sonoramente por todos nós.
Aproveito a circunstância deste envio, para me debruçar um pouco sobre esta canção, invocando também as fotografias que apareceram no post P2152 de 4 de Outubro (2).
O Luís tem feito destacar uma, em que eu-próprio apareço envolto no cobertor que me servia de colchão, a tentar que uma pá provocativamente calejante, porque a gastaram de tantas canseiras, emitisse um sonido tangível, cristalino e plangente, a fim de que uma transformada canção de gesta ecoasse rio Balana abaixo, e chegasse em velocidade da luz, embalada ao mundo dos meus e dos nossos.
E para seus contentos, lembro-me que lhe incuti uma secreta aspiração, ainda que reconhecesse ser muito difícil de sobrepujar. De todo não chegou ao destino, tudo indiciando que os seus ecos se vieram a sumir no marulhar de um macaréu de lua, acabando por se esvanecer na salsugem do Geba.
E aí se quedou de mansinho durante muitos anos, enquistada talvez nalguma ostra perlífera, e um dia o Luísv Graça & Camaradas da Guiné a remoçou em melopeia cândida e dolente, que cativantemente nos vem seduzindo e incontidamente nos emudece, já que ela teve o condão de aglutinar miríades de recordações marcadas por aquele frenesim delirante que aquela tremenda Guiné tantas vezes nos avassalou.
Procuro perceber as causas desse estancamento repentino, e agora me lembro que, naqueles tempos de antanho, havia imensas dificuldades para transpor as fronteiras do império. A autocracia totalitária tudo abafava, inclusive o exaspero ou o desalento.
De todo o modo, a guerra subversiva que nos entranhava, ainda continha um certo poder de rebusca para de todo não dobrar a cerviz. Deleitantemente houve enlevos que parecem terem-se mantido, como a fotografia que nos mostra este conto-imagem, que fundamentalmente se consubstancia na fidelidade. Ela é uma parte imanente da nossa memória plena, a querer continuar a perdurar bem presente até ao infinito, que não ousa enganar, trair ou ludibriar.
A fotografia fixa uma imagem a advir de um pulsar num determinado momento-instante. Creio que os milhões de vezes que o indicador da mão direita premiu o botão da máquina, revérberos de uma luz intensa, se transformaram em estrelas cintilantes a iluminar o sonho vivo da presença. Mesmo que se assemelhassem a um fogo-fátuo, conseguiram que esboçássemos um doce sorriso, porque ainda estávamos de pé, numa Guiné onde se intentava viver obsessivamente para ver amanhecer o dia posterior.
As 2 fotografias que aparecem no Post, como as que fomos guardando num recanto especial como autênticas relíquias, são fortemente expressivas ao revelarem-se-nos. Talvez por isso, têm de ser observadas com uma apurada acuidade visual, para que nos elucidem em contemplação, o que foram as vivências desses conturbados tempos que nos assolou com tantos confrontos.
E uma grande maioria delas arrebatam-nos sensorialmente a fim de lhes emoldurar uma legenda capaz de as interpretar. Ah!, mas quantas delas denotam uma possança tão forte que nos anuviam os sentimentos e por vezes quaisquer palavras que se lhes apensem, perdem sentido.
Torna-se então preferível aprofundar uma sua absorção, deixar que elas exteriorizem todo o seu conteúdo, mas no êxtase da sua contemplação, nada se consegue comentar. Tudo parece resultar do local e do momento que se pulsou a máquina que a fixou.
Também elas transparecem uma particularidade muito peculiar, a da sua intemporalidade, no contexto em que um relance da sua visão nos transmite todo o itinerário das nossas vidas até ao presente, onde se cruzam emoções em rodopio, uma furtiva lágrima pinge sobre a barba esbranquiçada, para questionar-mo-nos se tantos tropeços valeram a pena.
Aventuro-me a afirmar que nem tudo valeu a pena, apesar de as nossas almas se terem mostrado demasiado grandes, não haja a mínima dúvida. Mas quantas vicissitudes nos foram compulsivas!
O Luís gostou mais de uma, de um conteúdo mais global [«nesta fotografia de um camarada sozinho, no palco da guerra, no cu do mundo, estamos lá todos»]. Será muito difícil não encontrar uma qualquer fotografia que não nos inebrie, dado que elas conseguem desnudar-se nas facetas várias da camaradagem [«as alegrias, as tristezas, a coragem, a solidão, a esperança, os medos, os sonhos, os intervalos»].
