2 de Maio de 2005
Castro:
Recebi os 4 DVD. Estou a passá-los no meu computador portátil. Já vi os quatro por alto, parecem-me estar em boas condições de som e imagem. Estou muito emocionado ao visioná-los. Só falta sentir o cheiro da terra e da chuva. Mas aquele sorriso aberto dos guinéus é inconfundível. Estou-te muito grato pelo teu gesto, que é de amigo e camarada. Espero poder retribuir-te.
Já agora: quem é o autor do vídeo ? Isto é trabalho de profissional. E é um documento notável que deveria poder chegar ao conhecimento de todos os camaradas que andaram por todos estes sítios… Pelo sotaque, é tudo malta do norte, não é ? Vou continuar a ver os vídeos. Depois falamos mais. L.G.
3 de Maio de 2005:
Luís:
De facto parece trabalho de profissional. É um trabalho notável. O que acontece é que, se reparares, de vez em quando aparece um rapaz mais novo, é filho de um deles(que eu não conheço). Aproveitou essa viagem para fazer um trabalho para apresentar no curso de jornalismo.
A malta é essencialmente do Minho, do Norte, à excepção do que é mais alto. Esse é algarvio, foi furriel de TRMS. Estão aí ex-combatentes talvez mais velhos e da mesma idade que nós. No Xime o homem que está a falar é da minha companhia. Todos os outros, creio que são mais velhos do que eu. Como podes reparar, apesar de não nos conhecermos pessoalmente, é um prazer enorme para mim poder partilhar um documento sobre uma terra que nos tocou profundamente. Tenho facilitado cópias a várias pessoas que me parecem mostrar interesse por estas coisas. Dentro de pouco tempo o Guimarães irá receber uma cópia dos DVD.
3 de Maio de 2005:
Castro:
Cinco estrelas! Já vi os DVD que me mandaste. São seis horas de filme! De facto, percebi logo que era malta do Norte pelo à vontade, pela postura e pelo sotaque…Também percebi que era o filho de um deles o operador o vídeo, o filho do Albano Cardoso, um tipo que esteve em Guidage (e que gostava de fazer fotografia).
O teu camarada da CART 3494 que esteve no Xime é fácil de identificar, é um careca, de nome Lúcio, ex-bazuqueiro. Ele mostra, no filme, os restos do quartel, e é reconhecido por pessoas do vosso tempo, incluindo uma lavadeira…
Foi tocante para mim reviver a Guiné, com as belas imagem e a excelente banda sonora dos filmes.. Foi também a ocasião para conhecer o norte e o sul da Guiné, aonde nunca tive a oportunidade de ir…
O grupo é curioso porque inclui malta que esteve em todo o sítio, norte, leste e sul, e de diferentes anos (há um que esteve em Bafatá, logo no princípio da guerra). É comovente ver como os guinéus mantêm o cemitério dos tugas, caiado, impecável…
Reconheci, em Mansambo, um antigo soldado nosso, da CCAÇ 12, o Cherno, hoje com 17 filhos… Também reconheci as nossas instalações em Bambadinca… Gostei de recordar Bafatá, que está a precisar de ser reconstruída… Do Xitole, tenho menos recordações, uma vez que nunca lá vivi, ia lá só em colunas logísticas… Mas há também interessantes apontamentos para perceber a realidade de hoje…
Gostava de contactar o filho do Albano Cardoso (o tal de Guidage), e que hoje deve ser jornalista, não ? Talvez o Lúcio saiba alguma coisa dele…
Bem hajas! Um dia destes telefono-te. L.G.
5 de Maio de 2005:
Guimarães: Obrigado pelas tuas fotos da viagem à Guiné em 2001. Consegui abri-las todas, excepto a do Restaurante Lusófono, com o vosso grupo (tu, o enfermeiro, o Dr. Vilar e a família). É, de facto, um regalo para a vista… O puto que está contigo, no baga-baga, é filho do Vilar ?
Também já me tinham dito que as bolanhas na Guiné se estão a degradar e a salinizar e que muitas delas deram origem a plantações de caju… No nosso tempo, ainda havia, apesar da guerra, belas plantações de arroz, quer nas zonas controladas pelas NT quer nas regiões sob controlo do PAIGC (por exemplo, no Poindon…).
Não era por acaso que o Amílcar Cabral era engenheiro agrónomo. Sabias que antes da guerra a Guiné exportava arroz ? Era a base da alimentação das populações locais. Os meus soldados, que eram desarranchados, compravam um a dois sacos de arroz por mês. O pré de um soldado de 2ª classe era de 600 pesos. Tinham mais 24 pesos por dia (se não me engano), por serem desarranchados. Com 1200/1300 pesos (1 peso=1 escudo), compravam dois sacos de arroz (de 50 quilos, creio)… Todos eles eram casados, com uma ou mais bajudas…
É giro, no 3º DVD que o Castro me mandou (e que remonta a Novembro de 2000), reconheci em Mansambo um soldado da CCAÇ 12, Cherno Baldé, apontador de diligrama…Foi o Lúcio, bazuqueiro da companhia do Xime, colega do Castro, quem o reconheceu… Filmaram a casota dele e os filhos: duas mulheres, e 17 filhos, nem mais!... Como no tempo dos nossos avós! Alguém, por graça, lhe deu uma camisinha…
Tenho pena deste povo, que a assim não vai a lado nenhum… No entanto, não detectei no filme sinais aparentes de fome, o que já é bom… Mas a Guiné continua uma alta taxa de mortalidade infantil: creio que morrem 145 crianças em cada 1000, antes de atingirem um ano… Como estás na Segurança Social, talvez te interesse um a tese de mestrado que foi feita, em 1999, numa escola de saúde pública como a minha, mas no Rio de Janeiro. O autor é guineense, é o actual Director Geral de Saúde, Tomé Cá.
A tese, pelo que eu li muito por alto, parece-me interessante e metodologicamente correcta. O autor mostra um bom domínio do campo da epidemiologia e da estatística. Faz a análise de dados da mortalidade infantil no período de 1990-1995, desagregados por grupos étnicos (os principais da Guiné-Bissau: balantas, fulas, mandingas, manjacos, papéis…). Chamou-me a atenção sobretudo a variável etnológica: os diferentes grupos étnicos da Guiné-Bissau (que são mais de 30) têm diferentes atitudes, comportamentos, valores, representações da saúde/doença… Os dados daqui a uns tempos só terão interesse histórico. Não vou aqui discutir as limitações da base de dados em que o autor se apoiou. Mas ele também fez trabalho de campo, através de inquérito por questionário de saúde. Este tipo de trabalhos merecem ser divulgados. Sopbretudo por aqueles de nós que têm uma especial ligação à terra onde conhecemos o céu e o inferno, a guerra e a paz, a estação das chuvas e a estação seca, a savana arbustiva e floresta tropical... Os guinéus são um povo amável e hospitaleiro que bem merece todo o nossoa apoio e amizade. É tocante como, por exemplo, em Bambadinca, no 3º DVD, eles falam connosco, sem ressentimentos do passado, e ao mesmo tempo com esperança. São jovens militares, pertencentes ao exército da Guiné-Bissau, que não conheceram a guerra colonial, e que estão a falar com os tugas, seus irmons, ex-combatentes da guerra colonial... Trinta e tal anos depois!
Tomé Cá (1991) -
Determinantes das diferenças de mortalidade infantil entre as etnias da Guiné-Bissau, 1990-1995.
Tese de mestrado em saúde pública.
Rio de Janeiro: ENSP. 1991. 93 pp.
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O filme, realizado em Novembro de 2000, por ocasião de uma viagem de 16 dias à Guiné, em dois jipes, foi feita por um grupo de dez ex-combatentes, quase todos do Norte. O Sousa de Castro teve a gentileza de me facultar uma cópia para uso pessoal. Estou profundamente reconhecido ao autor do vídeo e aos companheiros desta inesquecível viagem de regresso à Guiné. Aqui fica a sequência das filmagens:
1º DVD: Introdução, Viagem para a Guiné, Cidade de Bissau, Hospital militar e arredores; Interior da Guiné: Cumuré, Jugudul, Xime.
2º DVD: Xime, Mansambo, Quebo (antiga Aldeia Formosa), Fonte Balana, Chamarra, Buba (Aldeia Turística), Destacamento de Buba, De norte para sul.
3º DVD: Guidage, Binta, Farim, Jumbembem, Canjambri, Fajonquito; Zona leste: Bafatá, Bambadinca, Xitole; a sul da Guiné: Empada, Chugué, a caminho de Bedanda;
4º DVD: A caminho de Bedanda, Cacine, Gadamael Porto, Cobumba, Catió, Saltinho (A tabanca), Bissau.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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