É tudo isso, meu caro Luís, a saudade que o isolamento de Gandembel fazia aflorar de um modo persistente, toma lugar com muita veemência. Talvez por isso, a fotografia representa a iconografia do soldado atormentado pelo desassossego.
Já o Nuno Rubim propendeu para uma outra. Intento reconhecer as razões dessas escolhas, já que sobre esta, permitam-me tecer alguns comentários, ao que legendei de banhos de imersão, onde o elemento água toma aqui um valor insuperável.
Gandembel, num dos períodos mais cruciais, o do início do aquartelamento, debateu-se com falta de água, mesmo a provir de charcas que o leito do Balana ia contendo, e que bebemos durante quase 2 meses, ainda que reconhecendo ser imprópria para consumo. Um dos nossos maiores contentamentos deu-se no dia em que começou a haver água bastante, com os débitos do rio a aumentarem.
Esta fotografia revela 2 aspectos: a fartura de água que até servia para o pessoal se comprazer naquelas banheiras verticais, mas os cuidados que eram requeridos, já que os bidões estavam dentro do aquartelamento, apesar da distância ao Balana não superar o meio quilómetro. Mas ninguém ousava banhar-se no próprio rio, pelo risco bélico que sempre nos confrontava.
Já o hino de Gandembel contextualiza a gesta dos que tiveram a desdita de nela ousarem (sobre)viver. A sua concepção surge em circunstâncias particularmente difíceis, onde transparece uma mescla de clemência, agonia, alívio, alegria. O seu contributo para o estímulo da Companhia foi valioso, na pacificidade das tensões, e daí que se viesse a repercutir por alguns aquartelamentos. Hoje o Blogue, ao fazer divulgar a sua forma cantada, fá-lo resplandecer, e torna-se um hossana.
Mas permita-se-me uma leitura aliás bastante subjectiva, muito em especial de alguns dos seus versos.
(i) Das peripécias de guerra mais penosas, foi a audição dos milhares dos ecos das saídas dos morteiros 82, «Gandembel das morteiradas» que quase quotidianamente flagelavam aquele aquartelamento; os momentos de ansiedade e expectativa, enquanto a granada silvava os ares na sua trajectória indefinida, eram aterradores: «Meu alferes, uma saída/Tudo começa a correr»; havia um estrondo quando deflagrava, e tudo se poderia esvair naquele contacto com o solo: onde? longe? ao lado? «Não é p´ra aqui, é p´ra Ponte/Logo se ouve dizer».
(ii) Uma das outras facetas negras, que envolve um doloroso e prolongado tempo, foi a do espectro da fome, pois a variedade das refeições quase não se alterava, em que os frescos não existiam: «A comida principal/É arroz, massa e feijão». Longos períodos sem uma bebida que não fosse água: «Bebida, diz que nem pó/Acontece o mesmo ao vinho».
Sim, Gandembel foi um local onde o perigo pairava a cada momento, e o seu tempo mais agradável conhecia-se por bonança. E, por vezes ao entardecer, saía de uma caserna-abrigo, um coro à capela, à busca de um contentamento de tranquilidade, e também de rogo para que a noite decorresse sem queixumes.
Mas quantas vezes, no pedido não satisfeito, as noites estremunhavam e o cansaço ou desalento agudizavam-se. E mal despontava o dia, em alvor da madrugada fustigante, ouvia-se um forte brado, de revolta, não mais que um grito de chamamento para ninguém: «TIREEEEEM-ME DAQUI!».
Um fraterno abraço a todos, do Idálio Reis.
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Notas de L.G.:
(1) vd. posts de:
1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2321: Humor de caserna (3): Hino de Gandembel: hino de guerra ou música pimba ? (Manuel Trindade)
2 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2323: Um insulto aos heróis de Gandembel (Zé Teixeira)
2 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2324: (Ex)citações (1): Um pouco de humor de vez em quando também nos faz bem (Henrique Matos)
(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2319: Hino de Gandembel: interpretação de António Almeida (CCAÇ 2317, Gandembel/Balana, 1968/69)
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